OMISSÃO DE AUXÍLIO
LEGIMIDADE DO ASSISTENTE
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CRIAÇÃO DO PERIGO
Sumário

I – O assistente tem legitimidade para recorrer de decisão que absolve o arguido da prática de crime de omissão de auxílio, ainda que não tenha acompanhado a acusação do Ministério Público.
II – Não se tendo apurado como é que o acidente ocorreu, mas apenas que a viatura conduzida pelo arguido e o peão seguiam no mesmo sentido de marcha e na mesma via, que o peão iniciou a travessia da faixa de rodagem e foi colhido pela viatura e projetado para a berma direita, não se pode afirmar que foi o arguido que criou a situação de perigo para a vida do peão carente de auxílio.
III- Ser interveniente no acidente não significa necessariamente que o tenha causado e, por isso, tenha criado a situação de perigo para o outro sujeito.

Texto Integral


*

Processo 193/19.3gdlra.C1

Comarca de Leiria – juízo local criminal de Leiria – Juiz 3

Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. RELATÓRIO

1.1. A decisão

No Processo Comum Singular nº 193/19.... do Juízo Local Criminal de Leiria, foi submetido a julgamento o arguido

AA, solteiro, trabalhador da construção civil, nascido a ../../2000, natural da ..., filho de BB e de CC, portador do cartão de cidadão n.º ...57, residente na Avenida ...., B, Fração ..., ..., ..., tendo sido :

- Absolvido da prática em autoria material e na forma consumada de um crime de omissão de auxílio previsto e punível no artigo 200.º, n.ºs 1 e 2, do CP.

-Declarado extinto, por amnistia, o procedimento criminal instaurado contra o arguido quanto ao crime de omissão de auxílio previsto e punível no artigo 200.º, n.º 1, do CP, nos termos dos artigos 127.º, n.º 1 e 128.º, n.º 2, do CP.

1.2.O recurso

1.2.1. Das conclusões da assistente

Inconformada com a decisão, a assistente DD interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

A) Dos factos constantes dos pontos 3, 4 e 8, bem como dos factos 9 e 10 do rol de factos provados, resultam provados os elementos do tipo objectivo e do tipo subjectivo, respectivamente, do crime de omissão de auxílio p.e.p. nos termos do n.º 1 do artigo 200.º do Código Penal, ao mesmo passo que daqueles factos provados em 3, 4 e 8 também resulta o preenchimento do tipo objectivo qualificador do crime nos termos do n.º 2 do artigo 200.º do Código Penal, i.é., a intervenção do arguido omitente no processo causal do acidente gerador da necessidade de prestação de auxílio à vítima.

B) A culpa na criação da situação que despoletou a necessidade de prestação de auxílio à vítima não é elemento do tipo qualificado do n.º 2 do artigo 200.º do Código Penal, existindo tal dever quer a situação tenha sido criada de forma lícita quer de forma lícita pelo omitente de auxílio à vítima, bastando que haja participado nessa situação que obriga ao auxílio.

C) Se é verdade que existe um dever jurídico de garante nos termos do n.º 2 do artigo 10.º do Código Penal quandoa situaçãodeperigoresultoudeuma conduta ilícitado arguidoomitente,essemesmo deverjurídico não afrouxa quando essa mesma situação de perigo haja resultado de uma conduta anterior, ainda que lícita, do arguido omitente.

D) O n.º 2 do artigo 200.º do Código Penal quando produz referência à criação da situação que vincula ao auxílio apenas se refere à intervenção do omitente no processo causal de tal situação, à margem de qualquer juízo de censura da sua conduta para a produção do evento que despoletou a necessidade de auxílio da vítima.

E) O n.º 2 do artigo 200.º do Código Penal, conducente à agravação do crime de omissão de auxílio, tem aplicação mesmo no caso do arguido omitente, embora participando no acidente de viação não ser culpado da sua ocorrência, e mesmo quanto tal sinistro veio a ocorrer por culpa exclusiva da própria vítima carecida de auxílio.

F) Acolitado quer na doutrina quer na autorizada jurisprudência citada no corpo alegatório, é irrelevante a determinação da culpa na produção do acidente para a qualificação do crime de omissão de auxílio nos termos do n.º 2 do artigo 200.º do Código Penal, pelo que mal andou a sentença recorrida, a qual deve ser revogada mediante douto acórdão condenatório.

G) Atenta a moldura penal prevista pelo indicado normativo penal, o procedimento criminal não se encontra extinto pela amnistia do artigo 4.º da Lei n.º 38.º-A/2023, de 2 Agosto.
TERMOS EM QUE NESTES E NOS MELHORES DE DIREITO,
os quais V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deve ao presente recurso ser concedido provimento e, em consequência, a sentença recorrida ser revogada mediante douto Acórdão condenatório do recorrido pela prática do crime de omissão de auxílioprevisto e punido no artigo 200.º, n.os1 e 2 do Código Penal, tudo nos termos das preposições Conclusivas .



1.2.2 Da resposta do Ministério Público

Respondeu em 1ª instância o Ministério Público, defendendo a total improcedência do recurso, concluindo da seguinte forma (transcrição) :
1. Em face da matéria de facto dada como provada, o arguido incorreu na prática do crime de omissão de auxilio, previsto e punível pelo art.200º nº1 do Código Penal.

2. Impunha-se a aplicação da amnistia prevista na Lei nº38-A/2023 de 02.08., por se enquadrar no seu âmbito de aplicação, e consequentemente, que se declarasse a extinção do procedimento criminal, nos termos do art.127º nº1 e 128º nº2, ambos do Código Penal.
3. A sentença recorrida é justa, procedeu ao correcto e criterioso enquadramento jurídico-penal da matéria de facto ali dada como provada, à qualificação jurídica dos factos adequada, e, consequentemente, não violou, interpretou ou aplicou qualquer norma legal em desconformidade com o ordenamento jurídico-penal, devendo ser integralmente mantida, na convicção de que assim se fará JUSTIÇA.

1.2.3. Da resposta do arguido

Também o arguido respondeu, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1.   O Tribunal a quo fez uma rigorosa apreciação de toda a prova produzida em audiência – testemunhal, documental e pericial -, fundamentando de forma exemplar quais os depoimentos que lhe mereceram credibilidade, bem como os documentos juntos ao processo e a perícia que foi ordenada nestes autos que conduziram à alteração da qualificação jurídica do crime pelo qual o Arguido vinha acusado e, consequentemente, à extinção, por amnistia, do procedimento criminal instaurado contra o Recorrido quanto ao crime de omissão de auxílio p. e p. pelo art.º 200.º, n.º 1 do CP, por se encontrarem verificados todos os pressupostos previstos na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
2.   Tem legitimidade para recorrer aquele que é afectado pela decisão, ou seja, aqueles cujos seus direitos ficaram prejudicados ou poderão vir a ser prejudicados pela mesma, o que, no caso em apreço, se não verifica.
3.   No caso dos autos, a Assistente não só não deduziu acusação como sequer aderiu à acusação pública do MP. Ao longo de todo este processo, onde assumiu sempre uma posição passiva, a Recorrente constituiu-se apenas como Assistente – tendo sido admitida a intervir nos autos como tal por despacho de 20.02.2020 -, e manifestou a sua não concordância com a promovida suspensão provisória do processo pelo MP por requerimento datado de 16.12.2021. Para além disto, a Assistente, até à sentença final, nada mais disse, nada mais fez! Sequer veio deduzir pedido de indemnização civil contra o Arguido !
4.   Sendo o crime de omissão de auxílio um crime público, que visa a proteção dos bens jurídicos vida, integridade física e liberdade, protegidos nos termos dos artigos 24.º, 25.º e 26.º da Constituição, dúvidas não de que a Assistente não é a titular do interesse que a lei pretendeu proteger com a incriminação prevista no art.º 200.º do Código Penal.
5.   A Recorrente não foi a vítima do crime, não demonstrou ter sido afetada pela decisão recorrida, e menos ainda demonstrou um concreto e real interesse na punição do Recorrido, ao pugnar pela alteração da qualificação jurídica do ilícito em questão. Logo, não tendo sido proferida decisão contra a Assistente, e estando desacompanhada do MP, não tem esta legitimidade para recorrer da sentença.
6.   Nesse sentido se pronunciou abundantemente o Supremo Tribunal de Justiça, de onde destacamos: O assistente que não tenha deduzido acusação, nem acompanhado a acusação pública nem em qualquer outra peça processual tenha manifestado o seu ponto de vista jurídico sobre o objecto do processo não tem legitimidade para recorrer da qualificação dos factos na sentença”. 10
7.   Ou ainda: “(…) VII - Enquanto que a legitimidade do assistente se avalia para efeito de recurso, à partida, face ao seu posicionamento no processo perante a decisão proferida, assumindo pois um carácter mais subjectivo e formal, o interesse em agir resultará da análise da pretensão do recorrente, em concreto, quando confrontada com a respectiva necessidade ou indispensabilidade para fazer vingar um direito ou interesse seu. Em matéria de legitimidade averiguamos quem pode recorrer, e no domínio do interesse em agir apreciamos que interesse tem a pessoa que quer recorrer, em interpor aquele concreto recurso. É dizer, averiguamos se o direito ou interesse prosseguido pelo assistente é atendível para o efeito, tendo em conta o respectivo estatuto processual e, no limite, aquilo que se pretende com a punição.” 11 (sublinhado e bold nossos)
8.   A Assistente estava, portanto, obrigada a demonstrar a necessidade e indispensabilidade de fazer valer um direito e/ou interesse seu e, bem assim, que o mesmo se justifica pela via do recurso, sendo que não não invocou ou fundamentou o seu interesse em agir, como indiscutivelmente aquilo que pretende com o recurso é apenas um desejo de vindicta privata dirigido ao Arguido, pois bem sabe que o desfecho deste processo e as consequências dele decorrentes em nada a beneficiam ou prejudicam, isto é, nenhum direito ou interesse seu ficou por acautelar ou por proteger através dos meios judiciários !
9.   A Recorrente não deduziu qualquer pedido de indemnização civil, pelo que a decisão contra a qual ora se insurge e pretende ver invertida não prejudicou qualquer interesse próprio que fosse necessário proteger e acautelar, isto é, não acarretou para si qualquer prejuízo para os seus interesses próprios, não dispondo, assim, de interesse em agir, que sequer invocou ou demonstrou !
10. De resto, centrando-se o recurso apenas na discordância em relação à alteração da qualificação jurídico-penal dos factos efectuada na decisão - que, na perspectiva da Recorrente, não devia ter ocorrido -, impunha-se a invocação de factos dos quais resultasse a existência de um interesse concreto e próprio nessa alteração que propugna, designadamente que, a não ocorrer, colocaria em crise qualquer direito ou expectativa legítima da Recorrente (o concreto e real interesse na punição). Nada disso sucedeu, nem das conclusões apresentadas resulta a demonstração de qualquer interesse em agir por parte da Assistente.
11. Tendo presente a decisão ora recorrida, na qual se operou uma alteração da qualificação jurídico-penal, com a qual o Ministério Público se conformou, e tratando-se de crime de natureza pública (omissão de auxílio), carece a Assistente de legitimidade para dela interpor recurso, desde logo porque não é a titular do interesse que a lei pretendeu proteger com a incriminação prevista no art.º 200.º do Código Penal.
12. Por outro lado, à Assistente impunha-se demonstrar o seu concreto interesse em agir, o seu concreto direito a tutelar, o que manifestamente também se não verificou (nem podia, porque não existe direito nenhum a proteger) !
13. Por consequência, estando vedado o direito de recorrer a quem não tem legitimidade e interesse em agir, e no caso concreto a Assistente não tem ambos, verifica-se uma causa de rejeição do recurso apresentado nos termos dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2 e 401.º, n.º1, alínea b) do Cód. de Processo Penal, que nesta sede se invocam.
14. O simples facto do recurso interposto ter sido admitido pelo Tribunal da 1.ª Instância, em nada vincula o Tribunal da Relação que, perante esta falta de legitimidade, sempre poderá e deverá rejeitar o recurso com este fundamento.
15. A decisão recorrida não aferiu a responsabilidade do Arguido no acidente, e menos ainda decidiu que por este não ter tido culpa na produção desse evento, sobre ele não recaía o dever especial de auxílio.
16. Dúvidas inexistem de que o simples facto de um omitente do dever de auxílio não ter sido considerado culpado na produção de um acidente, tal não implica que não possa ser responsabilizado criminalmente pelo crime de omissão de auxílio, isto é, pode incorrer na obrigação de prestar auxílio independentemente de haver ou não culpa da sua parte, senão mal se justificaria a acusação deduzida nos presentes autos !
17. O Tribunal a quo, que fez uma abordagem sobre a doutrina e jurisprudência acerca desta matéria, teve o cuidado de fundamentar por que razão entende que, quanto ao preenchimento do elemento qualificativo do crime de omissão de auxílio, não é toda e qualquer forma de ingerência ou contributo no processo causal da criação da grave necessidade que cabe no conceito legal, sob pena de violação do princípio da tipicidade e da legalidade.
18. O Tribunal decidiu - e bem, em nosso entender que a acusação não continha factos que permitissem concluir, sequer foi produzida prova nesse sentido, de que a fonte do perigo para bens jurídicos pessoais, in casu, o acidente, foi criada pelo arguido, razão pelo qual o absolveu do ilícito imputado no n.º2 do art.º 200.º do CP.
19. Diversamente do que invoca a Recorrente, o Tribunal a quo considerou que a acusação (e é ela que define o objecto do processo e vincula tematicamente o tribunal) não descreve o elemento objectivo do crime agravado de omissão de auxílio, porquanto dela não consta que tenha sido o arguido a criar essa situação de perigo de grave necessidade.
20. É que sobre o processo causal do acidente, sobre aquilo que levou à criação da situação de perigo, a acusação nada diz, limitando-se secamente a fazer a descrição de um embate entre um veículo conduzido pelo arguido e o peão, a vítima, que tinha iniciado a travessia da via, bem como as consequências daí decorrentes (cfr. factos provados 1 a 4 e 8).
21. Sobre os factos que poderiam ter a virtualidade de imputar ao Recorrido a criação da situação de perigo de lesão grave da integridade física, pura e simplesmente nada se diz na tabela acusatória, sequer tal resultou da prova produzida em julgamento.
22. Se não está na acusação que foi o Arguido que criou a situação geradora de perigo para bens pessoais (a ingerência), naturalmente que não se lhe pode imputar a violação de um dever especial de auxílio; se não sabemos em que circunstâncias se deu o acidente e se foi, de facto, o Arguido o seu causador, não se pode partir daí para a conclusão de que estão verificados os pressupostos do crime agravado (sendo que se trata de um crime específico impróprio, pois só pode ter por agente o causador do perigo) !
23. De notar que no facto 8 provado consta que somente que o Arguido AA foi interveniente no acidente, NÃO que este provocara um acidente ou que criara a tal situação de perigo que permitiria configurar eventualmente o elemento típico do crime agravado. Criar não é intervir, não é participar, e tudo o que se concluir para além disto é confabular e configura uma violação do princípio da legalidade e do acusatório.
24. Bem andou, por isso, o Tribunal a quo ao ter decidido que não era possível subsumir a factualidade julgada como provada ao dever especial de auxílio, por falta desse elemento objectivo do tipo previsto no n.º2 do art.º 200.º na acusação, pelo que nenhuma censura é de lhe apontar.
Do Pedido
Nestes termos e nos melhores de Direito que VV. Exas. doutamente suprirão, deve:
a) Ser rejeitado o recurso apresentado pela Recorrente por manifesta falta de legitimidade, por não ter interesse em agir, nos termos do disposto nos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2 e 401.º, n.º1, alínea b), todos do Código de Processo Penal;
Sempre e em qualquer caso,
b) Ser negado provimento ao recurso da Recorrente por manifesta improcedência dos seus propósitos e conclusões, mantendo incólume e reafirmando a Sentença recorrida,

1.2.4. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação teve vista do processo e foi de parecer que a assistente tem legitimidade para recorrer da sentença absolutória proferida nos autos, além de sufragar a argumentação do Ministério Público da primeira instância.

1.2.5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.P., foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência.

II. OBJECTO DO RECURSO

De acordo com o disposto no artigo 412º do C.P.P. e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. 1ª série-A de 28/12/95, o objecto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respectiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Assim, examinadas as conclusões de recurso, são as seguintes as questões a conhecer :

- Integração da conduta apurada no tipo do nº 2 do artigo 200º do C.P..

III. FUNDAMENTAÇÃO

Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido na primeira instância, na parte que interessa à decisão a proferir por este Tribunal (transcrição) :

III. Factos provados

Discutida a causa, e com pertinência, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 29.10.2019, cerca das 19h55, o arguido AA conduzia o veículo automóvel, com a matrícula ..-IN-.., na Rua ..., ..., no sentido .../....
2. Na mesma via, no mesmo sentido, seguia apeado EE.
3. Quando o veículo conduzido pelo arguido AA circulava no referido local, o peão EE iniciou a travessia da faixa de rodagem, tendo sido colhido pelo veículo automóvel e sido projetado para a berma direita.
4. Em consequência do embate, o peão EE ficou inconsciente, a respirar, sozinho, de noite, na berma da faixa de rodagem.
5. Ninguém presenciou o acidente.
6. Apenas com a chegada ao local de FF foram, por este, acionados os meios de socorro.
7. À chegada dos meios de socorro, cerca de 20 minutos depois de terem sido acionados, o peão EE entrou em paragem cardiorrespiratória e faleceu.
8. O arguido AA sabendo que tinha sido interveniente no acidente donde tinha resultado o embate com o peão EE e que este necessitava de ajuda imediata nas circunstâncias supra descritas, uma vez que poderia do embate e da consequente projeção terem resultado lesões físicas, perda de consciência ou vir a resultar a sua morte, ao invés de imobilizar o seu veículo com vista a prestar-lhe os necessários socorros, transportando-o ao hospital mais próximo ou assegurando-se de que outrem os prestaria de imediato, prosseguiu a sua marcha, desinteressando-se das consequências daí resultantes.
9. Ao abandonar o local do acidente, o arguido AA não prestou conscientemente o auxílio e socorros devidos ao peão EE, bem sabendo que estava obrigado a prestá-lo.
10. O arguido AA procedeu, conforme descrito, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se provou que,
11. O arguido vive sozinho, em casa arrendada.
12. O arguido despende 450€ de renda mensal.
13. O arguido trabalha na área da construção civil, auferindo mensalmente 800€.
14. De despesas relevantes, o arguido encontra-se a pagar uma prestação mensal de 150€ pelo crédito automóvel por si celebrado.
15. O arguido tem por habilitações literárias o 12.º ano de escolaridade.

E que,
16. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.

IV. Factos não provados

Inexistem factos não provados.

V. Motivação da matéria de facto

O tribunal fundou a sua convicção a partir da análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, bem como nos documentos juntos aos autos, em conjugação com as regras da experiência comum, à luz do disposto no artigo 127.º, do CPP.

Assim, o tribunal considerou:

-Prova por declarações:

Declarações prestadas por AA que, de forma evidentemente consternada, confirmou aquelas que foram as circunstâncias espácio-temporais do acidente de viação constantes dos elementos juntos aos autos e dos factos imputados na acusação pública. O arguido, contudo, em momento algum, de forma espontânea, referiu que embateu numa pessoa, mencionando sempre a expressão “vulto”, apesar de que questionado, afirmou que se tinha apercebido que se tratava de uma pessoa que havia batido com a cabeça. Confirmou aquilo que resulta dos autos no que respeita à consequente imediata travagem sem ter parado a marcha. Afirmou o arguido que ficou sem reação nos primeiros 10 segundos após o embate, o que se reputou de honesto e sincero, pela crueza dos sentimentos que foram pautando o discurso do arguido. Tendo continuado a marcha, foi parar alguns metros à frente pelo que referiu que a primeira coisa que fez foi enviar um “SOS pagas” à sua mãe, por estar sem saldo no telemóvel, “desesperado”, tendo referido que havia pedido auxílio à sua mãe para que esta ligasse para o número nacional de emergência e para o seu pai. Apesar de saber que para ligar ao número nacional de emergência não precisava de ter saldo, no momento, segundo referiu o arguido, não conseguiu ter o discernimento para ligar ao INEM, não sabendo sequer onde estava quando estava a falar com a sua mãe.

Questionado acerca do motivo pelo qual contactou a sua mãe e não o 112, referiu o arguido que estava em pânico e que o seu instinto foi ligar à sua mãe. Referiu ainda que ao telefone com a mãe só conseguia gritar, disse-lhe que achava que tinha embatido em alguém e pediu ajuda à sua mãe. Falou também com o seu pai, que lhe disse para voltar ao local.

Quando o arguido chegou ao local, segundo disse cerca de 10 minutos depois de falar com o seu pai, o seu pai já se encontrava no local (que tinha recriado o caminho que o arguido fazia do treino para casa) e a vítima ainda estava a ser reanimada, desconhecendo quem é que acionou os meios de socorro. Quando chegou, o arguido deixou o carro que conduzia longe do local do embate.

Quanto às condições de visibilidade, à semelhança do que resulta amplamente da prova documental dos autos, disse o arguido que se tratava de uma estrada pouco iluminada. Disse que conduzia no momento do embate de luzes médias ligadas, referindo sem certezas que deviam ter passado veículos no sentido contrário para não ter ligado as luzes máximas. Apesar de ter carta de condução há menos de 6 meses à data do acidente, conduzia naquela estrada frequentemente por ter de a atravessar para se deslocar aos treinos de futebol que frequentava, utilizando o carro indicado na acusação pública.

Com relevância, nomeadamente, para a medida da pena, o arguido referiu que tentou contactar os familiares do falecido a fim de expressar os seus sentimentos.

O arguido prestou ainda declarações acerca da sua situação pessoal e económica.

-Prova testemunhal:

Depoimento das seguintes testemunhas:

FF (47 anos, casado, programador) foi a pessoa que acionou os meios de socorro. Explicou a testemunha que vinha do trabalho em direção a ... para ir buscar a filha quando se apercebeu que estava uma pessoa caída no chão, tendo parado e constado que se tratava de uma pessoa inconsciente e que havia sangue a escorrer. Identificou que tal ocorreu por volta das 20h. Posteriormente viu destroços provenientes de um carro no chão, que se encontram registados no relatório fotográfico de fls. 176 a 182 dos autos. A testemunha parou a sua viatura, acendeu as luzes de perigo e ligou para o 112. Tendo visto a vítima a deitar sangue pela boca e nariz, colocou a vítima em posição lateral de segurança e desobstruiu a via área. A testemunha FF ficou cerca de uma hora e meia no local, tendo presenciado a chegada do INEM e posteriormente da GNR. Da perceção da testemunha FF, o condutor do veículo interveniente não chegou ao local enquanto esteve presente no local, tendo apenas presenciado a chegada de pessoas que identificou como sendo o pai e a mãe do condutor. Quando se ausentou do local, a testemunha referiu que já tinha sido declarado o óbito da vítima. Também não assistiu à entrada de qualquer veículo no perímetro que foi marcado pela GNR. Em termos cronológicos, a testemunha FF, admitindo de forma genuína que naquela situação de stress a noção da passagem do tempo pode ter sido afetada, referiu que os meios de socorro demoraram cerca de 20 minutos a chegar desde a chamada que efetuou, tendo o pai do arguido chegado cerca de 5 a 10 minutos depois.

Questionado, a testemunha referiu que quando ligou para o 112 não lhe disseram que já tinham tido conhecimento da ocorrência por parte de outra pessoa, o que se confirmou com a reprodução do áudio de fls. 485 dos autos, do qual resulta que foi FF a acionar os meios de socorro.

GG (42 anos, guarda da GNR atualmente a exercer funções no Posto Territorial ..., em 2019 exercia funções no Posto Territorial ...) fez parte da patrulha que foi chamada ao local. Quando chegou ao local do acidente, o condutor não estava presente, tendo sido abordado pelo pai do arguido que identificou o seu filho como o condutor do veículo interveniente. A testemunha só falou com o arguido no local depois de ter chegado o seu advogado (facto que não se encontra vertido em qualquer documento junto aos autos, e até então não mencionado por qualquer outro interveniente processual). O arguido foi submetido, no local, a testes de pesquisa de álcool e substâncias psicotrópicas, “aparentando estar abalado” (nas palavras da testemunha).

Quando a testemunha chegou ao local do acidente, encontravam-se o peão, a pessoa que ligou para o número nacional de emergência, o que é secundado pela informação de óbito junta aos autos. Quando o pai do arguido chegou já estavam no local a ambulância e a VMER, como confirmou. Pela testemunha foi referido que o pai do arguido chegou ao local cerca de 30/40 minutos depois da chegada da patrulha da GNR e que o arguido chegou cerca de 15 minutos depois do seu pai.

BB (44 anos, solteiro, empresário da construção civil, pai do arguido) referiu que recebeu um telefonema da mãe do arguido, por volta das 20h05 (recorda-se da hora porque estava a chegar a casa vindo de um treino de um dos seus filhos), estando ela aos gritos a dizer para ir ter com o arguido porque o arguido tinha batido com o carro. Segundo disse a testemunha BB, a mãe do arguido só disse que o arguido tinha ido para o treino. BB seguiu com a sua companheira para o caminho que sabia que o arguido fazia, pelo que durante o percurso de carro foi tentando ligar ao arguido, que não atendeu as primeiras três chamadas. Quando conseguiu estabelecer contacto telefónico com o arguido, o arguido estava a chorar e só gritava “bati”. A testemunha BB estava a 15/20 minutos do local do acidente. Quando estava a recriar o percurso que o arguido costumava fazer, e que conhece porque o fez na companhia do seu filho aqui arguido muitas vezes, encontrou na sua faixa de rodagem uma fita da GNR a isolar o perímetro, tendo deduzido logo que o pânico em que se encontrava o arguido se devia à situação que encontrou. A testemunha BB referiu que se dirigiu à GNR presente no local e identificou o seu filho como interveniente no acidente (o que é secundado pelo teor de fls. 216 dos autos). No local, quando chegou, estava já o INEM e a GNR.

A testemunha BB disse que não ligou ao INEM porque não sabia o que se tinha passado, o arguido nunca lhe explicou ao telefone o que tinha sucedido, o local onde tinha sucedido, nem tão-pouco sabia onde estava o arguido, pois este não conseguia dizer onde estava. O arguido só conseguia dizer que tinha batido com o carro, não tendo dito mais nada à testemunha.

Segundo BB, o arguido chegou cerca de 5 a 10 minutos depois ao local, tendo sido de imediato identificado como interveniente. Ao local deslocaram-se ainda a tia e a avó paternas, a mãe e o companheiro da mãe do arguido.

A testemunha BB referiu, à semelhança dos demais, que se tratava de um local pouco iluminado.

Por fim, a testemunha BB mencionou que a viatura interveniente no acidente não voltou a ser conduzida pelo arguido, que o arguido depois do evento ficou cerca de 3 a 4 meses sem sair de casa e deixou de jogar futebol no clube que frequentava.

CC (41 anos, divorciada, desempregada, mãe do arguido) mencionou que no dia 29.10.2019 recebeu uma chamada para pagar do aqui arguido, na qual o arguido lhe disse, “em pânico” que tinha batido com o carro em alguma coisa, que não sabia onde estava. O telefonema aconteceu, segundo disse, por volta das 20h05/20h10. Segundo se recorda, o arguido não pediu para a testemunha chamar o INEM, nem a testemunha o fez porquanto não sabia em concreto o que tinha acontecido.

Depois de desligar o telefone, a testemunha CC ligou para o pai do arguido e pediu para este fazer o trajeto que o arguido fazia do treino para casa. De seguida, ligou à avó paterna do arguido para que juntas fizessem também o trajeto habitual do arguido, juntamente com a tia paterna do arguido e com o seu companheiro.

Quando a testemunha CC chegou ao local do acidente, por volta das 21h, o arguido já se encontrava no local do acidente e o corpo da vítima ainda se encontrava também no local a ser reanimada.

De forma concertada com o que havia sido dito pelo pai do arguido, o arguido depois do sucedido ficou cerca de 4 meses sem sair de casa.

HH (55 anos, divorciada, terapêutica de reabilitação física) que acompanhava os treinos de futebol do arguido, prestou apoio psicológico ao arguido. Quanto à matéria de facto, a testemunha nada sabia, não tendo presenciado qualquer ocorrência.

-Prova documental:

Documentos juntos aos autos, nomeadamente:

Relatório de autópsia de fls. 77 a 80 dos autos;

Relatório fotográfico de fls. 175 a 182 dos autos;

Informação por óbito de fls. 215 a 217 dos autos;

Participação de acidente de viação de fls. 218 a 220 dos autos;

Informação centro operacional 112 de fls. 407 a 408 dos autos;

Gravação da chamada telefónica do 112, em suporte CD, de fls. 485 dos autos reproduzida em sede de audiência de discussão e julgamento;

Relatório de fls. 443 a 455 dos autos;

Certificado de registo criminal do arguido fls. 662 dos autos.

As testemunhas e o arguido foram unânimes em localizar espácio-temporalmente os factos vertidos na acusação, não tendo contrariado o teor dos elementos documentais juntos aos autos.

Na verdade, o próprio arguido, o único que com legitimidade poderia atestar a dinâmica dos eventos, admitiu que os mesmos se desenrolaram tal como se encontravam descritos na acusação pública: o arguido vinha a conduzir um veículo ligeiros de mercadorias, propriedade do seu pai, quando por volta das 20h, sendo já de noite, dentro da sua faixa de rodagem, o peão EE embateu no veículo conduzido pelo aqui arguido, o que provocou a projeção e queda do mesmo para a berma. Do que se recordou o arguido, ninguém assistiu ao sucedido, ninguém estava presente no local para além do peão. A dinâmica relatada pelo arguido e descrita na acusação pública encontrou ainda sustentação naquele que é o relatório de fls. 452 dos autos. Do mesmo relatório, a fls. 453 dos autos, consta o parecer de que “apurou-se que o acidente se produziu por erro deste elemento [entenda-se, elemento humano], pelo atravessamento da faixa de rodagem por parte do peão, sem previamente se ter certificado de que, tendo em conta a distância que o separava do veículo ..-IN-.. e a respetiva velocidade o podia fazer sem perigo de acidente”.

O que se passou de seguida ao embate, o arguido demonstrou nada saber, pois apesar de ter travado, o que resulta confirmado pela foto n.º 1 do relatório fotográfico de fls. 176 a 182 dos autos, prosseguiu a marcha, tendo parado alguns metros à frente, sem conseguir precisar onde nem quantos, tendo apenas regressado ao local mais tarde.

Quanto a esse aspeto foram essenciais os depoimentos das testemunhas FF e GG: aquele, o primeiro a chegar ao local e que acionou os meios de socorro, tal como se comprovou através da chamada telefónica reproduzida em sede de audiência de discussão e julgamento, e o último enquanto membro da patrulha de GNR que liderou a ocorrência.

O arguido referiu, e tal foi confirmado pelos seus pais, aqui testemunhas, que ligou à sua mãe, desesperado, sem saber o que fazer. Disse que tinha pedido à sua mãe para que pedisse socorro, o que foi desmentido pela testemunha CC, que com maior certeza do teor da chamada telefónica recordou que o arguido só referiu que tinha batido com o carro em algo, não tendo conseguido explicar o que havia sucedido e que havia uma pessoa lesada e a necessitar de auxílio. Ora, a justificação apresentada pelo arguido foi a de que não tinha condições emocionais para ter agido de outra forma, que o seu instinto foi ligar à sua mãe, não tendo tido reação nos primeiros 10 segundos após o embate, nos quais, apesar de ter travado, prosseguiu a marcha. Se o tribunal não pode deixar de reputar como verosímil que tal tenha efetivamente ocorrido, isto é, que o instinto do arguido, no momento em que retomou a consciência do que havia sucedido e da necessidade de socorrer o peão em que embatera, foi ligar à mãe, tal não pode tornar a conduta do arguido não ético-juridicamente censurável. Sem querendo o tribunal imiscuir-se neste momento da apreciação de direito do caso concreto, importa referir que o arguido demonstrou saber e ter consciência que tinha embatido numa pessoa, e que em virtude daquele embate, independentemente da culpa e imputabilidade do mesmo, a intervenção do veículo por si conduzido contribuiu para a ocorrência de lesões que necessitariam de ser acudidas.

          Questionado, o arguido demonstrou saber que o embate que sofrera era adequado a provocar lesões corporais graves ao peão, que o peão foi projetado pelo carro e que muito possivelmente a vida ou integridade física daquele se encontrava em perigo.

Ora, ficou demonstrado que existia perigo para a vida e integridade física do peão, perigo este que se veio a concretizar e a resultar no falecimento do peão. O relatório de autópsia concluiu que a morte de EE ficou a dever-se às lesões traumáticas crânio-meningencefálicas descritas no relatório e que foram provocadas por um instrumento contundente, “podendo ter sido devidas a acidente de viação-atropelamento”, tendo o óbito sido declarado pelas 21h30, após 32 minutos de manobras de reanimação.

Do relatório de fls. 455 dos autos consta que o veículo do arguido só chegou ao local depois das 21h45, o que é suficiente para comprovar que não houve por parte do arguido qualquer intervenção junto do peão após o embate, pois também não foi o arguido a acionar os meios de socorro.

Quanto aos demais factos relativos aos elementos subjetivos, os mesmos foram apurados através das regras da experiência comum, a partir da objetividade da ação desencadeada, no pressuposto de que o ser humano, atuando em liberdade e em estado consciente, quando pratica determinado facto, fá-lo porque quer, assumindo as consequências que dele previsivelmente resultam. O arguido assumiu saber que a conduta era proibida e punida por lei.

Por fim, no que respeita aos factos relativos à situação pessoal e económica do arguido foram apurados através das declarações prestadas pelo arguido, que não suscitaram reservas e se reputaram de credíveis. No tocante à ausência de antecedentes criminais, tal resultou do teor do certificado de registo criminal do arguido junto aos autos.

VI. Enquadramento jurídico-penal

Apurados os factos, importa proceder à correspondente subsunção jurídica. Os factos provados consubstanciam a prática de um crime de omissão de auxílio previsto e punido pelo artigo 200.º, n.ºs 1 e 2, do CP.

Preceitua o artigo 200.º, do CP:

1 - Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por ação pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

3 - A omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio lhe não for exigível.

Os bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora são a vida, a integridade física e liberdade, ou seja, bens eminentemente pessoais.

 “O fundamento legitimador do dever geral de auxílio (…) é a solidariedade humana que deve vincular todo e qualquer membro da sociedade.” (CARVALHO, Américo Taipa de, Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 846). Assim, a solidariedade humana faz impender um dever geral de auxílio a todos aqueles que não estejam já vinculados por um especial dever de garante (artigo 10.º, n.º 2, do CP) – ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015, p. 782.

O crime previsto no artigo 200.º, n.º 1, do CP pode ser praticado por qualquer pessoa sobre a qual impende um dever de auxílio, sendo, portanto, um crime comum. Trata-se também de um crime de perigo concreto porquanto o seu preenchimento não necessita da efetiva lesão do bem jurídico que se visa proteger, não bastando, contudo, um perigo abstratamente considerado, mas que se manifeste no caso concreto. “Por perigo deve entender-se um estado desacostumado e anormal no qual para um observador atento pode aparecer como provável à vista das concretas circunstâncias atuais a produção de um dano cuja possibilidade resulta evidente" (Acórdão do TRP de 25.02.2004, relatado por António Gama, disponível em <http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/22c1f88e70f2009180256e530050f888?OpenDocument>).

O fundamento de um tal dever geral de auxílio filia-se num dever de solidariedade humana, na obrigação elementar que todos têm (pois que o homem é um ser societário e interdependente) de se ajudarem mutuamente, em situações que reclamem essa ajuda. O direito penal elegeu certas dessas situações, que designou de grave necessidade, pondo em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade (bens eminentemente pessoais - e apenas esses mereceram a consideração da lei para efeitos de criminalização pelo referido artigo) para estabelecer uma exigência de auxílio, dirigida a todos em geral, sob pena de a omissão constituir um crime. O omitente incorre, assim, na possibilidade de um juízo de censura, não apenas ético, mas ético-jurídico – Acórdão do STJ de 12.02.2004, relatado por Rodrigues da Costa, disponível em <http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/7067F4D7C3C882EA80256E6D0049815A>.

A ilicitude da conduta prevista no artigo 200.º, do CP consiste na não prestação de auxílio adequado. Para tal, vislumbra-se necessário que o ato de salvamento seja possível de ser realizado pelo omitente e que tal dever de prestação de auxílio não implique riscos de lesão corporal grave daquele que poderia prestar auxílio. Quando ao critério de necessidade ínsito no artigo incriminador, reconduz-se a um auxílio indispensável e adequado a afastar o perigo, de acordo com o que faria na situação concreta o homem medianamente diligente e sagaz

Assim, “[e]ssencial (…) ao preenchimento típico objetivo desta norma incriminatória é a possibilidade fáctica de o omitente poder realizar, na situação concreta, a conduta adequada e indispensável à remoção do perigo, tal se aferindo em termos de adequação causal (cfr. art.º 10.º, n.º 1, do Código Penal), levando-se a cabo um juízo de prognose póstuma, convocando o critério do homem médio do círculo de atividade do omitente colocado na sua posição.” - Acórdão do TRC de 05.04.2017, relatado por Vasques Osório, disponível em <http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/5c435f3d5e92d51980258105004980a6?OpenDocument>.

Os elementos do tipo objetivo consistem, portanto:

a) Na verificação de caso de grave necessidade que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa.

Para que se verifique a situação de “grave necessidade” pressuposta pela previsão do tipo penal de omissão de auxílio, bastará que que se configure um quadro factual do qual resulte a perceção, para qualquer pessoa – face aos sinais exteriores evidenciados – de que o ofendido necessita de ser de imediato socorrido, por ser previsível que venham a ocorrer consequências graves para a sua integridade física (Acórdão da TRE de 18.04.2023, relatado por Maria Clara Figueiredo, disponível em < http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/b9a7acb979136b43802589aa00302b41?OpenDocument>).

A necessidade de auxílio será grave quando seja impossível ao agente, por si só, afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais. Ou seja, quando se verifique uma incapacidade de desenvolver a atividade de defesa adequada às circunstâncias (neste sentido, o Acórdão do TRE de 09.01.2018, relatado por Alberto Borges, disponível em <http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/31163c2bcf20596c8025822700320075?OpenDocument>).

b) A falta, pelo agente, da prestação do auxílio necessário ao afastamento do perigo.

A prestação de auxílio limitava-se, no caso em concreto, a providenciar apenas por socorro da vítima, isto é, chamar ou pedir que outrem chamasse os bombeiros ou verificar que alguém já tinha providenciado por socorro, não sendo exigível uma ação pessoal de socorro.

No que tange ao elemento subjetivo, a culpa consiste na averiguação da relação entre o agente e a ilicitude do seu facto, o que pressupõe uma análise de dois elementos: o conhecimento quanto à licitude do seu facto e a liberdade de determinação de acordo com esse conhecimento. O conhecimento tem de ser atual e não tem de corresponder a uma noção exata e isenta de perturbação emocional dos elementos objetivos do tipo, não é necessariamente um conhecimento “vivo, nítido, refletido acerca dos elementos objetivos do tipo, mas unicamente um conhecimento que possibilite a perceção das coordenadas básicas da realidade objetiva” (PATRÍCIO, Rui Filipe Serra Serrão, O dolo enquanto elemento do tipo penal (no direito português atual): questão-de-facto ou questão-de-direito?, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1997, p. 21 e ss). A vontade de lesar um bem jurídico pressupõe necessariamente o conhecimento dos elementos geradores dessa lesão.

É precisamente quanto ao elemento volitivo, isto é, a vontade de realizar uma certa conduta que se distinguem três modalidades de dolo.

O dolo, nas suas três modalidades (dolo direto, dolo necessário e dolo eventual), vem definido no artigo 14.º, do CP. Assim, temos que no dolo direto e necessário, o agente deve saber que a sua conduta preenche os diversos elementos do tipo legal e que a sua conduta é ilícita (elemento intelectual). A este elemento junta-se o elemento volitivo, o agente deve querer realizar os elementos do tipo-de-ilícito (dolo direto ou intencional), ou ver essa realização como um resultado necessário de outro fim prosseguido (dolo necessário). Quanto ao dolo eventual, o agente considera o preenchimento do tipo legal como uma consequência possível e, “mesmo assim age, assumindo o risco, conformando-se com a sua realização” (SILVA, Germano Marques da, Direito Penal Português, Parte Geral II - Teoria do Crime, Lisboa, p. 166).

No dolo eventual, o agente não tem como objetivo imediato do seu agir o facto típico, mas outro facto, sendo, no entanto, o facto típico uma consequência possível desse agir, consequência que o agente representa e aceita. A atitude do agente caracteriza-se por uma indiferença em relação ao facto típico, sendo, no entanto, certo que tal indiferença há-de ser mais intensa e mais marcante em relação a um facto tido como certo do que em relação a um facto tido como incerto (PATRÍCIO, Rui Filipe Serra Serrão, O dolo enquanto elemento do tipo penal (no direito português atual): questão-de-facto ou questão-de-direito?, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1997, p. 26).

Ora, na sua forma qualificada, estamos perante um crime específico impróprio, porquanto só pode ter por agente o causador do perigo.

No que tange ao tipo previsto no n.º 2, do artigo 200.º, do CP, exige-se ainda que a verificação de caso de grave necessidade tenha sido criada pelo agente, omitente do auxílio devido.

Deste modo, o cometimento do crime previsto no artigo 200.º, n.º 2, do CP pressupõe:

- A incapacidade da vítima, por si só, afastar o perigo iminente de lesão importante dos bens jurídicos, revelada pela existência de sinais apreensíveis por qualquer pessoa, da necessidade urgente de atuação na prestação do auxílio [os casos de grave necessidade];

- A situação de perigo ter sido criada pelo omitente [a ingerência];

- A perceção pelo agente a atualidade e idoneidade de um determinado acontecimento de facto para ameaçar a integridade dos bens jurídicos tutelados [o perigo concreto];

- A não realização dos atos que se revelavam como adequados e necessários ao afastamento do perigo de lesão dos bens jurídicos tutelados [omissão da conduta devida], através de um juízo de prognose ex ante, radicado nas circunstâncias concretas do caso e na conduta do bonus pater familiae, com os conhecimentos do agente;

- O conhecimento pelo agente da situação de grave necessidade, do perigo que recai sobre a vítima e da possibilidade de atuar no sentido exigido pela norma, e a vontade de omitir o auxílio imposto pela norma [o dolo] – seguindo de perto, o Acórdão do TRC de 05.04.2017, relatado por Vasques Osório, disponível em <http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/5c435f3d5e92d51980258105004980a6?OpenDocument>.

A situação de ingerência contemplada no n.º 2, do artigo 200.º, do CP não se confunde com a ingerência fundamentadora do dever de garante do artigo 10.º, n.º 2, do CP que preceitua que a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado. Deste modo, o n.º 2, da norma incriminadora em análise restringe-se às situações em que não se verifica o resultado tipicamente relevante ou em que o perigo criado não é adequado a provar o resultado; em que a situação de perigo criada pelo omitente se encontra a coberto de uma causa de justificação (à exceção do direito de necessidade e da legítima defesa quando a necessidade de defesa não foi provocada pelo omitente); em que a situação de perigo foi criada para o agressor inimputável em consequência de uma ação defensiva do agredido ou de um seu auxiliar; e às situações em que o entre o agressor e o defendente exista um dever de garante (CARVALHO, Américo Taipa de, Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 849 e ss).

Neste âmbito, dita o acórdão do TRP de 25.02.2004 que “quer no caso do n.º 1, quer no caso do n.º 2, do artigo 200.º, do Código Penal, é punível a conduta do agente por omissão de auxílio – verificados os demais pressupostos – mesmo no caso de ele ser absolvido como culpado do acidente.” Nos termos deste Acórdão, a criação da situação que obriga ao auxílio quer significar que o agente, por si só ou conjuntamente com o lesado, tenha tido intervenção no processo causal de tal situação – acidente, desastre, calamidade – que gerou a obrigação de prestar auxílio e isto, independentemente de haver, ou ao, culpa da sua parte.”

“Acresce que, e no que concerne ao n.º 2 do citado normativo legal, “quem cria, contra o dever, um perigo para bens jurídicos protegidos, constitui-se no dever – e na verdade um dever jurídico – penalmente fundado e relevante – de o remover antes que ele se transforme numa lesão definitiva dos valores ou interesse que ameaça” (Figueiredo Dias, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 116, n.º 3707, pág. 54).” – apud Acórdão do TRE de 09.01.2018, relatado por Alberto Borges, disponível em <http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/31163c2bcf20596c8025822700320075?OpenDocument>.

Para a doutrina, o fundamento da qualificação é a ingerência do omitente de auxílio que cria a situação de perigo. Esta pode ser definida como a conduta precedente que põe em causa bens jurídicos de terceiros, quer através da criação de um perigo original para os mesmos, quer pela exponenciação de um perigo já existente (AZEVEDO, Vanessa Filipa Leitão de, O crime de omissão de auxílio no direito penal Português: o artigo 200.º do Código Penal, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2015, p. 77).

Na ótica de distinguir o âmbito de aplicação do tipo qualificado, Paulo Pinto de Albuquerque diz o seguinte, incidindo concretamente no atropelamento de peões: “se o acidente se deve à infração dolosa ou negligente de regras estradais pelo condutor, ele tem um dever de garante (artigo 10.º, n.º 2). Se o acidente se deve a um fator aleatório (mesmo que fundamente a responsabilidade pelo risco do condutor, como por exemplo, o rebentamento de um pneu), o condutor não tem um dever de garante, mas apenas um dever especial de auxílio, previsto no artigo 200.º, n.º 2. Mas se o acidente se deve exclusivamente à culpa da vítima, o condutor tem apenas um dever geral de auxílio, previsto no artigo 200.º, n.º 1” – ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª edição, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015, p. 784.

No caso de omitente e vítima terem contribuído para a mesma causa, há que estabelecer o nexo de causalidade entre determinada conduta e os danos que esta possa ter causado para a integridade física e/ ou vida da vítima de modo a que se possa afirmar a existência ou não de um dever de garante e proceder à respetiva criminalização. Caso o estabelecimento do nexo de causalidade não proceda, terá de se afirmar a existência de um dever geral de auxílio e não já de um dever de garante (AZEVEDO, Vanessa Filipa Leitão de, O crime de omissão de auxilio no direito penal Português: o artigo 200.º do Código Penal, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2015, p.80).

É que, se qualquer cidadão está onerado com o dever geral de assistência em relação a qualquer pessoa que se encontre em grave necessidade que ponha em perigo a sua vida, integridade física ou liberdade, mesmo que esse cidadão não tenha contribuído minimamente para tal situação, e se sobre aquele que tiver criado ou contribuído para criar, sem culpa, a situação geradora de perigo para bens pessoais, recai um dever qualificado de auxílio, em virtude do qual a omissão da conduta é mais gravemente punida do que no primeiro caso, em relação ao agente de um ilícito típico, que dolosamente tenha criado a situação, configura-se o especial dever jurídico de evitar a produção do resultado – veja-se o Acórdão do STJ de 12.02.2003, relatado por Rodrigues da Costa, disponível em <http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/7067F4D7C3C882EA80256E6D0049815A>.

Se qualquer cidadão está onerado com o dever geral de assistência em relação a qualquer pessoa que se encontre em grave necessidade que ponha em perigo a sua vida, integridade física ou liberdade, mesmo quando esse cidadão não tenha contribuído de qualquer forma para tal situação, facilmente se concluiu que sobre aquele que tiver criado ou contribuído para criar a situação geradora de perigo para bens pessoais, recai um dever qualificado de auxílio, em virtude do qual a omissão da conduta é, neste último caso, mais gravemente punida do que no primeiro – neste sentido, Acórdão do TRE de 09.01.2018, relatado por Alberto Borges, disponível em <http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/31163c2bcf20596c8025822700320075?OpenDocument>.

Nenhuma dúvida se afigura que o quadro factual descrito na factualidade provada configura uma situação de “grave necessidade”, que integra o elemento do tipo objetivo do crime de omissão de auxílio. De facto, o embate do veículo conduzido pelo arguido no ofendido participou na criação um concreto perigo de lesão grave da integridade física do deste último, tendo exigido socorro médico imediato, o que era apreensível por qualquer pessoa colocada perante a situação e também, obviamente, pelo arguido.

Ao abandonar o local, consciente do acidente em que participara e bem assim de que o veículo embatera num transeunte, alheando-se por completo da situação de grave necessidade em que o mesmo poderia encontrar-se e que representou como possível, não cuidando de se certificar do seu real estado de saúde, não lhe prestando o auxílio necessário ao afastamento da situação de perigo, com a qual, pois, se conformou, agiu o arguido com dolo eventual.

No entanto, quanto ao preenchimento do elemento qualificativo, não pode o tribunal deixar de afastar a jurisprudência acima citada no que respeita a ser abrangido qualquer tipo de ingerência ou contributo na criação da grave necessidade de auxílio. Isto porque constitui uma interpretação praeter legem (para além da lei) fazer incluir no conceito legal criada qualquer forma de ingerência ou contributo no processo causal da criação da grave necessidade. E tal constituiria a violação dos princípios basilares da tipicidade e da legalidade, o que o tribunal não pode consentir. Se é certo que o tribunal não desconhece a doutrina e jurisprudência que veem no n.º 2, do artigo 200.º, do CP a porta para qualificar toda a ingerência no processo causal, no entanto não é possível olvidar que em momento algum na acusação pública deduzida, nem tão pouco da prova produzida em audiência de discussão e julgamento se provou que o acidente, fonte do perigo para bens jurídicos pessoais e da grave necessidade, tenha sido criado pelo arguido omitente.

Deste modo, não estando imputado ao arguido a criação do perigo e da grave necessidade de prestar auxílio, nem se tendo comprovado que a necessidade de auxiliar se ficou a dever ao arguido, não se subsume a descrita factualidade julgada como provada ao dever especial de auxílio.

Não se comprovando o dever especial de auxílio decorrente da criação da situação de perigo para bens jurídicos relevantes e da grave necessidade de auxílio, a factualidade julgada como provada e imputada ao arguido preenche os elementos do tipo legal de crime previsto no artigo 200.º, n.º 1, do CP, tendo, como resulta acima, agido com dolo eventual. Deve, por isso, ser punido, pois não se vislumbram no caso causas de justificação, de exclusão da culpa, sendo irrelevante para efeitos de subsunção jurídica o auxílio prestado por um terceiro.

VII. Consequências jurídico-penais

Atendendo à factualidade julgada como provada que se subsume à prática de um crime previsto e punido pelo artigo 200.º, n.º 1, do CP, cumpria escolher a pena e a medida da pena a aplicar.

O crime de omissão de auxílio previsto no artigo 200.º, n.º 1, do CP é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

No entanto, a alteração da qualificação jurídica apurada chama à colação no caso concreto a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, uma vez que é entendimento unânime na jurisprudência e na doutrina que em caso de concorrência entre o perdão (o que poderia equacionar-se atendendo à pena que seria aplicada) e a amnistia, prevalece a extinção do procedimento criminal por amnistia (neste sentido, para além do teor da ressalva prevista no artigo 3.º, n.º 1, 1.ª parte, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, veja-se Acórdão do TRL de 16-12-1999, relatado por Goes Pinheiro, in Coletânea de Jurisprudência, ano XXIV-1999, tomo V, p. 152 e BRITO, Pedro José Esteves de, “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, in Julgar online, agosto de 2023, p. 7).

A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, definiu os pressupostos cujo preenchimento conduz à amnistia de determinadas infrações penais, que se verificam no caso em apreço. A saber:

- a data da prática dos factos (que remontam a 29.10.2019 – artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto);

- o arguido tinha 18 anos (artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto);

- o crime praticado pelo arguido é punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias (artigo 200.º, n.º 1, do CP e artigo 4.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto);

- o crime praticado pelo aqui arguido não integra o elenco de exceções previsto no artigo 7.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

Com efeito, cumpre declarar extinto, por amnistia, o presente procedimento criminal instaurado contra o arguido, nos termos dos artigos 127.º, n.º 1 e 128.º, n.º 2, do CP.

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Questão prévia:

Na sua resposta, o arguido invoca a ilegitimidade da recorrente/assistente para recorrer da sentença desacompanhada do Ministério Público, uma vez que não deduziu acusação, nem pedido de indemnização civil, não acompanhou a acusação do Ministério Público e pretende alterar a qualificação jurídica dos factos tratando-se de um crime público.

Por sua vez, no seu parecer, o Ministério Público junto deste tribunal de recurso, defende que a assistente tem legitimidade e interesse em agir .

De acordo com o artigo 69º do C.P.P., sob a epígrafe «Posição processual e atribuições dos assistentes» :

«1 - Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.

2 - Compete em especial aos assistentes:

(…)

c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça.».

Assim, cai desde já por terra o argumento, do arguido, de que falece legitimidade à assistente para recorrer pelo facto de o Ministério Público o não ter feito.

Por sua vez, o artigo 401º do C.P.P. estipula que:

«1 - Têm legitimidade para recorrer: [...]

b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;

(…)

2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.».

Assim, o direito ao recurso pressupõe dois requisitos: legitimidade e interesse em agir.

Quanto à legitimidade, esta «é uma posição de um sujeito processual relativamente a determinada decisão proferida em processo penal que justifica que ele possa impugnar tal decisão através de recurso» - cfr. Gonçalves da Costa, in Jornadas de Processo Penal do CEJ.

Já o interesse em agir consubstancia-se, nas palavras de Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, in Recursos Penais, 9ª edição, Rei dos Livros, p. 61, no «interesse em recorrer porque o direito do requerente foi afectado e está necessitado de tutela judicial».

Como refere o Acórdão do S.T.J. de 18/10/2000, transcrito no Acórdão do mesmo Tribunal de 8/10/2008, processo 08P2283, relatado pelo Conselheiro Simas Santos, in www.dgsi.pt, «Como flui explicitamente da lei (art.º 401.º, do CPP), dois dos requisitos de que depende a admissão de um recurso penal são a "legitimidade" e o "interesse em agir" de quem lança mão de tal expediente. A "legitimidade" consubstancia-se na posição de um sujeito processual face a determinada decisão proferida no processo, justificativa da possibilidade de a impugnar através de um dos recursos tipificados na lei. Ou seja: diz-se parte legítima aquela que pode, segundo o Código, recorrer de uma determinada decisão judicial. Trata-se, portanto, aqui, de uma posição subjectiva perante o processo, que é avaliada "a priori". Outra coisa diferente é o "interesse em agir", que consiste na necessidade de apelo aos tribunais para acautelamento de um direito ameaçado que precisa de tutela e só por essa via se logra obtê-la. Portanto, o interesse em agir radica na utilidade e imprescindibilidade do recurso aos meios judiciários para assegurar um direito em perigo. Trata-se, portanto, de uma posição objectiva perante o processo, que é ajuizada "a posteriori".».

No mesmo sentido se pronunciaram Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal anotado, 2º volume, 1996, p. 475 : «Não basta ter legitimidade para se recorrer de qualquer decisão; necessário se torna também possuir interesse em agir, (...) que se reconduz ao interesse em recorrer ao processo, já que o direito do requerente está necessitado de tutela. Não se trata, porém, de uma necessidade estrita nem sequer de um interesse vago, mas de qualquer coisa intermédia: um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, e que, assim, torna legítimo o recurso à arma judiciária. À jurisprudência é deixada a função de avaliar a existência ou inexistência de interesse em agir, a apreciação da legitimidade objectiva é confiada ao intérprete que terá que verificar a medida em que o acto ou procedimento são impugnados em sentido favorável à função que o recorrente desempenha no processo.

 A necessidade deste requisito é imposta pela consideração de que o tempo e a actividade dos tribunais só devem ser tomadas quando os direitos careçam efectivamente de tutela, para defesa da própria utilidade dessa actividade, e de que é injusto que, sem mais, possa solicitar tutela judicial. A utilidade prática com que se identifica o interesse em agir não é apreciada de acordo com a opinião pessoal do recorrente, mas sim em termos objectivos.».

Do artigo 69º, nº 2, al. c) do C.P.P., acima transcrito, decorre que o assistente detém alguma autonomia em relação ao Ministério Público, pelo que pode oferecer provas, requerer a realização de diligências, requerer a abertura da instrução como reacção ao arquivamento do inquérito efectuado pelo Ministério Público, acusar independentemente do Ministério Público e, ainda, recorrer autonomamente.

E isto, na medida em que também tem um interesse próprio e concreto – ao lado do interesse comunitário na realização da justiça – na resposta punitiva à ofensa do seu interesse .

Compulsando os autos, verificamos que, no caso, a assistente, como alega o arguido, não deduziu acusação nem pedido de indemnização civil, não acompanhou a acusação do Ministério Público e pretende alterar a qualificação jurídica dos factos, tratando-se de um crime público.

Contudo, há que não esquecer o Acórdão do S.T.J. para Fixação de Jurisprudência nº 5/2011, de 9/2/2011, relatado pelo Conselheiro Manuel Braz, publicado no Diário da República, 1ª série, de 13/3/2011, que estabeleceu :

«Em processo por crime público ou semi-público, o assistente que não deduziu acusação autónoma nem aderiu à acusação pública pode recorrer da decisão de não pronúncia, em instrução requerida pelo arguido, e da sentença absolutória, mesmo não havendo recurso do Ministério Público.».

No caso, o recurso interposto pela assistente visou reagir contra a decisão proferida pela primeira instância, de absolvição do arguido da prática de um crime de omissão de auxílio p. e p. pelo artigo 200º, nº 2 do C.P..

Acresce que a admissão da sua constituição como assistente decorreu (também) de estar em causa a prática deste crime – cfr. o despacho proferido em 20/2/2020.

Mais, embora não tenha deduzido acusação nem acompanhado a formulada pelo Ministério Público, a assistente interveio activamente no processo, quer opondo-se à suspensão provisória do processo pretendida pelo Ministério Público (cfr. requerimento de 16/12/2021), quer participando no julgamento.

Assim, a circunstância de não ter deduzido acusação nem acompanhado a acusação formulada pelo Ministério Público, pode pura e simplesmente significar que se conformou com a acusação deduzida pelo Ministério Público, ao menos de forma implícita, tanto mais que nesta é imputada ao arguido a prática do ilícito que, no presente recurso, a assistente pretende que venha a ser declarada.

Ou seja, a assistente manifestou no processo, inequivocamente, a vontade de que o participante no crime fosse criminalmente perseguido e vontade em colaborar nesse objectivo.  

No caso, é inquestionável, que a recorrente visa com o recurso a revogação da decisão impugnada, na parte em que absolveu o arguido da prática o crime de omissão de auxílio previsto no nº 2 do artigo 200º do C.P. e, consequentemente, declarou amnistiado o crime de omissão de auxílio previsto no nº 1 do mesmo artigo .

Como se afirma no Acórdão do S.T.J. de 25/10/2018, processo 292/16.3jafar.S1, relatado pelo Conselheiro Nuno Gomes da Silva, in www.dgsi.pt, «A correcta qualificação jurídica dos factos e a discussão que se faça a propósito é uma concreta e pertinente questão que interfere com a justiça da decisão ainda que paralela e concomitantemente acabe por interferir com a determinação da medida da pena . Não se afirmará decerto que é indiferente para o assistente – como para o interesse comunitário – que a dimensão do tipo de culpa ou do tipo de ilicitude, aferida essa dimensão pela qualificação, seja uma ou seja outra».

Por outro lado, o efeito útil visado com a interposição de recurso não pode ser alcançado sem este, concluindo-se assim que também tem interesse em agir.

Em suma, improcede a questão prévia de falta de legitimidade da recorrente levantada pelo arguido, pelo que passar-se-á a conhecer o recurso interposto.

 4.1.  - Integração da conduta apurada no tipo do nº 2 do artigo 200º do C.P.:

A recorrente entende que a factualidade apurada integra a previsão do nº 2 do artigo 200º do C.P., uma vez que a culpa na criação da situação que despoletou a necessidade de auxílio não é elemento do tipo do nº 2, que apenas pressupõe a intervenção do agente no processo causal da situação que vincula ao auxílio.

O artigo 200º do C.P., onde se prevê o crime de omissão de auxílio, dispõe assim:

«1 - Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

3 - A omissão de auxílio não é punível quando se verificar grave risco para a vida ou integridade física do omitente ou quando, por outro motivo relevante, o auxílio lhe não for exigível.».

«O fundamento legitimador do dever geral de auxílio, consagrado por este art. 200º, é a solidariedade humana que deve vincular todo e qualquer membro da sociedade» – cfr. Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, p. 847. No mesmo sentido, ver Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5ª edição atualizada, UCE, p. 871.

Continua aquele primeiro autor : «Objecto de tutela penal, neste tipo legal de crime de omissão de auxílio, são apenas bens jurídicos pessoais», como a vida, a integridade física e a liberdade.

Enquanto no nº 1 o agente do crime pode ser qualquer pessoa, na situação prevista no nº 2 o autor do crime tem de ser a pessoa que criou a situação de perigo. Estamos, então, perante um crime específico impróprio, uma vez que quem omite o auxílio é a pessoa que anteriormente causou a situação de perigo.

«… quem cria, contra o dever, um perigo para bens jurídicos protegidos, constitui-se no dever – e na verdade um dever jurídico – penalmente fundado e relevante – de o remover antes que ele se transforme numa lesão definitiva dos valores ou interesse que ameaça» (Figueiredo Dias, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 116, n.º 3707, p. 54).

Assim se justifica a cominação de uma pena mais grave.

Aqui chegados, importa distinguir o dever de auxílio do dever pessoal de garante previsto no artigo 10º, nº 2 do C.P., que reza : «A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado».

Como afirma Eduardo Correia, in Direito Criminal, tomo I, Livraria Almedina Coimbra 1971, p. 303, «…um mero dever moral … não é suficiente para fundamentar a equiparação da omissão à acção, … Seria, pois, necessário que existisse, para alguém, o especial dever jurídico de ser garante da não produção de um certo evento».

O legislador não concretizou os concretos deveres de garante pressupostos por esta norma, cabendo à doutrina e à jurisprudência a sua delimitação.

Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit, p. 132, distingue quatro fontes do dever de garante : os deveres familiares de garante, os deveres contratuais, profissionais ou funcionais de garante, os deveres do proprietário, possuidor ou detentor de coisas móveis ou imóveis, e a ingerência.

Os dois primeiros deveres não têm qualquer cabimento na situação que nos ocupa. Quanto aos demais, o mesmo autor aponta como fonte do dever pessoal de garante a prática de um facto típico, seja ele doloso ou negligente . Também Américo Taipa de Carvalho, op. cit, p. 851, é de opinião que existe um dever jurídico de garante quando a situação de perigo resultou de uma anterior conduta ilícita do que omite o auxílio.

Porém, estes autores já divergem perante uma situação de criação de perigo derivada da responsabilidade civil objectiva ou pelo risco :

Enquanto Paulo Pinto de Albuquerque defende que tal não gera um dever de garante; Américo Taipa de Carvalho entende que se a situação de perigo foi objectivamente causada pelo que omite o auxílio, existe o dever jurídico de garante .

Transpondo estes conceitos para os acidentes de viação e, portanto, para o caso sub judice, vemos que, caso se tivesse apurado que o embate do veículo tripulado pelo arguido no peão que acabou por falecer tivesse sido causado objectivamente pela viatura,  para Paulo Pinto de Albuquerque o arguido teria cometido o crime de omissão de auxílio p. e p. pelo nº 2 do artigo 200º do C.P., enquanto que para Américo Taipa de Carvalho ele teria cometido o crime de homicídio negligente por omissão.

Contudo, no caso concreto não se apurou como é que verdadeiramente o acidente ocorreu, pois apenas se provou que viatura conduzida pelo arguido e o peão seguiam no mesmo  sentido de marcha e na mesma via, que o peão iniciou a travessia da faixa de rodagem e foi colhido pela viatura e projectado para a berma direita.

Ou seja, verdadeiramente não se apurou qual a causa do embate – actuação negligente do arguido ? actuação negligente do peão ? concorrência de culpas ? risco inerente à utilização da viatura ?

Neste quadro, não se pode afirmar que foi o arguido que criou a situação de perigo para a vida do peão carente de auxílio. É que ser interveniente no acidente não significa necessariamente que o tenha causado e, por isso, tenha criado a situação de perigo para o outro sujeito. 

Aliás, esta situação é mencionada exactamente por Américo Taipa de Carvalho, op. cit, p. 861 : «…as dúvidas levantam-se quando o acidente tiver sido provocado exclusivamente pelo sinistrado carecido de auxílio. Nesta hipótese, parece dever excluir-se o dever de garante. A dúvida é se a omissão de auxílio deve subsumir-se ao nº 1 ou ao nº 2 do art. 200º; ora, uma vez que, em tal hipótese, o omitente não pode considerar-se sequer como causa parcial da situação de perigo, a conclusão deverá ir no sentido de uma omissão de auxílio simples (art. 200º-1º)».

Por sua vez, Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., p. 873, também a aprecia a situação de atropelamento do peão : «Se o acidente se deve a um fator aleatório (mesmo que fundamente a responsabilidade pelo risco do condutor, como por exemplo, o rebentamento de um pneu), o condutor não tem um dever de garante, mas apenas um dever especial  de auxílio, previsto no artigo 200º, nº 2. Mas se o acidente se deve exclusivamente à culpa da vítima, o condutor tem apenas um dever geral de auxílio, previsto no artigo 200º, nº 1».

Em suma, a conduta do arguido não integra a previsão do nº 2 do artigo 200º do C.P., mas apenas a do seu nº 1, pelo que não merece qualquer reparo a declaração de extinção, por amnistia, do procedimento criminal instaurado contra o arguido nos autos efectuada pela decisão recorrida.   

V. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos:

Julga-se totalmente improcedente o recurso interposto, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs (cfr. o artigo 515º, nº 1, al. b) do C.P.P. e artigo 8º do RCP e tabela III anexa).

Coimbra, 19 de Junho de 2024


____________________________________________

(Helena Lamas - relatora)



____________________________________________

(Jorge Jacob)



____________________________________________

(Rosa Pinto)