OBRIGAÇÃO NATURAL
DOAÇÃO EM CUMPRIMENTO DE DEVER MORAL OU SOCIAL
DOAÇÃO REMUNERATÓRIA
PROPOSTA DE DOAÇÃO
ACEITAÇÃO PELO DONATÁRIO
Sumário


i) Importa não confundir uma obrigação natural com a doação ou deixa em cumprimento de um dever moral ou social; no primeiro caso, há a consciência de que se cumpre uma obrigação; no segundo, a de que se faz uma liberalidade;
ii) A doação remuneratória também não se pode confundir com a obrigação natural; na doação remuneratória há o animus donandi, a intenção de fazer uma liberalidade, de enriquecer o património do donatário à custa do património do doador, ao passo que, no cumprimento de obrigação natural, tem-se em vista evitar um empobrecimento imoral ou injusto;
iii) O que caracteriza as doações remuneratórias é a circunstância de não terem os serviços que pretendam remunerar a natureza de dívida exigível; não há uma obrigação por parte do doador em relação ao donatário, sobressaindo o princípio de que há doação sempre que haja liberalidade e espontaneidade, liberalidade essa que não representa uma solutio nem uma dação em cumprimento;
iv) O facto de o doador ter ficado grato pela recepção do serviço, leva-o a querer remunerar quem lho prestou, ainda que em termos jurídicos não seja obrigado;
v) Na doação remuneratória, o que sobressai é o espírito de gratidão e recompensa dos serviços recebidos pelo doador, existindo, pois, uma liberalidade com o escopo de recompensar;
vi) Provado que: - o montante de 5.000 € foi reconhecido pelo falecido AA como sendo devido ao A. a título de compensação pelas despesas que este suportou e pelo tempo que despendeu ao acompanhá-lo (transportá-lo) em inúmeras deslocações ao «Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra», para consultas e tratamentos médicos, uma vez que o falecido era doente (veio a falecer na sequência de um cancro no pâncreas) e não podia deslocar-se sozinho - e - o A., sobrinho e amigo do falecido AA, acompanhou-o nessas deslocações, em prejuízo da sua própria actividade profissional – tinha um pequeno estabelecimento comercial na freguesia ..., Leiria, que constituía a sua fonte de rendimento e que fechava nos dias em que acompanhava o falecido a Coimbra -, apesar de este ter esposa e filho, é de concluir que o falecido AA agiu com o A. por gratidão e vontade de recompensa, ou seja com espírito donandi, por liberalidade da sua parte;
vii) Dispõe o art. 945º, nº 1, do CC, que a proposta de doação caduca, se não for aceita em vida do doador. Não obstante, a tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou do seu título representativo, é havida como aceitação (nº 2). Mas se a proposta não for aceita no próprio acto ou não se verificar a tradição nos termos do número anterior, a aceitação deve obedecer à forma prescrita no art. 947º e ser declarada ao doador, sob pena de não produzir efeitos (nº 3);
viii) Daqui se retira que: a) para que se conclua o processo constitutivo do negócio jurídico, é necessária a aceitação do donatário, pois antes dela existe uma simples proposta de doação, já que o acordo de vontades é sempre elemento essencial, nos termos do art. 232º, da formação de qualquer contrato; b) a aceitação deve ter lugar, sob pena de caducidade da proposta, durante a vida do doador, não sendo necessário, porém, que ocorra no mesmo momento em que é feita a declaração do doador; c) não exige a lei que a declaração de aceitação seja expressa, pois fora do caso previsto no nº 2, deve entender-se, em regra, que a simples intervenção do donatário no acto da doação, por ex: na escritura pública, sem que este exprima o seu dissentimento, é manifestação bastante da aceitação (declaração tácita do art. 217º); d) é havida como tradição, nos termos do nº 2, a tradição para o donatário, em qualquer momento da coisa móvel doada ou do seu título representativo; e) pode a tradição verificar-se no momento da proposta ou num momento posterior, mas terá de realizar-se antes da morte do doador; f) quando a proposta não é aceita no próprio acto, ou não se verifica a tradição, a aceitação tem de obedecer, nos termos do nº 3, à forma prescrita no art. 947º e ser declarada ao doador, sob pena de ineficácia; g) por morte do declarante proponente, é derrogada a regra geral do art. 231º, dado que na doação, em face do seu cariz intuitu personae os herdeiros do doador não ficam vinculados pela proposta do autor da sucessão;
ix) Se o proponente doador faleceu em 2.12.2012, enquanto a declaração de doação ocorreu em 17.9.2012, e nesta data não se comprova que o falecido entregou a quantia de 5.000 € referida na dita declaração, nem a própria declaração, o A. não interveio nesse documento que corporiza a declaração, não aceitando, assim, expressa ou tacitamente a falada doação, nem a tradição ou aceitação por escrito ocorreu posteriormente, a falada proposta de doação, titulada por tal declaração, caducou com o óbito do declarante proponente – art. 945º, nº 1 - , e, também, eventual aceitação não produziu efeitos, atendendo a que sobre o A. impendia a obrigação de, junto do declarante e em vida deste, declarar por escrito a aceitação dos 5.000 € – nº 3 do art. 945º;
x) E por morte do declarante proponente, é derrogada a regra geral do art. 231º, dado que na doação, em face do seu cariz intuitu personae os herdeiros do doador não ficam vinculados pela proposta do autor da sucessão;
xi) Caduca a proposta de doação ou não surtindo a mesma eficácia, cai também a cláusula acessória aposta, uma condição suspensiva, extinguindo-se tal cláusula por ter deixado de existir.

Texto Integral


I - Relatório

1. BB, residente em ..., intentou a presente acção declarativa contra CC e DD, ambos residentes em Leiria, na qualidade de herdeiros e em representação da herança indivisa aberta por óbito de AA, pedindo sejam os réus, únicos herdeiros do de cujus, condenados a: reconhecerem a existência do crédito do autor sobre herança indivisa aberta por óbito de AA, que na presente data ascende a 5.160,55 €, acrescido de juros de mora calculados à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento e a o verem satisfeito pelos bens da referida herança.

Alegou, para tanto, que o falecido AA subscreveu um documento particular em que se confessou devedor para com o autor da quantia de 5.000 €, que se comprometeu a pagar quando recebesse de EE o montante de 30.000 €. Tal montante de 5.000 € foi reconhecido pelo falecido como devido ao autor a título de compensação pelas despesas que este suportou e pelo tempo que despendeu ao acompanhá-lo em inúmeras deslocações ao Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, para consultas e tratamentos médicos, uma vez que o falecido era doente (veio a falecer na sequência de um cancro no pâncreas) e não podia deslocar-se sozinho. Após o falecimento do Sr. AA, o autor tentou junto dos réus - herdeiros daquele - obter o pagamento do valor que lhe era devido, o que, até à data, não ocorreu.

Os réus contestaram, impugnando. Dizem que o falecido não assinou a declaração cuja fotocópia está junta à p.i. sob documento nº 1, sendo o documento falso, tal como a assinatura nele contida. Que se o falecido tivesse querido entregar ao autor a quantia referida poderia tê-lo feito nesse momento, pois dispunha de meios económicos suficientes para tal e não teria condicionado tal entrega ao pagamento de uma dívida por um terceiro. Que o falecido não necessitava que o autor o transportasse até ao Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, pois o Serviço Nacional de Saúde disponibilizou-lhe, como disponibiliza a qualquer paciente nas mesmas condições, transporte diário em ambulância de e para o referido estabelecimento hospitalar. Se o falecido pretendeu compensar o autor pelo facto de este, em determinado período da sua doença, o ter acompanhado nos tratamentos médicos realizados no Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, trata-se, quanto muito, de uma dívida de gratidão, não remunerável ou exigível judicialmente. Que, em representação da herança do falecido, nunca tiveram intervenção em qualquer acção judicial contra o mencionado EE ou receberam deste qualquer valor, não tendo o falecido – ou os respectivos herdeiros ou herança – recebido os 30.000 € referidos no documento nº 1 junto com a p.i. Pelo que, não estando verificada essa condição, não se produzem os efeitos definitivos a que o acto jurídico tendia, não sendo a herança (e, portanto, os réus) devedora ao autor da quantia peticionada. Não sendo devida tal importância, também não o são os respectivos juros. 

*

A final foi proferida decisão que julgou a acção parcialmente procedente, e, em consequência, condenou os RR - na qualidade de herdeiros e em representação da herança indivisa aberta por óbito de AA – a reconhecerem a existência do direito de crédito do A. sobre a herança, no montante de 5.000 €, acrescido dos respectivos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal dos juros civis sucessivamente em vigor, actualmente fixada em 4%, contados da data da citação até efectivo e integral pagamento, e a verem-no satisfeito pelos bens dessa herança, absolvendo-os do demais peticionado quanto a juros.

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2. Os RR recorreram, formulando as seguintes conclusões:

1) A douta sentença sob recurso, fez uma errada subsunção dos factos ao direito.

2) Resulta dos Factos provados que a «confissão de dívida» titulada pela declaração subscrita pelo falecido AA, não tem por base nenhum contrato/negócio donde tivesse podido emergir tal dívida.

3) Conforme resulta desta matéria de facto, o que o falecido AA pretendeu ao subscrever a declaração em discussão nos presentes autos, era compensar o sobrinho, aqui Autor, pelo facto de este em determinado período da sua doença, o ter acompanhado nos tratamentos médicos realizados no Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra.

4) A «causa» alegada pelo Autor e que este considera constituir a relação fundamental para a assunção de dívida por parte do falecido AA, não constitui uma obrigação jurídica geradora de uma dívida e respectiva confissão.

5) Por isso, quando o declarante se confessa devedor de uma determinada importância, tal não corresponde à verdade, tendo os Réus logrado ilidir a presunção de existência da relação fundamental que esteve na base dessa declaração.

6) Tendo os sucessores do declarante provado que tal relação não existe, a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento de dívida.

7) Da matéria alegada e provada pelo Autor, o que resulta existir é, eventualmente, uma obrigação natural – artigo 402º do CC.

8) Nas obrigações naturais, se o devedor não cumpre, o credor não pode exigir juridicamente o cumprimento (artigo 404º).

9) Estando no caso em concreto perante uma mera obrigação natural, dúvidas não podem existir que não existe nenhuma dívida e, muito menos, exigível aos Réus, por parte do falecido AA ao Autor.

10) Para a hipótese de assim se não entender, o que apenas por dever de patrocínio se admite, sempre se dirá que o teor da declaração assinada pelo falecido AA consubstanciará uma mera promessa unilateral de doação ou uma proposta de doação, e não uma doação como se expende na sentença recorrida.

11) Não tendo o contrato prometido (entrega dos € 5.000,00 ao Autor) se verificado em vida do declarante (promitente vendedor), temos que, com o falecimento de AA, caducou tal promessa unilateral de doação.

12) A promessa de doação não é susceptível de execução específica.

13) Não tendo o falecido AA, até à data do seu óbito, entregue ao Autor a quantia de € 5.000 referida na declaração constante do Ponto 1) dos Factos Provados, nem constando do elenco dos factos provados que o declarante entregou em vida tal declaração ao Autor, apenas podemos concluir que o Autor não chegou a aceitar esses € 5.000,00.

14) E assim sendo, dúvidas não há que uma eventual promessa/proposta de doação, titulada por tal declaração, se extinguiu com o óbito do Declarante, não sendo a mesma exigível aos herdeiros, aqui Recorrentes.

15) Sobre o Autor impendia a obrigação de, junto do declarante e em vida deste, declarar a aceitação dos € 5.000,00, sob pena de tal aceitação não produzir os seus efeitos – nº. 3 do artigo 945º.

16) Dos Factos Provados não resulta demonstrado que o Autor, em vida do declarante, tenha junto deste declarado aceitar os € 5.000,00.

17) Da declaração referida no Ponto 1) dos Factos Provados decorre ainda que o falecido AA, marido e pai dos aqui Réus, condicionou a entrega da quantia € 5.000,00 ao Autor ao momento em que ele (AA) recebesse de EE, o montante de € 30.000,00.

18) O Autor não logrou provar que, até à data do óbito de AA, EE tivesse procedido ao pagamento de € 30.000 acrescido de juros – muito pelo contrário: resulta dos Factos Provados que o pagamento de € 30.000 (pagamento esse não ao declarante mas a DD) ocorreu no dia 30/06/2017.

19) Não tendo a condição a que o declarante sujeitou a eficácia da entrega/doação ao Autor dos € 5.000,00 se verificado em vida do mesmo, há que concluir que essa gratuita assunção – promessa de doação -, se quedou, não tendo produzido os seus efeitos.

20) Independentemente da qualificação jurídica que se faça da declaração subscrita pelo falecido AA, certo é que de tal declaração decorre que o falecido AA, marido e pai dos aqui Réus, condicionou a entrega dos € 5.000,00 ao Autor ao momento em que ele (AA) recebesse de EE, o montante de € 30.000,00.

21) Esta foi também a interpretação que o próprio Autor/declaratário fez da declaração em causa, quando alega no artigo 6º da p. i.: «… que se comprometeu a pagar quando recebesse do Sr. EE o montante de 30.000€ (trinta mil euros), tudo como se pode inferir do Doc.

1.»

22) Atento o disposto no artigo 236º, nºs. 1 e 2 do CC, tal declaração apenas pode ser interpretada no sentido de que o pagamento ao Autor dos € 5.000,00 só ocorreria se e quando o declarante recebesse de EE € 30.000,00.

23) O Autor não logrou provar que o declarante (ou os seus sucessores) tenha recebido os € 30.000,00 acrescido de juros de EE.

24) O que consta dos factos provados é que foi um terceiro (por acaso o filho do declarante, mas não na veste de herdeiro) quem recebeu tal quantia, a 30/06/2017.

25) Nem o falecido AA nem os seus herdeiros em representação da herança aberta por seu óbito receberam esses € 30.000,00.

26) Não estando verificada a condição suspensiva a que o falecido AA sujeitou o pagamento dos € 5.000,00 ao Autor e alegada por este, não é a quantia peticionada exigível aos RR.

27) A sentença sob recurso, ao enquadrar o teor da declaração em discussão nos autos no contrato de doação e ao considerar que o pagamento a um terceiro (por acaso aqui Segundo Réu) da dívida que EE tinha para com aquele, consubstancia a verificação da condição suspensiva aposta na declaração, fez uma clara errada subsunção dos factos ao direito.

28) A decisão sob recurso deve ser revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente improcedente.

29) A douta sentença sob recurso violou, por erro de interpretação e/ou de aplicação, os Artºs. 236º, 270º, 402º, 404º, 457º, 458, 940º e 945º do Código Civil e artigo 607º do CPC.

Termos em que, e no muito que V. Exas. se dignarão suprir, deve a douta sentença sob recurso ser revogada e substituída por outra que, dando provimento ao recurso, julgue a acção totalmente improcedente.

3. O A. contra-alegou, concluindo que:

1ª. A Mma Juíza a quo condenou os Recorrentes, na qualidade de herdeiros de AA, a reconhecerem a existência do direito de crédito do Autor sobre a herança daquele no montante de € 5 000,00, acrescido dos respectivos juros de mora, tudo como melhor consta da douta sentença.

2ª. Dela, inconformados, os Réus interpuseram recurso cujos fundamentos, em nosso modesto entender, não merecem provimento.

3ª. A causa de pedir e o pedido não configuram uma obrigação natural – o Recorrido era sobrinho do falecido AA a quem transportou de Leiria para Coimbra, e vice-versa, onde ia realizar tratamentos numa tentativa de tratar o cancro de que padecia.

4ª. O de cujus, como flui do processo, tinha esposa e filho de quem se esperava fizessem tal transporte e acompanhamento.

5ª. Se o de cujus quis pagar ao Autor foi porque reconheceu que este sofreu perdas económicas com o acompanhamento que lhe fez uma vez que, para o efeito, tinha de fechar o seu estabelecimento comercial que era a sua fonte de rendimento.

6ª. Também não estamos perante uma doação ao Autor/Recorrido. O falecido não quis doar nada ao seu sobrinho.

7ª. Quis sim compensá-lo, ou se preferirmos pagar-lhe, como já se referiu, as despesas que teve com tais deslocações e os prejuízos sofridos uma vez que aquele, ao acompanhar o tio, não podia exercer a sua atividade profissional.

8ª. As razões pelas quais optou pela formalização dessa vontade da forma que o fez e a condição que ali colocou só ele o poderia explicar.

9ª. Mas dúvidas não existem de que o falecido AA se sentia devedor do quantitativo de € 5 000,00 ao Autor.

10ª. Quanto à condição que consta da declaração para que os € 5 000,00 pudessem ser pagos ao Autor: tal pressuposto mostrou-se cumprido – os € 30 000,00 a que o de cujus aludiu na sua confissão de dívida foram pagos pelo Sr. EE.

11ª. Contudo, salvo melhor e mais esclarecido entendimento, não nos parece que seja relevante que o cumprimento da obrigação a que a declaração alude tivesse de ser feito junto de AA.

12ª. O declarante poderia até ter condicionado o pagamento ao facto de um determinado clube ganhar o campeonato de futebol, por exemplo.

13ª. Sendo certo que, como ficou demonstrado nos autos, ele sabia do que falava e estava a par do negócio subjacente à ação judicial em curso.

14ª. O Recurso apresentado pelos Recorrentes não aduz, pois, qualquer raciocínio jurídico que possa pôr em causa a douta sentença proferida pelo que deve ser rejeitado.

Termos em que, e que serão por V.Exas doutamente supridos, deverá rejeitar-se o recurso apresentado mantendo-se, in totum, a douta sentença proferida,

Assim se fazendo a costumada Justiça!

 

II – Factos Provados

 

1) O teor objectivo do documento n.º 1 junto com a petição inicial, original a fls. 19 do suporte físico, intitulado «DECLARAÇÃO», datado de 17/09/2012, aqui dado por integralmente reproduzido:

                                                               DECLARAÇÃO

………………………………………………………………………………………………………………

AA, NIF ...19..., residente em Rua ..., ..., Leiria, declara e confessa-se devedor, tudo para os devidos e efeitos legais, na quantia de 5000,00 Euros(Cinco Mil Euros) para com BB, Nif ...29..., cartão de cidadão nº ...50

Tal quantia será paga quando o Sr. EE fizer a liquidação da importância em divida ao declarante no valor de 30.000,00 Euros (Trinta Mil Euros) mais juros e já condenado a fazer o pagamento pelo Tribunal Judicial .... …..

……………………………………………………………………………………………………………….

……………………………………………………………

                                                               Leiria, 17 de Setembro de 2012

                                                               O Declarante

                                                     (assinatura…)

2) O montante de €5.000,00 referido no documento foi reconhecido por AA como sendo devido ao autor a título de compensação pelas despesas que este suportou e pelo tempo que despendeu ao acompanhá-lo em inúmeras deslocações ao «Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra», para consultas e tratamentos médicos, uma vez que o falecido era doente (veio a falecer na sequência de um cancro no pâncreas) e não podia deslocar-se sozinho.

3) O autor, sobrinho e amigo de AA, acompanhou-o nessas deslocações, em prejuízo da sua própria actividade profissional – tinha um pequeno estabelecimento comercial na freguesia ..., Leiria, que constituía a sua fonte de rendimento e que fechava nos dias em que acompanhava o «de cujus» a Coimbra.

4) AA faleceu a 02/12/2012, no estado de casado com a ré.

5) No âmbito do Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos n.º 197/2013, que correu termos na Conservatória do Registo Civil ..., por título datado de ../../2013, os réus foram declarados únicos e universais herdeiros do falecido AA, seu cônjuge e filho.

6) No dia 30/06/2017, EE pagou ao réu a quantia de €30.000,00, respeitante ao preço acordado entre as partes no âmbito de «Contrato de Trespasse» do estabelecimento comercial denominado «Restaurante O C...», titulada por uma letra de câmbio, emitida a ../../2009 e com vencimento a 14/02/2010, nesse valor de €30.000,00, subscrita e aceite por EE. Esse título de crédito constituiu o título executivo da execução n.º 315/10...., instaurada a 18/02/2010 no Tribunal Judicial ... e que, na sequência da reorganização judiciária, passou a correu termos no Juízo de Execução ... do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, na qual figuram como exequente o aqui réu e como executado EE.

7) Por carta datada de 06/12/2021, o autor interpelou a ré para o pagamento da quantia de €5.000,00, no prazo de 15 dias contados da data da assinatura do registo dessa carta.

8) Os réus foram citados para os termos da acção a 03/10/2022, data das assinaturas dos respectivos avisos de recepção.

III - Do Direito

 

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Condenação dos RR a reconhecerem a existência do direito de crédito do A. sobre a herança indivisa aberta por óbito de AA, no montante de 5.000 €, e juros de mora, e a verem-no satisfeito pelos bens da referida herança.

2. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Dispõe o artigo 457.º do Código Civil, como princípio geral dos negócios jurídicos unilaterais, que «a promessa unilateral de uma prestação só obriga nos casos previstos na lei».

Um desses casos previstos na lei é o prevenido no artigo 458.º do Código Civil, epigrafado «Promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida», nos termos do qual:

«1. Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.

2. A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental.».

Assim, a confissão de dívida é um negócio jurídico unilateral cuja validade intrínseca depende da redução a escrito, devendo constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental – artigo 458.º, n.º s 1 e 2 do Código Civil.

Sempre que alguém, por uma declaração unilateral, sem invocação da respectiva causa, reconheça uma dívida ou prometa pagá-la, a procedência da pretensão do respectivo credor não fica prejudicada pela falta de demonstração da sua causa, ficando o devedor onerado com o encargo de demonstrar o contrário, ou seja, que a causa não existe, cessou ou é ilícita (artigo 458.º, n.º 1 do Código Civil).

O reconhecimento de dívida - enquanto negócio jurídico unilateral causal - dispensa o credor de fazer a prova da relação fundamental, desde que não esteja legalmente sujeita a formalidades específicas, cuja existência se presume até prova em contrário. Nesta situação, o credor que invoca o acto unilateral de reconhecimento está dispensado de provar a relação fundamental, que se presume «juris tantum»; o devedor, para contrariar a pretensão do credor, deve, então, alegar e provar a insubsistência do crédito, por cumprimento, ou por prescrição, ou por invalidade da relação fundamental ou por outra razão que, no caso, possa ter um tal efeito impeditivo, modificativo ou extintivo. Em suma, a declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida importa a actuação da presunção de existência da relação causal, cabendo, por isso, ao devedor demandado afastar ou pôr em causa tal presunção, demonstrando a inexistência ou a invalidade do débito aparentemente reconhecido pela declaração unilateral invocada pelo credor.

No caso, como decorre do teor do documento n.º 1 junto com a petição inicial, AA – entretanto falecido, de quem os réus são únicos e universais herdeiros, cônjuge sobrevivo e filho - reconheceu ter uma dívida para com o autor no valor de €5.000,00, sem indicação da respectiva causa.

Mais se provou que essa causa – a relação fundamental – era a compensação do autor pelas despesas que este suportou e pelo tempo que despendeu ao acompanhar o declarante nas deslocações ao «Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra» - «Instituto Português de Oncologia», para consultas e tratamentos médicos (havia sido diagnosticado com cancro no pâncreas), nesses dias encerrando o estabelecimento comercial que o autor explorava como actividade profissional.

No fundo, uma doação de dinheiro, que não é qualificável como doação remuneratória – artigo 941.º do Código Civil – porque o doador não declarou positivamente que a doação era feita em remuneração de certos serviços (neste sentido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/09/2017, processo n.º 5226/14.7T2SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde foi decidido «(…) 4) As doações são quase sempre remuneratórias porque quase todas significam o reconhecimento de serviços; mas só têm em Direito esta natureza quando o devedor declara positivamente que a doação é feita em remuneração de certos serviços. (…)).

A prova da relação fundamental (uma doação de dinheiro, coisa móvel, desacompanhada da tradição da coisa) não exige outras formalidades além do documento escrito (artigo 947.º, n.º 2 do Código Civil), pelo que a forma legal da confissão de dívida fica satisfeita com o documento particular – artigos 362.º, 363.º e 364.º, n.º 1 do Código Civil.

Só a absoluta preterição da forma escrita, formalidade «ad substantiam», conduziria à nulidade da declaração – artigo 220.º do Código Civil.

O que não se verifica no caso.

A declaração de dívida foi reduzida a escrito.

Observando assim a forma legal.

(…)

Como acima se explanou, pese embora os réus tenham impugnado a veracidade da assinatura aposta no documento n.º 1 junto com a petição inicial, o autor, parte que apresentou o documento, logrou provar a sua veracidade, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 374.º do Código Civil.

Ao invés, os réus não lograram demonstrar, como lhes competia, a arguida falsidade do documento (artigos 376.º, n.º 1 e 342.º, n.º 2 do Código Civil e 446.º do Código do Processo Civil).

Pelo que, a letra e a assinatura do documento particular junto sob o n.º 1 com a petição inicial consideram-se verdadeiras (artigo 374.º do Código Civil). Da genuinidade da assinatura afirma-se a genuinidade do texto do documento – faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (artigo 376.º, n.º 1 do Código Civil). E a demonstração da genuinidade do texto transforma o documento em confessório, isto é, os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (artigo 376.º, n.º 2 do Código Civil). No caso, que AA deve ao autor €5.000,00, declaração unilateral de reconhecimento da dívida que importa a actuação da presunção de existência da relação causal. Cabendo, por isso, aos réus afastar ou pôr em causa tal presunção, demonstrando a inexistência ou a invalidade do débito aparentemente reconhecido pela declaração unilateral invocada pelo credor.

Com este fito, os réus ensaiaram uma série de argumentos, todos eles improcedentes, desde já se adianta.

(…)

Por fim, o argumento da obrigação natural. Entendem os réus que, se o falecido pretendeu compensar o autor pelo facto de este, em determinado período da sua doença, o ter acompanhado nos tratamentos médicos realizados no «Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra», trata-se, quanto muito, de uma dívida de gratidão, não remunerável ou exigível judicialmente, nos termos do artigo 402.º do Código Civil. Com o devido respeito, creio que este enquadramento parte de uma perspectiva desfasada à realidade verificada. Segundo a noção contida no artigo 402.º, «a obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça». Poderia falar-se de obrigação natural, com propriedade, do autor para com o falecido, seu tio, de o acompanhar e de o transportar para realização dos tratamentos oncológicos; essa era uma obrigação que vinculava o autor, fundada num dever de solidariedade familiar e de ordem moral, correspondente a um dever de justiça, mas cujo cumprimento o falecido não poderia exigir judicialmente. A situação em presença não é essa, é exactamente a oposta dessa. O autor cumpriu voluntariamente essa sua obrigação natural. Na linguagem mais comum, o autor fez um favor ao falecido e este, grato, pretendeu retribuir-lhe, mediante entrega de uma quantia em dinheiro que, de resto, não se apresenta exagerada ou desproporcional. Da perspectiva do falecido, a compensação que quis atribuir ao autor reconduz-se a uma doação da quantia de €5.000,00 (cujos contornos a aproximam da doação remuneratória, apenas assim não qualificável por ausência de declaração expressa nesse sentido, como acima mencionado), da qual expressamente se declarou e confessou devedor, através de declaração unilateral de reconhecimento da dívida.

Aqui chegados, resultando igualmente da matéria de facto dada como provada e da fundamentação da convicção probatória que EE, a 30/06/2017, efectou o pagamento da importância de €30.000,00 referida na «Declaração», com perdão de juros, está verificada a condição a que o declarante subordinou a produção dos efeitos do negócio jurídico (artigo 270.º do Código Civil).

Atento o óbito do declarante, ocorrido a 02/12/2012, é a sua herança – representada pelos réus, seus únicos e universais herdeiros – a responder pelo pagamento dessa dívida do falecido (artigo 2068.º do Código Civil).

Por conseguinte, assiste ao autor o direito de exigir dos réus o reconhecimento da existência do seu direito de crédito sobre a herança indivisa aberta por óbito de AA, no montante de €5.000,00, e a verem-no satisfeito pelos bens da referida herança.”.

Os recorrentes discordam, com base em 3 razões jurídicas; não existe doação, mas simples obrigação natural; existe uma mera proposta de doação que caducou; quanto à condição suspensiva, foi o R. DD, como terceiro, que recebeu os referidos 30.000 €, por relação jurídica própria e não o falecido AA como credor próprio (cfr. as respectivas conclusões de recurso).

2.1. O A. diverge, considerando que não estamos perante uma obrigação natural, nem perante uma doação, parecendo defender que se tratou de uma prestação de serviços ao falecido, e que se verificou a condição, sendo irrelevante que não tenha sido o falecido a receber o apontado montante de 30.000 € (cfr. as respectivas alegações de recurso e ainda a p.i.).

Inexiste controvérsia entre as partes que o falecido AA se confessou devedor ao A. da quantia de 5.000 € (factos 1) e 2).

Esse reconhecimento de dívida e promessa de pagamento tem uma causa subjacente: o A. afirma que foi uma prestação de serviços, a sentença refere ser uma doação, mas os recorrentes dizem ser uma obrigação natural.

Vejamos, então.

Na p.i., em violação do disposto no art. 552º, nº 1, d), 2ª parte, do NCPC, o A. não expôs as razões de direito que servem de fundamento à acção. E agora, em contra-alegações de recurso volta a adoptar idêntica postura. Mas da leitura da p.i. decorre que defendeu tratar-se de um contrato de prestação de serviços, como emana do doc. nº 4, referido no art. 11º da p.i., que é uma carta escrita à R., onde reclama o pagamento dos aludidos 5.000 € “por se tratar do pagamento de serviços prestados” ao falecido AA, seu tio e amigo.

Só que nada vem alegado em termos factuais nessa p.i., e nada passou, portanto, para o elenco dos factos apurados (provados ou não provados), que permitisse caracterizar um contrato de prestação serviços (vide o art. 1154º do CC) que tivesse sido celebrado entre o A. e o falecido seu tio AA. Afastada está, assim, esta qualificação jurídica. 

Por sua vez os RR, como vimos atrás, dizem tratar-se de uma obrigação natural enquanto a sentença recorrida afirmou tratar-se de uma doação ordinária e não de uma doação remuneratória, prevista no art. 941º do CC, onde se dispõe que:

“É considerada doação a liberalidade remuneratória de serviços recebidos pelo doador, que não tenham a natureza de dívida exigível”.

Professa Antunes Varela (em CC Anotado, Vol. I, 3ª Ed., notas 2. e 3. ao artigo 402º do CC, pág. 350), que importa não confundir a obrigação natural com a doação ou deixa em cumprimento de um dever moral ou social. No primeiro caso, há a consciência de que se cumpre uma obrigação; no segundo, a de que se faz uma liberalidade. É neste estado de consciência que reside a base da distinção.

E prosseguindo, ensina que, a figura da doação remuneratória também não se pode confundir com a obrigação natural. O critério de distinção é o que acabamos de assinalar. Na doação remuneratória há o animus donandi, a intenção de fazer uma liberalidade, de enriquecer, portanto, o património do donatário à custa do património do doador, ao passo que, no cumprimento de obrigação natural, tem-se em vista evitar um empobrecimento imoral ou injusto.

E reforça este entendimento ao doutrinar (no CC Anotado, Vol. II, 2ª Ed., nota 1. ao mencionado artigo 941º, pág. 232) que o que caracteriza as doações remuneratórias é a circunstância de não terem os serviços que pretendam remunerar a natureza de dívida exigível; não há uma obrigação por parte do doador em relação ao donatário. Sobressai, pois, nos dizeres da lei, o princípio de que há doação sempre que haja liberalidade e espontaneidade. Por isso se não pode considerar como doação, por falta daquele requisito, nem o cumprimento de obrigação natural, nem o donativo conforme aos usos sociais (como no caso da gorgeta). Não havendo, porém, nem o dever jurídico nem o dever moral ou social de remunerar o serviço, a liberalidade não representa uma solutio nem uma dação em cumprimento: é uma doção.

Realçando este espírito de liberalidade, segue pelo mesmo caminho Luís M. T. Menezes de Leitão (em D. Obrigações, Contratos em Especial, Vol. III, 5ª Ed. pág. 172). E mais à frente (págs. 209/210), a propósito da doação remuneratória, escreve que se está perante uma situação em que o doador recebeu determinados serviços, os quais não têm, porém, a natureza de dívida exigível. No entanto, o facto de o doador ter ficado grato pela recepção do serviço, leva-o a querer remunerar quem lho prestou, ainda que em termos jurídicos não seja obrigado.

Também não haverá doação remuneratória, se se estiver perante uma situação de cumprimento de obrigação natural.

Prosseguindo, afirma ainda, que apesar de tudo, não deixa de haver nas doações remuneratórias uma conexão entre o serviço e a doação, uma vez que a intenção do doador é remunerar o serviço prestado. No entanto, como essa remuneração não constitui uma dívida exigível a lei considera ainda estarem presentes os requisitos da liberdade e espontaneidade correspondentes ao animus donandi e que faltam no animus solvendi. Efectivamente, apesar de o devedor poder considerar que está a remunerar um serviço prestado, o facto de a sua remuneração não corresponder nem a uma obrigação civil, nem a uma obrigação natural, leva a que essa prestação não possa ser vista como cumprimento (solutio) ou mesmo dação em cumprimento (datio in solutum), pelo que, não podendo qualificar-se esta situação como pagamento de serviços prestados, vem a ser qualificada como doação remuneratória.

Pelo mesmo diapasão segue Júlio Vieira (em Comentário ao Cód. Civil, Contratos em Especial, Univ. Católica, anotação 4 ao artigo 941º, pág. 240/241) ao salientar, na doação remuneratória, o espírito de gratidão e recompensa dos serviços recebidos pelo doador, existindo uma liberalidade com o escopo de recompensar. Ao passo que na doação ordinária o escopo é o da mera liberalidade na remuneratória é fazer esta para recompensar. Sendo assim esta não se confunde com o cumprimento de uma obrigação natural.

Armados com estes ensinamentos, face aos factos provados 2) - o montante de 5.000 € foi reconhecido pelo falecido AA como sendo devido ao A. a título de compensação pelas despesas que este suportou e pelo tempo que despendeu ao acompanhá-lo (transportá-lo diz o A. nas 3ª e 4ª conclusões das suas contra-alegações) em inúmeras deslocações ao «Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra», para consultas e tratamentos médicos, uma vez que o falecido era doente (veio a falecer na sequência de um cancro no pâncreas) e não podia deslocar-se sozinho -, apesar de ter esposa e filho, bem como ao facto 3) - o A., sobrinho e amigo do falecido AA, acompanhou-o nessas deslocações, em prejuízo da sua própria actividade profissional – tinha um pequeno estabelecimento comercial na freguesia ..., Leiria, que constituía a sua fonte de rendimento e que fechava nos dias em que acompanhava o falecido a Coimbra -, apesar de este ter esposa e filho, temos por bom o entendimento que o falecido AA agiu com o A. por gratidão e vontade de recompensa, ou seja com espírito donandi, por liberalidade da sua parte.

De sorte que o falecido AA não actuou para cumprir uma obrigação natural, nem a indicada quantia de 5.000 € tinha a natureza de dívida exigível, mas comportou-se, sim, visando doar remuneratoriamente o A. pelos serviços recebidos por este.

Temos, portanto, uma doação remuneratória, e não uma simples doação ordinária, como foi entendido na 1ª instância.

Certo, de outra parte, que a lei não exige no indicado art. 941º que o doador declare positivamente que a doação era feita em remuneração de certos serviços, podendo chegar-se a tal conclusão por inferência da matéria, da factualidade, que vier a apurar-se no processo.

Para quem defenda que tal declaração positiva tem de existir, então é de notar que essa declaração não tem de ser expressa, podendo, naquele sentido, ser tácita (art. 217º, nº 1, do CC), como resulta dos autos, com toda a probabilidade, dos dois mencionados factos provados.     

2.2. Apurado que estamos perante uma doação remuneratória, há que analisar se estamos face a uma proposta de doação que caducou, como invocado pelos apelantes.

Dispõe o art. 945º, nº 1, do CC, que a proposta de doação caduca, se não for aceita em vida do doador. Não obstante, a tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou do seu título representativo, é havida como aceitação (nº 2). Mas se a proposta não for aceita no próprio acto ou não se verificar a tradição nos termos do número anterior, a aceitação deve obedecer à forma prescrita no art. 947º e ser declarada ao doador, sob pena de não produzir efeitos (nº 3).

Daqui se retira que: a) para que se conclua o processo constitutivo do negócio jurídico, é necessária a aceitação do donatário, pois antes dela existe uma simples proposta de doação, já que o acordo de vontades é sempre elemento essencial, nos termos do art. 232º do CC, da formação de qualquer contrato; b) a aceitação deve ter lugar, sob pena de caducidade da proposta, durante a vida do doador, não sendo necessário, porém, que ocorra no mesmo momento em que é feita a declaração do doador; c) não exige a lei que a declaração de aceitação seja expressa, pois fora do caso previsto no nº 2, deve entender-se, em regra, que a simples intervenção do donatário no acto da doação, por ex: na escritura pública, sem que este exprima o seu dissentimento, é manifestação bastante da aceitação (declaração tácita do art. 217º); d) é havida como tradição, nos termos do nº 2, a tradição para o donatário, em qualquer momento da coisa móvel doada ou do seu título representativo; e) pode a tradição verificar-se no momento da proposta ou num momento posterior, mas terá de realizar-se antes da morte do doador; f) quando a proposta não é aceita no próprio acto, ou não se verifica a tradição, a aceitação tem de obedecer, nos termos do nº 3, à forma prescrita no art. 947º e ser declarada ao doador, sob pena de ineficácia; g) por morte do declarante proponente, é derrogada a regra geral do art. 231º do CC, dado que na doação, em face do seu cariz intuitu personae os herdeiros do doador não ficam vinculados pela proposta do autor da sucessão (vide neste preciso sentido os sobreditos autores, Antunes Varela, ob. cit., Vol. II, notas 1. a 3. ao referido artigo 945º, págs. 237/238, L. M. T. Menezes Leitão, ob. cit., págs. 179/180, que apenas dissente quanto ao requisito c), pois exige a aceitação expressa, e Júlio Vieira, ob. cit., anotação 4 ao mesmo artigo, págs. 247/248).

Vejamos o caso concreto.    

O proponente doador faleceu em 2.12.2012 (facto 4), enquanto a declaração de doação ocorreu em 17.9.2012 (facto 1). Nesta data o falecido não entregou a quantia de 5.000 € referida na dita declaração, proposta de doação. O A. não interveio nesse documento que corporiza a declaração, não aceitando, assim, expressa ou tacitamente a falada doação.

Assim como o proponente da doação podia efectuar a tradição posteriormente, também o A. a podia aceitar.  

Não consta do elenco dos factos provados (nem foi sequer alegado) que o falecido AA, até à data do seu óbito, entregou ao A. a indicada quantia de 5.000 €. Igualmente, dos factos provados (nem sequer foi alegado) não resulta que o A., em vida do falecido, tenha junto deste declarado por escrito aceitar os 5.000 €. Desta maneira, podemos concluir não só que não houve tradição como que o A. não chegou a aceitar esses 5.000 €.

Na falta destes dois elementos probatórios, a proposta de doação, titulada por tal declaração, caducou com o óbito do declarante proponente – art. 945º, nº 1. E, também se verifica que eventual aceitação não produziu efeitos, atendendo a que sobre o A. impendia a obrigação de, junto do declarante e em vida deste, declarar por escrito a aceitação dos 5.000 € – nº 3 do art. 945º.

Dir-se-á, ainda, que a aceitação também se pode dar legalmente com a tradição do título representativo da coisa móvel doada (nº 2 do referido artigo) o que o indicado documento, como título representativo, corporizando a promessa de doação representa.

Embora se possa aceitar tal argumento jurídico, como hipótese de trabalho, mais uma vez não consta do elenco dos factos provados - nem foi sequer alegado pelo A. em que data teve conhecimento da existência desta declaração ou quando é que a mesma chegou ao seu poder e através de quem -, que o falecido AA à data inserida no documento, ou posteriormente, ou mesmo até à data do seu óbito, entregou ao A. tal declaração. Por aqui, por conseguinte, igualmente não se descobre nenhuma tradição que dispensasse a aceitação imposta legalmente.

Em resumo, a proposta de doação caducou ou não surtiu efeitos. E por morte do declarante proponente, é derrogada a regra geral do art. 231º do CC, dado que na doação, em face do seu cariz intuitu personae os herdeiros do doador não ficam vinculados pela proposta do autor da sucessão.

Desta sorte, a sentença recorrida não pode ser confirmada.

2.3. Finalmente quanto à condição suspensiva (art. 270º do CC) constante do facto 1), é de salientar que se trata de uma cláusula acessória dos negócios jurídicos.

Caído o negócio jurídico, por caducidade ou ineficácia, como aconteceu no nosso caso (vide ponto 2.2. supra), cai também aquela cláusula acessória, extinguindo-se a mesma por ter deixado de existir.

E assim, tendo a mesma desaparecido, não há que verificar se ela operou juridicamente ou não.  

Mais uma nota.

Não fosse esta a conclusão a que chegámos ainda poderíamos constatar, quanto a essa condição suspensiva e ter sido o R. DD, como terceiro, que recebeu os referidos 30.000 €, como credor por relação jurídica própria com o EE, e não o falecido AA como credor próprio deste último, é essa mesma realidade que o facto provado 6) demonstra. Na verdade, no dia 30.6.2017, EE pagou ao R. a quantia de 30.000 €, respeitante ao preço acordado entre as partes no âmbito de «Contrato de Trespasse» do estabelecimento comercial denominado «Restaurante O C...», titulada por uma letra de câmbio, emitida a 14.8.2009 e com vencimento a 14.2.2010, nesse valor de 30.000 €, subscrita e aceite pelo referido EE, título de crédito esse que constituiu o título executivo do processo de execução 315/10...., instaurada a 18.2.2010, e na qual figuram como exequente o aqui R. e como executado o indicado EE. Isto é, o EE pagou a apontada quantia ao R. já muito depois do falecimento do proponente da doação, e não se comprovou que o R. tivesse recebido a mesma, na qualidade de representante, mandatário ou herdeiro de seu pai, o falecido AA doador proponente.

Ou seja, sempre ficaria por demonstrar a verificação da condição.

(…)

IV - Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, assim se revogando a decisão recorrida, julgando-se a acção improcedente e indo os RR absolvidos do pedido.   

*

Custas pelo A.

*

                                                                            Coimbra, 18.6.2024

                                                                            Moreira do Carmo

                                                                            Fonte Ramos

                                                                            Vítor Amaral