REGISTO CRIMINAL
VALIDADE
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
REENVIO PARCIAL
Sumário

I – O conteúdo de CRC cuja data de validade se mostrava ultrapassada aquando da prolação da sentença não pode ser valorado. Nem sequer se pode considerar aquele CRC idóneo para provar a existência ou a inexistência de antecedentes criminais por parte do arguido, porque, estando, como estava, fora do respetivo prazo de validade aquando da prolação da sentença, esta não podia basear-se no respetivo conteúdo para decidir a matéria referente à existência ou inexistência de antecedentes criminais do arguido
II- Em consequência, a sentença padece de erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do CPP, impondo-se o reenvio para novo julgamento parcial para apuramento dos antecedentes criminais do arguido.

Texto Integral


            Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            I-Relatório

            1. No Processo Sumário Nº 79/22...., do Juízo Local Criminal de Viseu - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, foi o arguido AA sujeito a julgamento, realizado o qual, veio a ser proferida sentença, em 10.11.2023, depositada na mesma data, na qual se decidiu:

            “ Pelas razões já expostas o Tribunal julga procedente porque provada a acusação pública contra AA e em consequência disso:

                    A. Condena o arguido numa pena de oito meses de prisão a ser cumprida na habitação com o recurso a meios de vigilância electrónica, pela prática como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º n.º 1 e 43º, ambos do Código Penal, autorizando a sua saída para trabalhar;

                    B. Condena o arguido na pena complementar de proibição de conduzir pelo período de 2 anos e seis meses – artigo 69º, nº 1 do Código Penal;

                    (…)”


*

            2.  Não se conformando com o decidido, veio o arguido recorrer da sentença, extraindo da motivação do recurso apresentado as conclusões que a seguir se transcrevem:

            “1. No âmbito dos presentes autos foi o arguido condenado numa pena de oito meses de prisão a ser cumprida na habitação com o recurso a meios de vigilância eletrónica, pela prática como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º n.º 1 e 43.º, ambos do Código Penal, autorizando a sua saída para trabalhar; e ainda na pena complementar de proibição de conduzir pelo período de 2 anos e seis meses – artigo 69.º, n.º 1 do Código Penal; condenando-se o arguido ao pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça, em 2 UC (artigo 513.o, do Código de Processo Penal).

                    2. Deve ser considerada a douta decisão do tribunal a quo violadora dos art.º 40.º, e 71.º a 73.º, todos do Código Penal.

                    3. Resulta da sentença ora sindicada uma pena de prisão a cumprir na habitação que deveria ser suspensa na sua execução, assim como a sua duração que temos por descabida e da mesma maneira a pena acessória. Escapam-se-nos, porém, os fundamentos da dimensão da referida pena.

                    4. O art. 40.º do C.P. encerra no seu n.º 1 a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade enquanto finalidades das penas (e das medidas de segurança). O n.º 2 refere a impossibilidade de a pena ultrapassar a medida da culpa.

                    5. A douta sentença, entendemos nós, não se fundamentou no respeito pelo sistema jurídico-penal português. Segundo o artigo 71º n.º 1 do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

                    6. Ora, dentro desses limites cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, sendo de atender à sociabilização do agente.

                    7. Assim, importa ter em conta, dentro dos limites abstratos definidos pela lei, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra o arguido, na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para as exigências preventivas.

                    8. Na escolha da pena o critério adotado pelo legislador, válido para as penas de prisão curtas, é o de dar preferência às penas não privativas da liberdade (artigos 70º e 44º do Código)

                    9. A prevenção especial negativa, que se reflete no entendimento de que a respetiva pena dissuadirá o agente (este agente, com estas características) de voltar a praticar tais crimes, irá mesmo cumprir o seu desígnio?

                    10. Num crime como o que ora se analisa, em que o arguido se revela uma pessoa inserida socialmente, responsável, e por tudo o demais exposto por um lado não se pode aceitar que a pena não possa senão suspender-se e ser reduzida drasticamente a pena acessória de 2 anos e seis meses que é manifestamente desproporcional.

                                                                                                                                                                                                                        PELA COSTUMADA JUSTIÇA!”


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            3. Admitido o recurso, foi cumprido o disposto no Art. 413º, nº1 do CPP, tendo a Digna Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância respondido ao mesmo, rematando a contra motivação apresentada da seguinte forma, que, igualmente, se transcreve:

            “ 1. O arguido AA foi condenado nestes autos, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelos art.ºs 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 8 (oito)meses de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, com autorização da sua saída para trabalhar e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor por um período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses.

                    2. Inconformado recorreu, cuja motivação conclui, pugnando - pela substituição da pena de prisão aplicada por uma pena não detentiva, designadamente suspensa na sua execução e pena redução da pena de prisão e pena acessória.

                    3. Como Questão Prévia - Analisada a douta sentença em crise, entendemos que, tendo o tribunal a quo valorado, indevidamente, um certificado de registo criminal fora de validade e já caducado, contendo condenações que já deveriam ter sido canceladas, documento esse do qual não podia tomar conhecimento, por ser meio de prova proibido, configura a nulidade da douta sentença, nos termos previstos na al. c), in fine, do n.º 1, do artigo 379.º do CPP.

                    4. Salienta-se que o tribunal a quo valorou um registo de certificado de registo criminal emitido em 16.08.2022, quando, na verdade, a sentença em crise foi proferida na data de 10.11.2023, sendo que a última condenação que constava no CRC já havia, nessa data de 10.11.2023, sido declarada extinta há mais de 5 anos, quer pena principal, quer pena acessória.

            5. No âmbito do processo Sumário n.º 777/16...., por sentença transitada em julgado 15.07.2016, foi o arguido condenado na pena de 10 meses de prisão, substituída por 60 horas de trabalho a favor da comunidade, a qual se encontra extinta desde 07-05-2018, e uma pena acessória pelo período de 20 meses, a qual se mostra igualmente extinta desde 05.05.2018 - vide boletim 23, 24 e 25.

                    6. Ao tempo de algumas dessas condenações, e em matéria de registo criminal e sua disciplina, vigorava a Lei nº 57/98, de 18 de agosto, onde o legislador seguindo rumo de maior rigor, do que anteriormente - Lei nº 12/91, de 21 de maio -, passou a exigir que o cancelamento definitivo no registo criminal – artigo 15º, nº 1, alíneas a), b) e g) – em situação de penas de prisão inferior a 5 anos ou penas de multa, e havendo pena acessória, estivesse dependente das seguintes exigências : decurso do tempo de 5 anos da extinção da pena; ausência de nova condenação nesse período; decurso do prazo fixado para a pena acessória.

                    7. Tal regime foi sufragado pela nova Lei nº 37/2015, de 5 de maio, por via do estatuído no artigo 11º, nº 1, alíneas a), b) e g).

                    8. Desde a data das respetivas extinções da pena principal e pena acessória da última condenação constante do CRC, em concreto, 05.05.2018 e 07.05.2018, até à data da sentença em crise, em 10.11.2023, já haviam decorrido mais de 5 anos sem que o arguido tenha entretanto sofrido outra condenação.

                    9. Ora, perante tal, crê-se que o tribunal a quo não podia usar este fator probatório, emergindo, ao que se pensa, painel de utilização de prova ilegal.

                    10. O aproveitamento judicial de informação que por inoperância do sistema se mantenha no CRC é ilegal, e viola o princípio constitucional da igualdade, pois permite distinguir um arguido de um outro que, nas mesmas condições, tenha o CRC devidamente “limpo”.

                    11. Um certificado do registo criminal que certifique decisões que, nos termos legais, dele já não deveriam constar, implica uma verdadeira proibição de valoração de prova, estando vedado ao Tribunal ter em conta tais decisões.

            12. Na verdade, não podem ser tidas em conta as condenações que resultam do registo criminal que, não tendo sido ainda canceladas, o devessem já ter sido.

                    13. O Registo criminal está sujeito a prazos de cancelamento definitivo e irrevogável, dependentes da pena aplicada e da data da sua extinção, como decorre do disposto no artigo 15.º da Lei n.º 57/98, de 18 de agosto e acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.03.2023, sendo relatora Lígia Trovão, no âmbito do processo 753/22.5GALSB.P1,

                    14. Existindo, uma autêntica proibição de prova - vide neste sentido acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27.04.2021, processo 85/20.3GTRVR.E1 - acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2017, processo 27/16.0GTCBR.C1, e acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.03.2023, processo 753/22.5GALSB.P1.

                    15. Tendo o tribunal a quo valorado, indevidamente, um certificado de registo criminal fora de validade e já caducado, contendo condenações que já deveriam ter sido canceladas, documento esse do qual não podia tomar conhecimento, por ser meio de prova proibido, configura a nulidade da douta sentença, nos termos previstos na al. c), in fine, do n.º 1, do artigo 379.º do CPP.

                    16. Deve ser aditado ao ponto 6 da matéria de facto, no último paragrafo, parte final, referente à condenação da sentença de 15.06.2016, o seguinte: “(……), pena acessória que se extinguiu no dia 05.05.2018”.

                    17. No entanto, não consta da matéria de facto da douta sentença em crise, nem do relatório para a determinação da sanção quais as concretas condições socioeconómicas do arguido, e perspetivando-se a aplicação de uma pena de multa tal é determinante para o estabelecimento do respetivo quantitativo diário.

                    18. Designadamente, não consta o valor dos rendimentos auferidos pelo agregado familiar e as despesas com a renda da casa e despesas extraordinárias, a existirem.

                    19. Assim, deve ser declarada a nulidade da douta sentença em crise e baixarem os autos à primeira instância para suprimento da aludida nulidade e esclarecimento da concreta situação económica do arguido.

                    20. Se assim não se entender, a título subsidiário,

                    21. O arguido insurge-se contra a o facto da pena de prisão aplicada ao arguido, a cumprir na habitação, não ter sido suspensa na sua execução, sendo que, para o efeito alega que, o Tribunal a quo não respeitou o artigo 71.º n.º 1 do Código Penal.

                    22. Mais alega que o arguido se revela uma pessoa inserida socialmente e responsável, devendo a pena de prisão aplicada ser suspensa na sua execução, pois que a mesma assegura de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

                    23. Afere-se do Registo Criminal do arguido que o mesmo já sofreu diversas condenações, já foi condenado em 11 (onze) processos, pela prática de diversos tipos de crimes, a maior parte deles de natureza estradal (9 - nove), crimes de condução sem habilitação legal e crimes de condução de veículo em estado de embriaguez.

                    24. Delas já resultou a aplicação ao arguido de penas de multa, de prisão substituída por multa, de prisão substituída por prisão em dias livres, de prisão substituídas por trabalho e de penas suspensas na sua execução e de pena de prisão que cumpriu.

                    25. As penas não privativas da liberdade aplicadas no passado, não tiveram o efeito desejado de demover o arguido de voltar a delinquir; a conduta do arguido que é agora visada, quando vista no quadro global dos comportamentos ilícitos passados, carrega um desvalor intrínseco acrescido.

                    26.A considerar esses antecedentes criminais, não temos dúvidas que a pena a aplicar seria a pena de prisão, e substituída pela permanência na habitação.

                    27. Sendo que a pena aplicada se afigura ser justa e adequada às finalidades da punição, devendo ser mantida.

                    28. Insurge-se, ainda, o arguido quanto a medida da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, que considera manifestamente desproporcional, pedindo redução drástica.

                    29. Para tal, alega que o arguido se revela uma pessoa inserida socialmente e responsável.

                    30. A elevada sinistralidade estradal, a par da dimensão que o crime de condução sob influência do álcool assume na criminalidade rodoviária, determinam fortíssimas exigências de prevenção geral para condutas como a descrita nos autos, suscetíveis de fazer perigar a segurança da circulação rodoviária.

            31. Conclui-se na douta sentença recorrida que o arguido praticou o crime de condução em estado de embriaguez, acusando uma Taxa de Álcool no Sangue (TAS) de pelo menos 2,489 gramas por litro de sangue, após o desconto da margem de erro admissível, tendo sido efetivamente registada uma TAS de 2,62gl.

                    32. Deu-se ainda como provado que ao Km 145 - ..., em ..., o arguido embateu nos rails de proteção da auto estrada.

                    33. As exigências de prevenção geral, quer de intimidação, quer de integração, são especialmente prementes em crimes rodoviários.

                    34. Na última condenação do arguido no âmbito do processo Sumário n.º 777/16.... foi aplicada ao arguido uma pena acessória pelo período de 20 meses, a qual se mostra igualmente extinta desde 05.05.2018 - vide boletim 23, 24 e 25. 35. Pelo que, considerando ainda os concretos antecedentes criminais do arguido, afigura-se-nos, adequada a pena acessória aplicada de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, o que, espera-se que contribua para a emenda cívica do arguido.

                    Pelo que deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, mantendo-se os termos da decisão recorrida.


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                                                                                                                                                                                 V. Ex.as., porém,

                                                                                                                                                                                 e como sempre, farão

                                                                                                                                                                                 Justiça”


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            4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no qual aduz os seguintes argumentos:

                    “ (…)

                    2. a) Compulsada a primeira questão prévia colocada pela Sra. Procuradora da República na resposta ao recurso (fls. 4 a 10), cremos que a sentença recorrida não pode merecer acolhimento junto deste V. TRC, pelas razões ali apontadas, com as quais, genericamente, concordamos.

                    i. O CRC valorado na sentença foi emitido a 16.8.2022, sendo que, como consta desse documento, o mesmo era apenas válido por 3 meses, a contar da data de emissão, nos termos do disposto artº. 15º nº 3 do Dec. Lei nº. 171/2015 de 25.81, isto é até 16.11.2022, não podendo ser tido em conta, como válido, a partir de então.

               Tal regime não foi respeitado, pois a sentença, no qual o mesmo CRC foi significativamente valorado em termos de escolha da pena, sua medida e respetivo regime de execução, só foi proferida a 10.11.2023, isto é, muito para além do que devia, o que não é legalmente admissível.

                    ii. Até porque, como referiu a Sra. Procuradora da República, as últimas condenações sofridas pelo arguido no âmbito do NUIPC 777/16.... - pena de 10 meses de prisão substituída por PTFC e pena acessória de conduzir veículos automóveis pelo período de 10 meses – foram declaradas extintas, respetivamente, a 7.5.2018 e a 5.5.2018, sendo que, por força do disposto no artº. 11º, nº 1, als. a), e) e g) e nº 2 da Lei nº. 37/2015, de 5.5, as mesmas cessaram a sua vigência, para efeitos de registo criminal, respetivamente, a 7.5.2023 e a 5.5.2023.

               Isto é, aquando da produção da sentença, a 10.11.2023, e ainda que essas condenações constassem do CRC por, contra legem, não terem sido ainda dele eliminadas, não podiam ser tidas em conta para efeitos da condenação, sob pena de se estar a valorar prova proibida.

                    Como se referiu no acórdão deste V. TRC de 25.1.2023:

                    “Como é sabido, não é legítima a consideração de condenações anteriores que tenham sido objeto de cancelamento, existindo, aqui, uma autêntica proibição de prova.

               O mesmo se diga relativamente a condenações que, não tendo sido ainda canceladas, o devessem já ter sido - ver, neste sentido, Acórdão do TRC, de 8/7/2009, C.J., ano XXXIV, tomo III, pág. 51, e, também, Acórdão do TRP, de 29/2/2012, e Acórdão do TRE, de 11/7/2013, ambos in www.dgsi.pt.

                    Assim é, porque o registo criminal visa dar a conhecer o passado judiciário do condenado. Mas esse conhecimento deve ser um conhecimento legal, ou seja, conhecimento processado e obtido de forma lícita, através de um instrumento ou meio legalmente conformado”.

                    A esta luz, e porque estamos perante uma verdadeira proibição de valoração de prova, haverá que expurgar da fundamentação da sentença recorrida todos os antecedentes criminais considerados na sentença recorrida por o prazo de vigência já ter cessado (cfr. artº(s). 118º nº 3 e 125º do CPP).

               2. b) A Sra. Procuradora da República colocou ainda uma segunda questão prévia, a saber:

                    «No entanto, e com relevo, não consta da matéria de facto da douta sentença em crise quais as condições socioeconómicas do arguido, nem tal se afere do relatório para determinação da sanção elaborado pela DGRSP, do qual apenas consta que:

                    “AA à data dos factos, residia na morada indicada nos autos, em casa arrendada, com a companheira e o filho, situação que se mantém no presente. A nível laboral, refere que iniciou recentemente uma atividade laboral, como prestador de serviços para a empresa de recolha de roupa usada nos contentores existentes na via pública, ainda sem formalização da situação laboral.

                    Em termos financeiros, refere que o agregado familiar subsiste do seu vencimento e do vencimento da companheira, operadora de loja, considera que a sua situação financeira lhe permite usufruir de uma situação económica capaz de assegurar as suas despesas correntes sem constrangimentos ou que lhe ponham em causa um modo de vida satisfatório” - vide fls. 70 a 72, sendo fls. 87 a 88 uma duplicação.

                    Acresce que tendo o julgamento sido realizado na ausência do arguido, também este nada esclareceu quanto à sua concreta situação económica, designadamente, valor dos salários auferidos por si e sua companheira, qual o valor da renda de casa onde habitam, se têm outros rendimentos, se possuem despesas extraordinárias, entre outras.

                    Acresce que os autos também não foram realizadas buscas na base de dados disponíveis por parte do tribunal a quo de modo a concretizar a situação económica.

                    Pois que é determinante pois que, em face da ausência de antecedentes criminais a considerar, perspetiva-se vir a ser aplicada uma pena de multa e, assim, é determinante para o estabelecimento do respetivo quantitativo diário aplicar.

                    Pelo exposto, deve ser declarada a nulidade da douta sentença em crise e baixarem os autos à primeira instância para suprimento da aludida nulidade e para apuramento da concreta situação económica do arguido». 

                    Diga-se, em primeiro lugar que, certamente por lapso, a Sra. Procuradora da República não atentou nos seguintes factos dados como provados na sentença (a fls. 4):

                    «7. À data dos factos o arguido residia em casa arrendada com a companheira e um filho.

                    8. Encontra-se a exercer a atividade de prestador de servições para uma empresa de recolha de roupa usada, em contentores existentes na via pública.

                    9. Subsiste o agregado familiar dos rendimentos da companheira que é operadora de loja.

                    10. Manifestou intenção de adotar um comportamento ajustado à sanção penal que vier a ser aplicada».

                    Posto isto, e atento o que já acima referimos em 2. a) - que na prática se traduzirá na ausência de antecedentes criminais do arguido, é altamente provável que, nesse conspecto, em nova sentença a proferir em primeira instância, se opte pela aplicação de uma pena de multa.

                    Ora, nesse pressuposto, poderá, de facto, estar-se perante uma deficitária indagação da situação económico-financeira do arguido e dos seus encargos, nomeadamente atento o disposto no nº 2 do artº. 47º do CP5 em que tais elementos avultam como essenciais para a fixação do quantum diário da multa.

                    Tal poderá impedir, ou pelo menos dificultar significativamente, a tarefa do Tribunal para que este fique habilitado a proceder à determinação individualizada e justa da pena, dentro dos parâmetros legais, o que, s.m.o., se poderá traduzir na insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, integradora do vício decisório previsto na alínea a) do artigo 410°, n° 2 do CPP.

                    Devendo e podendo fazer essa indagação (através dos meios sugeridos pela Sra. Procuradora da República ou solicitando à DGRSP que aprofunde o relatório social), o Tribunal, ao não o fazer incorreu/poderá incorrer, no referido vício, como vem sendo reconhecido por inúmera jurisprudência, designadamente a deste V. TRC que no seu acórdão de 21.5.2014, concluiu que: 

               1.- A operação definitória do valor quantitativo da taxa diária da pena de multa a cominar – localizável no intervalo compreendido entre € 5,00 e € 500,00 – pressupõe a prévia indagação, tendencialmente precisa, da real/contemporânea situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais;

                    2.- Sendo a sentença absolutamente omissa quanto a tais legais premissas, fica manifestamente inquinada pelo vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto tida por adquirida (provada), prevenido sob a al. a) do n.º 2 do art.º 410.º do C. P. Penal”

               Também o STJ, no seu acórdão de 14.3.20138, decidiu que:

                    “… VIII - O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito, quando existe uma lacuna, deficiência ou omissão, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto.

               IX - Do texto da decisão recorrida, por si só considerado, perfila-se a existência do vício aludido na al. a), porquanto a matéria de facto provada não é bastante para a determinação da pena a aplicar, sendo omissa na indicação de dados sobre a personalidade e a inserção familiar, social ou profissional do arguido.

                    X - Prova essencial à boa decisão da causa, no caso de condenação e aplicação de pena, conforme resulta expressamente da própria lei (arts. 369.º e ss. do CPP), é a relativa aos antecedentes criminais do arguido, à sua personalidade e às suas condições pessoais, sendo certo que a lei prevê mesmo a possibilidade de produção de prova suplementar, tendo em vista a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar, para o que, sendo necessário, poderá ser reaberta a audiência – art. 371.º do CPP.

                    XI - Verificados os vícios de insuficiência para a matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, que são inultrapassáveis e insuscetíveis de saneamento, deve ser determinado o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do n.º 2 do art. 426.º do CPP”9.

                    Como se decidiu no já invocado acórdão deste V. TRC de 22.3.2023 dever-se-á:

                    “…declarar a nulidade parcial da sentença recorrida, ordenando-se a remessa do processo ao tribunal a quo a fim de se proceder à reabertura da audiência para apuramento das condições pessoais do arguido, e, posteriormente, à prolação de nova sentença que reconfigure a matéria de facto e a medida da pena em conformidade – a ser efetuada pela Exma. Juíza que presidiu ao julgamento anterior”.

                    A procedência destas questões prejudicará a apreciação do mérito do recurso do arguido.”

 


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            5. Cumprido do disposto no art. 417º, nº2 do CPP, o arguido não respondeu ao parecer.

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            6. Aquando do exame preliminar a relatora proferiu despacho no qual, ao abrigo do disposto no art. 417º nº 3 do CPP, convidou o recorrente a apresentar novas conclusões, das quais pudesse resultar esclarecida a alusão por si feita ao critério da escolha da pena, plasmado no art. 70º do C. Penal, com repercussão nas pretensões recursivas por si adiantadas em sede de recurso, com a cominação de que, caso não tal convite não viesse a ser atendido pelo recorrente, o conhecimento do recurso poderia não vir a ser conhecido na parte afetada.

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            7. Na sequência disso, veio o arguido recorrente esclarecer que “ a matéria da conclusão nº 8 prende-se com a necessidade de os motivos suscitados serem interpretados e aplicados por analogia legis e iuris ao caso concreto uma vez que se entende que o cumprimento da pena na habitação não é senão uma medida detentiva, naturalmente com a especificidade que lhe está adstrita.”

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            8. Notificado de tal esclarecimento, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal nada disse.

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            9. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no Art. 419º, nº3, al. c), do diploma citado.

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            II- Fundamentação
A) Delimitação do objeto do recurso

            Dispõe o art. 412º, nº1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

            Definindo-se o objeto do recurso pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, nas quais deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido, sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso ( Cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 340, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009,pág. 1027 a 1122, Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).

            Assim, no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente –após convite para esclarecer as mesmas, ao abrigo do disposto no art. 417º nº 3 do CPP- as questões a decidir são:

            - A incorreta ponderação da medida da pena principal (prisão) e da pena acessória;

            - A incorreta ponderação da pena substitutiva da prisão, cujo cumprimento foi determinado em regime de permanência na habitação, por verificação dos pressupostos para a suspensão da execução da mesma.


*

                    II – FUNDAMENTAÇÃO

            B) Decisão Recorrida

            Com vista ao conhecimento das questões objeto do presente recurso supra enunciadas, importa ter presente o que, de relevante, consta da decisão recorrida que, na parte relevante, se transcreve:

                    “II – Fundamentação:

                    Da audiência de discussão e julgamento bem como da documentação dos autos resultam os seguintes

                    Factos provados:

                    1. No dia 12-08-2022, pelas das 13h36m, o arguido conduziu um veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-XP, na via pública, na A...4.

                    2. Ao km 145 – ..., em ..., o arguido embateu nos rails de protecção da auto estrada.

                    3. Nas referidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, sujeito a pesquisa de álcool no sangue, pelo método de ar expirado, no aparelho DRAGER Modelo 7110 MKIII P com o número de série ARAN-0075, o arguido apresentava uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 2,489 gramas por litro (correspondente à TAS registada, de 2,62 gramas por litro de sangue, após desconto do valor de erro máximo admissível).

                    4. O arguido conhecia as características do veículo, não ignorando que havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade e qualidade suficientes para lhe causar uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l, resultado esse que previu e com o qual se conformou, querendo, não obstante, conduzir o veículo nessas condições, como efectivamente fez.

                    5. O arguido agiu, assim, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei como crime.

            Além da acusação provou-se que:

                    6. O arguido foi condenado:

                     Por sentença de 01-04-2004, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na execução, pela prática em 03-02-1998, de um crime de abuso de confiança, a qual se encontra extinta desde 03-11-2011.

                     Por sentença de 11-04-2005, na pena de 50 dias de multa, pela prática em 10-04-2005, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a qual se encontra extinta pelo pagamento.

                     Por sentença de 20-10-2006, na pena de 100 dias de multa, pela prática em 29-08-2004, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, a qual se encontra extinta pelo pagamento.

             Por sentença de 09-12-2008, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na execução, pela prática em 30-04-2005, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, a qual se encontra extinta, pelo cumprimento da pena, cuja suspensão foi revogada, desde 15-04-2013.

                     Por sentença de 03-10-2008, na pena de 200 dias de multa, pela prática em 10-04- 2005, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, a qual se encontra extinta pelo pagamento.

                     Por sentença de 16-11-2010, na pena única de 48 períodos de prisão por dias livres, pela prática em 18-10-2010, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, e um crime de condução sem habilitação legal.

                     Por sentença de 17-11-2010, na pena de 6 meses de pisão, suspensa ne execução, por um ano, pela prática, em 24-02-2010, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, a qual se encontra extinta.

                     Por sentença de14-03-2012, na pena de 5 meses de prisão efectiva, pela prática, em 06-03-2012, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e um crime de condução de veículo sem habilitação legal, a qual se encontra extinta pelo cumprimento da pena.

                     Por sentença de 18-06-2012, na pena de 5 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, pela prática em 16-06-2012, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a qual se encontra extinta pelo pagamento desde 10-03- 2013, e uma pena complementar de proibição e conduzir por 6 meses.

                     Por sentença de 14-06-2013, na pena de 18 meses de prisão suspensa na execução, sujeita a regime de prova, pela prática, em 116-06-2012, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, a qual se encontra extinta desde 15-01-2015.

                     Por sentença de 15-06-2016, na pena de 10, meses de prisão, substituída por 60 horas de trabalho a favor da comunidade, pela prática, em 20-05-2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a qual se encontra extinta desde 05-05-2018, e uma pena complementar de proibição de condução de veículos em estado de embriaguez, por 20 meses.

            Condições económicas e sociais.

                    7. À data dos factos o arguido residia em casa arrendada com a companheira e um filho.

                    8. Encontra-se a exercer a actividade de prestador de servições para uma empresa de recolha de roupa usada, em contentores existentes na via pública.

                    9. Subsiste o agregado familiar dos rendimentos da companheira que é operadora de loja.

                    10. Manifestou intenção de adoptar um comportamento ajustado à sanção penal que vier a ser aplicada.

           

            Factos não provados:

                    Não se provaram outros factos para além dos provados, nomeadamente da proveniência do arguido, o destino que o mesmo naquele dia tinha, o local onde ingeriu as bebidas alcoólicas, quais e quando.

                    Fundamentação da decisão da matéria de facto.

                    A convicção do tribunal sobre a factualidade dada como provada, resultou do conjunto das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento conjugadas com as regras da experiência comum e as valorações legais das mesmas, a saber:

                    No depoimento de BB, militar da GNR, que procedeu à fiscalização, tendo referido que foi uma fiscalização decorrente do despiste do veículo conduzido pelo arguido, sem causa aparente, que se deslocava no sentido de ...; que a identificação do arguido foi realizada mediante os documentos que o arguido exibiu.

                    Teve também em conta o auto de noticia de fls. 4, o Talão da alcoolemia de fls. 5, a Notificação para contraprova, certificado de verificação de fls. 12.

                    Tais elementos conjugados permitem concluir pela autenticidade do relato e da quantificação da taxa de alcoolémia.

                    Quanto aos antecedentes criminais o CRC de fls. 13 a 36 cujo teor se dá por reproduzido.

                    Quanto às condições económicas e sociais, no relatório social de fls. 70 se seguintes cujo teor se dá por reproduzido.

                    Quanto aos factos não provados, por não ter sido feita prova.

                    (…)

                    2. Escolha da pena.

                    Nos termos do artigo 70º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Ou seja ter-se-á que formar para escolher a pena não privativa da liberdade um juízo de prognose favorável que esta por si fará com que o arguido, no futuro, se abstenha de prática de ilícitos criminais de idêntica natureza, sendo que tal juízo de prognose só será possível atendendo aos factos concretos do caso.

                    Ora perante os factos concretos, tendo em conta a quantidade de penas relativas à violação do bem jurídico segurança rodoviária, não se poderá concluir que a pena de multa cumpra as finalidades da pena, pelo que se opta pela pena de prisão.

            3. Medida da pena.

                    Quanto à medida da pena o Tribunal terá que atender à culpa do agente (artigo 71º nº 1 do Código Penal) e aos critérios da ilicitude do facto, à intensidade do dolo ou negligência, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, aos fins ou aos motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente e a sua situação económica, à conduta posterior e anterior ao facto, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime, à falta de preparação, revelada através dos factos, para manter uma conduta conforme às prescrições ético-jurídicas.

                    Assim, militam a favor do arguido, a sua inserção social e a idade do mesmo.

                    Militam contra o arguido o facto de o mesmo ter sofrido varias condenações recentes e mesmo assim manter a sua conduta delituosa, possuir uma taxa quase 5 vezes superior à legalmente permitida (0,49).

                    O artigo 292º, nº 1 do Código Penal pune a conduta com uma pena de 1 ano de prisão ou multa até 120 dias.

                    Não podemos deixar de ter em conta que a taxa de sinistralidade em Portugal é elevada e que a condução de veículos em estado de embriaguez é uma das causas associadas directamente à sinistralidade rodoviária, na medida em que a mesma é potenciadora de acidentes. Pelo que a prevenção geral clama por uma pena elevada.

                    Quanto à culpa, no caso vertente o arguido pratica o crime com dolo, na modalidade de dolo directo (artigo 14º nº 1 do CP), pelo que a culpa é elevada.

                    Ponderados os factos que militam a favor do arguido e as circunstâncias de tempo modo, lugar e distância a percorrer bem como as necessidades de prevenção geral, o tribunal julga adequada a pena de prisão de 8 meses, que não substitui por multa atendendo aos critérios de escolha da pena.

                    Atendendo aos critérios relativos à suspensão da execução da pena, tendo em conta o vasto e recente passado criminal do arguido, sendo que o mesmo possui um veículo automóvel, não é possível formular um juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena.

                    Porque a pena a que se chegou é de duração igual ou inferior um ano importa ponderar se deverá ou não ser substituída por outra pena.

                    O n.º 1 do artigo 43º do Código Penal, embora prevendo a obrigatoriedade da substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade, não nos fornece um critério de preferência por qualquer uma das penas de substituição não privativas da liberdade.

                    Leal-Henriques e Simas Santos, (Cód. Penal Anotado, pág. 405) a propósito desta questão, referem que “A Comissão de Revisão considerou a questão de saber a que pena de substituição deve ser dada preferência mas não chegou a definir um critério de preferência entre as penas de substituição: ficariam em situação de igualdade, menos, como foi ressalvado em Comissão, a prisão por dias livres e o regime de semidetenção, cabendo depois ao juiz optar por aquela que melhor se adeqúe aos objectivos de prevenção especial.”

                    Figueiredo Dias (in As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 365) a propósito da escolha da pena de substituição não privativa da liberdade, refere que “para uma tal escolha continuam decisivas, em exclusivo, considerações de prevenção, devendo o tribunal eleger aquela espécie de pena de substituição que, em concreto, se revele mais adequada à realização das exigências preventivas que no caso se façam sentir; só na hipótese de haver mais que uma espécie de pena que satisfaça igualmente aquelas exigências, e sendo uma delas a de multa, deve esta ser preferida. A tanto se reduz o critério legal de preferência pela pena de multa como pena de substituição, contido no artigo 43º, nº 1.”

                    Odete Maria de Oliveira (in Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, pág. 73, edição do CEJ, realizadas no âmbito das alterações ao Código Penal introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 48/95) a propósito da escolha da pena de substituição, escreveu o seguinte: “Na senda da solução proposta pelo Prof. Figueiredo Dias para a interpretação do correspondente artigo do Código Penal de 1982, parece-me que o Tribunal terá de apurar, entre as penas de substituição, a que melhor realiza as finalidades da punição ou a que mais se aproxima dessa realização. E isto apurado, é por ela que o aplicador deverá optar.

                    Pode, porém, colocar-se ainda a questão de saber como decidir quando haja penas que realizam as finalidades da punição, ou dessa realização se aproximem, em igual grau.

                    Nesta hipótese, o aplicador deverá optar pela imposição da pena de substituição que, face às circunstâncias do caso concreto, se mostre menos gravosa para o condenado.”

                    Ante as penas de prisão, já aplicadas ao arguido, ao facto de o mesmo ser interveniente em acidente de viação, um despiste, não é possível concluir que a mera advertência seja suficiente para impedir o arguido de praticar novos factos.

                    Assim importa ponderar a aplicação do regime do Artigo 43.º do Código Penal que tem a seguinte redacção:

                    Regime de permanência na habitação

                    1 - Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:

                    a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;

                    b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º;

                    c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º

                    2 - O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas.

                    3 - O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado.

                    4 - O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente:

                    a) Frequentar certos programas ou atividades;

                    b) Cumprir determinadas obrigações;

                    c) Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido o consentimento prévio do condenado;

                    d) Não exercer determinadas profissões;

                    e) Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas;

                    f) Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes.

                    5 - Não se aplica a liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação.

                    A medida/pena de substituição introduzida pela Lei 94/17, tem por finalidade limitar o mais possível os efeitos criminógenos da privação continuada da liberdade, evitando ou, pelo menos, atenuando os efeitos perniciosos de uma curta detenção de cumprimento continuado, nos casos em que não é possível renunciar à ideia de prevenção geral.

                    Ora, tendo em conta em especial a situação familiar do arguido, que vive com a companheira e filho, encontra-se socialmente integrado, bem como numa privação prolongada, entende o tribunal que deverá ser a pena de prisão ser cumprida, de acordo com a citada disposição legal, tanto mais que o arguido deu o consentimento expresso para o efeito.

                    Nessa determinação, atendendo às condições sociais do arguido, terá que se autorizar a saída como trabalhar, para sustento da família.

                    5. Sanção complementar:

                    Além da pena principal, nos termos do artigo 69º do Código Penal, a prática de um crime de condução em estado de embriaguez deverá ser aplicada ao arguido a pena complementar de inibição de conduzir veículos com motor, por um período de 3 meses a três anos.

                    Tal sanção deverá ser também graduada atendendo à ilicitude que encerra o facto, ou seja a gravidade da conduta do arguido tendo em conta a taxa de alcoolemia as consequências de tal conduta e a distância que o mesmo se propunha a percorrer.

                    Dos autos resulta que o arguido possui um vasto passado criminal relativo ao mesmo tipo de crime, com proibições longas, sem que, no entanto, arrepie caminho.

                    Assim atendendo a que o arguido possui quase sete vezes a taxa permitida 0,49, circulando numa auto-estrada, ter-se despistado, ter-se-á que fixar a proibição de conduzir em 2 anos e seis meses.”


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            C) Apreciação do recurso

            Como deixámos dito, o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

            De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso do nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P.

            Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto  provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento, exigindo a lei, por esta razão, que a sua evidenciação se faça apenas através do texto da sentença, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, não sendo lícito, para este efeito, o recurso a elementos a ela alheios, ainda que constem do respetivo processo.

            O regime legal deste instrumento de sindicância da decisão de facto não inclui, como é sabido, a reapreciação da prova, limitando-se a atuação do tribunal de recurso à deteção do defeito que a sentença revela e, não podendo saná-lo, a determinar o reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento, sendo certo que é também oficioso o seu conhecimento, conforme jurisprudência fixada pelo acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro (DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995).

            Isto dito.

            Sem pôr em causa o decidido na sentença recorrida no que tange à ponderação da escolha da pena de prisão, em detrimento da pena de multa cominada, em alternativa, para o crime de condução em estado de embriaguez por si cometido, insurge-se, apenas, o arguido e ora recorrente contra a mesma, no que respeita:

            - à medida dessa pena de prisão – fixada na sentença recorrida em 8 meses de prisão -, almejando a respetiva redução;

            - à medida da pena acessória de inibição de conduzir veículos com motor prevista para o referido crime – fixada na sentença recorrida em 2 anos e 6 meses - almejando a respetiva redução;

            - à escolha da pena de substituição da pena de prisão aplicada – cujo cumprimento foi determinado na sentença recorrida em regime de permanência na habitação, almejando a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.

            Para tanto, faz o recorrente apelo aos normativos legais que norteiam os critérios para a determinação da medida da pena principal e da pena acessória cominadas para o crime de condução de veículo em estado de embriaguez por si cometido, considerando que a duração dessas penas decidida na sentença recorrida se mostra “descabida”, reputando, ainda, de “ manifestamente desproporcional” a pena acessória de inibição de conduzir que lhe foi aplicada, bastando-se com a alegação de que “ o arguido se revela uma pessoa inserida socialmente, responsável “ com vista a alcançar por via recursiva quer a redução dessas penas, quer, também, a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada.

            Na ponderação da medida das penas que, nos referidos termos, o recorrente vem pôr em causa em sede recursiva, o Tribunal recorrido baseou a sua decisão, no que respeita à determinação da medida da pena de prisão e da pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor aplicadas ao arguido, bem ainda como, o cumprimento daquela pena de prisão em regime de permanência na habitação, na factualidade que resultou da discussão a causa e que se mostra vertida no elenco fatual provado, na qual se integra a atinente aos antecedentes criminais do arguido descritos no ponto 6. do mesmo.

            E, tal como o Tribunal recorrido deixou exarado na motivação da decisão da matéria de facto, ancorou o mesmo a sua convicção em relação à factualidade respeitante aos antecedentes criminais do arguido, no certificado de registo criminal junto aos autos, a fls. 13 a 36, tendo sido com base neste que descreveu, no ponto 6. do elenco factual provado, as condenações sofridas pelo arguido que nele constam descritas.

            Ocorre que, tal CRC junto a fls. 13 a 36, foi emitido 16.08.2022, sendo a sua validade de 3 meses a contar da data da respetiva emissão, prazo de validade este que decorre do mesmo e, também, do disposto no art. 15º, nº3 do Dec. Lei 171/2015, de 25.08, diploma legal este que regulamenta e desenvolve o regime de identificação criminal previsto na Lei 37/2015, de 5.05.

            Ora, considerando que a prolação da sentença nos presentes autos ocorreu em 10.11.2023, torna-se manifesto concluir que aquando desta o prazo de validade daquele CRC se mostrava expirado.

            Assim sendo, o conteúdo de CRC cuja data de validade se mostrava ultrapassada aquando da prolação a sentença prolatada nos autos não poderia ter sido valorado, como foi, para a decisão sobre a matéria de facto respeitante aos antecedentes criminais do arguido, pois, foi apenas com base no conteúdo do mesmo que foi decidida tal matéria pela forma que se deixou descrita na sentença recorrida.

            A situação que, assim, se equaciona em relação ao referido CRC foi suscitada pelo Ministério Público junto da 1ª instância e também junto deste Tribunal da Relação, pela forma que deixamos dito do relatório a respeito da resposta e do parecer ao recurso emitidos nos autos.  

            Cremos, porém, que a situação em vertente é mais abrangente do que o Ministério Público naqueles (resposta e parecer ao recurso) propugna.

            Na verdade, não se trata, apenas, de não poder valorar alguns ou todos os antecedentes criminais que constam do CRC junto aos autos porque já deveriam ter sido cancelados definitivamente, de acordo com o disposto no art. 11º da Lei 37/2015, de 5.5., e dele ainda continuam a constar.

            A nosso ver, uma tal perspetiva só assumiria relevância se o referido CRC estivesse dentro do respetivo prazo de validade, o que não é caso.

            O que, a nosso ver, se patenteia no caso em vertente é que nem sequer se pode considerar aquele CRC idóneo para provar a existência ou a inexistência de antecedentes criminais por parte do arguido, porque, estando, como estava, fora do respetivo prazo de validade aquando da prolação da sentença, esta não podia basear-se no respetivo conteúdo para decidir a matéria referente à existência ou inexistência de antecedentes criminais do arguido.

            Na verdade, constando do CRC junto aos autos, quer a data da respetiva emissão, quer o respetivo prazo de validade, impunha-se ao Mmo. Juiz a quo que, antes de ter proferido sentença nos autos, diligenciasse pela requisição de novo CRC do arguido para efeitos de ponderação da existência ou inexistência de antecedentes criminais por parte do mesmo, tanto mais que, dado o lapso de tempo decorrido entre o início da audiência de julgamento (em 29.08.2022) e o seu terminus, com a leitura da sentença (em 10.11.2023), podia e devia ter ponderado que a realidade nele retratada poderia ter sofrido alteração, fruto da sua emissão ter ocorrido há mais de um ano e, de, por isso, não se mostrar atualizada.

            Considerando que a prova da existência ou inexistência de antecedentes se faz com base no certificado de registo criminal, sendo considerada prova vinculada ou tarifada, para que tal aconteça este tem de estar dentro do prazo de validade que a lei prevê, porque, destinando-se o mesmo a comprovar uma realidade que se pode alterar a qualquer momento, importa que a mesma se apresente atualizada, preocupação essa a que não foi alheio o legislador quando previu prazos curtos de validade do CRC.  

            Não estando o CRC junto aos autos dentro do respetivo prazo de validade, não podia o mesmo ser valorado, como foi, na sentença recorrida para fundamentar os antecedentes criminais do arguido nela descritos no ponto 6. do elenco factual provado.

            Assim sendo, a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº2 do art. 410º do CPP, no que respeita à decisão da factualidade contida no citado ponto 6. do elenco factual provado, por ser percetível, a partir do texto da mesma, o desrespeito das regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada.

            Quando se verifica este tipo de vício, o processo só deve ser devolvido à 1.ª Instância se o tribunal superior não dispuser dos elementos necessários à sua sanação (art.ºs 426º/1 e 431º/a) do CPP).

            Ora, no presente caso, o detetado erro notório na apreciação da prova não pode ser suprido por este Tribunal de recurso porque os autos não dispõem de elementos que o permitam, visto que, se impõe a requisição de um CRC atualizado por forma a poder decidir da existência ou inexistência de antecedentes criminais por parte do arguido e, em função do que a esse propósito vier a apurar-se, ponderar a medida das penas principal e acessória a aplicar ao arguido.

            Assim, impõe-se o reenvio do processo para novo julgamento parcial, a realizar nos termos do disposto nos arts.º 426º e  426º-A do CPP, para apuramento da matéria relativa aos antecedentes criminais do arguido, decidindo-se, depois, em conformidade, o que prejudica o conhecimento das questões suscitadas no presente recurso, uma vez que a matéria atinente aos antecedentes criminais se revela fundamental para a escolha e determinação das penas que vem posta em causa no presente recurso.


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            III- DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

            - Reconhecer que a sentença padece do vício do erro notório na apreciação da prova, e, em consequência, ordenar o reenvio parcial do processo para novo julgamento, nos termos do disposto nos artigos 426.º e 426-A, ambos do C.P.P., relativamente à concreta questão, supra identificada.

            - Sem tributação.


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Coimbra, 19 de junho de 2024

            ( Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

(Maria José Guerra  – relatora)

                  (Maria Teresa Coimbra – 1º adjunta)

                    (Cândida Martinho – 2ª adjunta