LEI DA AMNISTIA
PERDÃO
PENA ÚNICA SUPERIOR A 8 ANOS
Sumário

Não é aplicável o perdão previsto na Lei 38-A/2023, de 02-08, quando, em cúmulo jurídico, o arguido haja sido condenado numa pena única superior a 8 anos de prisão, ainda que nesse cúmulo tenham sido englobadas penas de prisão inferiores ou iguais a 8 anos, por crimes não excluídos da aplicação desta lei.
Sumário elaborado pelo relator

Texto Integral


Relator: João Abrunhosa
Adjuntos: Rosa Pinto
Maria Fátima Sanches Calvo

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Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

No Juízo Central Criminal de Leiria, por acórdão de 05/02/2024, relativamente ao Arg.[1] AA, com os restantes sinais dos autos, foi decidido o seguinte:

“... Nos termos expostos, Acordam os Juízes que constituem este Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal de Leiria em

[operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas nos Processos CS nº 147/18....,  CC nº 753/18.... ,  CC nº 797/18.... e CS nº 795/18....]

Condenar o arguido AA na pena única de 11 anos e 6 meses de prisão.

Declaram perdoado 1 ano de prisão, a incidir sobre a referida pena única de 11 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido nos presentes autos (artº 3º da Lei nº 38-A/2023).

Tal perdão é concedido sob a condição resolutiva prevista no artº 8º nº 1 da Lei nº 38-A/2023, de 02/08, de o arguido não praticar infracção dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da mesma Lei nº 38-A/2023, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acrescerá a pena ou parte da pena ora perdoada. ...”.


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Não se conformando, a Exm.ª Magistrada do MP[2], interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões:

“... I – O presente recurso é interposto do douto Acórdão de Cúmulo Jurídico proferido no dia 5 de Fevereiro de 2024, que decidiu perdoar um ano de prisão, na pena única de onze anos e seis meses de prisão, em que o arguido foi condenado, decidindo aplicar a Lei n.º 38-A/2024.

II - Entendeu o Tribunal a quo que, por as penas parcelares cumuladas serem inferiores a oito anos de prisão, apesar da pena única ser superior, podia o arguido - e verificados os restantes pressupostos legais - beneficiar da aplicação do perdão de um ano e consequentemente determinar o cumprimento da pena de dez anos e seis meses de prisão.

III - A dissidência com o acórdão de que agora se recorre resume-se à questão de saber se, perante uma pena única resultante de cúmulo jurídico superior a oito anos, e verificados os restantes pressupostos de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, desde que nenhuma das penas parcelares cumuladas ultrapasse aquele limite de oito anos, poderá ser aplicado o perdão de um ano.

IV - Determinando o legislador que no caso de cúmulo jurídico, o perdão opera na pena única, não há que atentar nas penas parcelares que compuseram a moldura do concurso, conforme decorre do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 4, da Lei n.º 38-A/2023.

V - Atente-se que o disposto no artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023 refere-se à tipologia de crimes - optando por não afastar o perdão na situação de concurso de crimes perdoáveis e não perdoáveis – e não às penas concretas aplicadas pela prática daqueles.

VI - Sendo as leis que aprovam a aplicação de perdões ou amnistias leis            graciosas, não pode o interprete e aplicador do direito proceder a uma interpretação que não seja meramente declarativa.

VII - O entendimento que do disposto no artigo 7.º, n.º 3 da Lei n.º 38-A/2023 - a não exclusão do perdão em caso de concurso de crimes perdoáveis e não perdoáveis tem reflexo no disposto no artigo 3.º, n.º 1          e 4 do mesmo diploma legal, configura uma interpretação extensiva que o diploma legal, por força do seu carácter excepcional, não admite.

VIII - Consequentemente, o perdão de um ano de prisão previsto no artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, quando aplicado sobre a pena única, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, não pode operar quando esta é superior a oito anos de prisão.

IX - Ao decidir da forma descrita em I, foi violado o disposto nos artigos 3.º, n.º 1 e 4, da Lei n.º 38-A/2023, devendo ser revogado o acórdão de cúmulo jurídico de penas, no segmento que determinou a concessão do perdão de um ano de prisão, sobre a pena única de onze anos e seis meses de prisão aplicada ao arguido. ...”.


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Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, com, para além do mais, o seguinte teor:

“... O Ministério Público nesta instância adere, por completo, aos argumentos e à pretensão recursiva da Sra. Procuradora da República junto do Tribunal a quo, devendo o recurso ser julgado procedente.

Acrescentarmos, apenas, que :

O acórdão recorrido invoca o disposto no nº 3 do artº. 7º da Lei nº. 38-A/2023 de 2.8 - que dispõe: “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3º e da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes cometidos” – como ponto de partida para a solução que adotou.

Ora, s.m.o., o que esta norma pretendeu fazer foi deixar bem claro, de forma expressa, que o mesmo arguido pode beneficiar de amnistia/perdão em alguns crimes e noutros estas medidas de clemência serem excluídas (estando os crimes em concurso ou não), proibindo o dignado “efeito de contaminação”, em que a existência de um só crime não amnistiável ou punido com pena “imperdoável” impediria a aplicação aos demais de qualquer medida de clemência, por “arrastamento”.

Mas tal norma não permite afastar o que cristalinamente resulta da conjugação do disposto nos nºs. 1 e 4 do artº. 3º da Lei nº. 38-A/2023 de 2.8, cuja interpretação, como é sabido, se deve limitar a ser declarativa.  ...”


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É pacífica a jurisprudência do STJ[3] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[4], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:

Aplicação do perdão de um ano, previsto na Lei n.º 38-A/2023, a uma pena única, resultante de cúmulo jurídico, superior a oito anos, aos casos em que nenhuma das penas parcelares cumuladas ultrapasse aquele limite de oito anos.


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Cumpre decidir.

Entende o MP que “... o perdão de um ano de prisão previsto no artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, quando aplicado sobre a pena única, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, não pode operar quando esta é superior a oito anos de prisão ...”, pelo que deve ser revogada, nesta parte, a decisão recorrida.

Esta fundamenou a aplicação do perdão em crise, nos seguintes termos:

“... À data da prática dos diversos crimes julgados nos quatro processos supra identificados, constata-se que o arguido AA, nascido em ../../1999, tinha menos de 30 anos de idade, estando, por conseguinte, abrangido pelo âmbito de aplicação das medidas (amnistia e perdão de penas) previstas na Lei nº 38-A/2023, de 02/08, atento o âmbito de aplicação, por referência ao limite de idade do arguido, definido no artº 2º nº 1 da citada Lei.

Nos termos do disposto no artº 7º da mesma Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, constata-se que:

1º - os crimes de roubo e de roubo agravado não beneficiam de qualquer perdão, atentas as exclusões previstas no artigo 7º, n.º 1 al. b)-i) e al. g) da mesma Lei nº 38-A/2023, de 02/08, “ex vi” dos artºs. 1º al. j) e 67º-A nºs 1 e 3, ambos do Cod. Penal;

2º - diversamente, os crimes de furto simples, furto qualificado, de falsificação de documentos e de detenção de arma proibida estão abrangidos pelo perdão de penas estabelecido pela Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, atento o disposto nos artºs 2.º, n.º 1 e artº 3º e 4º da mesma lei, e dado que não estamos perante criminalidade excepcionada no artigo 7.º nºs 1 e 2 da mesma Lei, sendo certo que, nos termos do disposto no nº 3 do mesmo preceito legal, “a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos nºs anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artº 3º e da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes cometidos”;

4º - Por tal ser a interpretação decorrente de uma interpretação declarativa [e as leis excepcionais, como a presente Lei nº 38-A/20208, de 02/08, não são passíveis de interpretação restritiva, nem extensiva, correctiva ou analógica -, e ser igualmente a interpretação mais conforme à constituição e mais favorável ao arguido], beneficiam do perdão previsto no artº 8º nº 1 da referida Lei nº 38-A/2023 todas as penas até 8 anos de prisão aplicadas relativamente a cada um dos crimes objecto de perdão (isto é, não constantes das excepções previstas no artº 7º da mesma Lei), não obstante o perdão a aplicar, de um ano de prisão, incida sobre a pena única decorrente da condenação em cúmulo jurídico; mesmo quando essa pena única seja, como no caso em apreço nos autos, superior a 8 anos de prisão.

Ora, no caso dos autos, nenhuma das concretas penas aplicadas a qualquer um dos tipos de crime objecto de perdão é superior a 8 anos de prisão; pelo que é de aplicar o dito perdão previsto no artigo 3.º, n.º 1, a incidir sobre a pena única, nos termos do n.º 4 do mesmo preceito normativo. ...”.

Vejamos.

Como se diz no acórdão da RP de 20-03-2024[5], a norma do art.º 3º/1 da lei da amnistia aqui em causa deve ser interpretada como restringindo a aplicação do perdão às penas únicas não superiores a 8 anos de prisão, porque, “... se, em caso de cúmulo jurídico o perdão incide sobre a pena única, é lógico que a pena superior a oito anos de prisão que, de acordo com o número 1 do artigo 3.º está excluída do perdão não pode deixar de ser a pena única resultante do cúmulo. O que releva, para o legislador, não é a maior ou menor gravidade dos crimes e das penas parcelares que integram o cúmulo jurídico vistos isoladamente, mas a maior ou menor gravidade do conjunto de crimes praticados que se reflete na maior ou menor gravidade da pena única. É esta visão de conjunto que releva. Assim, podem penas parcelares (uma, várias ou todas) que integram o cúmulo não ser superiores a oito anos, mas elas não beneficiarão de perdão se do cúmulo dessas penas resultar uma pena única superior a oito anos. É assim porque relevante é essa visão de conjunto: é sobre o que dessa visão global resulta que incide, ou não incide, o perdão.

Podem ver-se, neste sentido os recentes acórdãos desta Relação de 10 de janeiro de 2024, proc. n.º 441/07.2JAPRT-A.P1, relatado por Maria dos Prazeres Silva, e proc. n.º 996/04.3JAPRT.P2, relatado por José António Rodrigues da Cunha; e o acórdão da Relação de Lisboa de 23 de janeiro de 2024, proc. n.º 1161/20.8PBSNT-D.L1-5, relatado por Manuel José Ramos da Fonseca, todos acessíveis in www.dgsi.pt.

Há que salientar que a situação em apreço não é equiparável a outra que, de acordo com a jurisprudência, tem conduzido (a propósito da Lei em apreço e de outras anteriores) a uma solução semelhante à pretendida pelo recorrente. Essa situação é a da aplicação do perdão a penas resultantes de um cúmulo de penas abrangidas, ou não, por tal perdão consoante o tipo de crime a que são relativas. Não é essa a situação aqui em causa. Na situação aqui em causa, estamos perante uma pena superior a oito anos resultante do cúmulo de penas que, individualmente consideradas, possam não ser superiores a oito anos, independentemente dos tipos de crime em causa. O legislador quis excluir do perdão as penas superiores a oito anos de prisão, sejam elas relativas a um único crime ou resultando de um cúmulo jurídico, independentemente do tipo de crime em causa.

...

Poderemos até dizer que a interpretação sustentada pelo recorrente é que contrariaria o princípio da igualdade: não beneficiaria do perdão quem é condenado numa pena superior a oito anos resultante da prática de um único crime; poderia beneficiar do perdão quem é condenado numa pena única também superior a oito anos (o que também representa a prática de crimes de maior gravidade numa visão global) que integrasse penas parcelares inferiores. ...” (sublinhados nossos).

À mesma conclusão, chegou Cruz Bucho, nos seguintes termos: “... 8. Pena de prisão até 8 anos (artigo 3.º, n.º1)

- Ac. do STJ de 21-12-2023, proc.º n.º 386/16.5T9PFR-A.S1, rel. Cons.º Vasques Osório (habeas corpus):  “Considerando agora a, mais uma vez, pelo requerente, referida [não] aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, cumpre dizer que, relativamente à pena única de vinte e cinco anos de prisão e cento e sessenta dias de prisão subsidiária, imposta no processo nº 843/04.6..., o disposto nos nºs 1 e 4 do art. 3º da referida lei exclui a aplicação do perdão de um ano de prisão nela previsto”(excerto).

-Ac. da Relação do Porto de 10-1-2024, proc.º n.º 441/07.2JAPRT-E.P1, rel. Maria dos Prazeres Silva : VI – Ora, uma vez que o perdão incide sobre a pena única, em caso de concurso de crimes, se a duração da pena única imposta for superior a 8 anos de prisão, não pode a mesma pena ser objeto de perdão.

- Ac. da Relação do Porto de 10-1-2024, proc.º n.º 996/04.3JAPRT.P2, rel. José António Rodrigues da Cunha: “Atento disposto nos pontos 1 e 4 do art.º 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2/08, não é aplicável o perdão de 1 ano de prisão ali previsto a pena única de prisão superior a 8 anos em que o recorrente foi condenado na sequência de cúmulo jurídico efetuado”.

-Ac. da Relação de Guimarães de 23-1-2024, proc.º n.º 438/07.2PBVCT-AE.G1 - rel. Anabela Varizo Martins:

I -  O perdão de 1(um) ano fixado pelo artigo 3.º, n.º 1 da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, só é aplicado, verificados os demais pressupostos, a penas que não sejam superiores a 8 anos de prisão.

II - Aquele limite é aplicável não só às penas parcelares, mas também à pena única em resultado de cúmulo jurídico de várias penas parcelares, ainda que cada uma delas seja de medida inferior a 8 anos.

III - Ainda que uma pena parcelar seja objecto de perdão, caso a mesma venha, posteriormente, a integrar um cúmulo jurídico de conhecimento superveniente, tal perdão deixará de ser aplicável, se a pena única que vier a ser aplicada for superior a 8 anos.

IV - Os n.ºs 1 e 4 do artigo 3.º da citada Lei 38-A/2023 não são inconstitucionais. A lei reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos/condenados que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado. Por outro lado, a delimitação do âmbito de aplicação da lei está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável. O legislador soube exprimir-se e quis aplicar o perdão de um ano às penas únicas até 8 anos de prisão, sem que isso fira o princípio da igualdade, pois a conduta de quem comete vários crimes em situação de concurso é mais gravosa de quem comete crimes inferiores àquele tecto ou sem estar em situação de concurso, que o legislador não entendeu merecedor de medida de clemência. Esta interpretação não viola qualquer direito do recorrente, nomeadamente o princípio da igualdade.

- Ac. da Relação de Lisboa de 23-1-2024, proc.º n.º 1161/20.8PBSNT-D.L1-5, rel. Manuel José Ramos da Fonseca: I – A medida de perdão fixada pela Lei 38-A/2023-2 agosto, nas regras estabelecidas pelos n.ºs 1 e 4 do art.º 3.º, só é aplicada, verificados os demais pressupostos, a penas que não sejam superiores a 8 anos de prisão.

II – Tal assim é, não só quando a pena de prisão superior a 8 anos tenha sido aplicada apenas por um crime, como também quando se está perante uma pena única em resultado de cúmulo jurídico de várias penas parcelares, ainda que cada uma delas de medida inferior a 8 anos. III – Trata-se dum outro nível de exclusão da medida de perdão, consubstanciado na gravidade da conduta ou na multiplicidade de condutas determinantes de uma pena de prisão superior ao limite fixado no art.º 3.º/1, independentemente do tipo de ilícito praticado, sendo que este evidenciado alargamento do campo de exclusões constante da Lei 38-A/2023 não consubstancia uma qualquer novidade, antes se inscreve numa tendência de vontade do Legislador que se vem desenhando em antecedentes leis de clemência, com a introdução de concretas exclusões que vão além da tipologia dos crimes, e antes se focam especificamente nos agentes do crime ou na posição funcional das vítimas.

- Ac. da Relação de Lisboa de 23-1-2024, proc.º n.º 2872/17.0T9PDL-A.L1-5, rel. Sandra Oliveira Pinto: I- As medidas de clemência, atenta a sua natureza de providências excecionais, devem ser interpretadas nos precisos termos em que estão redigidas, sem ampliações nem restrições, não comportando aplicação analógica (cf. artigo 11º do Código Civil), embora sempre com a salvaguarda dos princípios constitucionais de igualdade e proporcionalidade. II- É de considerar contida na discricionariedade constitucionalmente reconhecida ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer um limite máximo para as penas suscetíveis de beneficiar de perdão – com o natural e óbvio propósito de excluir de tal medida de graça situações punidas com penas severas, que tendencialmente se referirão a factos especialmente gravosos, relativamente aos quais a sociedade teria dificuldade em compreender o recuo do ius puniendi do Estado. III- Nos termos previstos nos n.ºs 1 e 4 do artigo 3º da Lei nº 38-A/2023, o arguido condenado em pena única superior a 8 anos de prisão não poderá beneficiar do perdão de pena decretado pela referida Lei, mesmo que as penas parcelares que integraram o referido cúmulo sejam, todas elas, inferiores a 8 anos de prisão.

- Ac. da Relação de Lisboa de 23-1-2024, proc.º n.º 117/15.7PAVFC-A.L1-5, rel. Ester Pacheco dos Santos : 1 – Foi propósito do legislador afastar a aplicação do perdão quer às situações de criminalidade grave, quer às penas de prisão de grande duração. 2 – A única interpretação consentânea com esse espírito é a de que apenas são objeto do perdão de 1 ano de prisão as penas únicas fixadas em medida não superior a 8 anos – art.º 3.º, n.ºs 1 e 4, in fine, da Lei n.º 38/2023, de 2 de agosto. 3 – É de excluir a interpretação de que tal perdão incide não sobre a pena única, mas sim sobre as penas parcelares que estão quantificadas no cúmulo.

- Ac. da Relação de Lisboa de 20-2-2024, proc.º n.º 20/07.4PJLRS-A.L1-5, rel. Luísa Maria da Rocha Oliveira Alvoeiro

I. Ainda que a pena única de prisão englobe penas parcelares de prisão, aplicadas por crimes excluídos do perdão, e penas parcelares de prisão, aplicadas por crimes dele não excluídos, o perdão concedido pelo art.º 3º, nºs 1 e 4 da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto não poderá incidir sobre a pena única por a mesma ser superior a 8 anos de prisão.

No mesmo sentido, pronunciaram-se os Drs. José Esteves de Brito “Mais algumas notas práticas….”, cit., nota 4, págs. 5 e 6 e Ema Vasconcelos, “Amnistia e perdão…” cit., pág. 24.

Como salienta o primeiro daqueles autores «Em bom rigor, trata-se de uma opção legislativa de apenas considerar merecedores do perdão aqueles que, nas demais condições previstas, tenham sido condenados numa pena de prisão não superior a 8 anos. Ora, não se pode dizer que a limitação seja política-criminalmente infundada. Na verdade, uma vez que uma pena de prisão de 8 anos é uma pena grave, não se afigura arbitrário considerar que um agente condenado numa pena de prisão de duração superior a 8 anos não é merecedor de qualquer medida de graça, tenha tal pena sido aplicada apenas por um crime ou se trate de uma pena única em cúmulo jurídico de várias penas parcelares porventura, cada uma delas, de medida inferior. Por outro lado, no passado, já se atendeu à medida da pena de prisão aplicada para estabelecer uma diferenciação para a medida do perdão (cfr. arts. 1.º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de maio, 8.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 15/94, de 11 de maio, 14.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 23/91, de 4 de julho, 13.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 16/86, de 11 de junho)».

Concorda-se com a interpretação perfilhada pelos acórdãos acima mencionados.

Afiguram-se ser decisivos os elementos literal e teleológico.

O legislador não se limitou a dizer que é perdoado 1 ano às penas de prisão até 8 anos.

Foi bastante mais enfático ao assinalar que aquele perdão é aplicado a “todas as penas até 8 anos”.

Se são “todas as penas”, não se vislumbra motivo para delas excluir as penas únicas, sob pena de o intérprete restringir às penas parcelares o que o legislador quis que abrangesse todas as penas.

Por outro lado, conforme assinalado, foi propósito do legislador afastar a aplicação do perdão quer às situações de “criminalidade muito grave”, quer às penas de prisão de grande duração.

A questão tem sido, porém, controvertida ao nível da 1ª instância. 

No âmbito do mencionado Ac. da Relação de Guimarães de 23-1-2024 o recorrente aludiu a despachos do Juízo Central Criminal de Guimarães e do Juízo Central Criminal do Funchal, que declararam perdoado 1 ano a condenados em penas únicas superiores a 8 anos de prisão.

No acórdão da Relação de Lisboa de 23-1-2024, refere-se que o Ministério Público na 1ª instância se pronunciara a favor da aplicação do perdão não obstante o arguido ter sido condenado na pena única de 16 anos de prisão.

Também no âmbito do habeas corpus que deu origem ao Ac. do STJ de 11-10-2023, proc.º n.º 996/04.3JAPRT-B.S1, rel. Cons.º Pedro Branquinho Dias, que considerou que “tendo o arguido sido notificado do despacho do Senhor Juiz que lhe negou o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2/8, por ter sido condenado numa pena única superior a 8 anos de prisão e, uma vez que o mesmo discordava dessa posição, o meio adequado e idóneo para se opor a tal despacho seria o recurso para o competente Tribunal da Relação”, o peticionante sustentara que” A lei não diz, em momento algum, que as penas superiores a 8 anos (em cúmulo jurídico) não são abrangidas pelo perdão. O que a Lei diz, claramente, é que o desconto de 1 ano, caso o haja há de ser sobre a pena aplicada em cúmulo”. “Se ao arguido não tivesse sido aplicado o cúmulo jurídico, o mesmo veria as penas parcelares perdoadas em 1 ano, pela aplicação da lei do perdão. Ora, obviamente, não foi esta a intenção do legislador”. Salientou igualmente que “(…) tem sido este o entendimento dos vários tribunais de 1ª instância- que apreciam a aplicação do perdão a cada caso concreto” e dá o exemplo de um despacho proferido num  Juízo Central Criminal de ... – Juiz 4 de 07/09/2023 segundo o qual “ Aderindo-se, na generalidade, ao entendimento plasmado na promoção que antecede – com excepção da parte em que considera o crime de profanação de cadáver não abrangido pela presente Lei da Amnistia, posição da qual discordamos por não encontrarmos qualquer referência ao mesmo nas excepções previstas no art.º 7.º, da dita lei – declara-se perdoado um ano de prisão à pena de 23 anos de prisão e declara-se ainda o perdão da pena de prisão subsidiária de 5 meses e 16 dias”.

Se a publicação da jurisprudência acima mencionada poderá, eventualmente, levar a uma inflexão do entendimento contrário de alguns tribunais de 1º instância, creio, porém, que continuarão a ser interpostos recursos pelos arguidos que viram rejeitada a aplicação do perdão a penas únicas superiores a 8 anos de prisão. ...” [6].

Sufragamos, inteiramente, estes entendimentos e jurisprudência, pelo que, pelos argumentos deles constantes, entendemos que não é aplicável o perdão previsto na Lei 38-A/2023, de 02-08, quando, em cúmulo jurídico, o Arg. haja sido condenado numa pena única superior a 8 anos de prisão, ainda que nesse cúmulo tenham sido englobadas penas de prisão inferiores ou iguais a 8 anos, por crimes não excluídos da aplicação desta lei[7].

É, pois, procedente o recurso.


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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos provido o recurso e, consequentemente, revogamos a decisão recorrida, na parte em que aplicou o perdão de 1 (um) ano à pena única de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Sem custas.


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Notifique.

D.N.


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(Elaborado em computador e integralmente revisto pelo subscritor (art.º 94º/2 do CPP).

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[1] Arguido/a/s.
[2] Ministério Público.
[3] Supremo Tribunal de Justiça.
[4]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[5] Relatado por Pedro Vaz Pato, no proc. 881/16.6TAPRT-BA.P2, in www.dgsi.pt.
[6] In “Amnistia e perdão (Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto): Seis meses depois (elementos de estudo).”, Guimarães, 01-03-2024, in www.trg.pt.
[7] Ainda no mesmo sentido, vejam-se a jurisprudência citada pela Exm.ª Magistrada do MP, na motivação de recurso, e o acórdão da RC de 06-03-2024, relatado por Isabel Valongo, no proc. 90/16.4JBLSB-J.C1, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário : “1- O limite da pena inferior a 8 anos previsto no artigo 3.º, n.º 1, da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, é aplicável à pena única em resultado de cúmulo jurídico de várias penas parcelares, ainda que cada uma delas seja de medida inferior a 8 anos. II - Os n.ºs 1 e 4 do artigo 3.º da citada Lei 38-A/2023 não são inconstitucionais por violação do princípio da igualdade, pois a conduta de quem comete vários crimes em situação de concurso é mais gravosa de quem comete crimes inferiores àquele teto ou sem estar em situação de concurso, que o legislador não entendeu merecedor de medida de clemência. III- Não é ainda inconstitucional a limitação da idade prevista no art. 2º, n.º 1, da mesma Lei” (sublinhado nosso).