INVENTÁRIO
ERRO DE CÁLCULO OU DE ESCRITA NA ELABORAÇÃO DO MAPA DA PARTILHA
RECLAMAÇÃO CONTRA O MAPA
ALTERAÇÃO DA PARTILHA POSTERIOR AO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA QUE A HOMOLOGA
Sumário

1. - Em processo de inventário judicial, caso ocorra erro/vício de cálculo ou de escrita – manifesto ou não – na elaboração do mapa da partilha, cabe aos interessados, no prazo legal, apresentar reclamações contra tal mapa (art.º 1120.º, n.º 5, do NCPCiv.).
2. - Não tendo sido apresentada qualquer reclamação contra o mapa da partilha, nem recurso da decisão homologatória da partilha, que transitou em julgado, uma posterior alteração ao assim decidido só poderia, à luz do disposto nos art.ºs 613.º e 614.º do NCPCiv., resultar da existência de um erro material, de escrita ou de cálculo, ou de qualquer inexatidão ou lapso, sempre, necessariamente, de caráter manifesto/ostensivo/clamoroso, assim, evidente perante o texto e/ou contexto da decisão.
3. - Se, em face do texto da sentença homologatória da partilha, na sua conjugação com a decisão determinativa da forma da partilha e com o mapa da partilha, não resulta evidente/manifesto qualquer simples erro ou lapso, de escrita ou de cálculo – aquém, pois, do erro de julgamento –, designadamente quanto a qualquer valor concreto resultante de avaliação (prova pericial), terão de prevalecer a regra do esgotamento do poder jurisdicional do juiz da causa e os efeitos do caso julgado, não podendo ser deferido, nesse caso, um requerimento de retificação da sentença homologatória e do respetivo mapa da partilha com fundamento em lapso/erro manifesto.

Texto Integral


Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Em autos de inventário cumulado por óbito de AA, falecida em 2 de fevereiro de 2008, e marido, BB, falecido em 15 de setembro de 2013, sendo Cabeça de casal CC e interessado DD ([1]), todos com os sinais dos autos, a correr termos no Juízo Local Cível de Pombal ([2]),

foi proferida em 09/01/2022 decisão judicial determinativa da forma da partilha (com ref. 98937007 e pelo modo como consta exarado a fls. 19 a 21 do processo físico destes autos de recurso em separado),

após o que foi elaborado o mapa da partilha (com data de 15/06/2023, ref. 104138741 e pelo modo como consta de fls. 22 a 30 do mesmo processo físico).

Na sequência foi proferida, em 13/07/2023 (ref. 104431044), sentença homologatória da partilha, com o seguinte teor:

«Nestes autos de inventário cumulado por óbito de AA (…) e seu marido BB (…), e nos quais CC desempenha as funções de cabeça-de-casal, homologo pela presente sentença a partilha constante do mapa de fls. 288 a 291 (constante do histórico do processo visível através do sistema informático citius sob a referência n.º 104138741), adjudicando aos vários interessados os respectivos quinhões.

Custas pelos interessados, na proporção do recebido (art.º 1130.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

Ao abrigo do disposto nos artigos 306.º, n.º 2 e 299.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, fixo o valor da causa em 96.315,92 €.

Registe e notifique.».

Tal decisão foi notificada aos interessados mediante «Certificação Citius: elaborado em 14-07-2023», como se retira dos autos de inventário, na sua versão eletrónica – consultada nesta Relação no sistema Citius –, sem sujeição a qualquer reclamação ou recurso, razão pela qual se procedeu à contagem do processo para efeitos de custas.

Porém, em 21/02/2024, a Cabeça de casal apresentou extenso requerimento, “ao abrigo do disposto no artº. 249º do CC e arts. 146º; 613º, nº. 2 e 614º, nº. 1 do CPC”, oferecendo razões e alinhando argumentos para concluir assim:

«R. a V. Exa. tendo por reporte o douto despacho da forma à partilha, verificam-se erro de escrita e, de cálculos no mapa da partilha, conforme, o rectro exposto, deverá o mesmo ser retificado nos termos e, ao abrigo do disposto no artº. 249º do CC e artºs. 146º; 613º e 614º, nº. 1 do CPC, devendo o interessado DD efetuar o pagamento da diferença do valor de tornas à requerente CC, no montante de €6.651,31 ou naquele que, se considerar mais correto.» (cfr. fls. 32 a 39 do mesmo processo físico).

Não foi deduzida resposta a tal requerimento.

Em decisão de 14/03/2024 (ref. 106635174), conhecendo-se deste requerimento, foi exarado o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, indefere-se a rectificação requerida pela cabeça-de-casal CC.

Custas pela cabeça-de-casal CC, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, dada a extensão da matéria exposta e apreciada (art.º 7.º, n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais e sua Tabela II em anexo).

Notifique.».

É desta decisão que, inconformada, vem a Cabeça de casal interpor o presente recurso ([3]), no sentido da respetiva revogação e retificação do mapa da partilha, por invocado erro de cálculo.

É do seguinte teor (aliás, não extenso) o seu acervo conclusivo:

«1ª. A Recorrente requereu a retificação do erro de cálculo resultante do Mapa da Partilha elaborado nos autos, por ter na sua génese do acervo a partilhar o valor consignado a relação de bens sob, a verba 24 e, não o valor mais alto fixado pela avaliação conforme, decidido no despacho de forma a partilha com a referência Citius 98937007 de 09/01/2022;

2ª. Tal, erro repercute-se, nos cálculos a fixar da legítima e, da quota disponível e, consequentemente no valor de tornas a entregar à recorrente.

3ª. Contrariamente, ao que, consta nos autos do valor de tornas a receber pela Recorrente não é, tão só, de €5.006,61 mas de, €11.657,93; como deflui do erro de cálculo, em que lavrou a Secretaria. Aliás,

4ª. Constatável pelo exame do histórico processual, em conjugação com a forma dada à partilha. Ora,

5ª. O erro de cálculo nos termos dos artigos 249º do Código Civil e artigos 146º; 613º e 614º do nº1 do Código de Processo Civil é retificável a todo tempo a requerimento dos interessados ou oficiosamente pelo juiz.

6ª. Pelo que, ao invés do douto entendimento perfilhado no despacho recorrido o pedido de reforma deduzido é tempestivo e, legalmente admissível e, encontra-se identificado e evidenciado. Aliás,

7ª. Vai até de encontro com o decidido, não constituindo por isso, qualquer alteração das decisões prolatadas, nos autos e, antes; deveria ter sido admitido e, ordenada a retificação do valor a pagar de tornas à Recorrente de €11.657,31 e, não de €5.006,61; como é de inteira e sã justiça, não só formal, como judicial, como novo paradigma da Reforma do Código Processual, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aquando da exposição de motivos da reforma, o legislador fez consignar a dado passo: - Agora, homenagear o mérito e a substância em detrimento da mera formalidade, não se podendo perder de vista o espirito da mesma, processo de inventário aflorado, preconizado no art. 1117, nº 2, al. a) do CPC, composição igualitária de quinhões de, não licitantes.

Termos em que,

Deve, o presente recurso ser admitido e, em consequência ser revogado o douto despacho proferido sob, a referência Citius 106635174 ordenando e, em consequência ordenando-se, a retificação do erro de cálculo fixando-se, o valor de ternos a atribuir à Recorrente de €11.657,31 e, não de €5.006,61;

(…)

JUSTIÇA!!

Valor do recurso: € 6.650,70.» (destaques retirados).

Não foi oferecida contra-alegação de recurso.

Tal recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo, ordenando-se a remessa a este Tribunal da Relação (doravante, TRC), tendo o relator mantido o regime assim fixado.

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber se há fundamento para a pretendida revogação da decisão em crise e retificação do mapa da partilha, por invocado erro de cálculo.

III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

O substrato factual e a dinâmica processual a considerar para decisão do recurso são os que constam do antecedente relatório, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

B) Impugnação de direito

A Apelante impugna, como visto, não a decisão homologatória da partilha – há muito transitada em julgado –, mas a posterior decisão que indeferiu o seu requerimento de retificação, por invocado erro de escrita e de cálculo, do mapa da partilha e decorrente diversa definição do montante de tornas a pagar pelo interessado DD à Cabeça de casal (Recorrente), com incremento quantitativo para mais € 6.651,31.

É a seguinte a fundamentação dessa impugnada decisão de indeferimento:

«Por sentença de 13 de Julho de 2023 (de fls. 392 do processo físico), foi homologada a partilha constante do mapa de fls. 288 a 291 (constante do histórico do processo visível através do sistema informático citius sob a referência n.º 104138741) e adjudicados aos interessados os respectivos quinhões.

Prevê o art.º 614.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “retificação de erros materiais”, que “se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz”.

Como resulta da epígrafe do art.º 1122.º do Código de Processo Civil, está em causa uma sentença homologatória da partilha, a qual assenta, naturalmente, no despacho determinativo da forma da partilha e no mapa de partilha, sendo estas, no caso vertente, as operações que servem de suporte a tal decisão final e que pela sobredita sentença foram homologadas.

Visa a cabeça-de-casal a correcção de “erro de escrita e de cálculo no mapa de partilha” [alínea d) do requerimento em análise]. Todavia, analisado o teor do requerimento apresentado, verifica-se que a cabeça-de-casal não aduz em termos concretos, precisos e claros em que consiste o assinalado erro material, o qual, à luz do citado art.º 614.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, deve ser devido a omissão ou lapso manifesto. Aliás, também não especifica a concreta omissão ou o específico lapso ostensivo que vê inquinar o mapa de partilha e, consequentemente, a sentença homologatória.

Na verdade, a cabeça-de-casal limita-se a enunciar, sem as referidas indicações, as operações em que se deveria desdobrar o mapa de partilha, com indicação do activo da herança, do montante da quota de cada um dos interessados, a parte que a cada um cabe e o preenchimento de cada uma dessas quotas, concluindo pela alteração do valor que lhe seria devido a título de tornas.

E se assim é, facilmente se percebe que o requerido ultrapassa em muito o âmbito do art.º 614.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (acima transcrito), sendo certo que a mera rectificação de uma sentença jamais poderá implicar a modificação substantiva do seu conteúdo, em termos de permitir a reapreciação da decisão tomada.

Deveria, pois, a cabeça-de-casal ter reclamado oportunamente contra o mapa de partilha, caso dele tivesse discordado (art.º 1120.º, n.º 5 do Código de Processo Civil), apontando então as suas divergências, seja de natureza substancial ou formal, e pugnando pela sua alteração, o que não fez, não se vislumbrando, até porque tal não foi concretamente apontado, que tal mapa e a sentença subsequentemente proferida contenham qualquer erro de escrita ou de cálculo, lapso material ou omissão devida a lapso manifesto que importe rectificar.».

A Recorrente invoca, na origem do erro a que se reporta, lapso na elaboração do mapa da partilha, onde teria sido considerado, quanto à verba n.º 24 da relação de bens, o valor de relacionação, e não – como seria devido – o valor, mais elevado, fixado em sede de avaliação, tendo em conta o decidido no próprio despacho determinativo da forma da partilha.

Daí, a seu ver, a materialização de um erro manifesto de cálculo, com repercussão no valor das tornas a prestar, este a dever ser incrementado nos moldes peticionados no recurso.

Assim, nesta ótica, o erro tornar-se-ia manifesto, se bem se entende, no confronto entre relação de bens (valor de relacionação), valor de (subsequente) avaliação ([5]), despacho determinativo da forma da partilha e mapa da partilha.

Defende a Apelante que, por essa via, se torna percetível que foi considerado um valor de € 46.769,00 (referente ao “Bem doado”), quando se impunha considerar um valor de € 68.019,00, com a respetiva base de cálculo a repercutir-se, assim, “no cálculo subsequente da partilha”.

Ora, no despacho determinativo da forma da partilha (ref. 98937007) – peça essencial agora a convocar –, pode ler-se ([6]):

«Em conformidade, deve proceder-se à partilha pela forma seguinte:

Quanto à herança aberta por óbito da inventariada AA, somam-se os valores dos bens não doados, sem prejuízo do respectivo aumento decorrente de eventuais avaliações e/ou licitações.

O total divide-se em duas partes iguais, correspondentes à meação de cada um dos inventariados nos bens comuns do casal.

À meação da inventariada AA soma-se o valor da meia conferência da doação feita ao filho DD (art.º 2117.º do Código Civil), devendo ser tomado em consideração o valor por que se mostra especificada a verba n.º 24, dado o curto lapso de tempo decorrido desde as datas das aberturas da sucessão, a não ser que outro venha a resultar de eventual avaliação.

Do valor assim obtido, 2/3 correspondem à legítima do cônjuge sobrevivo (BB) e dos filhos, constituindo 1/3 a quota disponível da inventariada AA (art.º 2159.º, n.º 1 do Código Civil).

O valor da legítima divide-se em três partes iguais, atribuindo-se uma delas ao cônjuge sobrevivo e as restantes a cada um dos filhos (art.º 2139.º, n.º 1 do Código Civil).

A doação feita ao filho DD, conferida só pela metade, sai da quota disponível da inventariada e, se a exceder, imputar-se-á o valor do excesso na legítima do donatário, reduzindo-se a doação, por inoficiosidade, se a ultrapassar (art.º 2168.º do Código Civil).

Quanto à herança do inventariado BB, proceder-se-á do seguinte modo:

À meação acima descrita deste inventariado, assim como à parte que lhe couber da herança da inventariada AA, soma-se o valor da meia conferência da doação feita ao filho DD (artigos 2162.º, n.º 1 e 2117.º, ambos do Código Civil), de acordo com o valor acima apontado.

Somam-se os respectivos valores e divide-se o total em três partes iguais, constituindo 2/3 a legítima dos filhos e correspondendo uma terça parte à quota disponível do inventariado BB (art.º 2159.º, n.º 2 do Código Civil).

O valor da legítima divide-se em 2 partes iguais, atribuindo-se cada uma delas a cada um dos dois filhos (art.º 2139.º, n.º 2 do Código Civil).

Nos termos já acima referidos, a doação feita ao filho DD, conferida aqui também em metade, sai da quota disponível do inventariado e, se a exceder, imputar-se-á o valor do excesso na legítima do donatário, reduzindo-se a doação, por inoficiosidade, se a ultrapassar (art.º 2168.º do Código Civil).

No preenchimento dos quinhões atender-se-á ao acordado na conferência de interessados, ao resultado das licitações, aos pedidos de adjudicação ou ao sorteio, se a eles houver lugar, tornando quem dever.».

Na sequência, foi designada data para a conferência de interessados, no âmbito do disposto no art.º 1111.º do NCPCiv..

No mapa da partilha, a dita “verba 24” apenas é mencionada como bem adjudicado ao interessado, nos seguintes termos:

«Ao interessado DD

Bens adjudicados:

- Verba nº 1 (um) – ½                                                            24.193,35€

Bem doado

- Verba nº 24 (vinte quatro) (22.345,00€+24.424,00€)            46.769,00€

Total:                                                                                     70.962,35€

Paga tornas:

- CC:               5.006,61€

E fica preenchida o seu quinhão:        65.955,74€» (destaques retirados).

Ou seja, nada ali se diz quanto ao invocado “valor mais alto fixado pela avaliação”, a que se refere a Recorrente (€ 68.019,00).

Nem tal valor superior se retira do mapa da partilha ou da subsequente sentença homologatória da partilha.

Daí que, na conjugação destas peças processuais, não possa chegar-se àquele valor de € 68.019,00, razão pela qual nunca poderia concluir-se, no confronto entre decisão determinativa da forma da partilha, mapa da partilha e sentença homologatória da partilha, pela existência, em termos manifestos, de um erro de escrita ou de cálculo nos moldes invocados.

Os erros de escrita ou de cálculo, em termos de lapso manifesto – aqueles que podem ser corrigidos por simples despacho, a todo o tempo (art.ºs 613.º, n.º 2, e 614.º, ambos do NCPCiv.) –, devem decorrer do próprio texto ou contexto da sentença ou despacho, no caso, na conjugação daquelas peças processuais: decisão determinativa da forma da partilha, mapa da partilha e sentença homologatória da partilha.

Se assim não for, faltará, desde logo, o caráter manifesto/evidente do vício/erro/lapso.

É que, constitui “erro material (manifesto) o erro de cálculo ou de escrita (art. 249 CC), revelado no próprio contexto da sentença ou em peças do processo para que ela remeta” ([7]).

Havendo até doutrina que defende a irrecorribilidade do despacho/decisão – como o dos autos – que indefira o requerimento de retificação de sentença: “deve entender-se que do indeferimento do requerimento de retificação não cabe recurso, por aplicação analógica do art.º 617, n.ºs 1, parte final, e 6, 1.ª parte, sem prejuízo do poder que a Relação tem de, no recurso interposto da sentença, a interpretar” ([8]).

Com efeito, é consabido que, proferida a sentença – ou prolatado o despacho –, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. É o que taxativamente resulta do disposto no art.º 613.º, n.ºs 1 e 3, do NCPCiv..

É certo, nos termos do n.º 2 deste mesmo art.º, que pode o juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, tudo nos moldes dos art.ºs seguintes.

Assim, é lícito corrigir erros de escrita ou de cálculo ou outras inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto (art.º 614.º, n.º 1, do mesmo Cód.).

E também é possível, a requerimento das partes, a reforma da sentença quanto a custas e multa (n.º 1 do art.º 616.º da lei adjetiva). Porém, a reforma – sempre por manifesto lapso do juiz e a requerimento de alguma das partes – nos casos de erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica, tal como em caso de constarem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, sem mais, impliquem necessariamente decisão diversa, só será permitida se não couber recurso da decisão (n.º 2 do mesmo art.º 616.º).

Todavia, na decisão em crise não ocorreu, como é patente, qualquer manifesto lapso do juiz, não se tratando de retificar erros materiais evidentes, suprir nulidades e reformar a decisão proferida. Não se mostra que tenha existido evidente/claro/manifesto erro de escrita ou de cálculo ou outra qualquer inexatidão devida a outra omissão ou lapso manifesto.

Se falha existiu, ela consistiu em erro de julgamento, incidente/materializado sobre decisão homologatória referente, como dito, à “partilha constante do mapa”, o qual (erro) não pode(ria) ser retificado pelo juiz da causa, por via do esgotamento do seu poder jurisdicional.

Caso em que apenas poderia ocorrer alteração (do erro de julgamento, se existisse) pela via do recurso – por Tribunal superior –, sendo, porém, que tal recurso não foi interposto, razão pela qual a sentença homologatória transitou, inevitavelmente, em julgado.

Como referem Abrantes Geraldes e outros ([9]), proferida a sentença, esgota-se o poder jurisdicional do juiz, pelo que, em regra, apenas poderá ser modificada por via de recurso, quando este seja admissível, ou mediante incidente de reforma ou arguição de nulidade, regime que é de aplicar também aos despachos, tenham cunho material ou formal, por implicarem apenas com o direito adjetivo, ainda que, neste caso, possam sofrer as restrições que decorrem do art. 620.º, n.º 2.

E logo prosseguem os mesmos Autores:

«Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar.».

Compreende-se, então, este regime rigoroso, justificado «pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que, fora do quadro do regime dos recursos, derivaria da possibilidade de ser alterada a decisão (...)» ([10]).

Assim sendo, «quer conclua com a absolvição da instância, quer condene no pedido ou dele absolva, o juiz da causa não pode, em regra, rever a decisão proferida» ([11]), o que também vale, obviamente, para uma sentença homologatória, como a que homologue a partilha em processo de inventário judicial.

Líquido se torna, assim, que, in casu, decididas as questões referentes à partilha, com prolação da respetiva sentença homologatória, ficou imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz da causa, quanto à específica matéria decidida, motivo pelo qual estava legalmente vedada a possibilidade de prolação de ulterior decisão diversa, sendo até que, como visto, tal sentença veio a transitar em julgado.

Quer dizer, não poderia, manifestamente, depois vir dar-se sem efeito, ainda que em parte, aquela anterior decisão ([12]), ou simplesmente alterar-se alguma dimensão do assim decidido.

Doutro modo, estaria aberta a porta para a alteração posterior, fora das condições legais, de decisões anteriormente proferidas pelo mesmo tribunal, mesmo que por detetado erro de direito, à margem do regime dos recursos, o que seria, como é bom de ver, causa de enorme insegurança e instabilidade para as partes e incerteza do direito ([13]), veiculado através das decisões judiciais.

Em suma, não resultando do texto e contexto da dita sentença homologatória – mesmo se em conjugação com a anterior decisão determinativa da forma da partilha e, bem assim, com o mapa da partilha que a concretizou – que tenha havido algum erro de escrita ou de cálculo, em termos de vício manifesto/evidente, a decisão do requerimento de retificação só poderia ser – como foi, salvo o devido respeito – a de indeferimento.

Se erro relevante houvesse no âmbito do mapa da partilha – como vem defender a Recorrente (com referência a qualquer valor concreto resultante de avaliação, a que alude o art.º 1114.º do NCPCiv.) –, cabia a esta, no tempo próprio, reclamar contra tal mapa e erro (art.º 1120.º, n.º 5, do NCPCiv.).

Expirado o tempo para reclamações contra o mapa da partilha – sem que alguma reclamação fosse deduzida ([14]) – e proferida e, até, transitada a sentença homologatória da partilha (cfr. art.º 1122.º, n.º 1, do NCPCiv.), a parte/interessada, que permaneceu imóvel/letárgica, somente de si, com todo o respeito devido, se poderá queixar (da sua própria inércia/passividade).

Âmbito em que, perante tal inação imputável, não colhe a invocação de soluções de justiça material – suplantando, virtualmente, uma justiça meramente formal –, através do recurso ao expediente do alegado erro/lapso manifesto, de molde a neutralizar os efeitos do caso julgado da sentença, se o convocado erro de cálculo ou de escrita não resulta plasmado de modo evidente/manifesto/clamoroso perante o texto da sentença e, outrossim, o contexto decisório respetivo ([15]).

Resta, pois, mesmo que se entenda ser admissível a apelação consistente na impugnação de decisão de indeferimento do requerimento de retificação da sentença, julgar improcedente o recurso, apenas se acrescentando, por último, que, quanto a custas deste, tem de operar o critério do decaimento – a Recorrente, vencida na apelação, suportará as custas respetivas (art.º 527.º, n.º 1, do NCPCiv.).

(…)

 

***
V – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas da apelação pela Apelante, vencida na instância recursiva (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).
Coimbra, 18/06/2024     

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

Rui Moura

Luís Cravo



([1]) Ambos estes filhos dos inventariados.
([2]) Do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.
([3]) Invocando fazê-lo «ao abrigo do disposto no artigo 644º nº2 alínea e) e h) do Código de Processo Civil».
([4]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) Âmbito em que a Apelante invoca na sua motivação de recurso que «O valor do imóvel DA VERBA Nº 24, à data da 1ª avaliação (17/05/2022) foi de €68.019,00 doado ao Interessado DD», acrescentado que «o valor dessa verba foi majorado por via, da avaliação efetuada nos presentes autos».
([6]) Destaques aditados.
([7]) Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, p. 732. Estes Autores dão até como exemplo uma situação em que «na fundamentação, o juiz apura uma dívida de 10.000 euros», acabando, porém, no dispositivo da sentença, por condenar em apenas «1.000 euros».
([8]) Assim, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. e loc. cits., como também interpretado por Abrantes Geraldes e outros, em Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 735.
([9]) Cfr. op cit., p. 734.
([10]) Op. cit., p. 734.
([11]) Assim também José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 729.
([12]) Dir-se-ia, “dar o dito por não dito” ou o decidido como não decidido.
([13]) V., a propósito, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, Coimbra, 2018, ps. 174 e seg., aludindo aos «princípios da segurança jurídica e da imparcialidade do juiz», em conformidade com o brocardo lata sentencia, judex desinit esse judex, sendo a regra em questão «tão importante que não pode ser afastada pelo exercício do poder de adequação formal».
([14]) O mapa da partilha materializa a divisão, sujeita a homologação na sentença dos autos de inventário, contendo enunciação do ativo (e do passivo, se o houver), da quota de cada interessado e do preenchimento do respetivo quinhão com bens (ou lotes de bens), e sendo a peça processual que concretiza os direitos de cada interessado, quanto aos bens que lhe serão atribuídos e a tornas a prestar/receber – cfr. Ac. TRC de 07/05/2024, Proc. 583/20.9T8ACB.C1 (relatado pelo aqui Relator e em que também interveio, como adjunto, o Exm.º Desembargador aqui 2.º Adjunto), disponível em www.dgsi.pt.
([15]) Quanto ao invocado valor de avaliação, a Recorrente apenas alude a um relatório de “1.ª avaliação (17/05/2022)”, que foi junto aos autos de inventário em 19/05/2022, ou seja, trata-se de um elemento de prova pericial muito anterior ao dito mapa da partilha (este de 15/06/2023) e, por consequência, à sentença homologatória da partilha, a qual validou tal mapa. Por isso, se erro houve – por desconsideração dessa prova pericial (e inerente valoração judicial) –, estaremos perante um erro de julgamento (na homologação/validação judicial das operações de partilha), e não perante um simples/suprível erro/lapso manifesto. Razão pela qual deveria: (i) ter sido deduzida reclamação contra o mapa; (ii) ter sido interposto recurso da sentença homologatória, nos termos do disposto no art.º 1123.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv. (e não o foi).