QUEBRA DE MARCOS E SELOS
ERRO NOTÓRIO
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
SILÊNCIO DO ARGUIDO
PROVA INDIRETA
Sumário


I. Invocado o vício de erro notório na apreciação da prova, se o recorrente extravasa na sua motivação o texto da sentença, recorrendo a uma análise direta de testemunhos prestados, manifesta a pretensão de efetuar uma impugnação ampla, nos termos do art. 412.º/3-a-b/4, do CPP, ainda que estas normas não venham sequer mencionadas.
II. Não cabe extrair do silêncio do recorrente em audiência e da circunstância de nenhuma testemunha ter presenciado a comissão pelo recorrente dos objetivos atos típicos, um qualquer ilogismo, em que o erro notório se resolveria, da conclusão de que com efeito os praticou (e da inferência, a partir deles, da atitude subjetiva com que os praticou): a assunção, na motivação da decisão em matéria de facto, da ausência de prova direta, não corresponde à afirmação de uma ausência de prova, uma vez que tem sustento bastante na ponderação de prova indireta que, para isso e à luz dos critérios da experiência comum, se revele segura o bastante.

Texto Integral

***
Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo Local Criminal de ... (J2), do Tribunal Judicial da Comarca de ..., e após audiência de julgamento em processo comum com intervenção de juiz singular, proferiu-se a 01/12/2024 sentença em cujos termos o arguido,

AA, solteiro, natural de ..., ..., ..., nascido a ../../1957, filho de BB, e residente na Rua ..., ..., ..., ...,

foi condenado, como autor de um crime de quebra de marcos e selos, p. e p. pelo art. 356.º, do Código Penal (CP), na pena de quatro meses de prisão, todavia suspensa na respectiva execução pelo período de dois anos, com sujeição a regime de prova.

2. Contra essa sentença vem o arguido interpor recurso em que, atacando a decisão em matéria de facto, sob argumento de que não foi produzida prova bastante dos factos pertinentes do crime por que foi condenado, lhe imputa os vícios da insuficiência da insuficiência daquela matéria para a decisão e do erro notório na apreciação da prova, e em todo o caso protesta ter havido deficiente avaliação da prova, com violação dos limites da regra da livre apreciação dela pelo tribunal, designadamente violação do princípio in dubio pro reo, de tudo a jusante extraindo a respectiva absolvição, que peticiona. Das motivações de recurso extrai conclusões que são as seguintes:

« I – O arguido foi condenado pela prática de um crime de quebra de marca de selos p. e p. pelo art. 356.º, do CP, na pena de quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, sujeita a regime de prova a elaborar e executar pela Direcção Geral de Reinserção Social.
II – Sustenta esta sua afirmação, na insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410.º/2-a, do Código de Processo Penal [CPP], no erro notório na apreciação da prova (art. 410.º/2-c, do CPP, na violação do princípio do livre apreciação da prova, art. 127.º, do CPP;
III – O arguido em sede de audiência de julgamento, não prestou declarações, reservando-se ao direito ao silêncio, direito que lhe assiste, e que não o pode prejudicar. Ora,
IV – Não reconhece, nem assume os factos constantes da acusação, por não os ter praticado;
V – O Mmo. tribunal a quo entendeu valorar e assentar a sua convicção nas declarações prestadas pelas testemunhas e que como bem reconhece e que se passa a transcrever, “pese embora nenhuma testemunha inquirida em sede de audiência de julgamento tivesse visualizado o arguido a praticar tais factos, o tribunal não pode olvidar que tudo aconteceu após o corte de fornecimento de água a residência do arguido, (…) sendo que o contador em causa, apenas se destinava àquela residência”, o que se estranha. Aliás;
VI – Impugna-se especificadamente os pontos 5,8,10, 11 e 14 da matéria dada como provada, tendo o tribunal a quo dado como provado tais factos,
VII – O depoimento das restantes testemunhas, por não terem presenciado os factos, em nada relevam ou acrescentam, tendo o Mmo. tribunal a quo afirmado na douta sentença que se recorre: “Nenhuma das testemunhas inquirida disse ter assistido/presenciado qualquer acto perpetrado pelo arguido”. Assim,
VIII – A prova produzida em audiência não foi, com o devido respeito, submetida a uma análise crítica como impõem as regras da experiência, pelo que violou o princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º, do CPP).
IX – Por se considerar incorrectamente julgada a matéria de facto, uma vez que existe uma dúvida que só pode ser valorada a favor do arguido.
X – O tribunal a quo, entende como provados os factos que não foram corroborados por qualquer outra testemunha, nomeadamente os pontos 5,8,10 11 e 14, da matéria de facto dada como provada, uma vez que não foi produzido qualquer elemento de prova que pudesse atestar tal factualidade, nem segundo as regras da experiência e livre apreciação da prova, tendo feito um juízo errado da prova produzida.
XI – Com o devido respeito por opinião contrária e pelo tribunal a quo, aquele não valorou os depoimentos prestados para a apreciação correcta dos factos, pois a ter valorado convenientemente, teria seguramente sido outra a decisão que teria tomado e não a condenação do arguido da qual ora se recorre, por entender que existiu manifestamente erro na apreciação da prova;
XII – Ainda que assim não se entendesse atentos os parcos elementos existentes, ficaria, pelo menos, objectivamente no ar a dúvida e, em caso de dúvida, restaria ao tribunal a quo absolver o arguido, o que não fez.
XIII – Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º/2, 1ª parte, da Constituição da República Portuguesa – CR) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal, agora o de recurso, tem de decidir pro reo.
XIV – É evidente a insuficiência da prova realizada para aquela que foi a decisão da matéria de facto provada, motivo pelo qual estamos, sem dúvida, perante a violação do princípio in dubio pro reo, condenando o arguido.
XV – O tribunal a quo deve corrigir o julgamento da matéria de facto e dar como não provados os factos constantes dos pontos 5,8,10 ,11 e 14 da douta sentença.
XVI – O arguido deve ser absolvido da prática do crime de quebra de marcas e selos, previsto no art. 356.º, do CP. Nessa medida,
XVII – O arguido deve ser absolvido.
XVIII – A douta sentença recorrida viola o consignado nos art. 181.º/1, do CP; 61.º/1-d, 127.º e 343.º/1, do CPP; 494.º e 496.º/3, do Código Civil (CC); e ainda o art. 32.º/2, da CR.
XIX – O tribunal não pode desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º/2, 1ª parte, da CR) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal, agora o de recurso, tem de decidir pro reo.
XX – Em súmula, atenta a prova produzida não se podem dar como provados os factos que supra se impugnaram, pelo que, consequentemente, deveria o arguido ter sido absolvido do crime por que vem acusado que, na verdade, não cometeu!
XXI – Violou assim o tribunal a quo os art. 127.º e 410.º/2, do CPP, e os art. 70.º, 71.º, 50.º, 51.º, 52.º, e 53.º, do CP, e o princípio do in dubio pro reo. »

3. Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público (MP), pugnando por ser-lhe negado provimento, com integral manutenção da sentença recorrida, e de igual modo extraindo dessa resposta conclusões que são as seguintes:

« I – O tribunal a quo apresentou uma extensa, cabal, crítica e completa fundamentação da matéria de facto dada como provada.
II – A Mm.ª juíza a quo analisou e ponderou toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, explicando na sentença recorrida os motivos que subjazeram à condenação, sendo a matéria de facto dada como provada perfeitamente enquadrável naquela que foi a solução de direito alcançada, pelo que a decisão não padece do vício de insuficiência de matéria de facto dada como provada.
III – Estamos perante uma mera discordância do recorrente no que diz respeito à valoração e apreciação que o tribunal fez da prova produzida, desconsiderando o recorrente que – e tal como já sublinhado – uma decisão judicial advém da convicção do julgador e não das partes, como claramente resulta da norma do art. 127.º, do CPP, a qual não foi, de forma alguma, violada.
IV – Nesta senda, não se verifica também a existência de erro notório na apreciação da prova porquanto qualquer homem médio, confrontado com o teor da sentença recorrida, e com toda a prova produzida, compreenderia que outro não poderia ser o desfecho senão a condenação do arguido.
V – Assim, estamos perante a mera circunstância de o recorrente discordar da versão acolhida pelo tribunal.
VI – Em súmula, da análise da sentença recorrida não emerge qualquer dos vícios decisórios a que alude o art. 410.º/2, do CPP, pelo que deve improceder esta alegação do recorrente.
VII – A prova indirecta ou indiciária pode assumir exatamente o mesmo valor – ou até superior – que a prova directa, pelo que não assiste razão ao recorrente quando afirma que deveria ter sido absolvido somente porque ninguém o viu a retirar o selo que havia sido aposto no contador por técnicos dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ....
VIII – A Mm.ª juíza a quo aplicou escrupulosamente todos os critérios legais, não se verificando qualquer violação do princípio in dubio pro reo, uma vez que, não tendo tido o tribunal a quo quaisquer dúvidas quanto à factualidade que deu como provada, não pode ser – nem em abstracto – mobilizado tal princípio que, naturalmente, pressupõe a existência de dúvidas.
IX – Na dúvida, a Mm.ª juíza a quo decidiu a favor do arguido, dando os factos como não provados, tal como decorre da mera leitura da sentença recorrida.
X – Donde, tendo sido efectuada uma completa e cabal análise de toda a prova produzida e não se verificando violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais ou princípios, designadamente os referidos pelo recorrente, deve a sentença recorrida ser mantida nos seus exactos termos. »

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que, acompanhando as razões expressas na resposta do MP em primeira instância, a final se pronuncia igualmente pela total negação de provimento ao recurso; cumprido depois o disposto no art. 417.º/2, do CPP, nada mais se acrescentou e, ao exame preliminar não se tendo patenteado dúvidas relevantes, sem vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso está limitado às focadas nas conclusões apresentada pelo recorrente. Com isto presente, afigura-se-nos que os problemas cuja dilucidação vem convocada são os seguintes:

i. A suposta verificação, na sentença recorrida, dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova;

ii. O putativo erro de julgamento do tribunal recorrido, por má apreciação da prova e/ou desconsideração do princípio in dubio pro reo, relativamente aos factos provados sob 5, 8, 10, 11 e 14, que a prova produzida seria insuficiente para estabelecer como tal.


1.2. Não cabendo renovação de provas e de igual modo não sendo caso de realização de audiência (o que nada aliás o recorrente requereu), sempre o recurso deveria ser julgado em conferência (art. 419.º/3-c, do CPP), como foi.

2. A decisão recorrida

À boa apreciação da causa, nos termos acima melhor enunciados, basta que da sentença recorrida aqui façamos presente apenas o que tange à decisão em matéria de facto (factos provados, não provados e motivação correspondente), e, no plano da qualificação jurídica, à configuração, com os factos provados, do crime pelo qual o recorrente veio a ser condenado. Assim delimitado, é o seguinte o teor respectivo:

«(…)

II – Fundamentação de facto

A – Factos provados

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1 - Em data não concretamente apurada, o arguido AA celebrou com os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., um contrato de fornecimento de água, para abastecimento à sua residência, sita na Rua ..., ..., em ....

2 - Na sequência de tal contrato, os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., através dos seus funcionários procederam à instalação de um contador de água, junto da via pública na Rua ..., ..., em ....

3 - Sucede que os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., no dia 14/06/2022, procederam ao corte do fornecimento de água da residência do arguido, por falta de pagamento de uma factura de fornecimento.

4 - E colocaram o selo com o n.º ...50, sendo que naquela data, o contador apresentava a contagem de 180,655m³.

5 - Porém, o arguido, em data não concretamente apurada, mas posterior a 14/06/2022, contra a vontade e sem o conhecimento dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., decidiu remover e retirou o selo que havia sido colocado no contador para impedir o abastecimento de água para a sua residência, e deste modo voltou a ter acesso a água, sem que a mesma fosse contabilizada, apropriando-se da água, que consumiu a partir desse dia e pelo menos até ao dia 23/06/2022.

6 - Em 23/06/2022 o contador apresentava a contagem de 182,235m³.

7 - O consumo de água pelo arguido, entre a data referida em 3) e a data referida em 5), foi de dois metros cúbicos, correspondentes ao valor de €2,56.

8 - O arguido tinha perfeito conhecimento que o selo havia sido aposto no contador por técnicos dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., com o propósito de cortar-lhe o abastecimento de água, não obstante tal, decidiu arrancar e destruir o referido selo, o que fez, permitindo-lhe desse modo o acesso ao abastecimento não autorizado de água da rede pública.

9 - Em 23/06/2022, para cortar novamente o fornecimento de água, os técnicos da lesada, colocaram um sistema designado por ‘obturador’ que impedia a passagem da água para a residência do arguido.

10 - Em data não concretamente apurada, mas posterior a 23/06/2022, contra a vontade e sem o conhecimento dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., o arguido desmontou o contador e retirou-o.

11 - De seguida, colocou no lugar do contador uma “bicha”, fez uma ligação directa de abastecimento de água da rede pública para a sua residência, e deste modo voltou a ter abastecimento de água na sua residência, sem que a mesma fosse contabilizada, apropriando-se da água que consumiu a partir desse dia e, pelo menos até ao dia 06/07/2022.

12 - Nessa data, aquando de uma vistoria efectuada por técnicos dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., removeram o referido mecanismo, voltando a cortar o abastecimento de água à residência do arguido.

13 - Assim, o arguido entre o dia 14/06/2022 e o dia 23/06/2022, consumiu água sem que a mesma fosse contabilizada e com a intenção de a não pagar, contra a vontade e sem o consentimento do lesado, Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., usufruindo dela, com perfeito conhecimento de que não lhe pertencia.

14 - O arguido, ao efectuar as aludidas ligações directas, tinha perfeito conhecimento de que não estava autorizado a fazê-lo, agindo com o propósito de consumir água sem pagar, bem como sabia que os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ... não queriam, naqueles momentos, fornecer-lhe.

15 - Em 08/07/2022, o arguido deslocou-se à Loja do Cidadão de ..., onde têm atendimento ao público Serviços Municipalizados de Água e Saneamento da Câmara Municipal ..., tendo sido atendido por CC.

16 - Após uma discussão com a indicada funcionária, o arguido disse a CC em tom sério e grave “que iria colocar veneno na rede pública de água e que não tinha qualquer problema porque já tinha estado preso oito anos e que estava bem na prisão”.

17 - Deste modo, o arguido criou fundado receio pelo menos em CC de que causaria um mal futuro na comunidade com eventuais repercussões a nível da saúde pública, ao envenenar a água de abastecimento da rede pública.

18 - O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas supra descritas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou:

19 - Na sequência de um acordo, o arguido já procedeu ao pagamento do valor referente à factura em dívida, tendo os SMAS cancelado as facturas relativas a consumos posteriores ao corte, bem como relativa à violação do selo e ligação directa.

20 - Já foi retomado fornecimento de água para abastecimento da residência do arguido referida em 1.

(…)

C – Motivação

Na formação da sua convicção o tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, a qual, nos termos do art. 127.º, do CPP, foi apreciada segundo a livre convicção da entidade competente e as regras da experiência comum.

Importa começar por referir que o tribunal não ficou a conhecer a versão do arguido, porquanto o mesmo, no âmbito de um direito que lhe assiste, remeteu-se ao silêncio.

Assim, para prova dos factos descritos de 1 a 13 o tribunal tomou em consideração a globalidade da prova documental junta aos autos, conjugada entre si, concretamente, as fotografias de fls. 6 a 8, o auto de notícia de fls. 15 e 16, as ordens de serviço de fls. 25 e 26 e “Comprovativo de Contacto” de fls. 27, informação de fls. 108 e informação de fls. 110 compaginada, ainda, com a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento e com as regras da lógica e da experiência comum.

Atente-se que dos depoimentos conjugados das testemunhas DD (Director–delegado na SMAS de ...), CC (Coordenadora Técnica da SMAS), EE (Chefe de Divisão comercial na SMAS de ...) e FF (Coordenadora na SMAS de ... no sector de serviço de contadores), os quais se mostraram coerentes, objectivos, descomprometidos e como tal credíveis, compaginados com as ordens de serviço de fls. 25 e 26, resulta de forma clara o corte de fornecimento de água da residência do arguido por falta de pagamento de uma factura de fornecimento; a colocação, nessa sequência, de selo no contador, o facto de posteriormente ter sido “violado” o selo colocado no contador , voltando, desta forma, o arguido a ter acesso a água, sem que a mesma fosse contabilizada. Mais resulta que nessa sequência os técnicos que se deslocaram ao local colocaram um sistema designado por “obturador” (que impede a passagem da água, tratando-se, nas palavras da testemunha DD de um procedimento “um bocadinho mais musculado”, procedimento esse utilizado nos casos de clientes reincidentes neste tipo de procedimentos). Mais resulta o facto de o arguido posteriormente ter removido o contador e ter efectuado “uma ligação directa”, voltando, desta forma, a ter acesso ao abastecimento de água, sem que a mesma fosse contabilizada. Resulta, ainda, que posteriormente, na sequência de uma denúncia, os Técnicos dos SMAS da Câmara Municipal ..., removeram o referido mecanismo, voltando a cortar o abastecimento de água à residência do arguido.

De referir que da “ordem de serviço” referente ao dia 14 de Junho, junta a fls. 25, consta o “Corte”, o número do selo que nessa altura foi colocado e a leitura do contador nessa data.

Também da ordem de serviço junta a fls. 26, referente ao dia 23/06/2022, consta a colocação do “obturador” e a leitura efectuada nessa data.

Do depoimento da testemunha FF resulta que após terem detectado uma “ligação directa” foi ao local e o procedimento foi o habitual. A depoente referiu que na ocasião em que se deslocou ao local para “retirar” a ligação directa”, não conseguiram encontrar o ramal, razão pela qual tiveram que pedir a intervenção da equipa das anomalias.

Quanto ao valor da água consumida entre 14/06/2022 e 23/06/2022 mostrou-se relevante a informação prestada pelos SMAS de ..., a fls. 108 e fls. 110.

Quanto o à autoria dos factos em apreciação, pese embora nenhuma testemunha inquirida em sede de audiência de julgamento tivesse visualizado o arguido a praticar tais factos, o tribunal não pode olvidar que tudo aconteceu após o corte de fornecimento de água à residência do arguido, sendo que, conforme resultou da prova testemunhal produzida, o contador em causa, apenas se destinava àquela residência. Acresce que todo o comportamento do arguido após tal corte, designadamente, o que verbalizou perante a testemunha CC (em sede de atendimento na Loja do Cidadão), no telefonema com a testemunha DD , bem como atenta a observação constante da “ordem de serviço” de fls. 26 (na parte referente a “Obs. Resol/Anul: … Não consegui coloca selo e tirar fotos porque o cliente apareceu e começou a ameaçar”), e o teor do auto de notícia de fls. 15 e 16, tudo conjugado com as regras da lógica e da experiência comum, permitem concluir que o arguido foi o autor dos factos em apreciação.

De resto, dizem-nos as regras da experiência comum que, quem tinha interesse em praticar tais factos, era o arguido, pois que se tratava da sua residência.

Assim, a prova produzida, analisada no seu conjunto, e conjugada com as regras da lógica e da experiência comum, permite concluir que foi o arguido quem praticou os factos em questão, com intenção de consumir água sem pagar, o que logrou.

Os factos descritos de 15 a 17 tiveram por base o depoimento da testemunha CC (Coordenadora Técnica da SMAS), que procedeu ao atendimento do arguido, na referida ocasião, tendo relatado ao Tribunal o que foi verbalizado pelo arguido. A depoente referiu que perante a ameaça de envenenamento da rede pública, viu tal ameaça com gravidade e levou a referida ameaça muito a sério.

Os elementos atinentes à intenção do arguido, ou ao seu dolo, atenta a sua natureza, não se demonstram directamente; recolhem-se dos factos objectivos descritos, que a demonstra inequivocamente, atentas as regras gerais de experiência comum.

Os factos provados descritos em 19 e 20 tiveram por base os depoimentos das testemunhas DD (Director–delegado na SMAS de ...), CC (Coordenadora Técnica da SMAS) e EE (Chefe de Divisão comercial na SMAS de ...), bem como a informação constante do Relatório Social junto aos autos.

Os factos relativos à situação pessoal, social e económica do arguido (factos elencados de 20 a 23), resultaram da análise do respectivo Relatório Social junto aos autos, a fls. 93 a 95.

Finalmente, quanto aos antecedentes criminais do arguido o tribunal teve em consideração o Certificado de Registo Criminal, junto aos autos, a fls. 86 a 92.

Quanto aos factos não provados, cumpre referir que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova segura que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram.

Atente-se que pese embora tivesse resultado da prova testemunhal produzida que o arguido removeu o contador e efectuou uma “ligação directa”, não foi, todavia, produzida qualquer prova sobre o destino do aludido contador, designadamente, não foi produzida prova em como o arguido se apropriou do mesmo. No que concerne ao facto não provado descrito em c), o mesmo resultou da ausência de prova bastante e consistente da sua verificação. Atente-se que a própria testemunha DD referiu que junto da comunidade julga que “não houve essa percepção”. Por seu turno, a testemunha CC, perante quem foi proferida a expressão em causa, não logrou precisar, de forma consistente, o número de pessoas que se encontravam no local e que possam ter tomado conhecimento da expressão proferida pelo arguido.

III – Fundamentação de direito

A – Enquadramento jurídico-penal dos factos

(…)

ii - Do crime de quebra de marcas e selos

Ao arguido vem também imputada a prática de um crime de quebra de marcas e selos, p. e p. pelo art. 356.º, do CP.

Dispõe o supra citado artigo que “Quem abrir, romper ou inutilizar, total ou parcialmente, marcas ou selos, apostos legitimamente, por funcionário competente, para identificar ou manter inviolável qualquer coisa ou animal, ou para certificar que sobre estes recaiu arresto, apreensão ou providência cautelar, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até duzentos e quarenta dias”.

Por seu turno, dispõe o art. 386.º/2, do CP, que “ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos”.

Conforme se refere no Ac. TRP de 10/09/2014, disponível em www.dgsi.pt “O bem jurídico aqui protegido assume-se como a inviolabilidade da coisa sob custódia pública (cfr. Monteiro, Cristina Líbano, in ‘Comentário Conimbricense do Código Penal’, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pp. 425 e ss.).

A conduta típica do crime, na perspectiva da acção, traduz um acto material ou de resultado, em que a consumação se dá quando o agente ‘quebra’ a marca ou o selo.

Tal ‘quebra’ poderá assumir-se como ‘abrir’ o selo. Ou seja, abrir significará, como no caso, separar o selo da coisa a que está aposto, mesmo que essa operação se consiga levar a cabo sem o danificar – Cfr. ob. cit., p. 428).

O crime é doloso, como tal serão válidas as modalidades previstas no art. 14.º, do CP”.

Revertendo ao caso em apreço, constatamos que atentos os factos que resultaram provados se mostram efectivamente demonstrados todos os elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime em apreciação.

Inexistem circunstâncias susceptíveis de afastar a ilicitude ou a culpa.

Impõe-se, assim, a condenação do arguido pela prática, de um crime quebra de marcas e selos, p. e p. pelo art. 356.º, do CP, de que vinha acusado.

(…) »

3. Enfim apreciando

3.1. O recurso centra-se, e aliás esgota-se, no ataque à decisão da matéria de facto ínsita na sentença recorrida, justificando-se assim que em vista da respectiva ponderação façamos algumas considerações prévias sobre as duas vias por que um tal ataque pode desenvolver-se: (1) no âmbito dos vícios previstos no art. 410.º/2, do CPP, a que se convenciona chamar de impugnação restrita (e que concita a chamada revista alargada, que a proceder reclama, para correcção do decidido, um novo julgamento, total ou parcial, apenas excepcionalmente a podendo fazer o próprio tribunal superior – nos termos dos art. 426.º/1 430.º/1, e 431.º/a-c, do CPP); ou (2) com a designada impugnação ampla, a que se refere o art. 412.º/3/4/6, também do CPP (neste caso implicando a eventual procedência a correcção do decidido pelo tribunal superior – art. 431.º/b), do CPP). Da primeira, e segundo os explícitos termos literais da lei, apenas podem relevar os vícios decisórios que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que é dizer que têm de ser uns tais que se revelem por escrutínio que, armado daqueles critérios da experiência comum (da lógica, da razão, enfim, do conhecimento científico), se limite à decisão em crise, sem recurso a elementos que lhe sejam externos, designadamente probatórios, mesmo que produzidos em julgamento. Já na segunda, aí sim, versa-se a decisão em confronto com a prova e o respectivo reexame, na medida do necessário e à luz dos pertinentes critérios legais (o art. 127.º do CPP, com os seus limites).

3.2. Correlativamente, tema da primeira (1) podem ser (e aliás até em conhecimento oficioso): (a) insuficiência dos factos provados para suportar a decisão de direito (que se não deve confundir com a insuficiência das provas para a decisão sobre os factos); (b) contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão (i.e., entre os factos provados e não provados, entre si ou uns com os outros, ou entre aqueles e a motivação, ou ainda nesta mesma); e enfim (c), erro notório na apreciação da prova (patente às capacidades mínimas comuns de qualquer destinatário a partir da análise dela feita na decisão) – cfr. art. 410.º/2-a-b-c, do CPP. Tema da segunda (2), são as eventuais vicissitudes do próprio processo e resultado de formação de convicção sobre a prova: a respectiva suficiência ou insuficiência, a capacidade e segurança de convencimento que proporcione à luz dos critérios legais da avaliação dela pelo julgador, designadamente dos limites da liberdade de apreciação que é a regra (art. 127.º do CPP), sejam os decorrentes das regras da experiência comum, sejam os impostos pelas previsões excepcionais sobre prova vinculada. Na verdade, a primeira (1), embora versando em derradeira análise a decisão de facto, directamente implica, em bom rigor, e nos moldes restritos em que a respectiva impugnação se consente, um escrutínio isso sim da sentença, sem necessidade de directa análise da prova; e a segunda (2), com a amplitude que lhe é característica, versando directamente o juízo decisório em cotejo com a prova, analisando-a, é que em sentido próprio dá corpo ao recurso em matéria de facto.

3.3.  Por outro lado, não pode perder-se de vista que do que se cura, no contexto desta última (da impugnação ampla da decisão de facto, nos termos do art. 412.º/3, do CPP), não é e nem pode ser de um novo julgamento da causa, sobreposto ao da primeira instância e para mais sem os benefícios da oralidade e imediação de que esta usufruiu. A impugnação visa, e só isso cabe que vise e pode lograr, a cirúrgica correcção de eventuais erros de julgamento; e mesmo que potencialmente muitos, é sempre e apenas isso. Dito de outro jeito, e de resto com mais exactidão, não está e nem pode estar em causa a sobreposição, pelo tribunal de recurso, da sua compreensão da prova e das conclusões que viabiliza (ou já agora da dos recorrentes), àquela que o tribunal recorrido formou e exprimiu em sentença, no uso da respectiva liberdade, outorgada pelo dito art. 127.º, do CPP, e naturalmente desde que com respeito pelos correspondentes limites. Isto é uma implicação necessária de a potencial alteração do decidido em matéria de facto pela primeira instância, só justamente ser viável lá onde a prova (ou a falta dela) impusesse decisão diversa, como resulta directamente do art. 412.º/3-b, do CPP, e é aliás doutrina e jurisprudência comuns. Para que fiquem afastadas quaisquer incompreensões: não basta configurar hipóteses decisórias alternativas ainda mais ou menos compagináveis com a prova produzida (ou com a insuficiência dela), é dizer, nela também em tese suportáveis (ou em tese não suficientemente suportáveis).

3.4. Necessário será, ainda, que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta apreciação alternativa, a prova que foi produzida, de algum modo imponham como conclusão lógica uma decisão diversa e em concreto aquela a que nas argumentações de recurso se chega – daqui decorrendo o duplo ónus processual, imposto pelo art. 412.º/3-a-b/4, do CPP, de os recorrentes indicarem por um lado os concretos pontos de facto que considerem incorrectamente julgados e, por outro, as concretas provas (ou falta delas) que no seu entender teriam imposto naquela matéria decisão diversa da tomada – além disso incluindo-se nesse cumprimento, necessariamente e como decorrência lógica daquelas obrigações, ainda as de ligar as provas aos factos em crise (com menção de que provas ou falta delas o impõem e quanto a que factos) e de explicitar argumentativamente as razões (más ou boas) de considerarem que as mesmas impõem a reclamada decisão diversa, é dizer, explicarem o porquê disso, em termos susceptíveis de alcance e acolhimento pela racionalidade intersubjectiva suposta na comunidade destinatária das decisões judiciais. Postas estas considerações, de que resulta um esboço dos parâmetros das impugnações algo esquemático e linear mas amplamente suficiente, e que todavia parecemos condenados a ter de permanentemente reiterar, passemos agora ao concreto ataque ao decidido.

a) Da impugnação restrita

3.5. O recorrente começa por apontar à sentença o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, aliás louvando-se expressamente do art. 410.º/2-a, do CPP, que de resto refere como putativamente “violado” (óbvia impropriedade terminológica e processual, uma vez que se trata simplesmente de norma que prevê o vício em recurso apontado e que, por isso, aquela sentença nem aplicou nem muito menos poderia “violar”). Mas independentemente dessa impropriedade, e muito além dela, resulta de igual modo óbvio que o recorrente incorre, salvo o devido respeito, na apontada confusão de brandir uma presuntiva insuficiência da matéria de facto provada para a decisão tomada (que como dissemos já é do que trata aquele art. 410.º/2-a, do CPP, e que para relevar enquanto tal teria de resultar directamente do texto da sentença, por si mesmo ou em conjugação com as regras da experiência comum), quando a argumentação que para isso emprega é toda do domínio da suposta insuficiência das provas, em si mesmas e directamente consideradas, para estabelecer os factos em causa como provados (coisa que isso sim relevaria da impugnação ampla, nos termos também acima sobejamente esclarecidos).

 

3.6. Sobre o que isso sim poderia nesse âmbito do arguido vício importar, e que era uma qualquer e hipotética inaptidão do acervo fáctico estabelecido para, em jeito adequado e bastante, suportar o a final decidido, fosse ao nível da afirmação do preenchimento ou não dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime, e da sustentação ou não da responsabilidade penal do recorrente por ele, fosse ao da escolha e graduação da pena que pelo mesmo lhe veio a ser imposta, o recurso absolutamente nada diz – muito menos apontando, claro está, em que excerto da decisão e como, por si mesmo ou compaginado com que regras da experiência comum, se haveria de concluir por aquela insuficiência, no horizonte do único crime por que acabou condenado (quebra de selos – art. 356.º, do CP) e da pena que pelo mesmo lhe foi imposta (quatro meses de prisão, suspensa na respectiva execução com sujeição a regime de prova). E bem ao contrário, forçoso é manifestar que percorrido o texto da decisão em crise e tendo presente aquela descrição típica, os factos elencados como provados (abrir selos apostos por funcionários em contador de água para assegurar a cessão de consumos por falta de pagamento, tudo dolosamente e em vista de aceder àqueles esses consumos), são amplamente bastantes para fundamentar e até impor a condenação; com a mesma evidência com que os factos relativos aos antecedentes criminais e à apesar de tudo escassa gravidade concreta do crime, também cabalmente sustentam que a despeito da escolha pela pena de prisão esta acabasse graduada em muito baixa medida e ainda assim suspensa na sua execução.

3.7. Breve, damos por patente que em absoluto se não verifica o dito vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.º/2-a, do CPP), improcedendo a correspondente arguição, e passamos por isso sem mais a cuidar da do vício do erro notório na apreciação da prova (art. 410.º/2-c, do CPP), este sim parecendo que procurou o recorrente sediá-lo directamente no texto da sentença, notando que ali e em motivação o tribunal recorrido reconheceu expressamente que nenhuma testemunha presenciou a afirmada actuação dele, que por seu lado não prestou declarações, e sustentando que em tais condições não poderiam logicamente estabelecer-se os factos – breve, sob esta perspectiva, o erro de valoração da prova resultaria directamente da sentença, e por isso seria notório, relevando do âmbito daquele vício. E todavia, o recorrente não se fica por aí, sucedendo que de igual modo argumenta com análise directa de testemunhos, que concita para sublinhar que os depoentes manifestaram não terem visto actuação sua de quebra de selos, e a final e ainda com a dúvida que sobre esse facto e em sua análise sempre teria de subsistir, tudo para enfim considerar como incorrectamente julgados os factos impugnados, sustentando que foram pelo tribunal a quo desbordados os limites da sua liberdade de apreciação da prova e formação de convicção (art. 127.º, do CPP) e em especial preterido o princípio in dubio pro reo (art. 32.º/2, da CR); o que em última análise, sugere pretensão de uma impugnação ampla, nos termos do art. 412.º/3-a-b/4, do CPP, ainda que estas normas não venham sequer mencionadas.

3.8. Pois bem, e por agora mantendo a apreciação na vertente da impugnação restrita, o que diremos é, simplesmente, que não cabe extrair do silêncio do recorrente em audiência e da circunstância de nenhuma testemunha ter presenciado a comissão pelo recorrente dos objectivos actos típicos, um qualquer ilogismo, em que o erro notório se resolveria, da conclusão de que com efeito os praticou (e da inferência, a partir deles, da atitude subjectiva com que os praticou). Na verdade, a assunção, na motivação da decisão em matéria de facto, da ausência de prova directa, não corresponde à afirmação de uma ausência de prova, ela sim racionalmente incompatível com a afirmação dos factos como provados. Esta pode bem ter sustento bastante na ponderação de prova indirecta que, para isso e à luz dos critérios da experiência comum, se revele segura o bastante – e foi esse precisamente o caso. Com efeito, sempre tomando como ponto de partida da análise o próprio texto da decisão e aquelas regras da experiência comum, constatamos que o tribunal recorrido, a despeito daquele reconhecimento da ausência de provas directas, adianta para a sua decisão sobre os factos razões que, perfeitamente compreensíveis, não podem na sua articulação com as conclusões sofrer a crítica de fazerem-se irrazoáveis ou a outro qualquer título configurar um notório erro.

3.9. Na verdade, o recorrente, de resto compreensivelmente, prefere centrar-se naquele reconhecimento da ausência de prova directa, mas olvida, e nisso não poderia este tribunal de recurso de modo algum acompanhá-lo, que o corte do fornecimento de água à sua residência e por falta de pagamento, a aposição de selo pelos funcionários da concessionária na aparelhagem e a ulterior remoção desses selos com subsequentes consumos, tudo são factos esses sim directamente provados (documental e testemunhalmente), que aliás em si mesmos nem impugnados vêm e que foram o ponto de partida da avaliação do tribunal. Conjugados com os desenvolvimentos que do mesmo modo igualmente se provaram, desde logo a colocação posterior de obturador (para contrariar a remoção do selo), e, sobretudo, com a detecção, ainda depois disso, da remoção de também esse obturador e do estabelecimento de uma ligação directa da rede à casa do recorrente, bem como com a reacção deste, presencialmente e por telefone, perante funcionários daquela concessionária (que o documentaram e sobre isso testemunharam, directamente estabelecendo também tais factos instrumentais), tudo em termos os mais razoáveis e em rectas contas muito seguros consente a conclusão de que o mesmo assim com efeito agiu. Em suma, o recorrente concordará ou não com as conclusões tiradas no que àqueles factos respeita (concretamente: os provados sob 5, 8, 10, 11 e 14), mas o que lhe não procede é defender que nelas se encerrem ilogismos, irrazoabilidade, afrontas às regras do conhecimento, enfim, um qualquer erro notório na apreciação da prova, no sentido de ser como tal necessariamente percebido logo a partir do próprio texto da decisão, por si ou analisado à luz das regras da experiência comum.

b) Da impugnação ampla

3.10. Resultando claramente de quanto acabamos de dizer que improcede igualmente a arguição do vício do erro notório na apreciação da prova (art. 410.º/2-c, do CPP), que também se não detecta, cumpre procurar agora, e posta a já referida sobreposição de planos resultante da estruturação do recurso, encarar o problema, ainda que os dados sejam no essencial os mesmos, no quadro isso sim da impugnação ampla. E em vista disso, comecemos por notar que, não obstante o recorrente se tenha abstido de invocar o art. 412.º/3-a-b/4, do CPP, não deixou de especificadamente apontar os concretos factos que reputa como incorrectamente julgados (os provados sob 5,8, 10, 11 e 14), de referir (apesar de no essencial argumentar com insuficiência probatória), as provas que em seu entender imporiam decisão diversa (conjugados com o seu silêncio, os excertos dos depoimentos das testemunhas EE, DD e CC, em que as mesmas manifestam não terem presenciado acto de remoção de selo e, com excepção do contacto telefónico apenas conhecerem os procedimentos e trâmites desenvolvidos e o que ficou a constar da documentação), e enfim de desenvolver argumentos sobre as razões porque considera que aquelas provas (rectius: a insuficiência delas) imporia aquela decisão diversa. Tanto basta, julgamos, para concluir que deu cumprimento bastante aos ónus processuais inerentes à impugnação ampla, segundo acima melhor os enunciámos, e, por isso, para que com efeito se torne necessário ponderá-la.

3.11. Ocorre, todavia, que tal ponderação se revela tarefa da maior simplicidade e conduz directamente à improcedência da impugnação. Reiterando a este propósito o que já referimos em sede de conhecimento da arguição de erro notório, o que diremos é que a despeito do silêncio do recorrente e da ausência de provas directas, designadamente testemunhais, da actuação que no que aqui releva lhe vinha imputada, a afirmação desta como provada (e a partir daí e por inferência a atitude subjectiva que à mesma o animou), encontra na decorrência do que directamente se apurou, e em absoluta congruência com a normalidade das coisas e uma sensata avaliação, é dizer, numa apreciação segundo as regras da experiência comum, um sustento cuja lógica resulta inatacável e cuja segurança é refractária à dúvida. Seria ocioso ilustrar a afirmação com mais do que a louvável sagacidade dos pertinentes passos da motivação da decisão de facto da sentença, que aqui e por isso de novo fazemos presentes:

«(…)

Atente-se que dos depoimentos conjugados das testemunhas DD (Director–delegado na SMAS de ...), CC (Coordenadora Técnica da SMAS), EE (Chefe de Divisão comercial na SMAS de ...) e FF (Coordenadora na SMAS de ... no sector de serviço de contadores), os quais se mostraram coerentes, objectivos, descomprometidos e como tal credíveis, compaginados com as ordens de serviço de fls. 25 e 26, resulta de forma clara o corte de fornecimento de água da residência do arguido por falta de pagamento de uma factura de fornecimento; a colocação, nessa sequência, de selo no contador, o facto de posteriormente ter sido “violado” o selo colocado no contador, voltando, desta forma, o arguido a ter acesso a água, sem que a mesma fosse contabilizada. Mais resulta que nessa sequência os técnicos que se deslocaram ao local colocaram um sistema designado por “obturador” (que impede a passagem da água, tratando-se, nas palavras da testemunha DD de um procedimento “um bocadinho mais musculado”, procedimento esse utilizado nos casos de clientes reincidentes neste tipo de procedimentos). Mais resulta o facto de o arguido posteriormente ter removido o contador e ter efectuado “uma ligação directa”, voltando, desta forma, a ter acesso ao abastecimento de água, sem que a mesma fosse contabilizada. Resulta, ainda, que posteriormente, na sequência de uma denúncia, os técnicos dos SMAS da Câmara Municipal ..., removeram o referido mecanismo, voltando a cortar o abastecimento de água à residência do arguido.

De referir que da “ordem de serviço” referente ao dia 14 de Junho, junta a fls. 25, consta o “Corte”, o número do selo que nessa altura foi colocado e a leitura do contador nessa data.

Também da ordem de serviço junta a fls. 26, referente ao dia 23/06/2022, consta a colocação do “obturador” e a leitura efectuada nessa data.

Do depoimento da testemunha FF resulta que após terem detectado uma “ligação directa” foi ao local e o procedimento foi o habitual. A depoente referiu que na ocasião em que se deslocou ao local para “retirar” a ligação directa”, não conseguiram encontrar o ramal, razão pela qual tiveram que pedir a intervenção da equipa das anomalias.

(…)

Quanto à autoria dos factos em apreciação, pese embora nenhuma testemunha inquirida em sede de audiência de julgamento tivesse visualizado o arguido a praticar tais factos, o tribunal não pode olvidar que tudo aconteceu após o corte de fornecimento de água à residência do arguido, sendo que, conforme resultou da prova testemunhal produzida, o contador em causa, apenas se destinava àquela residência. Acresce que todo o comportamento do arguido após tal corte, designadamente, o que verbalizou perante a testemunha CC (em sede de atendimento na Loja do Cidadão), no telefonema com a testemunha DD, bem como atenta a observação constante da “ordem de serviço” de fls. 26 (na parte referente a “Obs. Resol/Anul: … Não consegui coloca selo e tirar fotos porque o cliente apareceu e começou a ameaçar”), e o teor do auto de notícia de fls. 15 e 16, tudo conjugado com as regras da lógica e da experiência comum, permitem concluir que o arguido foi o autor dos factos em apreciação.

De resto, dizem-nos as regras da experiência comum que, quem tinha interesse em praticar tais factos, era o arguido, pois que se tratava da sua residência.

Assim, a prova produzida, analisada no seu conjunto, e conjugada com as regras da lógica e da experiência comum, permite concluir que foi o arguido quem praticou os factos em questão, com intenção de consumir água sem pagar, o que logrou.

(…) »

3.12. Contra isto, as razões cerzidas pelo recorrente não são afinal mais do que apegar-se à ausência de prova directa sobre a material comissão dos factos e, como se isso fosse sinal patognomónico de uma impossibilidade de estabelecê-la, erguer em suposto imperativo lógico o que não passa de opiniões suas. Certo é que independentemente de ninguém o ter visto (ou já agora filmado…) a retirar o selo e o mais, temos como incontestado e certo: que o contador apenas se destinava a contar a água fornecida à residência do recorrente; que por falta de pagamento de uma factura esse fornecimento foi pelos serviços concessionários cortado, com aposição de selo ao dito contador; que o selo foi retirado e o fornecimento à casa do recorrente retomado a despeito do corte; que em face disso foi colocado um obturador no sistema, para de forma mais firme interromper aquele fornecimento; que para contornar a função desse obturador foi montada uma ligação directa à rede para conduzir água à casa do recorrente, que assim a obteve desta feita sem ser sequer contabilizada; que numa das ditas intervenções o recorrente obstaculizou a actuação dos técnicos dos serviços com ameaças; que em contacto pessoal com funcionária dos serviços fez também ameaças; e que tudo isto se dá na sequência daquele corte. Em tais condições, e na falta da menor sugestão de uma explicação alternativa minimamente plausível, o que se diria ser uma afronta às regras da experiência comum, e até erro notório, seria não concluir que o recorrente foi quem removeu o selo e o fez com a óbvia intenção de aceder ao fornecimento de água sem pagá-la, bem sabendo ser proibida e punida tal conduta e ainda assim tendo querido levá-la a cabo.

3.13. De resto, a segurança dessa conclusão nem mesmo consente a postulação de dúvida insanável sobre aquela autoria dos factos, e certamente não uma que pudesse reputar-se como razoável. Nessa conformidade, nem o tribunal recorrido teve subjectivamente uma tal dúvida nem haveria espaço para sustentar que a mesma se lhe devesse ter racional e objectivamente imposto. E se não coube nem caberia uma dúvida, então e por imperativo lógico jamais poderia dizer-se que tivesse sido resolvida contra reo. O princípio in dubio pro reo, corolário do da presunção de inocência, consagrado no art. 32.º/2, da CR, é geral do nosso direito processual penal e resolve-se em critério decisório segundo o qual, face a um non liquet quanto a factos relevantes, o tribunal deve decidi-los favoravelmente ao arguido, seja dando por não provados os incertos constitutivos ou agravantes da sua responsabilidade criminal, seja dando por provados os incertos que configurem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa. Porém, pressuposto sempre necessário é aquele non liquet, e se não foi na correspondente incerteza que o tribunal recorrido ficou, nada nesse sentido transparecendo da sentença atacada (falamos dos factos impugnados, porque relativamente aos alinhados como não provados foi até precisamente essa a razão disso!), e também não pode sustentar-se que devesse segundo a razão ter ficado, então torna-se claro que resulta fruste a alegação de violação do princípio, também nesta medida improcedendo os argumentos de recurso.

3.14. Tudo vale por dizer que a respeito dos ditos factos provados que o recorrente impugna (5, 8, 10, 11 e 14), e a mais de não se ter desviado, na apreciação da prova que fez, da sua consideração como suficiente e segura, como nas conclusões a que assim e a partir dela chegou, das regras da experiência comum, o tribunal recorrido, que das respectivas ponderações deixou, em motivação e como é devido (art. 374.º/2, do CPP), o pertinente rasto da análise crítica subjacente (em termos claramente perceptíveis e na verdade rigorosamente convincentes, por mais que em seu livre critério o recorrente se não deixe ou afecte não deixar convencer), também em nada beliscou os ditames do princípio in dubio pro reo. Acresce, que como é bom de ver, não houve naquela apreciação do tribunal valoração alguma do silêncio do recorrente, muito menos que lhe fosse indevidamente desfavorável, sendo gratuita a alegação de violação dos art. 61.º/1-d, e 343.º/1, do CPP. É esta a forma resumida mas acabada de manifestar que aquela sentença se faz isenta da acusada violação do art. 127.º, do CPP (e, com ele, daquele princípio e assim do art. 32.º/2, da CR), ficando desse modo fora de cogitação que este tribunal de recurso, privado da oralidade e imediação de que o tribunal recorrido beneficiou, procedesse, nos termos conjugados dos art. 412.º/3-a-b, e 431.º/b, do CPP, a fosse que modificação fosse da decisão em matéria de facto e quanto a qualquer dos ditos pontos desta que vieram especificamente impugnados.

c) Síntese conclusiva

3.15. Enfim, não colhendo a arguição dos vícios do art. 410.º/2-a-b, do CPP (cuja eventual verificação, aliás, não conduziria sem mais à absolvição do recorrente, ao contrário do que este parece supor, importando isso sim e em primeira linha o reenvio do processo para repetição total ou parcial do julgamento, só excepcionalmente podendo supri-los o tribunal de recurso com modificação do decidido – cfr. art. 426.º, 426.º-A, e 431.º do CPP), e de igual modo mostrando-se improcedente a impugnação ampla contra os mesmos factos provados 5, 8, 10, 11 e 14 desferida, resulta a final intangível a decisão em matéria de facto, segundo a tomou o tribunal recorrido. A isso tendo o recorrente cingido o seu recurso, que sem se pronunciar sequer sobre matérias de qualificação jurídica (ou de escolha e graduação e pena), somente da modificação que baldadamente teve em vista tentou decorrer a absolvição por que aqui pugna, e sendo certo que não sofre a menor dúvida de que aqueles factos, e os mais, dão integral preenchimento ao tipo objectivo e subjectivo do crime em causa, de quebra de selos (art. 356.º, do CP), o que por último sobra é a integral negação de provimento ao recurso, com a inerente manutenção da sentença recorrida nos seus precisos termos. No mais, o recorrente apontou ainda como violados, pela sentença recorrida, os art. 50.º a 53.º, 70.º, 71.º, e 181.º/1, do CP, e 494.º e 496.º/3, do CC, mas sobre isso cremos nada mais caber do que dizer ter-se tratado certamente de algum seu equívoco: parte dessas normas são de todo estranhas à questão em apreço (art. 181.º/1, do CP, e 494.º e 496.º/3, do CC), e sobre as matérias que as mais disciplinam não versa argumentação de recurso alguma (art. 50.º a 53.º, 70.º e 71.º, do CP).

III – Decisão


À luz do exposto decide-se negar provimento ao recurso do arguido AA, por conseguinte mantendo-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em quatro UC’s (art. 513º/1/3, do CPP, e 8.º/9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais).
Notifique
*
Coimbra, 19 de Junho de 2024
Pedro Lima (relator)
Carolina Cardoso (1.ª adjunta)

Eduardo Martins (2.º adjunto)

Assinado eletronicamente