INTERNAMENTO PARA TRATAMENTO INVOLUNTÁRIO
REVISÃO
TRATAMENTO AMBULATÓRIO
Sumário


I. Na decisão de revisão está em causa saber se a situação clínica anteriormente avaliada se mantém ou se surgiram novos elementos que permitam realizar uma avaliação diferente.
II. O juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica está subtraído à livre apreciação do juiz (nº 5 do artigo 17º da LSM).
III. Continuando o internado a apresentar défice crítico para a sua doença e para a necessidade de cumprimento do tratamento proposto, não se pode afirmar que tenham cessado os pressupostos que justificaram o tratamento involuntário.

Texto Integral

Recurso nº 3563/23.9T8LRA-A.C1

Comarca de Leiria – Juízo Local Criminal de Alcobaça.

Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

         A – Relatório

1. Pela Comarca de Leiria (Juízo Local Criminal de Alcobaça), no âmbito do Processo Comum de tratamento involuntário nº 3563/23...., em que é internando AA, foi proferido despacho, a 3.4.2024, logo após a realização da sessão conjunta, decidindo-se pela manutenção do tratamento involuntário em ambulatório do referido internando.

 

2. Inconformado com tal despacho, veio o internando AA interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“1. Deve ser acrescentado o seguinte facto ao lote de factos provados: “Actualmente, não recusa a medicação.”, facto esse que:

a. foi confirmado pela médica psiquiatra Dr.ª BB, cfr. Minutos 8:10 a 8:25 da gravação da sessão conjunta de 2024-01-30 (gravação com início às 9:44 e fim às 10:01, identificada no Citius com a informação “Internando: AA”);

b. resulta do Relatório de 2024-01-18 (Ref.ª Citius: 10455962), em dois itens distintos da página 2 (de 4).

2. Deve ser dado como não provado o facto provado 16, visto que a expressão é ambígua (impedindo o contraditório: como provar que certos comportamentos nunca ocorreram se não se sabe quais são?) e o Tribunal se limitou a reproduzir as expressões conclusivas (nunca sendo concretizados os factos de que foram retiradas e que, esses sim, seriam passíveis de serem considerados provados) constantes nos relatórios, não tendo a médica psiquiatra Dr.ª BB sido capaz, na sessão conjunta de 2024-01-30, de concretizar em que factos concretos se baseia para retirar aquelas conclusões, tendo a mesma admitido que, para chegar a essas conclusões, não usa quaisquer critérios objectivos fiscalizáveis pelo Tribunal, cfr. principalmente minutos 14:25 a 15:40 da gravação da sessão conjunta de 2024-01-30 (gravação com início às 9:44 e fim às 10:01, identificada no Citius com a informação “Internando: AA”).

3. Viola o art. 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil e o art. 15.º, n.º 1, al. c), ii), in fine, e n.º 2 da Lei da Saúde Mental, a não consideração como facto conclusivo do facto provado 16., impondo-se ser esse “facto” declarado facto conclusivo.

4. Não consta, dos factos provados, que o Internando recuse actualmente a medicação, pelo que não se encontram provados factos que preencham a hipótese legal do art. 15.º, n.º 1, al. b), da Lei da Saúde Mental, tendo sido violada essa norma e a do art. 26.º, n.º 1, pois devem ser interpretadas no sentido de que a falta de verificação do pressuposto cumulativo do tratamento involuntário impõe o fim do tratamento, sentido interpretativo que o Tribunal não seguiu, antes enveredando pela interpretação de que bastará, para manter o tratamento involuntário, a existência de alguma probabilidade de o Internando se vir a recusar, no futuro, a tomar a medicação.

a. É incorrecta a interpretação do Tribunal de que “a parca capacidade crítica [do Internando] se reconduz, pois, a uma recusa do tratamento”, devendo o art. 15.º, n.º 1, al. b), da Lei da Saúde Mental ser, ao invés, interpretado no sentido de que só se pode considerar haver recusa quando haja actos de recusa efectivamente praticados, e não actos que se prognostica poderem eventualmente vir a ser praticados no futuro.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, verificada a ausência do preenchimento dos pressupostos legais para a manutenção do tratamento involuntário em ambulatório de AA, declarando-o cessado”.

3. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo internando, pugnando pelo não provimento do mesmo e pela confirmação do despacho recorrido, concluindo que:

“1. O arguido AA veio interpor recurso da douta decisão de revisão de internamento, onde se decidiu a manutenção do tratamento involuntário em ambulatório.

2. Da análise aos autos, verificamos que AA foi internado, voluntariamente, no dia 10.9.2023, devido a episódio psicótico (exp. junto a 27.9.2023), na sequência de abandono da toma de medicação. Em virtude de ter recusado a toma de medicação, foi o mesmo internado voluntariamente.

3. A 11.10.2023 foi junto relatório médico actualizado, onde se refere que o internando, apesar de se encontrar mais calmo e colaborante, revela desconfianças enquadradas em ideação delirante persecutória (…) insight reduzido para o estado mórbido e para a doença (…) nega que as alterações de comportamento se devessem ao facto de ter uma doença (…) reconhece ter retomado consumos de substâncias ilícitas, mas demonstra não entender a importância de abandonar os consumos e aderir à terapêutica como condição essencial para assegurar a estabilidade clínica.

4. A 24.10.2023, foi junto of. pelo Hospital ..., onde se informa que, no dia 17 de Outubro de 2024, AA foi internado para estabilização clínica.

5. A 30.10.2023, foi junta nova informação dando conta que AA não apresenta condições para comparecer na diligência que se mostrava agendada.

6. A 7.12.2023, foi junto relatório médico que mantém a situação.

7. A 25.1.2024, é junto novo relatório que refere “apresenta-se calmo (….) com crítica parcial para a sua doença e para a necessidade terapêutica (…) apesar de clinicamente estabilizado, mantém crítica parcial para a sua doença bem como para as medidas terapêuticas propostas”.

8. Realizada sessão conjunta no dia 30.1.2024, a Sra. médica que assiste AA, esclarece que, apesar de se encontrar a cumprir a medicação prescrita (e reconhecer a doença), o tratamento encontra- se ainda numa fase incipiente (já com bastantes melhorias), o mesmo apresenta crítica parcial para a doença, porquanto não se mostra possível avaliar se a mudança de comportamento (primeiro ao recusar a medicação e, por ora, ao aceitar a medicação) se deve a efectiva consciência da necessidade da toma, ou se esta “aceitação” é aparente, de forma a cessar o tratamento compulsivo.

9. O que de resto, sem quaisquer conhecimentos técnico-científicos na situação ora em apreço, nos parece absolutamente razoável, atendendo, por um lado, à circunstância desta situação se ter iniciado em Setembro de 2023 (volvidos, apenas, 5 meses), e por outro, atendendo que se verificou, já durante este processo, a necessidade de internamento, com vista à estabilização clínicas (o que ressalta avanços e retrocessos, típicos em situações como a destes autos).

10. Assim, e quanto à inclusão do facto provado, “Actualmente, não recusa a medicação”, entendemos que esta conclusão ainda é prematura, pois que apresenta ainda deficit critico (fraca análise) para a sua doença e necessidade de tratamento.

11. Assim e louvando-nos da douta sentença que fez correcta apreciação dos factos e aplicação do direito, entendemos que a mesma não merece censura.

12. Termos em que deve o recurso ser julgado improcedente por não provado, mantendo-se a sentença nos seus precisos termos”.

4. O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da sua improcedência e manutenção da decisão recorrida.

Frisa que, compulsada a decisão posta em causa, e conjugando os fundamentos de facto e de direito que dela constam, resulta da mesma, no essencial, os motivos que levaram, então, à manutenção da medida sanitária aplicada, sem que anteveja substancialmente motivo para censura.

5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo o internando respondido ao douto parecer.

6. Respeitando as formalidades aplicáveis, após o exame preliminar e depois de colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

7. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.

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   B - Fundamentação

 

1. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que dispõe que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

São, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, nº 2, e 410º, nº 3, do mesmo diploma legal).

O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193).

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelo internando, as questões a decidir são as seguintes:

- se deve ser aditado à factualidade provada o seguinte facto:

“Actualmente não recusa a medicação”.

- se o facto provado do ponto 16 deve ser retirado do elenco da factualidade;

- se estão verificados os pressupostos do artigo 15º, nºs 1 e 2, da LSM.

3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos o despacho recorrido que apresenta o seguinte teor:

I. No âmbito dos presentes autos foi AA internado para tratamento involuntário, o que foi confirmado, que tem vindo a ser revisto e mantido.

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Foi junto o relatório a que alude o artigo 25.º, n.º4 da Lei de Saúde Mental (LSM, actualmente Lei n.º 35/23 de 21 de Julho).

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Procedeu-se à realização de sessão conjunta de prova, nos termos dos artigos 21.º e 22.º da LSM, como consta da respectiva acta.

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Inexistem questões prévias, nulidades ou exceções que cumpra apreciar.

II. Fundamentação de facto

a) Factos provados

1. No dia 19.09.2023 foi AA internado voluntariamente no serviço de psiquiatria do Centro Hospitalar ... em consequência de alterações de comportamento, alterações do sono e sintomatologia psicótica com ideação persecutória e auto-referencial, em episódio de mania com sintomas psicóticos (humor irritável, taquipsiquia, ideias delirantes persecutórias, heteroagressividade e desinibição comportamental e sexual) bem como disfuncionalidade marcada que culminaram no seu despedimento.

2. Havia subido a um telhado e partido vidros.

3. Admitiu abandono da medicação.

4. Não apresentava critica para a doença e necessidade de tratamento.

5. Padece de perturbação afectiva bipolar.

6. Já havia sofrido internamentos prévios.

7. Recusava a medicação injectável, essencial para a sua estabilização clínica.

8. Em 09.10.2023 apresentava-se mais calmo e colaborante, com tensão latente, com humor subdeprimido.

9. Revelava desconfianças enquadradas em ideação delirante persecutória, embora mais esbatida.

10. Apresentava critica muito reduzida para o estado mórbido e para a doença, desvalorizando o motivo do internamento, negando que as alterações do comportamento se devessem à doença de que padece.

11. Reconhece a retoma de consumo de estupefacientes.

12. O abandono da medicação acarretará a degradação do seu estado de saúde, nomeadamente o agravamento/recorrência da sintomatologia psicótica e do humor, com consequente instabilidade comportamental e aumento da probabilidade de alterações de comportamento imprevisíveis, com risco de agressividade para si e terceiros.

13. Desvaloriza o abandono da medicação e consumo de substâncias ilícitas para a destabilização da doença.

14. Em 13.10.2023 teve alta do internamento, passando a tratamento ambulatório involuntário.

15. Em 17.10.2023 sofreu novo internamento na sequência de abandono da medicação e abuso de substâncias, tendo passado a ambulatório em 17.11.2023.

16. Actualmente continua a apresentar défice critico para a sua doença e para a necessidade de cumprimento do tratamento proposto.

b) Factos não provados

Com relevância para a decisão, não foram vislumbrados factos que devessem ser seleccionados para a fundamentação e cuja prova levasse a concluí-los como não provados.

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A factualidade provada sobreveio da prova documental junta aos autos, com destaque para os relatórios de avaliação clínico psiquiátrica, designadamente o último, das próprias declarações do Requerido, bem como os esclarecimentos prestados pela Sr.ª Dr.ª BB, documentadas em acta, diante das quais se confirmou o défice de crítica para a doença e necessidade da respectiva terapêutica.

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III. Enquadramento Jurídico

A Nova Lei de Saúde Mental, aprovada pela Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho, estabelece, a título de «objetivos da política de saúde mental: a) Promover a titularidade efetiva dos direitos fundamentais das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e combater o estigma face à doença mental; b) Melhorar a saúde mental das populações, nomeadamente através da implementação efectiva e sustentável de medidas que contribuam para a promoção da saúde mental, para a prevenção e tratamento das doenças mentais e para a reabilitação e inclusão das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental; c) Concluir a transição para a prestação de cuidados de saúde mental na comunidade, tendo em vista melhorar a qualidade desses cuidados e garantir a protecção dos direitos nos serviços e entidades com intervenção na área da saúde mental; d) Assegurar a integração da saúde mental nas políticas públicas e garantir uma cooperação efectiva entre as áreas governativas com intervenção directa ou indirecta na área da saúde mental; e) Garantir a participação efectiva das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e respectivos familiares na definição das políticas e planos de saúde mental, bem como no seu acompanhamento e avaliação; f) Fortalecer o conhecimento baseado na evidência científica e promover a implementação de boas práticas em saúde mental» (cfr. o artigo 5.º).

Neste conspecto, o «tratamento involuntário é orientado para a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial» (cfr. o artigo 14.º), sendo, para tanto, nos termos do artigo 15.º, seus «pressupostos cumulativos (…); a) A existência de doença mental; b) A recusa do tratamento medicamente prescrito, necessário para prevenir ou eliminar o perigo previsto na alínea seguinte; c) A existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais: i) De terceiros, em razão da doença mental e da recusa de tratamento; ou ii) Do próprio, em razão da doença mental e da recusa de tratamento, quando a pessoa não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento; d) A finalidade do tratamento, conforme previsto no artigo anterior»; e só podendo «ter lugar se for: a) A única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito; b) Adequado para prevenir ou eliminar uma das situações de perigo previstas na alínea c) do número anterior; e c) Proporcional à gravidade da doença mental, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico».

Outrossim com relevo para a presente decisão, lê-se, no artigo 27.º, que «[o] tratamento involuntário em internamento é substituído por tratamento em ambulatório logo que aquele deixe de ser a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, sem prejuízo do disposto nos artigos 25.º e 26.º»

«A revisão da decisão tem lugar com audição do Ministério Público, da pessoa em tratamento involuntário, da pessoa de confiança, do defensor ou mandatário constituído, de um dos psiquiatras subscritores do relatório de avaliação clínico-psiquiátrica ou do psiquiatra responsável pelo tratamento e de um profissional do serviço de saúde mental que acompanha o tratamento. É correspondentemente aplicável à audição prevista no número anterior o disposto no n.º 2 do artigo 22.º, e à decisão de revisão o disposto no artigo 23.º» (cfr. o artigo 25.º, n.ºs 5 e 6).

No caso dos autos AA padece de doença afectiva bipolar, apresenta parca capacidade crítica para esta sua doença mental grave, assim como para as necessidades de tratamento associadas, que se reconduz, pois, a uma recusa de tratamento, que, por seu turno, se apresenta de particular relevo pois que aquela doença, na ausência ou abandono da respetiva medicação e tratamento, determina o Internando a alterações do seu comportamento com perigo para bens pessoais e/ou patrimoniais próprios e/ou de terceiros; o que, de resto, esteve na génese do tratamento involuntário em internamento de urgência, ponto de partida dos presentes autos e à subsequente manutenção da medida de tratamento compulsivo ambulatório, com vista à recuperação integral do Internando, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial.

Atenta, sobretudo, a sublinhada ausência de crítica para a sua doença e necessidade de respectivo tratamento, um tratamento voluntário apresentar-se-ia insuficiente para garantir a toma da medicação e, por conseguinte, para prevenir uma recaída, de que aliás o constante de 14 e 15 é bem ilustrativo.

Pelo exposto, o tratamento involuntário em ambulatório continua a apresentar-se, no presente caso, como a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, sendo adequado a prevenir a existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais do Próprio e/ou de terceiros, sendo proporcional à gravidade da doença diagnosticada, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico.

Estão assim reunidos todos os pressupostos presentes no artigo 15.º da LSM.

E assim, concluímos que os pressupostos do tratamento involuntário em regime de internamento se mantêm.

IV.

Face ao exposto, nos termos dos artigos 14.º, 15.º, 25.º a 27.º, 32.º e 33.º todos da Nova Lei da Saúde Mental, determino a manutenção do tratamento involuntário em ambulatório de AA.

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Sem custas.

Notifique e comunique ao Centro Hospitalar, ao qual se solicitará a elaboração de relatório da avaliação clínico-psiquiátrica, atento o preceituado no art.25º, nº2 da Lei de Saúde Mental.

Uma vez junto, abra Conclusão a fim de ser agendada a audição legalmente exigida no n.º5”.

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                    *

 

4. Cumpre agora apreciar e decidir.

A primeira questão a apreciar é a de saber se deve ser aditado à factualidade provada o seguinte facto:

“Actualmente não recusa a medicação”.

Alega o recorrente que, actualmente, não recusa a toma da medicação. Foi por essa razão que, na página 2 do último Relatório de Avaliação Clínico-Psiquiátrica, de 2024-01-18, os signatários desse Relatório não assinalaram como verificado o pressuposto cumulativo da recusa do tratamento médico. E, nessa mesma página, não assinalaram como verificado o item “A pessoa sujeita a esta ACP não aceitou o plano terapêutico proposto”, antes assinalando outra situação. Tal foi confirmado, na sessão conjunta de 2024-01-30, pela médica psiquiatra BB, cfr. Minutos 8:10 a 8:25 da gravação da sessão conjunta de 2024-01-30 (gravação com início às 9:44 e fim às 10:01, identificada no Citius com a informação “Internando: AA”).

Vejamos, então, o que consta do referido Relatório de Avaliação Clínico-Psiquiátrica (ACP).

Trata-se de um relatório de avaliação clínico-psiquiátrica, elaborado por dois médicos psiquiatras, tendo em vista a revisão da decisão (cfr. artigo 25º, nº4, da LSM - Lei nº 35/2023, de 21 de Julho).

Nele consta que o internando é um “homem de 29 anos, com diagnóstico de Perturbação Afetiva Bipolar tipo I, acompanhado em regime de tratamento involuntário ambulatório, com internamento recente no serviço de Psiquiatria e Saúde Mental por descompensação da sua doença.

Actualmente apresenta-se calmo, com humor aplanado, lentificação motora evidente, sem sintomatologia psicótica objetivável e sono reparador. Com crítica parcial para a sua doença e para a necessidade terapêutica. …

Apesar de clinicamente estabilizado, mantém crítica parcial para a sua doença bem como para as medidas terapêuticas propostas, beneficiando de manter tratamento em regime involuntário.

No quadro onde constam as várias hipóteses da posição do doente em relação ao tratamento, como aceitou, não aceitou ou se se trata de doente sem crítica (ou discernimento necessário) para avaliar a necessidade de tratamento, foi esta última a opção assinalada.

Isto é, o internando é uma pessoa sem crítica, sem discernimento necessário, para avaliar a necessidade de tratamento.

Consta ainda a existência de doença mental, mais precisamente Perturbação Afetiva Bipolar tipo I.

É certo que não se assinalou o quadro onde consta a recusa do tratamento medicamente prescrito necessário para prevenir ou eliminar o perigo.

No entanto, logo de seguida assinalou-se a existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais do próprio, em razão da doença mental e da recusa do tratamento, quando a pessoa não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento.

Ponto este que foi concretizado da seguinte forma:

Doente sem crítica ou discernimento necessário para avaliar a necessidade de tratamento, que em caso de abandono poderá apresentar deterioração clínica grave, com risco para si, terceiros ou bens de relevante valor, tal como já ocorrera previamente.

No mesmo relatório foi assinalada, no campo da gravidade da doença mental, Doença Mental Grave.

No campo relativo à descrição de factos que fundamentam a necessidade de tratamento involuntário, consta o seguinte:

“Doente sem crítica para a necessidade de tratamento, que em caso de abandono poderá apresentar deterioração clínica grave, com risco para si, terceiros ou bens de relevante valor. Em caso de abandono terapêutico poderá apresentar agravamento clínico, tal como já ocorrera previamente”.

Por último, em jeito de conclusão, consta do mesmo relatório que:

“Pelo exposto, consideramos que a pessoa sujeita à presente ACP está carecida da seguinte intervenção com finalidade terapêutica:

Tratamento involuntário em ambulatório”.

O que foi confirmado pela médica psiquiátrica, Dra BB, quando foi ouvida na Sessão Conjunta, a 30.1.2024.

Tendo-lhe sido perguntado, quais as consequências da cessação do tratamento, respondeu que “é um voltar atrás, com descompensação clínica, inevitavelmente o AA vai ficar descompensado o que traz risco para o próprio e para terceiros e inevitavelmente vai levar a novo internamento”.

Posteriormente foi-lhe perguntado quais os factos que a levam a dizer que há crítica parcial para a necessidade de tratamento?

Respondeu que, apesar do AA dizer que está a cumprir, que sabe que tem a doença, há uma dúvida: se cumpre para se manter fora, ou se há uma verdadeira noção de que a medicação tem que ser feita. Precisamos de mais algum tempo para saber se ele tem uma verdadeira crítica acerca da necessidade do tratamento. Ele está a cumprir tudo direitinho, mas precisamos de mais tempo para saber se é uma crítica genuína. Uma vez que o abandono da medicação foi tão recente, necessitamos de mais algum tempo.

Mais disse que o AA não tem recusado o tratamento.

Ora, a posição da médica psiquiatra está em perfeita consonância com o relatório supra aludido, tendo esta esclarecido quais as razões que levam a afirmar que o internando apresenta uma crítica parcial para a necessidade de tratamento.

Face aos elementos de prova recolhidos, resultou provado, e bem, que o AA actualmente continua a apresentar défice critico para a sua doença e para a necessidade de cumprimento do tratamento proposto.

Ora, se continua a apresentar défice crítico para a sua doença, que, como explicou a Dra BB, desconhece-se, de momento, se cumpre para se manter fora, ou se há uma verdadeira noção de que a medicação tem que ser feita, se tem uma verdadeira, uma genuína,  crítica acerca da necessidade do tratamento, então não pode resultar provado que:

“Actualmente não recusa a medicação”.

Este facto pressupunha que o internando aceitasse, genuinamente, a necessidade do tratamento, o que não resultou provado.

Entrando agora na questão de saber se o facto provado do ponto 16. (actualmente continua a apresentar défice crítico para a sua doença e para a necessidade de cumprimento do tratamento proposto) deve ser retirado do elenco da factualidade, por se tratar, segundo o recorrente, de facto ambíguo e conclusivo, diga-se, desde já, que não lhe assiste razão.

Como resulta do relatório médico supra mencionado, em relação à necessidade do tratamento, o internando encontra-se, necessariamente, numa das seguintes situação:

- ou aceita, ou não aceita, ou não tem crítica, não tem discernimento necessário para avaliar a necessidade do tratamento.

O recorrente encontra-se nesta última situação, que é traduzida por doente sem crítica.

Face ao teor do relatório e aos esclarecimentos prestados pela Dra BB na Sessão Conjunta já referida, o facto 16 nada tem de ambíguo nem mesmo de conclusivo.

É o que resulta da avaliação clínico-psiquiátrica efectuada ao internando.

Assim, deve manter-se como provado o facto do ponto 16.

Nenhuma censura merece a decisão recorrida quanto à factualidade provada, indeferindo-se a pretensão do recorrente neste particular.

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A próxima questão é a de saber se estão verificados os pressupostos do artigo 15º, nºs 1 e 2, da LSM.

Alega o recorrente que não foi provado que o ora Recorrente recuse actualmente a medicação. Pelo contrário, deve ser provado (como alegado supra) que o Internando não recusa a medicação. Mas, ainda que tal não seja dado como provado, a conclusão deverá ser a mesma: não está preenchido o pressuposto do art. 15.º, n.º 1, al. b) da Lei de Saúde Mental. Ora, como a lei menciona expressamente que esse pressuposto é cumulativo, o Tribunal deve fazer cessar o tratamento involuntário. Tal até decorre expressamente do art. 26.º, n.º 1 da mesma lei, não deixando qualquer margem interpretativa.

Assim, face à redacção do n.º 1 do artigo 26.º, o tratamento involuntário deve cessar imediatamente (“logo que cessem”), e não depois de se fazerem algumas diligências médicas de manutenção.

Vejamos.

Nos termos do artigo 15º, nº 1, da LSM, são pressupostos cumulativos do tratamento involuntário:

a) A existência de doença mental;

b) A recusa do tratamento medicamente prescrito, necessário para prevenir ou eliminar o perigo previsto na alínea seguinte;

c) A existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais:

i) De terceiros, em razão da doença mental e da recusa de tratamento; ou

ii) Do próprio, em razão da doença mental e da recusa de tratamento, quando a pessoa não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento;

d) A finalidade do tratamento, conforme previsto no artigo anterior.

Por sua vez, nos termos do artigo 26º, nº 1, do mesmo diploma legal, o tratamento involuntário cessa logo que cessem os pressupostos que o justificaram.

 

No que respeita à alínea b), do nº 1, do artigo 15º, relembra-se que não mereceu acolhimento a impugnação da matéria de facto.

Relembra-se, igualmente, que estamos em sede de revisão da decisão, isto é, está em causa apurar se a situação clínica já anteriormente avaliada se mantém ou se surgiram novos elementos que a possam alterar

Resultou provado que, inicialmente, AA admitiu abandono da medicação, não apresentava crítica para a doença e necessidade de tratamento e recusava a medicação injectável, essencial para a sua estabilização clínica.

Em 13.10.2023 teve alta do internamento, passando a tratamento ambulatório involuntário.

Em 17.10.2023 sofreu novo internamento na sequência de abandono da medicação e abuso de substâncias, tendo passado a ambulatório em 17.11.2023.

Actualmente continua a apresentar défice crítico para a sua doença e para a necessidade de cumprimento do tratamento proposto.

Ora, neste circunstancialismo não se pode afirmar que tenham cessado os pressupostos que justificaram o tratamento involuntário.

Aliás, o relatório de ACP concluiu que o internando está carecido de tratamento involuntário em ambulatório, sendo que, nos termos do artigo 20º, nº 6, da LSM “o juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica fica subtraído da livre apreciação do juiz”.

Como se refere no Ac. da RG de 16.9.2019, in wwww.dgsi.pt, “no tratamento compulsivo em regime ambulatório, o médico psiquiatra, na avaliação clínico-psiquiátrica a efetuar de dois em dois meses, não pode atender apenas ao facto objetivo de o doente ter cumprido o tratamento. O médico deverá também avaliar se o doente tem capacidade para compreender a doença e da importância em prosseguir com o tratamento, por forma a permitir a formulação de um juízo seguro sobre se, a ser-lhe concedida alta, irá manter o tratamento”.

Como se pode ler no corpo deste aresto, “ao contrário do que vem sustentado pelo recorrente, não é pelo facto do doente cumprir religiosamente com o tratamento que existe capacidade crítica do doente relativamente à patologia e que deixe de ocorrer resistência à tomada da medicação. Com efeito, a ser como defende o recorrente, o tratamento compulsivo em regime ambulatório, uma vez decretado, estaria destinado a cessar rapidamente, bastando para o efeito que o doente cumprisse o tratamento durante algum tempo, ou seja, durante o tempo necessário para que a medicação prescrita controlasse a doença.

Porém, o sentido da lei é mais exigente, na medida em que o médico, na avaliação clínico-psiquiátrica que faça do doente, da patologia de que padece e da sua evolução, não pode naturalmente atender apenas ao facto objetivo de ele, durante um período de tempo mais ou menos longo, ter cumprido o tratamento. O médico deverá também avaliar se o doente tem capacidade para compreender a doença e da importância em prosseguir com o tratamento, por forma a permitir a formulação de um juízo seguro de, no caso de ser dada alta, o doente irá manter o tratamento. Somente procedendo do modo referido poderá ser devidamente avaliada e acautelada a situação de saber se o portador de anomalia psíquica cria por força dela uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, o que constitui pressuposto fundamental do internamento compulsivo, cfr. artigo 12º, nº1.

No caso vertente, em que está em causa a revisão da situação de tratamento compulsivo em regime ambulatório, a efetuar de dois em dois meses (cfr. artigos 33 e 35º, nº 2), os psiquiatras, na avaliação que fizerem, foram claros no sentido de que o doente evidencia “ausência crítica para a patologia e resistência à toma da medicação que apenas cumpre por imposição legal, nomeadamente o injetável”.

Note-se que se trata de uma decisão de revisão, em que está em causa saber se a situação clínica anteriormente avaliada, evidentemente por forma rigorosa, se mantém ou se surgiram novos elementos que permitam realizar uma avaliação diferente.

Acresce que o juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica está subtraído à livre apreciação do juiz, cfr. nº 5 do artigo 17º.

Porém, como refere José Carlos Vieira de Andrade, ob. e loc. cit., “é nítido o propósito legal de exigir um consenso entre médicos e juízes, fazendo depender o internamento da junção de dois poderes e de dois juízos: por um lado, de uma decisão médica especializada, fundada em conhecimentos técnicos e obrigada por uma deontologia profissional exigente; por outro lado, de uma decisão judicial, fundada em conhecimentos jurídicos e garantindo a aplicação correta da Constituição e da lei.”

Assim, pese embora a decisão de internamento ou de tratamento compulsivo seja do juiz, a sua necessidade é aferida pelos médicos através da realização de avaliação clínico-psiquiátrica a realizar por dois psiquiatras, eventualmente com a colaboração de outros profissionais de saúde mental ou pelo serviço de psiquiatria do instituto de medicina legal, cfr. artigo 17º.

O despacho recorrido baseou-se na avaliação clínico-psiquiátrica realizada e dela não divergiu, antes se tendo conformado com ela, a qual, como vimos, concluiu, sem delongas, atenta a ausência de novos elementos que pudessem ter surgido, pela necessidade da manutenção do tratamento compulsivo em regime ambulatório face à ausência de sentido crítico do doente relativamente à patologia e à resistência à tomada da medicação.

O certo é que está aqui em causa saber se o doente revela sentido crítico da sua doença e se revela resistência à tomada de medicação, isto independentemente das suas causas.

Assim, tendo em conta o sentido da avaliação clínico-psiquiátrica, não se vislumbra como é que tribunal recorrido poderia ter decidido de forma diversa da que decidiu”.

Jurisprudência que se acompanha.

Pelo que fica dito e sem necessidade de outras considerações, improcede, igualmente, esta questão suscitada pelo recorrente.

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Improcedendo, assim, todas as questões suscitadas pelo internando, deve ser negado provimento ao recurso.

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                         C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo internando AA e, em consequência, decidem manter o despacho recorrido.

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Sem custas, nos termos do artigo 4º, nº 2, alínea e), do Regulamento das Custas Processuais.

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Notifique.

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             Coimbra, 19 de Junho de 2024.

 (Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

              Rosa Pinto – Relatora

              Maria José Matos – 1ª Adjunta

              João Abrunhosa – 2º Adjunto