I – O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras é de mera forma, não existindo, em princípio, um controlo da boa aplicação do direito.
II – A sentença a rever não deve conter decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
III – Se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou coletiva de nacionalidade portuguesa, a oposição à revisão pode ainda fundar-se em que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.
IV – A atribuição de bens comuns do casal, feita na ação de divórcio, proferida por tribunal estrangeiro, na qual se atribui aos cônjuges bens e valores, de forma desequilibrada, e se remete para o processo de divórcio pendente em Portugal a distribuição de valores e bens existentes em Portugal, não deve ser reconhecida por duas razões:
Viola a “ordem pública internacional do Estado Português”, enquanto violação do direito de propriedade, a entrega da propriedade da casa, sem qualquer específica contrapartida;
As parciais atribuições ou partilha incompleta não permitem assegurar o resultado da decisão, não devendo limitar a ação do tribunal português, sendo necessária a consideração global do património, para assegurar a regra da metade.
AA intentou ação de revisão de sentença estrangeira, contra BB, pedindo que seja revista e confirmada a sentença proferida a 15.11.2022, pelo Tribunal Superior de New Jersey, Divisão de Família, E.U.A., que decretou o seu divórcio e fez certas atribuições patrimoniais.
Citado o requerido, deduziu oposição, alegando, além do mais:
O processo estrangeiro correu à sua revelia.
Jamais poderiam ser atribuídos bens na proporção de 80% à Requerente, sem qualquer contrapartida económica para o Requerido.
Foi atribuída a casa à Requerente com o valor de pelo menos 520 mil dólares.
A sentença estrangeira toma posição sobre questões patrimoniais, mas refere que a divisão dos bens sitos em Portugal deve ser decidida na ação de divórcio que se encontra a correr termos em Portugal.
O resultado da ação teria sido mais favorável ao Requerido se o Tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este deve ser resolvida a questão, segundo a norma de conflitos da Lei Portuguesa.
O Ministério Público alegou não se encontrarem preenchidos os requisitos do artigo 980, d/f), do C. Processo Civil, não devendo a Sentença ser revista e confirmada.
Não há excepções dilatórias ou nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Foi cumprido o previsto no art.982, nº 1, do Código de Processo Civil, tendo as partes reafirmado as suas anteriores posições.
A questão que importa decidir é a de saber se estão verificados os requisitos para a confirmação da sentença referida.
As partes têm nacionalidade portuguesa.
A requerente reside nos Estados Unidos da América e o requerido em Portugal.
Casaram a ../../1982, em Portugal.
A requerente intentou, em ../../2021, contra o requerido, ação civil de pedido de divórcio no Tribunal Superior do Estado de New Jersey.
O requerido foi nela citado em novembro de 2021.
O seu advogado não contestou o pedido de divórcio.
Dirigindo-se pessoalmente ao tribunal, este não deu deferimento aos seus pedidos.
O requerido intentou em Portugal ação de divórcio, que se encontra pendente; nesta, o tribunal português foi tido por competente, considerando-se que a pendência da ação nos E.U.A. não era obstáculo àquela.
Em 15 de novembro de 2022, foi pelo referido Tribunal Superior de New Jersey proferida sentença com o seguinte conteúdo:
O requerido, em 03 de abril de 2023, deu entrada de uma moção para anular o julgamento ocorrido em 15 de novembro de 2022; por decisão proferida em 07 de julho de 2023, foi negado provimento e mantida a decisão proferida em 15 de novembro de 2022.
*
Para que uma sentença proferida por um tribunal estrangeiro seja confirmada e tenha eficácia em Portugal é necessário que se verifiquem os requisitos previstos nas alíneas a) a f), do artigo 980.º do Código de Processo Civil. Mas, deverá ter-se presente que os previstos nas alíneas a) e f) são condições do reconhecimento e os restantes constituem fundamentos de impugnação do pedido de reconhecimento, assistindo, no entanto, ao tribunal o poder de negar oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apurar que falta algum deles.
No caso dos autos, o documento revelador da sentença a rever não oferece dúvidas e a inteligibilidade da decisão é manifesta.
Apesar do requerido defender que não foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, a verdade é que o mesmo foi citado e encontrava-se representado por advogado. Os elementos trazidos aos autos não permitem considerar que no processo onde foi proferida a sentença não foram assegurados tais princípios.
Por outro lado, importa que o reconhecimento da decisão não conduza a qualquer resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. São de ordem pública aquelas normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.
Ainda de acordo com a norma do art.983, nº 2, do Código de Processo Civil, se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou coletiva de nacionalidade portuguesa, a oposição à revisão pode ainda fundar-se em que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.
Vejamos:
Não há dúvidas a respeito da competência dos tribunais portugueses, sendo certo que o tribunal americano remeteu para estes, pelo menos, a partilha dos bens sitos em Portugal;
Sendo portugueses os cônjuges, aplica-se a lei nacional comum (arts.52, 1 e 53, 1, do Código Civil);
As partes reconhecem que se trata de bens comuns;
O tribunal americano fez atribuições sem menção do seu título, sem consideração do conjunto e sem referência completa aos valores, especialmente no que diz respeito à casa sita nos E.U.A.;
Pelas afirmações das partes, não é possível assegurar o valor das atribuições, sendo elas divergentes quanto ao resultado.
Aquelas atribuições (parcial partilha) conduzem a um resultado incompleto, que não deverá ser reconhecido pelas seguintes razões:
Não é possível assegurar o respeito da regra da metade, sem uma consideração do conjunto; a própria Requerente admite que a divisão a prejudica, dizendo o Requerido o contrário;
Se a partilha não é total, não podem as atribuições ser tidas como definitivas;
Sem estar assegurada a contrapartida económica (por exemplo pelas tornas) das atribuições, em especial da casa, estas poderão ofender o direito de propriedade dos cônjuges, constitucionalmente garantido, violando-se assim a “ordem pública internacional do Estado Português” (acórdão da RC de 13.12.2022, proc. 86/22, em www.dgsi.pt.);
Face ao “privilégio da nacionalidade”, perante aquelas atribuições, não é possível assegurar que não esteja a ser imposto um resultado desfavorável ao Requerido;
Sendo discutível a eficácia da partilha portuguesa sobre os bens sitos nos E.U.A. (ver acórdão (e suas referências das divergências) da RC de 13.5.2008, proc. 380-B/1999, em www.dgsi.pt), considerando a regra da universalidade, a partilha que falta realizar deverá ser sempre uma consideração do conjunto das atribuições, para conferência da regra da metade;
A eficácia (obstáculo discutível) não é imposição para o reconhecimento da declaração atributiva;
Apesar de discutível a eficácia da partilha portuguesa sobre os bens sitos nos E.U.A., o tribunal português é o competente para a consideração do conjunto;
As partes deverão respeitar uma partilha global, completa, e ajustar as atribuições e tornas em função da regra da metade; as partes podem reformular as transmissões em função dos seus interesses, nomeadamente o da eficácia.
Por tudo isto, as atribuições, em divórcio, nos termos apresentados, estariam a limitar a ação (admitida por todos) do tribunal português, sendo certo que a jurisdição deste não foi arredada.
Custas pela requerente.
Notifique.
2024-06-18
(Carlos Moreira)
(Luís Cravo)