PLURALIDADE DE CONTRAORDENAÇÕES
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
EXCLUSÃO DA CULPA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA COIMA
Sumário

1. As normas ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um «direito de bagatelas penais») não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contraordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.
2. A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, nº 10, da CRP e art. 50º do RGCOC) - para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCOC.
3. A Recorrente, enquanto titular de dois títulos de utilização dos recursos hídricos, tinha o dever e a obrigação legal de proceder em conformidade – por isso, inexiste, de facto, qualquer duplicação destas duas contraordenações, uma vez que estamos perante dois títulos distintos, de onde emergem obrigações diferentes, e que dizem respeito a realidades igualmente distintas (uma situação é a captação de água subterrânea e outra, para a qual é necessária licença diversa, é a rejeição de águas residuais).
4. Quanto â legislação aplicada no caso, não se tratou de uma «despenalização» mas de uma revogação de legislação anterior e substituição por outra que trata das mesmas questões e pune os mesmos actos contraordenacionais, mantendo-os com esse mesmo estatuto de ilícito de mera ordenação social - e o que o tribunal fez foi a devida aplicação da norma do artigo 4º (nomeadamente o seu nº 2) da Lei nº 50/2006, de 29/8 (a referida Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais) que prescreve o que alude também a norma do artigo 3º do DL 400/82, de 27/10, quanto à aplicação das leis no tempo.
5. A verificação do estado de necessidade desculpante depende do preenchimento dos seguintes pressupostos: 1) a verificação de uma situação de perigo actual para bens jurídicos de natureza pessoal (vida, integridade física, honra e liberdade) do agente ou de terceiro; 2) o facto ilícito praticado tem de ser adequado, no sentido de idóneo a afastar o perigo que não seria removido por outro modo; 3) que se conclua não se mostrar razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente, sendo tais pressupostos cumulativos, pelo que a não verificação de um dos requisitos implica, inevitavelmente, a não aplicação da causa de exclusão da culpa.
6. Sobre a operação do cúmulo jurídico, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com «a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente» - a decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo, mesmo em sede contraordenacional, deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado.
7.Odever de defesa do ambiente, previsto no artigo 66º da CRP, é caracterizado por 3 aspectos: - a obrigação de não atentar contra o ambiente; - a existência das obrigações positivas, como, por exemplo, a obrigação de tratar de resíduos ou efluentes domésticos e industrias; - o dever de impedir os atentados de outrem ao ambiente, incluído pelo exercício da acção popular.
8. Em caso de atentado grave ao ambiente, as decisões dos nossos tribunais devem ser corajosas, proactivas, preventivas e suficientemente severas para fazer recuar o cego e surdo transgressor, o infiel «jardineiro/cidadão» ou a empresa mais negligente.Sumário elaborado pelo relator

Texto Integral



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Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO

            1. No processo de recurso de contraordenação nº 61/23.... do Juízo de Competência Genérica de Tondela, a arguida ASSOCIAÇÃO DE MUNICÍPIOS DA REGIÃO DO PLANALTO BEIRÃO, por sentença datada de 21 de Março de 2024, foi condenada nos seguintes termos:

· «julgo o recurso improcedente e, em consequência, decido manter a decisão do Exmo. Senhor Inspetor-Geral da IGAMAOT, datada de 14/11/2022 e referente ao Processo de Contraordenação nº CO/00799/18, que aplicou à Arguida “Associação dos Municípios da Região Planalto Beirão”, com o N.I.P.C. 502 788 283 e com sede no Vale da Magunda – Borranhal, 3465-011, da freguesia do Barreiro de Besteiros, concelho de Tondela, a coima única de 60.000,00 EUR (sessenta mil euros), pela prática de quatro contraordenações ambientais, três muito graves e a última e quarta grave».

2. Faz-se notar que a decisão administrativa, datada de 14 de Novembro de 2022, DECIDIRA:


3. Inconformada, a arguida recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
               «1. Após inspeção efetuada pela Inspeção Geral da Agricultura do Mar, Ambiente e do Ordenamento do Território, em 1710712017, às instalações da recorrente foi a mesma notificada no Auto de Notícia imputando-lhe 4 contraordenações sendo 3 graves e uma muito grave e tendo aplicado à recorrente a pena de multa em cúmulo jurídico de 60.000,00 Euros.
2. Tendo apresentado a sua defesa e juntado documentos, foi aplicada pela Autoridade Administrativa a pena atrás referida.
3. Inconformado, o arguido e recorrente, recorreu para o Tribunal Judicial de Tondela.
4. Tendo o Meritíssimo Juiz decidido pela improcedência do recurso, e confirmando a decisão administrativa.
5. Inconformado com a decisão o arguido recorre para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos do artº 73º nº 1 a) e 74º nº 1 e 4, do Dec. Lei 244/95 e artºs 104º nº 1 do C. Penal e 144º nº 1 do C.P.Civil.
6. No que respeita à matéria de facto, a recorrente pretende que se dê como provado facto que não foi apreciado, na decisão da matéria de facto, devendo ser dado como provado o seguinte facto constante da fls. 3 desta motivação.
7. Ou seja: " as operações de exploração do aterro propriedade da recorrente, são praticadas não pela recorrente mas pela empresa A... S.A., que tem personalidade jurídica totalmente diferente e que delegou na empresa B..., S.A., atualmente denominada C... S.A., a atividades concretas de deposição de resíduos sólidos em aterro.
8. Esse facto encontra fundamento probatório nas citações feitas dos depoimentos AA e BB, constantes e indicadas a fls. 4,5, e por economia processual se dão como inteiramente reproduzidas sendo certo que estão concretamente indicadas em referência à gravação.
9. Relativamente ao Direito aplicável, considera-se inteiramente ilegal, tudo o que não consta do respetivo Auto de Noticia, que é apenas o elemento acusação exigível em Processo Penal e contraordenacional.
10. E ilegal o Meritíssimo Juiz invocar para a sua decisão informações recebidas apenas em audiência de julgamento relativo a outras inspeções realizadas em 2018 e 2020, cuja decisão final da Autoridade Administrativa desconhece e pelas quias nunca foi deduzida acusação.
11. Também os factos posteriores a 17/07/2017, invocados na sentença, são ilegais, nomeadamente para fundamentação das coimas aplicadas.
12. Relativamente às contraordenações indicadas na pag. 7 desta Motivação sob o nº 2 a) e b), apenas se aceita a existência de uma contraordenação por haver entre as duas indicadas uma situação de concurso aparente, por existir uma relação consunção.
13. Invoca-se neste sentido o Prof. Eduardo Correia, citado a fls.8, o Prof. Germano Marques da Silva, invocado a fls.9, Henrique Salinas invocado a fls.9 e 10;
14. A existência de concurso aparente resulta do facto das duas contraordenações terem em vista a proteção do mesmo bem jurídico, como resulta das citações referidas dos referidos Mestres de Direito.
15. A sentença recorrida violou, pois, o disposto nos artºs 81º nº 2 do Dec.Lei 226/A/2007 e o artº 22º, nº 4 b) da Lei 50/2006.
16. Relativamente às infrações indicadas a pag. 7 sob os nºs c) e d) deve referir-se que a recorrente não praticou os factos aí indicados mas concretamente quem os praticou foi a C... S.A., por delegação de D... S.A., e esta por sua vez pelo contrato com a A..., S.A..
17. Empresa com personalidade distinta da aqui recorrente.
18. Não tendo praticado concretamente os factos de deposição de resíduos solidos e urbanos, não pode ser responsabilizada por tais factos.
19. Também existe uma duplicação e um concurso aparente de ilícitos, quando a sentença não atentou que, existindo excesso nas águas de recolha de azoto parcial, isto implica excesso de azoto total, o que significa existir um concurso aparente de infrações entre as duas pretensas infrações.
20. Por outro lado, as empresas concessionárias que gerem tais operações solicitam aos laboratórios externos que demoram semanas ou mais de um mês na apresentação de relatórios o que torna impossível o objetivo controle.
21. Sendo certo que, lixiviados são muito concentrados e a qualidade dos mesmos depende do que os particulares depositam no contentor do lixo, tornando impossível o seu controle.
22. A infração indicada sob a d) nº 2 a pag. 7, encontra-se revogada pelo Dec. Lei 102-D/2020 de 10 de Dezembro, conforme aliás e defendido pela Procuradoria Distrital de Lisboa, em comentário ao artº 12º e 48º do Dec. Lei 183/2009, como consta do documento junto aos autos com o recurso interposto para o Tribunal de Tondela.
23. Deixando de ser facto ilícito por aplicação da Lei mais favorável ao arguido, deixou de haver punição por tal infração, conforme resulta do artº 20 nº 2 do C.Penal, disposição legal que a sentença recorrida violou.
24. Acresce que, no que respeita à deposição de resíduos sólidos, após a inspeção de 1710712017, que aliás não consta do Auto de Noticia, não pode deixar de se entender que a finalidade da constituição da Associação de Municípios da Região do Planalto Beirão, constituída por 19 Municípios da Beira Interior, teve em vista à criação de um aterro sanitário para receber os resíduos sólidos de pelo menos 19 Municípios e para eliminação total das lixeiras existentes das várias populações dos Municípios constitutivos da Associação.
25. A existência de tais lixeiras era altamente prejudicial para a saúde e para a manutenção dum são ambiente e da qualidade de vida dos particulares.
26. Sendo certo que, já existia anteriormente uma licença ambiental, e não era exigível que a recorrente deixasse permanecer 400 toneladas de lixo diários, junto das diversas povoações dos diversos Municípios da Beira Interior, fazendo ressurgir as antigas lixeiras.
27. No sentido da não exigibilidade de outra conduta, invoca-se o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias no local citado a fls. 13 e 14.
28. Tal afastaria a culpa por parte da recorrente, pelo que decidindo em contrário, a sentença recorrida violou o disposto no artº 8º do Dec. Lei 433/82.
29. Acresce ainda, que a sentença recorrida violou o disposto no artº 35º do C. Penal, ao não considerar a existência por parte da recorrente por um estado de necessidade desculpante ao recolher os resíduos sólidos e urbanos, nos termos já atrás referidos.
30. Em defesa da existência dum estado de necessidade desculpante, atrás indicado, cita-se o C. Penal Anotado de Vitor Sá Pereira, o código Penal Parte Geral e Especial de Miguez Garcia, Paulo Pinto de Albuquerque e Bruno de Oliveira Moura, nas obras citadas a pag. 14 e 15 desta Motivação e que aqui se dão por reproduzidas por economia processual.
31. Entende a recorrente, que não se verificará a necessidade de efetuar um cúmulo jurídico, relativo às coimas aplicadas.
32. Entende a recorrente, que num caso extremo apenas há que considerar uma única infração, se porventura este Alto Tribunal vier a entender, prevista no artº 81º nº 3 c) do Dec. Lei 226-A/2007, e punível nos termos do artº 22º nº 4 b) da Lei 50/2006.
33. E dada a recorrente apenas poder ter agido com mera negligência, como resulta da matéria de facto dada como provada no ponto 24, com culpa diminuída não tendo obtido benefícios económico e sendo a sua situação economicamente desfavorável, agravada pelo facto das suas instalações terem ardido há 2 ou 3 anos, devido aos incêndios florestais, com prejuízos de vários milhões de Euros, entende-se que a coima a existir, apenas deveria ser punida no seu mínimo legal, ou seja 18.000,00 Euros.
34. No entanto se vier a entender-se que não procedem as conclusões anteriores e que há necessidade de efetuar o cúmulo jurídico, este teria de considerar a existência de 3 infrações puníveis de 18.000,00 cada uma e uma outra infração grave apenas punível por 12.000,00 Euros.
35. O cúmulo jurídico teria de ser efetuado entre 12.000,00 Euros e 66.000,00 Euros, pelo que, a coima única atendendo às circunstâncias de culpa e de situação económica da recorrente, nunca deverá ser superior a 20.000,00 Euros.
36. Decidindo em contrário a sentença recorrida violou o disposto nos artºs 22º nº 2 e 3 da Lei 50/2006 e o disposto no artº 19º do Dec. Lei 232/79.
37. Revogando a sentença recorrida e dando inteiro provimento ao presente recurso decidindo nos termos das conclusões atrás apresentadas, Vªas Exªas farão como sempre JUSTIÇA».

            4. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que a sentença recorrida deve ser mantida na íntegra.

            5. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento.

            6. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.

Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.

Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação.

Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões.


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Além disso, há que dizer que o presente recurso é restrito à matéria de direito, visto o disposto nos artigos. 75º, nº 1 e 41º, nº 1, ambos do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado (alterado pelos Decretos-Leis nºs 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei nº 109/2001, de 24 de Dezembro - RGCO), salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º do CPP (sabemos que só o processamento e julgamento conjunto de crimes e contraordenações, previsto no art. 78º do RGCO, permite o conhecimento pela 2.ª instância, em sede de recurso, da matéria de facto).

No fundo, sabemos que não está o tribunal de recurso impedido de conhecer dos vícios referidos no art. 410º, nº 2 do CPP, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Note-se que o recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito.


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Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber:

· 1ª QUESTÃO: se há alterações a fazer no rol de factos provados;

· 2ª QUESTÃO: se é ilegal o tribunal invocar para a sua decisão informações recebidas na audiência relativas a outras inspecções realizadas em 2018 e 2019, posteriores à autuação em causa;

· 3ª QUESTÃO: se existe prova da prática pela arguida das 4 contraordenações;

· 4ª QUESTÃO: se existe um concurso aparente entre as duas contraordenações ambientais previstas no artigo 81º, nº 3, alínea c) do DL 226-A/2007, de 31/5 e punidas com a coima prevista no artigo 22º, nº 4, alínea b) da Lei nº 50/2006, de 29/8, havendo apenas lugar à condenação por uma delas;

· 5ª QUESTÃO: se está revogada a norma que subjaz à condenação pela 3ª contraordenação (ambiental muito grave, prevista nos artigos 12º e 48º do DL nº 183/2009, de 10/8), revogação essa levada a cabo pelo DL nº 102-D/2020, de 10 de Dezembro;

· 6ª QUESTÃO: se agiu a arguida em estado de necessidade desculpante;

· 7ª QUESTÃO: se não havia necessidade de efectuar um cúmulo de coimas, havendo apenas que considerar uma única infracção;

· 8ª QUESTÃO: se foram adequados os aplicados montantes das coimas parcelares e de cúmulo.

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
1. «No dia 17 de julho de 2017, pelas 11 horas e 45 minutos, na sequência duma ação inspetiva no estabelecimento denominado Centro Integrado de Tratamento de Resíduos Sólidos Urbanos do Planalto Beirão, sito em Vale da Margunda - Borranhal, 3465-013 Barreiro de Besteiros, Tondela, pertencente à Arguida Associação de Municípios da Região do Planalto Beirão, de que era Presidente do Conselho de Assembleia Intermunicipal CC, foi verificado que a Arguida é detentora da Licença Ambiental (LA) nº 354/1.0/2016, de 30 de setembro, emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e válida até 30 de setembro de 2024, para a atividade de deposição de resíduos em aterro, incluída na categoria 5.4 do Anexo I do Decreto-Lei nº 127/2013, de 30 de agosto, na sua atual redação, doravante designada por LA vigente.
2. A referida LA consubstancia uma alteração substancial à Licença Ambiental nº 354/2010, de 18 de janeiro.
3. No que se refere à atividade de deposição de resíduos não perigosos em aterro, a Arguida é detentora da Licença de Exploração (LE) nº 6/2009/DOGR, emitida em 08/05/2009 pela APA e válida até 08/05/2011, para o aterro de resíduos não perigosos de Tondela, doravante designada por LE. Não obstante, em 28/07/2011, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR-Centro), emitiu a prorrogação da referida LE até à emissão de nova Licença Ambiental pela APA, através do ofício com a Ref.ª DLPA 2746/11, sendo, portanto, essa LE válida até 30 de setembro de 2016. Face ao exposto, a Arguida desenvolve a atividade de deposição de resíduos em aterro sem licença válida para o efeito.
4. No estabelecimento existem ainda as seguintes infraestruturas/instalações: portaria, báscula, edifício sede administrativa, auditório, unidade de tratamento mecânico e biológico, que inclui uma central de valorização orgânica, parque de armazenamento de composto, central de valorização energética de biogás, centro de triagem, zona de lavagem de viaturas, oficinas, arma2éns, postos de transformação, casa de bombagem (reservatório de água), posto de abastecimento de combustível, centro de receção e armazenamento de resíduos elétricos e eletrónicos, estação de tratamento de águas residuais da pista de lavagem e estação de tratamento de águas lixiviantes.
5. À data e hora da inspeção realizada, o estabelecimento encontrava-se em laboração, sendo realizadas as operações de gestão de resíduos supramencionadas.
6. Para o normal funcionamento das atividades mencionadas, a Arguida efetua a captação de água subterrânea no ponto AC1 para as utilizações que contemplam a rega, lavagens, combate a incêndios e abastecimento de instalações de apoio. Esta utilização do domínio hídrico encontra-se licenciada através da Autorização de Utilização dos Recursos Hídricos – Captação de Água Subterrânea nº A004808.2016.RH4, emitida em 14/04/2016 pela APA e sem data de validade. De acordo com o previsto no ponto “Programa de autocontrolo a implementar” da referida Autorização, o titular obriga-se à instalação de um aparelho de medida (contador) que permita conhecer com rigor o volume total de água captado, devendo para o efeito garantir leituras mensais e o envio de informação à entidade licenciadora mensalmente.
7. Verificou-se que os consumos de água captada em 2017 foram reportados no Sistema Integrado de Licenciamento do Ambiente (SiliAmb) em 27/02/2017 (consumo de janeiro), 06/04/2017 (consumo de fevereiro e março), 18/05/2017 (consumo de abril), 20/07/2017 (consumo de maio e junho), não tendo, portanto, a Arguida dado cumprimento à obrigação de reporte de dados à entidade competente mensalmente.
8. Do normal funcionamento do estabelecimento resulta a produção de efluentes que incluem os lixiviados provenientes das células dos aterros e da central de valorização orgânica, as águas de escorrência de equipamentos de apoio à exploração, as águas residuais domésticas provenientes dos edifícios sociais e de apoio à exploração, as águas pluviais captadas na envolvente das instalações e as águas residuais associadas à pista de lavagem de viaturas e futuras instalações sociais. A ETAL é constituída por duas lagoas de arejamento com capacidade total de 10.000 m3, um decantador e duas unidades de osmose inversa, com capacidade total de 340 m3/dia. As unidades de osmose inversa, que dispõem de caudalímetro com totalizador, são compostas por filtros de areia, filtros cartucho e 3 fases de osmose inversa que decorrem através de um sistema de membranas. No que se refere ao permeado resultante do processo de tratamento mencionado, o mesmo pode ser sujeito a descarga no ponto EH1, localizado na Ribeira do Vale, se em cumprimento do disposto na Licença de Utilização de Recursos Hídricos — Rejeição de Águas Residuais nº L005243.2013.RH4, emitida pela APA em 01/09/2013 e válida até 01/09/2018. A referida descarga é sujeita ao cumprimento dos valores limite de emissão (VLE) estabelecidos no ponto “Condições de descarga das águas residuais em condições normais de funcionamento”, devendo ser assegurada a monitorização prevista no ponto “Programa de autocontrolo a implementar” mensalmente, cujos resultados devem ser enviados à entidade licenciadora (EL) trimestralmente.
9. Foram analisados os Relatórios de Ensaio (RE): RE nº 9568, de 06/06/2016, referente a amostragem efetuada em 09/05/2016 e reportado à EL em 18/07/2016; RE nº 12180, de 15/07/2016, referente a amostragem efetuada em 09/06/2016 e reportada à EL em 26/08/2016; RE nº 16071, de 25/08/2016, referente a amostragem efetuada em 22/07/2016 e reportada à EL em 30/09/2016; RE nº 18268, de 29/09/2016, referente a amostragem efetuada em 19/08/2016 e reportada à EL em 16/11/2016; RE nº 21318, de 03/11/2016, referente a amostragem efetuada em 23/09/2016 e reportada à EL em 19/12/2016; RE nº 25032, de 05/12/2016, referente a amostragem efetuada em 28/10/2016e reportada à EL em 06/01/2017; RE nº 26263, de 19/02/2017, referente a amostragem efetuada em 14/11/2016 e reportada à EL em 06/01/2017; RE nº 28894, de 04/01/2017, referente a amostragem efetuada em 12/12/2016 e reportada à EL em 06/01/2017; RE nº 13181, de 08/06/2017, referente a amostragem efetuada em 11/05/2017 e reportada à EL em 20/07/2017, e RE nº 16906, de 11/07/2017, referente a amostragem efetuada em 16/06/2017 e reportada à EL em 20/07/2017.
10. Os RE foram emitidos pelo Centro de Serviços do Ambiente (Cesab), entidade acreditada para o efeito pelo Instituto Português de Acreditação (IPAC) com a referência L0297. Da análise dos referidos RE verificou-se que a periodicidade de amostragem e os parâmetros a analisar foram cumpridos. Contudo, foram ultrapassados os seguintes VLE: para o parâmetro azoto total, estabelecido em 15 mgN/L, concretamente para um valor medido de 29 mgN/L na amostragem efetuada em 09/06/2016; 56 mgN/ML na amostragem efetuada em 22/07/2016; 94 mgN/L na amostragem efetuada em 19/08/2016; 51 mgN/L na amostragem efetuada em 23/09/2016; 50 mgN/L na amostragem efetuada em 28/10/2016; 16 mgN/L na amostragem efetuada em 14/11/2016; 42 mgN/L na amostragem efetuada em 11/05/2017; e 43 mgN/L na amostragem efetuada em 16/06/2017.
11. Para o parâmetro azoto amoniacal, estabelecido em 10 mngNH4/L, concretamente para um valor medido de 17 mgNH4/L na amostragem efetuada em 09/05/2016; 30 mgNH4/L na amostragem efetuada em 09/06/2016; 20 mgNH4/L na amostragem efetuada em 22/07/2016; 91 mgNH4/L na amostragem efetuada em 19/08/2016; 45 mgNH4/L na amostragem efetuada em 23/09/2016; 15 mgNH4/L na amostragem efetuada em 14/11/2016; 11 mgNH4/L na amostragem efetuada em 12/12/2016; 41 mgNH4/L na amostragem efetuada em 11/05/2017; e 34 mgHN4/L na amostragem efetuada em 16/06/2017.
12. Face ao exposto, a Arguida não deu cumprimento às condições previstas no Título em análise no que se refere às condições de descarga e ao reporte de informação à entidade competente dentro do prazo devido para esse efeito.
13. De acordo com o previsto no ponto “4. Prevenção e controlo de acidentes/Gestão de situações de emergência” da LA vigente, caso ocorra um acidente, incidente ou incumprimento da LA quanto às situações tipificadas no “Quadro 13 — Situações que obrigam a notificação”, a Arguida deverá informar a entidade coordenadora e a APA no prazo máximo de 48 horas e submeter a informação descrita no ponto 4 da LA. De notar que no referido quadro se incluem no ponto 6 as situações referentes a registos de emissão que não cumpram os requisitos da Licença. Não tendo a Arguida informado as entidades referidas do incumprimento dos VLE de descarga mencionados, não deu cumprimento às condições impostas pela LA vigente.
14. Do normal funcionamento do estabelecimento resultam emissões atmosféricas. No estabelecimento existem seis fontes de emissão pontuais, entre as quais: FF1, referente ao queimador auxiliar existente para queima de biogás em caso de avaria ou excedência de biogás, associado a chaminé de 8,5 m de altura; e FF2 e FF3, referentes aos motogeradores 1 e 2, respetivamente, associados à produção de energia elétrica e energia térmica, associados a chaminés de 5,6 m de altura cada;
15. Relativamente à monitorização das fontes de emissão pontuais, a Arguida efetuou a monitorização prevista em sede da LA nº 354/2010, de 28 de janeiro, concretamente a prevista no “Quadro 11 — Monitorização das emissões da fonte FF1” e no “Quadro 12 — Monitorização das emissões de gases das fontes FF2, FF3 e FF4” dessa LA. Os VLE dos parâmetros previstos no Quadro 11 dessa LA foram reduzidos aquando da emissão da LA vigente à data da inspeção, com exceção do parâmetro COVnm. Os referidos VLE encontram-se estabelecidos legalmente na Portaria nº 677/2009, de 23 de junho.
16. Face ao exposto, tendo sido emitida a LA nº 354/1.0/2016, de 30 de setembro, considera-se que os VLE definidos nessa Licença, concretamente no “Quadro 10 — Monitorização das emissões da fonte FF1” e no “Quadro 11 — Monitorização das emissões de gases FF2, FF3, FF4 e FF5” se aplicam às monitorizações efetuadas a partir da data de emissão da mesma LA.
17. Com vista ao reporte da monitorização das fontes de emissões pontuais que se seguem, foram apresentados os respetivos RE, emitidos pelo laboratório de caraterização ambiental do Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia Mecânica e Engenharia Industrial, entidade acreditada pelo IPAC com a Ref.ª L0294: FF1, FF2, FF3 e FF4: Relatório de ensaio nº 101/2016, emitido em 05/05/2016, referente a amostragem efetuada em 30/03/2016; FF1: Relatório de ensaio nº 220/2016, emitido em 09/03/2016, referente a amostragem efetuada em 15/07/2016; FF3 e FF4: Relatório de ensaio nº 289/2016, emitido em 31/12/2016, referente a amostragem  efetuada em 19/11/2016; FF1 e FF2: Relatório de ensaio nº 324-A/2016, emitido em 22/02/2017, referente a amostragem efetuada em 31/12/2016; e FF1: Relatório de ensaio nº 53/2017, emitido em 24/03/2017, referente a amostragem efetuada em 01/03/2017.
18. No que se refere ao cumprimento dos VLE e periodicidade das monitorizações em análise, os Relatórios de Ensaio referentes a amostragens efetuadas em março e julho de 2016 foram analisados ao abrigo do disposto na LA nº 354/2010, de 28 de janeiro, tendo-se verificado que: os parâmetros a monitorizar quanto às fontes e emissão pontual, previstos no referido enquadramento legal, foram analisados, com exceção do parâmetro CO2, que não foi monitorizado nas três amostragens efetuadas na fonte FF1; e os parâmetros a monitorizar quanto às fontes de emissão pontual, previstos no referido enquadramento legal, foram monitorizados com a periodicidade prevista, com exceção da monitorização trimestral para a fonte FF1, tendo sido efetuadas monitorizações em março, julho e dezembro de 2016.
19. Face ao exposto, considera-se que a Arguida não deu cumprimento às obrigações estabelecidas em sede da LA nº 354/2010, de 28 de janeiro, no que se refere ao controlo das fontes de emissão pontual, previsto no enquadramento legal referido, mais concretamente quanto à monitorização dos parâmetros previstos e à periodicidade da monitorização.
20. No que se refere ao cumprimento de VLE e à periodicidade das monitorizações em análise, os Relatórios de Ensaio referentes a amostragem efetuadas em novembro e dezembro de 2016 e março de 2017 foram analisados ao abrigo do disposto na LA nº 354/1.0/2016, de 30 de setembro, tendo-se verificado que: os parâmetros a monitorizar quanto às fontes e emissão pontual, previstos no referido enquadramento legal, não foram assegurados integralmente. Mais concretamente, não foi monitorizado o parâmetro CO2 nas três amostragens efetuadas na fonte FF1; os parâmetros a analisar quanto ás fontes de emissão pontual, previstos no referido enquadramento legal, não foram assegurados integralmente, na medida em que não foi assegurada a monitorização semestral prevista para a fonte FF1; os VLE estabelecidos não foram integralmente cumpridos. Verificou-se que os valores medidos ultrapassam os VLE estabelecidos na medição de novembro de 2016 — na fonte FF3, para o parâmetro CO (com um caudal de 506,4 mg/m3N e um VLE de 450 mg/m3N) — bem como na medição de dezembro de 2016 — na fonte FF2, para os parâmetros COVnm (com um caudal mássico de medido de 688,2 mg/m3N e um VLE de 50 mg/Nm3) e CO (com um caudal mássico medido de 491,9 mg/m3N e um VLE de 450 mg/m3N);
21. Face ao exposto, a Arguida não deu cumprimento às obrigações estabelecidas em sede de LA vigente, no que se refere ao controlo das fontes de emissão pontual, previsto no enquadramento legal referido, mais concretamente quanto à monitorização dos parâmetros previstos, à periodicidade da monitorização e ao cumprimento dos VLE.
22. Ao atuar da forma descrita, de forma voluntária, livre e consciente, a Arguida, através dos seus legais representantes e/ou funcionários, incumpriu obrigações/condições previstas na lei e nos respetivos títulos, bem sabendo que as mesmas lhe estavam cometidas, atento o facto de consubstanciarem normas que regem a sua atividade e que constituíam contraordenação.
23. A Arguida exerce atividade industrial regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito para o exercício da mesma.
24. Não o tendo feito, através dos seus legais representantes e/ou funcionários, não agiu com a diligência necessária a que estava obrigada e de que era capaz.

Mais se apurou que:
25. A Arguida “Associação dos Municípios da Região Planalto Beirão” foi constituída em 1991, por 19 (dezanove) municípios da região da Beira Alta.
26. É proprietária do aterro sanitário sito no Vale da Margunda – Borranhal, da freguesia do Barreiro de Besteiros, concelho de Tondela.
27. Atualmente recolhe e trata cerca de 400 (quatrocentas) toneladas de resíduos urbanos, provenientes dos 19 (dezanove) municípios associados e produzidos por cerca de 326.000 (trezentos e vinte e seis mil) habitantes.
28. No que concerne ao ano civil de 2022, a Arguida apresentou receitas no valor total de 14.236.727,34 EUR (catorze milhões, duzentos e trinta e seis mil, setecentos e vinte e sete euros e trinta e quatro cêntimos) e despesas no valor total de 14.350.283,25 EUR (catorze milhões, trezentos e cinquenta mil, duzentos e oitenta e três euros e vinte e cinco cêntimos)».

2.2. Inexistindo factos não provados, o tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«A convicção do Tribunal sobre os factos provados baseou-se na seguinte prova, a qual foi analisada de forma crítica e conjugada entre si:

- Do 1º Volume: auto de notícia nº 260/2017 de fls. 1-6 (o qual serve de meio de prova das ocorrências verificadas e, até prova em contrário, faz fé sobre os factos presenciados pelo Autuante – cfr. art. 45º nº 1 da Lei nº 50/2006, de 29/08, arts. 99º, 169º e 243º do CPP e arts. 363º nº 2 e 371º nº 1 do Código Civil – em igual sentido, ver Ac. TR Lisboa de 31/10/2017, Relator: Des. Agostinho Torres, Proc. nº 638/14.9SGLSB.L1-5), relatório de inspeção nº 525/2017 de fls. 7-21, respetivos anexos, designadamente fichas de verificação de fls. 22-29, licença ambiental nº 354/0.1/2016 de fls. 30-42 e 53 (na qual consta como operador e titular da mesma a Arguida Associação de Municípios da Região Planalto Beirão); autorização de utilização dos recursos hídricos – captação de água subterrânea de fls. 43-45 (na qual consta como titular a Arguida), licenças de utilização dos recursos hídricos – rejeição de águas residuais de fls. 46-49 e 50-52 (na qual consta como titular a Arguida), licença ambiental nº 354/2010 de fls. 54-64 (na qual consta igualmente como titular a Arguida), licença de exploração nº 6/2009/DOGR de fls. 65-75 (uma vez mais, na qual consta como titular a Arguida), ofício da C.C.D.R. Centro datado de 28/07/2011 em que é concedida a prorrogação do prazo de validade da referida licença de exploração de fls. 76, descritivo de comunicações no SILiAmb de fls. 77, relatórios de ensaios de fls. 78-186, decisão administrativa de fls. 231-237, escritura de constituição da Arguida de fls. 252-259, estatutos da Arguida de fls. 260-283, escritura de constituição da sociedade denominada “A..., S.A.” de fls. 284-288 e respetivos estatutos de fls. 289-296, alvará de licença para a operação de deposição de resíduos em aterro nº 1/2019/CCDRC datada de 17/06/2019 de fls. 297-299, contrato de fls. 300-302, documentos estes cujo teor saiu incólume em sede de audiência de julgamento;

- Do 2º Volume: IES relativa aos anos de 2021 e 2022, bem como relatórios de gestão e conta de gerência dos mesmos anos.

- Inquirição das testemunhas DD e EE, ambos Inspetores do IGAMAOT, os quais participaram na inspeção realizada em 17/07/2017 às instalações do Centro de Resíduos Urbanos sito em Tondela, propriedade da Arguida e confirmaram todos os factos constantes do auto de notícia e do relatório de inspeção.

Em face da significativa complexidade e especialidade dos regimes jurídicos aplicáveis e da realidade subjacente à atividade de exploração de resíduos, a inquirição destas duas testemunhas foi crucial para compreender a diferenciação entre as várias contraordenações imputadas à Arguida e razão de ser dessa imputação, quer a título subjetivo, quer do ponto de vista da materialidade das mesmas.

- Foram ainda inquiridas as testemunhas indicadas pela Arguida, AA (Secretário Executivo da Arguida), o qual explicitou a atividade da Arguida e os moldes em que a sua atividade é desenvolvida e beneficia a região do Planalto Beirão, bem como BB (Engenheira do Ambiente e trabalhadora da Arguida), responsável pelas comunicações às entidades competentes e dos pedidos de licenciamento, tendo confirmado os factos, ainda assim desvalorizando as ocorrências detetadas pelos Inspetores da IGAMAOT.

Acresce que do teor da decisão administrativa condenatória resulta de forma suficiente, completa, esclarecedora e pertinente os factos imputados à Arguida, a indicação dos elementos de prova que fundamentam essa conclusão e a análise cuidada e detalhada dos argumentos esgrimidos pela Arguida, nada havendo a apontar e para onde se remete, designadamente os factos observados pelos Srs. Inspetores do IGAMAOT, em concatenação com a extensa prova documental carreada para os autos».

            3. APRECIAÇÃO DE DIREITO

            3.1. Estamos no campo contraordenacional, um direito distinto do direito penal.

Ambos os ilícitos tentam proteger valores dignos de protecção legal – enquanto o ilícito penal empresta, efectivamente, a protecção jurídico-penal, o ilícito de mera ordenação social empresta uma tutela mais administrativa.

Ambos os ilícitos tentam prevenir violações a certos interesses que carecem de protecção legal (é verdade que ambos os ilícitos impõem aos infractores consequências jurídicas desfavoráveis - penas/medidas de segurança e coimas -, é verdade que o crime tem de ser um facto típico, ilícito contrário à lei e censurável, também o devendo ser a contraordenação).

Enquanto no âmbito do ilícito penal se exige sempre a intervenção judicial (não se podendo aplicar nenhuma sanção jurídico-penal sem a intervenção dos tribunais), quem aplica as coimas no ilícito da mera ordenação social é a administração, e só em caso de não conformação (como o presente caso) ou de concurso de crime e contraordenações (valendo aqui a regra do artigo 38º do RGCOC), é que poderá haver a intervenção jurisdicional.

As sanções dos ilícitos são diferentes: a sanção característica do ilícito penal é a pena, sendo a coima o veículo sancionador do ilícito de mera ordenação social.

No âmbito do ilícito penal, por regra e por força do art. 11º do Código Penal, doravante CP, vigora o princípio da personalidade, salvo disposição em contrário, na medida em que só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal. Diferentemente sucede no ilícito da mera ordenação social, em que as pessoas colectivas podem ser sancionadas (art. 7º do RGCOC), não havendo impedimento conceitual à aplicação de coimas a pessoas colectivas, distintamente do que sucede enquanto regra no âmbito do Direito Penal.

O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a protecção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reacções que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal.

Na realidade, estamos perante comportamentos humanos – igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais.

«Uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infracções correspondem reacções de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281; e Faria Costa, "A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social", in Revista de Direito e Economia, ano IX, nºs 1 e 2, Janeiro-Fevereiro de 1983, pp. 3-51).

Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social, «a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções» (Eberhardt Schmidt).

No fundo, o que está em causa, afinal, é «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência» (cfr. Eduardo Correia, loc. cit.).

Sabemos que o direito de mera ordenação social, passando da dimensão categorial e da elaboração dogmática para a realidade normativa, entrou no interior do sistema nacional com o Decreto-Lei nº 232/79, de 24 de Julho, em cujo preâmbulo se afirmam os princípios, as necessidades, a oportunidade política (verdadeiramente de política criminal - a "instante" necessidade "de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal") e a natureza das respostas.

O que é verdade que tal diploma não durou muito tempo em termos de vigência já que foi revogado pelo Decreto-Lei nº 411-A/79, de 1 de Outubro (por dificuldades práticas emergentes da inclusão em lei quadro de uma disposição com intensas repercussões práticas - o nº 3 do artigo 1º), acabando por ressurgir na pele do DL 433/82 de 27/10 (RGCOC).

No preâmbulo deste diploma, com efeito, reafirma-se que:

«O aparecimento do direito das contraordenações ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.

Tal característica, comum à generalidade dos Estados das modernas sociedades técnicas, ganha entre nós uma acentuação particular por força das profundas e conhecidas transformações dos últimos anos, que encontraram eco na lei fundamental de 1976.

A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções».

O legislador justificou, assim, a urgência de conferir efectividade ao direito de mera ordenação social, com uma configuração distinta e autónoma do direito penal, em resultado das transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-constitucional.

O DL nº 433/82, de 27 de Outubro, foi objecto de uma profunda reformulação por via das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro - nesse sentido, e com a finalidade de reforçar os direitos e garantias dos arguidos, foram estabelecidas regras que aproximaram o regime dos princípios e soluções próprias do direito penal e do processo penal: «disposições sobre a atenuação das coimas e a alteração dos limites mínimos e máximos (artigos 13º, nº 2, 16º, nº 2, e 17º), normas sobre o cúmulo jurídico em caso de concurso (artigo 19º), clarificação dos pressupostos da aplicação de sanções acessórias (artigo 21º-A), regras sobre suspensão e interrupção da prescrição (artigos 27º-A e 30º-A) e reforço dos direitos de audiência e defesa (artigos 50º, 53º, 58º, 59º, nº 2, 68º e 72º-A)».

A aproximação do ilícito de mera ordenação social aos institutos e figuras do direito e do processo penal foi, pois, determinada - é o próprio legislador a reconhecê-lo - pelo alargamento das áreas de intervenção do direito de mera ordenação social, em particular a "circuitos económicos e tecnológicos complexos", com "um considerável agravamento dos montantes das coimas e um alargamento do leque de sanções acessórias aplicáveis": em consequência, "o legislador [procurou] equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do direito penal" (cfr. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, "O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7º, Janeiro-Março de 1997, pp. 14 e segs).

Assim sendo, o DL nº 433/82 estabeleceu, pois, o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contraordenações e às regras sobre o respectivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal.

Assim mesmo dispõe o artigo 32º:

«Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal».
Note-se que o regime original do DL 433/82 veio a ser revisto pelos DL 356/89 de 17/10 e 244/95 de 14/9 (já aqui aludido) e pela Lei nº 109/2001 de 24/9.

Não o ignoramos - as contraordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social.

Estas normas, ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um «direito de bagatelas penais»), não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contraordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.

A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa) mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, nº 10, da CRP e art. 50º do RGCOC).

Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCOC.

Trata-se, no fundo, de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.

Desta forma, são aplicáveis no processo contraordenacional as normas dos artigos 92º, 93º, 94º, 95º, 99º, 100º, 104º, 105º, 113º, 127º, 163º, 169º, 277º e 380º do CPP.

Falou-se em fase administrativa do processamento das contraordenações.

Contudo, tal não significa que se tenha aqui de aplicar os procedimentos administrativos constantes de um CPA, tendo sido intencional o afastamento da solução do direito administrativo como direito subsidiário (não se confundindo com a antiga noção do direito penal administrativo[1]).

Decidiu o Acórdão do STJ nº 1/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 25 de Janeiro, o seguinte, a este propósito:

«O processamento das contraordenações [...] compete às autoridades administrativas [...] (artigo 33º do regime geral das contraordenações). Porém, os actos correspondentes não constituirão, propriamente «actos administrativos» nem a essa actividade se aplicará, directamente, o «direito administrativo». É que, por um lado, no processo de aplicação da coima [as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal [...] (artigo 41º, nº 1).

Iniciado um processo de contraordenação existe a possibilidade de actos da Administração - que fora desse contexto seriam actos administrativos tout court (sujeitos, portanto, ao regime e garantias próprias do direito administrativo) - passarem a ser regulados por outro sector do sistema jurídico. Nestes termos, quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contraordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal, mas não o regime do Código de Procedimento Administrativo. Uma solução diferente criaria o risco de um bloqueio completo da actividade sancionatória da administração por cruzamento de regimes e garantias jurídicas».

Quanto às sanções contraordenacionais, e por ser extremamente eloquente, transcreve-se aqui parte da argumentação jurídica aposta no Acórdão desta Relação de 24/3/2004, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf (tendo como relator o hoje Juiz Conselheiro Jubilado Oliveira Mendes):

«Passando ao conhecimento da segunda questão, seja a da medida da coima, começar-se-á por assinalar que as condutas ou comportamentos contraordenacionais, em si mesmos, isto é, independentemente da sua proibição legal, são axiologicamente neutros e, daí que, a coima represente um mal que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, antes servindo como mera «admonição», como especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais, pelo que não é conatural a uma tal sanção uma dimensão de retribuição ou expiação de uma culpa ética, como a não será a da ressocialização do agente (Cfr. Figueiredo Dias, «O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social», estudo publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, I (1983), 317/336 e republicado em Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários (Coimbra Editora – 1998), 19/33).

Em todo o caso, como sanção que é, ela só é explicável enquanto resposta a um facto censurável, violador da ordem jurídica, cuja imputação se dirige à responsabilidade social do seu autor por não haver respeitado o dever que decorre das imposições legais, justificando-se a partir da necessidade de protecção dos bens jurídicos e de conservação e reforço da norma jurídica violada (Cfr. o recente trabalho do relator e do Exmº Desembargador Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas (2003), 58.), pelo que a determinação da medida da coima deve ser feita, fundamentalmente, em função de considerações de natureza preventiva geral (- como refere Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 5º Tema – Do Direito Penal Administrativo ao Direito de Mera Ordenação Social (2001), 150/151, relativamente à culpa, tal como na pena criminal, também na coima o pensamento da retribuição não joga qualquer papel, pelo que as finalidades da coima são (apenas) preventivas, às quais são em larga medida estranhas sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização), sendo que a culpa constituirá o limite inultrapassável da sua medida.

Tal como decorre do texto legal – art.18º, nº 1, do RGCO –, na determinação da medida da coima, haverá também que considerar a gravidade da contraordenação».

Na linha do preceituado pelo artigo 18º, nº 1, do DL 433/82, de 27/10, «a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação».

3.2. Com este pano de fundo conceptual e legal, vejamos a argumentação deste recurso.

Analisemos as oito questões acima elencadas.

3.2.1. 1ª QUESTÃO: se há alterações a fazer no rol de factos provados

No caso concreto que ora se analisa, já aqui o deixámos escrito, o recurso é restrito à matéria de direito, nos termos do artigo 75º do RGCO (Regime Geral das Contraordenações).

Todavia, de harmonia com o disposto no artigo 410º, nº 1, do CPP, ex vi do artigo 74º, nº 4 do mesmo RGCO, “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, razão pela qual poderá este Tribunal conhecer oficiosamente os vícios enumerados nas alíneas do nº 2 do referido artigo 410º, mas tão só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.

De facto, tem-se entendido que neste tipo de processo é admissível a revista alargada (da matéria de facto) decorrente da aplicação do regime do artigo 410º do CPP.

Quanto à matéria de facto, o arguido defende que deve ser acrescentado um novo facto provado, fundamentando-se na transcrição de dois depoimentos produzidos em audiência de julgamento (das testemunhas AA e BB, arroladas por si).

Ora, só poderemos deferir a esta impugnação pelo lado dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP, como já se viu, e nunca pelo chamado erro de julgamento (sindicável nos termos dos artigos 412º, nºs 3 e 4 do CPP).

Com este pano de fundo, analisemos mais concretamente a sentença recorrida, à luz dos vícios de conhecimento oficioso previstos no artigo 410º do CPP.

            Estabelece o art. 410º, nº 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova, ocorrem respectivamente quando:

a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;

b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP;

c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

Como bem acentua o Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena (entre outros, cf. Acórdão de 4/10/2006, Proc. nº 06P2678 - 3.ª Secção, em www.dgsi.pt;  Acórdão de 05-09-2007, Proc. nº 2078/07 - 3.ª Secção e Acórdão de 14-11-2007, Proc. nº 3249/07 - 3.ª Secção, sumariados em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -Secções Criminais).

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo nº 1509/97).


*

Aqui chegados, diremos que a recorrente não pode, neste caso, impugnar a decisão de 1ª instância sob o ponto de vista factual, não havendo assim qualquer justificação legal para que tenha indicado depoimentos gravados.

Repete-se: apenas se pode conhecer, nesta instância, os vícios do artigo 410º/2 do CPP se os mesmos decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Ora, acontece que, lida a sentença recorrida, não vislumbramos nela qualquer vício do artigo 410º/2 – ela vale por si e nada se deixou de apurar, apenas discordando a recorrente da conclusão jurídica que o julgador retirou de tais factos, entendendo que   deveria ter havido outra conclusão factual, o que não foi atendido pelo tribunal.

Na sua sentença o tribunal foi claro quanto à questão invocada, em dois segmentos (com bold da nossa autoria):

· «Ora, da leitura integral e análise global da decisão administrativa, decorre de forma inteligível e compreensível a imputação à Arguida das quatro contraordenações, com a descrição circunstanciada dos factos, a indicação das provas e a sua análise crítica e conjugada, bem como a fundamentação da decisão, sendo que, a este respeito, importa referir que foi efetivamente apreciada a defesa apresentada pela Recorrente, tendo a entidade administrativa concluído que sendo a Recorrente a titular dos diversos títulos/licenças/autorizações, encontra-se esta legalmente obrigada a cumprir as condições neles impostos, assim não tendo procedido»;

· «Com efeito, por ser a titular destes títulos e conforme decorre do teor dos mesmos (cfr. Condições Gerais e Condições Específicas), [a arguida] assumiu um conjunto de obrigações diretamente para com a entidade que os emite e ficou diretamente responsável pelo cumprimento da legislação especial em vigor nestes setores»;

· «Assim, a relação que estabeleceu perante outras entidades (“A..., S.A.” e “C..., S.A.”) não a exime da responsabilidade contraordenacional que lhe é imputada nos presentes autos. Quanto muito, e consoante o teor e clausulado dos contratos estabelecidos com aquelas outras entidades, poderá eventualmente, em direito de regresso e nas relações internas, suscitar tal questão e requerer o arbitramento de quantia a título indemnizatório».

Tal equivale a dizer que estão assentes os factos dados como provados, sem qualquer alteração, improcedendo, assim, a 1ª questão, improcedendo, também, a questão nº 3 pois está provado que a arguida é a titular dos dois títulos de utilização dos recursos hídricos, tendo o dever e a obrigação legal de proceder em conformidade com a lei, sendo irrelevantes as conclusões nºs 16 a 21.

3.2.2. 2ª QUESTÃO: se é ilegal o tribunal invocar para a sua decisão informações recebidas na audiência relativas a outras inspecções realizadas em 2018 e 2019, posteriores à autuação em causa;

Aqui a recorrente tem toda a razão.

Não é lícito ao tribunal invocar como factor agravativo da responsabilidade contraordenacional da arguida a existência, até sem foros de certeza, de que ela voltou a prevaricar após a inspecção de 2017.

Note-se, contudo, que essa afirmação é feita, não em sede factual, mas em sede de determinação da medida da coima, quando aborda a possibilidade de lançar mão da atenuação especial da coima – aí se deixa escrito, com sublinhado e bold da nossa autoria, que: «Ora, no caso em apreço, estamos perante quatro contraordenações ambientais, três muito graves e uma grave, a culpa é elevada, não foi invocada qualquer circunstância mencionada no artigo 23º-A da LQCA e, em sede de audiência de julgamento, a testemunha e Inspetora da IGAMAOT, DD, informou que houve lugar a pelo menos duas novas inspeções, em 2018 e em 2020, sendo que em ambas há notícia de alegada prática de contraordenação».

Isto não pode ser para aqui carreado pois não consta do elenco de factos provados qualquer ponto sobre estas outras inspecções.

No fundo, é como se não se tivesse escrito esse segmento acima sublinhado.

E a consequência passa apenas pela necessidade de aferirmos, quanto tratarmos da 8ª questão, se foi desajustada ou não a não aplicação da atenuação especial da coima, prevista no artigo 23º-A da LQCA (Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais).

3.2.3. 3ª QUESTÃO: se existe prova da prática pela arguida das 4 contraordenações;

Esta questão foi, por nós também considerada resolvida em 3.2.1., atento o teor dos factos provados.

3.2.4. 4ª QUESTÃO: se existe um concurso aparente entre as duas contraordenações ambientais previstas no artigo 81º, nº 3, alínea c) do DL 226-A/2007, de 31/5 e punidas com a coima prevista no artigo 22º, nº 4, alínea b) da Lei nº 50/2006, de 29/8, havendo apenas lugar à condenação por uma delas;

Não temos dúvida que há concurso efectivo de contraordenações e não uma só, por ocorrência de um concurso aparente de normas, tal como defende o recurso.

As contraordenações são estas (com diferentes referenciais numéricos quanto ao nº da captação de água subterrânea):
· Contraordenação ambiental muito grave (incumprimento da Autorização de Utilização dos Recursos Hídricos – Captação de Água Subterrânea nº A004808.2016RH4), prevista pelo artigo 81º nº 3 alínea c) do Decreto-Lei nº 226-A/2007, de 31/05 e punível com a coima prevista no artigo 22º nº 4 alínea b) da Lei nº 50/2006, de 29/08;
· Contraordenação ambiental muito grave (incumprimento da Licença de Utilização dos Recursos Hídricos – Rejeição de Águas Residuais L005243.2013RH4), prevista pelo artigo 81º nº 3 alínea c) do Decreto-Lei nº 226-A/2007, de 31/05 e punível com a coima prevista no artigo 22º nº 4 alínea b) da Lei nº 50/2006, de 29/08.

A entidade administrativa alega que a Arguida INCUMPRIU:
· as obrigações impostas pela Autorização de Utilização dos Recursos Hídricos – Captação de Água Subterrânea nº A004808.2016RH4, de que a Recorrente é titular (fls. 43-45);
· as obrigações impostas pela Licença de Utilização dos Recursos Hídricos – Rejeição de Águas Residuais nº L005243.2013RH4, de que a Recorrente é titular (fls. 46-49).

E tal foi dado como provado.

Ou seja:

Atenta a matéria de facto dada como provada, dúvidas inexistem de que a Recorrente, enquanto titular de dois títulos de utilização dos recursos hídricos (designadamente da Autorização para Captação de Água Subterrânea nº A004808.2016RH4 e da Licença para Rejeição de Águas Residuais nº L005243.2013RH4), tinha o dever e a obrigação legal de proceder em conformidade.

Por isso, inexiste, de facto, qualquer duplicação destas duas contraordenações, uma vez que estamos perante dois títulos distintos, de onde emergem obrigações diferentes, e que dizem respeito a realidades igualmente distintas (uma situação é a captação de água subterrânea e outra, para a qual é necessária licença diversa, é a rejeição de águas residuais).

Improcede, assim, a 4ª questão.

3.2.5. 5ª QUESTÃO: se está revogada a norma que subjaz à condenação pela 3ª contraordenação (ambiental muito grave, prevista nos artigos 12º e 48º do DL nº 183/2009, de 10/8), revogação essa levada a cabo pelo DL nº 102-D/2020, de 10 de Dezembro);

Estamos a falar da 3ª contraordenação muito grave (exploração de aterro sem Licença de Exploração válida – Licença de Exploração nº 6/2009/DOGR, prevista pelo artigo 12º e 48º nº 1 alínea e) do Decreto-Lei nº 183/2009, de 10/08 e punível com a coima prevista no artigo 22º nº 4 alínea b) da Lei nº 50/2006, de 29/08).

O tribunal raciocinou assim sobre ela:

«No que concerne à terceira contraordenação, a entidade administrativa alega que o aterro gerido pela Arguida, à data da inspeção, em 17/07/2017, se encontrava a laborar sem licença de exploração, pois a licença de exploração anterior, a qual tinha o nº 6/2009/DOGR, titulada pela Arguida (fls. 65-75), cuja validade era até 08/05/2011 e foi prorrogada pela CCDR Centro até à emissão de nova licença ambiental (fls. 76), isto é, até 30/09/2016 (fls. 30), caducou.

Dispõe o artigo 12º do Decreto-Lei nº 183/2009, de 10/08, na redação dada pelo Decreto-Lei nº 88/2013, de 09/07, o seguinte:

“1 - A operação de deposição de resíduos em aterro está sujeita a licenciamento por razões de saúde pública e de proteção do ambiente, nos termos do presente capítulo.

2 - O licenciamento da operação de deposição de resíduos em aterro abrange as fases de conceção, construção, exploração, encerramento e pós-encerramento do aterro.

3 - Qualquer modificação ou ampliação de um aterro que seja suscetível de produzir efeitos nocivos e significativos nas pessoas ou no ambiente ou cuja ampliação, em si mesma, corresponda aos limiares estabelecidos para aterros no anexo i do regime de prevenção e controlo integrados da poluição, aprovado pelo Decreto-Lei nº 173/2008, de 26 de Agosto, determina um novo procedimento de licenciamento nos termos dos artigos 17º a 27º”.

Por seu turno, de acordo com o artigo 48º nº 1 alínea e) do mesmo diploma legal:

“1 - Constitui contraordenação ambiental muito grave, nos termos da lei quadro das contraordenações ambientais, aprovada pela Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto, a prática dos seguintes atos:

(…)

e) A exploração não licenciada de um aterro, em violação do disposto no artigo 12º”.

Não obstante o Decreto-Lei nº 183/2009, de 10/08 ter sido revogado pelo Decreto-Lei nº 102-D/2020, de 10/12 [cfr. artigo 17º alínea d) preambular], ainda assim as condutas como as que se encontram descritas na acusação mantêm-se como puníveis como contraordenação [cfr. artigo 59º do novo diploma legal], sendo que a contraordenação em causa se mantém qualificada como “muito grave” e cuja moldura legal é a mesma (cfr. artigo 117º nº 1 alínea w), pelo que, não sendo a nova lei mais favorável à Arguido, a punição da contraordenação em causa é determinada pela lei vigente à data da prática do facto, nos termos do artigo 4º nº 1 e 2 da LQCA, conforme entendimento também adotado na decisão administrativa.

O Decreto-Lei nº 183/2009 veio estabelecer um regime jurídico específico no que concerne ao exercício das atividades de operação de deposição de resíduos em aterro, com vista à promoção da reciclagem e valorização dos resíduos urbanos e de construção e demolição, bem como ao estabelecimento de elevados padrões de exigência ambiental.

Com efeito, a legislação em causa tem por objetivo evitar ou reduzir os efeitos negativos para o ambiente resultantes da deposição de resíduos em aterro, quer à escala local (em especial a poluição das águas superficiais e subterrâneas, do solo e da atmosfera), quer à escala global (em particular o efeito de estufa), bem como quaisquer riscos para a saúde humana, regulamentando não só a deposição de resíduos em aterro, como os requisitos gerais a observar na conceção, construção, exploração, encerramento e pós-encerramento de aterros, incluindo as caraterísticas técnicas específicas para cada classe de aterros.

Tal opção em matéria de política legislativa é, em cada sector da vida social, determinada por um critério de relevância que certas atividades ou comportamentos assumem no contexto da ordenação comunitária e na correlação desta com a necessidade de salvaguardar a proteção da natureza e dos recursos naturais.

Impõe-se, assim, mercê da preocupação de proteção do ambiente que tem vindo, nos últimos tempos, a ser cada vez mais divulgada, uma reação sancionatória contra todos os atos que manifestamente o desrespeitem.

À luz do artigo 66º nº 1 da Constituição da República Portuguesa: “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”.

Conforme referido por Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa, Anotada. Vol. I”, Coimbra Editora, 2007, p. 845, a nossa Constituição “estabelece, acertadamente, a articulação entre ambiente e qualidade de vida: o ambiente é um valor em si na medida em que também o é para a manutenção da existência e alargamento da felicidade dos seres humanos”.

Volvendo ao caso em apreço, atenta a matéria de facto dada como provada, dúvidas inexistem de que a Arguida incorreu na prática desta contraordenação, pois explorou o aterro mesmo sem licença de exploração válida, a qual havida caducado em 30/09/2016, apenas tendo recebido a nova licença de exploração em 17/06/2019 (Licença nº 1/2019/CCDRC).

Com efeito, a Arguida praticou atos e exerceu atividade de deposição de resíduos urbanos sem licença de exploração válida entre 01/10/2016 e 16/06/2019, ou seja, durante cerca de dois anos e oito meses.

Em relação ao alegado pela Recorrente, no sentido de imputar a responsabilidade por falta de licença válida à CCDR Centro e a questões burocráticas, isso não é fundamento para excluir a responsabilidade da mesma, na medida em que deveria ter assegurado todos esses procedimentos em tempo e/ou solicitado nova prorrogação, o que não demonstrou».

Assinalámos a bold o segmento referente à alusão inequívoca por parte do tribunal recorrido à revogação levada a cabo da norma punitiva dos artigos 12º e 48º, nº 1, alínea e) do DL 183/2009, de 10/8 pelo DL 102-D/2020, de 10 de Dezembro.

O tribunal não ignorou tal revogação.

Contudo, ao contrário do que se sustenta em recurso, não se tratou de uma «despenalização» mas de uma revogação de legislação anterior e substituição por outra que trata das mesmas questões e pune os mesmos actos contraordenacionais, mantendo-os com esse mesmo estatuto de ilícito de mera ordenação social [cfr. artigos 17º, nº 1 e 34º, nº 1, alínea i) do ANEXO II (a que se refere o artigo 3º) do dito diploma de 2020].

De facto, o diploma de 2020 veio revogar o diploma de 2009, continuando, porém, a sancionar-se como contraordenações ambientais os actos ilegais descrito no diploma revogado.

E o que o tribunal fez foi a devida aplicação da norma do artigo 4º (nomeadamente o seu nº 2) da Lei nº 50/2006, de 29/8 (a referida Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais) que prescreve o seguinte, a exemplo do que estatui a norma do artigo 3º do DL 400/82, de 27/10, o RGCO:

«1 - A punição da contraordenação é determinada pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que depende.

2 - Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplica-se a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado.

3 - Quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser punível como contraordenação o facto praticado durante esse período».

De facto, a nova lei não é mais favorável ao arguido relativamente ao diploma de 2009 (as molduras são as mesmas, pois são ambas oriundas da Lei nº 50/2006), razão pela qual se aplicou a lei vigente ao tempo dos factos (2017), em estrita obediência do nº 1 do citado artigo 4º, ou seja, a lei revogada mas, mesmo assim, aplicável.

Improcede, assim, mais esta alegação do recurso.

3.2.6. 6ª QUESTÃO: se agiu a arguida em estado de necessidade desculpante;

Alega a defesa que a arguida agiu com uma causa de exclusão da culpa.
Defende que não se poderia exigir uma outra conduta da sua parte (cfr. conclusões nºs 24 a 30).
O tribunal também abordou essa questão, e de forma certeira:

«Finalmente, não se verifica qualquer causa da exclusão da culpa, designadamente o invocado estado de necessidade desculpante (artigo 35º do Código Penal), na medida em que não foi alegado pela Recorrente qualquer “perigo atual e não removível de outro modo”, muitos menos que isso implicasse a ameaça para a “vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro”.

A atividade em causa rege-se por determinadas normas particularmente exigentes, pelo que, reitera-se, a Arguida deveria ter assegurado todos os procedimentos necessários para obter a nova licença em tempo e/ou solicitado nova prorrogação, o que não demonstrou; ou então deveria ter cessado a sua atividade enquanto não obtivesse nova licença, devendo a operação de recolha de resíduos urbanos ser solicitada/contratada a terceiros/entidades regular e validamente licenciados para o efeito.

Não o tendo feito, a Arguida sabia que tal não era lícito e também não podia deixar de saber que incorria em responsabilidade contraordenacional.

Mais se provou que, ao atuar da forma descrita, a Arguida incumpriu as obrigações/condições previstas na lei, bem sabendo que as mesmas lhe estavam cometidas, atento o facto de consubstanciarem normas que regem a sua atividade; que tinha a obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito para o exercício da respetiva atividade, pelo que, não o tendo feito, através dos seus legais representantes e/ou funcionários, não agiu com a diligência necessária a que estava obrigada e de que era capaz.

Pelo exposto, encontram-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos (negligência) da contraordenação prevista pelos artigos 12º e 48º nº 1 alínea e) Decreto-Lei nº 183/2009, de 10/08, na redação dada pelo Decreto-Lei nº 88/2013, de 09/07».

As chamadas causas de exclusão da culpa são estas:

a)- A inimputabilidade (artigos 19º e 20º do CP): inimputabilidade em razão da idade e em razão de anomalia psíquica;

b)- A falta de consciência da ilicitude (artigo 17º do CP) – onde teremos de falar do erro sobre a ilicitude (artigo 17º), do erro sobre as proibições formais do artº 16, n.º 1, parte final, do erro sobre a ilicitude e sobre a licitude (ou sobre a existência ou limites de uma causa de justificação – artigo 16º, n.º 2 do CP);

c)- O excesso de legítima defesa desculpante (artigo 33º, n.º 2 do CP);

d)- O estado de necessidade desculpante (artigo 35º do CP) e

e)-A obediência indevida desculpante (artigo 37º do CP).

A defesa invoca directamente o estado de necessidade desculpante (artigo 35º do CP).

Sabemos que o nosso ordenamento jurídico consagra a teoria diferenciada do estado de necessidade, que consiste na distinção entre o estado de necessidade objectivo (ou justificante) como meio de salvaguarda de um bem jurídico de maior valor do que o do sacrificado, e o estado de necessidade subjectivo (ou desculpante) como meio adequado de salvaguarda de um bem jurídico de igual ou menor valor do que o do sacrificado.

Neste último, ínsito na letra do artigo 35º do CP, enquanto circunstância de exclusão da culpa, pretende-se abranger aquelas situações em que se encontra enfraquecido, de forma significativa, o desvalor da acção ilícita através de situações de estados emocionais que colidem com o processo de formação da vontade, de tal forma que não é exigível ao agente outro comportamento.

Para esta norma do CP, aqui aplicável por remissão, não basta que o facto ilícito perpetrado seja adequado ao afastamento do perigo, sendo necessário que aquele seja o único facto capaz de remover o perigo.

Assim, havendo outro ou outros meios para afastar o perigo, o agente terá que optar pelo lícito ou menos ilícito.

Ou seja:

A verificação do estado de necessidade desculpante depende do preenchimento dos seguintes pressupostos:
· a verificação de uma situação de perigo actual para bens jurídicos de natureza pessoal (vida, integridade física, honra e liberdade) do agente ou de terceiro;
· o facto ilícito praticado tem de ser adequado, no sentido de idóneo a afastar o perigo que não seria removido por outro modo;
· que se conclua não se mostrar razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.

Tais pressupostos são cumulativos, pelo que a não verificação de um dos requisitos implica, inevitavelmente, a não aplicação da causa de exclusão da culpa.

Revertendo ao caso ora em apreço, constatamos que não se deu como provada (e teria sempre de se dar como provado o facto que levaria ao accionamento do artigo 35º do CP) qualquer circunstancialismo que redundasse numa qualquer situação de perigo actual que ameaçasse interesse juridicamente protegidos de terceiros, podendo dizer-se que sempre poderia a arguida ter agido de forma diversa.  

Diga-se ainda que ele sempre poderia ter agido de outra forma – como bem escreveu o tribunal recorrido, «a Arguida deveria ter assegurado todos os procedimentos necessários para obter a nova licença em tempo e/ou solicitado nova prorrogação, o que não demonstrou; ou então deveria ter cessado a sua atividade enquanto não obtivesse nova licença, devendo a operação de recolha de resíduos urbanos ser solicitada/contratada a terceiros/entidades regular e validamente licenciados para o efeito».

Improcede, assim, a 6ª questão.

3.2.7. 7ª QUESTÃO: se não havia necessidade de efectuar um cúmulo de coimas, havendo apenas que considerar uma única infracção;

Houve a prática de 4 contraordenações, cada uma punida com a sua coima.

Depois o concurso de contraordenações é imposto pelo artigo 27º, nºs 1, 2 e 3 da Lei nº 50/2005.

Por isso, e bem, foi feita a operação de determinação da coima única.

Só pode improceder mais esta alegação.

3.2.8. 8ª QUESTÃO: se foram adequados os montantes das coimas parcelares e de cúmulo.

3.2.8.1. Vamos finalmente falar de montantes de coimas.

Poucos sectores como o do ambiente se adaptam melhor às características do ilícito de mera ordenação social, já que, em princípio, no inquinamento do ambiente, não estão em causa tanto valores éticos indispensáveis para a subsistência da sociedade, e antes sim a perturbação duma ordem social, que na visão do Estado, proporciona maior bem-estar às pessoas.
«Isto não significa, porém, que as lesões do ambiente não possam assumir tal gravidade que atinjam "valores de justiça" com forte componente ética ao lado de valores de progresso. Que portanto as lesões do ambiente não possam figurar no âmbito do chamado ilícito criminal de justiça e que portanto o ambiente enquanto tal, não possa configurar um bem jurídico-penal de incidência eminentemente colectiva. Aliás, a elevação do ambiente enquanto tal a bem jurídico-penal será fruto duma evolução da sensibilidade do Estado para a questão, pressionado ou não pelas exigências que a população for fazendo. Cremos que estamos a ponto de dar esse passo fundamental, porque como adiante se verá, a reforma do Código Penal inclui um crime ecológico em sentido estrito» (José Souto de Moura, Tutela Penal e Contra-Ordenacional em matéria de ambiente).

Ora, o comportamento da arguida - pessoa colectiva - foi considerado negligente (cfr. facto nº 24) e autor da prática de 4 contraordenações:

· contraordenação ambiental muito grave (incumprimento da Autorização de Utilização dos Recursos Hídricos – Captação de Água Subterrânea n.º A004808.2016RH4), prevista pelo artigo 81.º n.º 3 alínea c) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31/05 e punível com a coima prevista no artigo 22.º n.º 4 alínea b) da Lei n.º 50/2006, de 29/08 (coima entre € 24.000 e € 144.000);
· de uma contraordenação ambiental muito grave (incumprimento da Licença de Utilização dos Recursos Hídricos – Rejeição de Águas Residuais n.º L005243.2013RH4), prevista pelo artigo 81.º n.º 3 alínea c) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31/05 e punível com a coima prevista no artigo 22.º n.º 4 alínea b) da Lei n.º 50/2006, de 29/08 (coima entre € 24.000 e € 144.000);
· de uma contraordenação ambiental muito grave (exploração de aterro sem Licença de Exploração válida – Licença de Exploração n.º 6/2009/DOGR), prevista pelo artigo 12.º e 48.º n.º 1 alínea e) do Decreto-Lei n.º 183/2009, de 10/08 e punível com a coima prevista no artigo 22.º n.º 4 alínea b) da Lei n.º 50/2006, de 29/08  (coima entre € 24.000 e € 144.000);
· de uma contraordenação ambiental grave (inobservância das condições fixadas nas Licenças Ambientais – Licença Ambiental n.º 354/2010, de 28 de janeiro e Licença Ambiental n.º 354/1.0/2016, de 30 de setembro), prevista pelo artigo 111.º n.º 2 alínea e) do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30/08 e punível com a coima prevista no artigo 22.º n.º 3 alínea b) da Lei n.º 50/2006, de 29/08 (coima entre € 12.000 e € 72.000).

A defesa entende que, a haver concurso de contraordenações, as 3 primeiras deveriam ser punidas com uma coima de € 18.000 e a 4ª com uma coima de € 12.000, não devendo a coima de cúmulo ser superior a € 20.000.

3.2.8.2. O tribunal recorrido justificou assim as medidas das coimas:

«Dispõe o artigo 18.º n.º 1 do RGCO que: “1 - A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação”.

As contraordenações ambientais são classificadas, quanto à sua gravidade, três como muito grave e uma como grave, o que se compreende, atendendo à natureza da conduta e aos fins pretendidos salvaguardar com as normas violadas.

A culpa da Arguida é elevada, pois pese embora tenha atuado de forma negligente, exercendo atividade relativa ao depósito de resíduos em aterro, impende sobre a mesma um especial dever de laborar de acordo com as condições fixadas nos regimes legais especiais em vigor.

Inexiste qualquer notícia ou elemento de prova que aponte para a verificação de qualquer uma das circunstâncias a que alude o artigo 23.º da LQCA.

Em relação à situação económica da mesma, da factualidade provada resulta que a Arguida, apesar do movimento financeiro intenso, teve prejuízos no último ano apurado (2022).

Finalmente, nada se apurou quanto ao benefício económico que a Arguida retirou da prática de cada contraordenação.

Destarte, o Tribunal considera justo, pertinente, adequado e proporcional aplicar à Arguida:

- a coima de 24.000,00 EUR (vinte e quatro mil euros), pela prática de cada uma das contraordenações ambientais muito graves;

- a coima de 12.000,00 EUR (doze mil euros), pela prática da contraordenação ambiental grave.


*

Do concurso de contraordenações:

Estabelece o artigo 27.º n.º 1, 2 e 3 da LQCA o seguinte:

“1 - Quem tiver praticado várias contraordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infrações em concurso.

2 - A coima a aplicar não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contraordenações em concurso.

3 - A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contraordenações”.

Assim sendo, a coima única a aplicar tem a sua moldura abstrata definida entre 24.000,00 EUR e 84.000,00 EUR.

Neste ponto, por força da culpa elevada da Arguida, da concreta coima aplicada a cada uma das contraordenações (pelo valor mínimo), o número de contraordenação distintas (quatro), e as elevadas exigências de prevenção geral, a imagem global dos ilícitos perpetrados aponta no sentido de uma gravidade de nível médio-elevado.

Por conseguinte, o Tribunal aplicará à Arguida a coima única de 60.000,00 EUR (sessenta mil euros)».

3.2.8.3. Como chegar, então, ao «quantum» justo?

Como é por todos sabido, as contraordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social.

Estas normas, ditas de mera ordenação social, não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contraordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.

A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa) mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, nº 10, da CRP e art. 50º do RGCO).

Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCO.

Trata-se, no fundo, de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.

Por ser extremamente eloquente, transcreve-se aqui parte da argumentação jurídica aposta no Acórdão desta Relação de 24/3/2004, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/61e55a7333c45ec780256e860053901f?OpenDocument (tendo como relator o hoje Juiz Conselheiro Oliveira Mendes):

«Passando ao conhecimento da segunda questão, seja a da medida da coima, começar-se-á por assinalar que as condutas ou comportamentos contra-ordenacionais, em si mesmos, isto é, independentemente da sua proibição legal, são axiologicamente neutros e, daí que, a coima represente um mal que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, antes servindo como mera «admonição», como especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais, pelo que não é conatural a uma tal sanção uma dimensão de retribuição ou expiação de uma culpa ética, como a não será a da ressocialização do agente (Cf. Figueiredo Dias, «O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social», estudo publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, I (1983), 317/336 e republicado em Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários (Coimbra Editora – 1998), 19/33).

Em todo o caso, como sanção que é, ela só é explicável enquanto resposta a um facto censurável, violador da ordem jurídica, cuja imputação se dirige à responsabilidade social do seu autor por não haver respeitado o dever que decorre das imposições legais, justificando-se a partir da necessidade de protecção dos bens jurídicos e de conservação e reforço da norma jurídica violada ( Cf. o recente trabalho do relator e do Exmº Desembargador Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas (2003), 58.), pelo que a determinação da medida da coima deve ser feita, fundamentalmente, em função de considerações de natureza preventiva geral ( - Como refere Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 5º Tema – Do Direito Penal Administrativo ao Direito de Mera Ordenação Social (2001), 150/151, relativamente à culpa, tal como na pena criminal, também na coima o pensamento da retribuição não joga qualquer papel, pelo que as finalidades da coima são (apenas) preventivas, às quais são em larga medida estranhas sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização.), sendo que a culpa constituirá o limite inultrapassável da sua medida.

Tal como decorre do texto legal – art.18º, nº 1, do RGCC –, na determinação da medida da coima, haverá também que considerar a gravidade da contraordenação».

Na linha do preceituado pelo artigo 18º, nº 1, do DL 433/82, de 27/10, “a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação”.

Em contrário da legislação penal, na qual essa tarefa se desdobra em dois momentos (determinação do número de dias de multa e definição do seu quantitativo diário), no âmbito contra-ordenacional a sanção é alcançada de forma imperfeita, insuficiente e não racionalizável, mas intuitiva (cfr. Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, de O. Mendes e S. Cabral, Almedina, pág. 57).

Quanto a tal, na sentença recorrida considerou-se que a conduta da arguida foi negligente e atentatória do dever de cuidado que deve sempre presidir a qualquer governação empresarial, em nome do princípio da protecção do ambiente e da segurança da sua qualidade, sob pena de se viver em estado selvagem, sem lei nem regras, apenas movidos pela ânsia do vão lucro, sem limites ou balizas…

A sua culpa foi considerada, e bem, como elevada, constando do facto nº 28 a situação económica da arguida, algo deficitária, não se conseguindo apurar o benefício económica que ela retirou da prática das 4 contraordenações, havendo aqui que fazer, então, funcionar a equidade.

Ora, o tribunal aplicou os mínimos legais (€ 24.000 nas 3 primeiras e € 12.000 na 4ª), não se compreendendo, assim, o pedido feito no recurso de coimas de € 18.000 quanto a cada uma das 3 contraordenações muito graves.

Desta forma, tendo em atenção os limites abstractamente fixados para as coimas em apreciação, a factualidade dada por assente e os parâmetros ora referidos e tendo em vista que devem presidir à aplicação das coimas (bem como de todas as penas em geral) os princípios da adequação e da proporcionalidade, como acima referido, as coimas aplicadas têm-se por adequadas (impossível para nós subir as coimas parcelares).

Quanto à coima em cúmulo, parece-nos também adequada, à luz dos critérios ínsitos no artigo 27º da Lei nº 50/2006 (moldura abstracta de € 24.000 a € 84.000), considerando, sobretudo, o número de contraordenações praticadas e as elevadas exigências de prevenção geral neste campo.
Sobre a operação do cúmulo jurídico, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com «a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente».
A decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado.
Tal decisão não pode, designadamente, deixar de se pronunciar sobre se a natureza e a gravidade dos factos reflecte a personalidade do respectivo autor ou a influenciou, «para que se possa obter uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, ou revela pluriocasionalidade (…), bem como ainda a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».
Artur Rodrigues da Costa dissertou brilhantemente sobre esta operação nos seguintes termos (artigo «O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ», que serviu de base a uma exposição oral no âmbito de uma acção de formação do CEJ que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto em 4 de Março de 2011):
«A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, constante do art. 77.º, n.º 1 do CP: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido.
À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.
Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da actuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO em anotação ao acórdão do STJ de 12/07/058. Ou, como diz FIGUEIREDO DIAS: «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique».
Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização».
Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita.
E tem de ter uma fundamentação específica na qual se espelhem as razões por que, em atenção aos referidos factores (em particular a propensão ou não do agente para a prática de crimes ou de determinado tipo de crimes), se aplicou uma determinada pena conjunta.
Normalmente, como veremos infra, as decisões das instâncias, principalmente da 1.ª instância, são deficientemente fundamentadas quando se trata da pena única, sobretudo porque se limitam a reproduzir o texto legal, sem fazerem uma avaliação concreta dos específicos factores a que a lei manda atender, o que tem dado origem a numerosas anulações dessas decisões por parte do STJ.
(…)
Na determinação da medida concreta da pena conjunta dentro da moldura penal abstracta, os critérios gerais de fixação da pena, segundo os parâmetros indicados – culpa e prevenção – contidos no art. 71.º do CP, servem apenas de guia para essa operação de fixação da pena conjunta, pois os mesmos não podem ser valorados novamente sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais factores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes.
(…)
Como se vê de todo o exposto, o nosso sistema caracteriza-se por ser um sistema de pena única ou conjunta, e não de pena unitária.
Por duas razões fundamentais:
· É um sistema que não prescinde da determinação da medida concreta das penas parcelares, sendo a partir delas que se constrói a moldura penal do concurso;
· A medida da pena do concurso no caso concreto é determinada dentro da moldura penal abstracta, entre um mínimo e um máximo, com a mesma liberdade com que se determina a unicidade de pena – culpa e prevenção, relacionadas com a gravidade do ilícito global em conjugação com a personalidade unitária revelada pelo agente, e não por adição das penas parcelares (ou de uma dada porção ou fracção delas), só sendo de agravar a pena no caso de se concluir pela radicação da multiplicidade delituosa na personalidade daquele, em termos de constituir uma tendência ou carreira criminosa.
Nisto se distingue do modelo de pena unitária, caracterizado por:
· Não relevância da autonomia dos crimes concorrentes
· A moldura do concurso não passa pela determinação das penas singulares.
· Tudo se passa como se fosse um crime único, referido a um determinado agente, pois o que interessa é a personalidade deste (direito penal do agente).
Sendo um sistema de pena conjunta ou pena única, não se confunde, todavia, com um princípio de absorção, em que a pena do concurso corresponde à pena concretamente determinada do crime mais grave; nem com o princípio da exasperação ou agravação em que a pena do concurso é determinada em função da moldura penal prevista para o crime mais grave, mas agravada em função da pluralidade de crimes, sem poder ultrapassar o somatório das penas concretamente aplicadas
Apenas há a notar que a moldura penal abstracta apoia o limite mínimo na pena parcelar mais alta, o que apresenta alguma analogia, só neste aspecto, com o princípio da absorção e que o limite máximo é constituído pelo somatório de toda as penas (com o limite absoluto de 25 anos de prisão), o que também se relaciona de alguma forma com o princípio da exasperação ou agravação e até com o da cumulação material, mas também só para o efeito de determinar o limite máximo da moldura penal abstracta.
De resto, nada impede que, num dado caso concreto, a pena aplicada seja correspondente ao mínimo da moldura penal abstracta, ou seja, o equivalente à pena parcelar mais alta, tal como sucede com a determinação da medida da pena no caso de unicidade de crime».
Aplicando todo este raciocínio também à determinação da coima em cúmulo jurídico, só nos resta validar a coima única obtida (€ 60.000).

3.2.8.4. E que dizer, por fim, da atenuação especial que não foi feita pelo tribunal?

Embora o art. 18º, nº 3 do RGCO estabeleça o regime legal da atenuação especial da punição, impondo a redução para metade dos limites mínimo e máximo da coima, a Lei nº 50/2006 também o prevê no seu artigo 23º-A.

Lá se escreve o seguinte:

«1 - Para além dos casos expressamente previstos na lei, a autoridade administrativa atenua especialmente a coima, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores à prática da contraordenação, ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima.

2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:

a) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados e o cumprimento da norma, ordem ou mandado infringido;

b) Terem decorrido dois anos sobre a prática da contraordenação, mantendo o agente boa conduta.

3 - Só pode ser atendida uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo».

O tribunal não deixou de opinar sobre a questão:

«Importa ainda, no caso concreto, apreciar a última questão suscitada em sede de recurso, nomeadamente, a atenuação especial da coima, porquanto, no entender da Recorrente, a culpa, a existir, é de grau mínimo, não obteve qualquer proveito e sempre atuou norteada pela defesa do ambiente e sem qualquer interesse económico, desempenhando uma atividade pública de valor reconhecido, para além do esforço empreendido após os incêndios florestais ocorridos em outubro de 2017, que destruiu parcialmente as instalações do aterro.

Dispõe o artigo 23.º-A da LQCA o seguinte:

“1 - Para além dos casos expressamente previstos na lei, a autoridade administrativa atenua especialmente a coima, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores à prática da contraordenação, ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima.

2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:

a) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados e o cumprimento da norma, ordem ou mandado infringido;

b) Terem decorrido dois anos sobre a prática da contraordenação, mantendo o agente boa conduta.

3 - Só pode ser atendida uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo”.

Ora, no caso em apreço, estamos perante quatro contraordenações ambientais, três muito graves e uma grave, a culpa é elevada, não foi invocada qualquer circunstância mencionada no artigo 23.º-A da LQCA e, em sede de audiência de julgamento, a testemunha e Inspetora da IGAMAOT, DD, informou que houve lugar a pelo menos duas novas inspeções, em 2018 e em 2020, sendo que em ambas há notícia de alegada prática de contraordenação.

Assim, não se verifica qualquer uma das circunstâncias ali elencadas, nem no artigo 72.º do Código Penal, aplicável ex vi artigo 32.º do RGCO.

Em face do exposto, por falta de fundamento legal, indefere-se o requerido».

Também nós não vislumbramos nos autos qualquer circunstancialismo passível de atentar especialmente as coimas aplicadas, inexistindo como apurado qualquer facto anterior ou posterior (ou contemporâneas) à prática destas contraordenações – em nº de 4 -, que diminua acentuadamente a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da própria coima.

Mesmo dando-se como não escrito aquilo que foi discutido no ponto 3.2.2. deste aresto (irrelevância do comportamento posterior da arguida[2]), sempre consideraríamos que a arguida não deverá beneficiar desta atenuação.

3.2.8.5. O ambiente somos nós que o fazemos, não nos cansamos de dizer.
Costumeiramente observamos o português atribuindo aos governos responsabilidades por diversos factos quotidianos.
Com as questões ambientais não é diferente.
Não raras vezes, vemos, ouvimos e lemos reclamações entre pessoas próximas em relação a depósitos irregulares de lixo, a materiais de construção, a poluição sonora, a poluição hídrica, a veículos em situações irregulares…
No entanto, por tantas e tantas vezes, essas reclamações restringem-se a uma rápida conversa ou mesmo a um "stress momentâneo".
Passado aquele momento de revolta, simplesmente retomamos a nossa rotina, como se nada tivesse acontecido.
Ao invés de reclamarmos ou atribuirmos a culpa das mazelas quotidianas às tutelas deveríamos, inicialmente, colher informação bastante sobre as nossas obrigações legais.
Em Portugal, os princípios legais supremos em matéria ambiental são atribuídos pela Constituição, mormente, no seu artigo 66º.
Acreditamos ainda, que o factor mais importante a se colocar aqui é que a obrigação se apresenta muito mais ampla do que a simples preservação do ambiente.
Usar racionalmente os recursos naturais, não dispor dos resíduos de maneira inadequada, respeitar as restrições ambientais, manter veículos funcionando dentro das normas ambientais de emissões de ruídos e atmosféricas, entre outros, são sim obrigações, não sendo, contudo, as únicas.
Também é nossa obrigação a defesa do ambiente.
Isso mesmo defendem Vital Moreira e Gomes Canotilho na sua CRC anotada, ao escreverem que «este dever de defesa do ambiente, previsto no artigo 66º da CRP, é caracterizado por 3 aspectos:
- a obrigação de não atentar contra o ambiente;
- a existência das obrigações positivas, como, por exemplo, a obrigação de tratar de resíduos ou efluentes domésticos e industrias;
- o dever de impedir os atentados de outrem ao ambiente, incluído pelo exercício da acção popular».
Que não se chegue a esse ponto e que as decisões dos nossos tribunais sejam corajosas, proactivas, preventivas e suficientemente severas para fazer recuar o cego e surdo transgressor, o infiel «jardineiro/cidadão», a empresa mais negligente…
Deste modo, manteremos os montantes das coimas colocadas em causa neste recurso, tal como foram gizados pelo tribunal recorrido, não nos merecendo qualquer censura a operação intelectual feita para dosear a medida exacta das mesmas, respeitados que foram, com equidade e justo equilíbrio, os pressupostos do já citado artigo 18º do RGCO.

3.3. Improcede, assim, in totum, o recurso intentado.

            III – DISPOSITIVO

           

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a sentença recorrida.



Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].

           


Coimbra, 19 de Junho de 2024
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro  – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

 


Relator: Paulo Guerra

Adjunto: José Eduardo Martins

Adjunto: João Bernardo Peral Novais



[1] Fernanda Palma fala mesma num “direito penal especial” ou num “direito penal secundário”, expressões que não secundamos pois o afastamento filosófico de base do direito penal é, por demais, evidente e necessário.
[2] E se é verdade que não podemos concluir que ela manteve mau comportamento ambiental depois de 2017, também o é que não resulta apurado que tenha tido bom comportamento posterior, a justificar a benesse prevista no artigo 23º-A, nº 2, alínea b) da Lei nº 50/2006.