INSTRUÇÃO
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
Sumário


I – Imputando-se ao arguido um crime de ofensas à integridade física sobre determinado ofendido, com descrição, na acusação, dos factos correspondentes aos respectivos elementos subjectivos, não pode na pronúncia aproveitar-se essa descrição para com ela e de um mesmo passo integrar os elementos subjectivos de outro crime de ofensas à integridade física que na instrução se tivesse indiciado como cometido sobre outro ofendido.
II – Por outro lado, mesmo que no decurso de instrução se tivesse, relativamente a esse outro crime, sobre outro ofendido, com efeito logrado indiciação também dos pertinentes elementos subjectivos, a pronúncia por ele, suportada em descrição dos correspondentes factos que então se fizessem constar da descrição do libelo, seria inviável como mera alteração não substancial de factos e seguindo os procedimentos para isso previstos no art. 303.º/1, do CPP.
III – Levar à pronúncia esses outros factos que da acusação não constavam e, com eles, perfectibilizar crime que, sendo embora da mesma natureza, é do ponto de vista fenomenológico essencialmente diverso do naquela imputado, consistiria isso sim, e claramente, à luz do art. 1.º/f, do CPP, em alteração substancial, que na instrução é vedada pelo art. 303.º/3, do CPP.
Sumário elaborado pelo relator

Texto Integral

ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo de Instrução Criminal de Coimbra (J3), do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, e no culminar da instrução, requerida pela arguida AA, contra quem fora deduzida acusação pública imputando-lhe a comissão de um crime de desobediência, p. e p. pelos art. 348.º/1-b, do Código Penal (CP), um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347.º/1, do CP, e um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art. 143.º/1, 145.º/1-a/2, e 132.º/2-l, do CP, foi a 25/01/2024 proferido despacho em que, nos termos dos art. 307.º/1, e 308.º/1, do Código de Processo Penal (CPP), se decidiu não pronunciar aquela arguida pelos dois primeiros, de desobediência e resistência, por entender-se não preencherem os factos indiciados cabalmente os correspondentes tipos, mas pronunciá-la isso sim pelo terceiro, de ofensas à integridade física qualificadas, esse inversamente tido por preenchido com os factos indiciados. 

2. Contra esse despacho recorre o Ministério Público (MP), manifestando conformar-se com a não pronúncia da arguida pelos crimes de desobediência e de resistência, e bem assim com a pronúncia pelo crime de ofensas à integridade física qualificada, mas considerar que os factos subjacentes à imputação do de resistência, na medida em que ficaram indiciados ou ao menos com alteração não substancial cuja consideração, com os inerentes procedimentos, foi omitida, implicaria a pronúncia, ainda, por outro crime de ofensas à integridade física qualificada, que é enfim o que com o recurso visa em primeira linha, subsidiariamente pretendendo a substituição do despacho de pronúncia por outro que comunique a dita alteração não substancial. Apontando assim como violados os art. 283.º/2, 303.º/1 e 308.º/1, do CPP, e 143.º/1, 145.º/1-a/2, e 132.º/2-l, do CP, das motivações de recurso extrai a final as seguintes conclusões:

« I – No encerramento do inquérito, foi proferido despacho de acusação contra a arguida, imputando-lhe, além do mais, a prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347.º/1, do CP.

II – Foi depois proferido despacho de não pronúncia, por considerar o Exmo. Sr. juiz que a conduta da arguida não era adequada à produção do resultado visado, o de obstar ao exercício das funções por parte dos agentes da PSP, pelo que considerou não indiciado tal propósito.

III – Porém, os factos considerados indiciados preenchem os elementos típicos do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art. 143.º e 145.º/1-a/2, em referência ao art. 132.º/2-l, do CP, na pessoa do agente da PSP BB,

IV – existindo uma possibilidade razoável de futura condenação da arguida em julgamento, que se afigura como mais provável do que a sua absolvição, pelo que deveria ser proferido despacho de pronúncia em conformidade.

V – Sendo de relevar os factos descritos nos pontos 3, 4, 5, 7 e 8, da factualidade indiciada e, sobretudo, nos pontos 9,10, 14 e 16: a arguida “empregando força, empurrou o agente BB, fazendo com que o mesmo se desequilibrasse e caísse ao chão”, e quando este lhe deu ordem de detenção, “em acto contínuo, tentou mordê-lo”; e que a mesma sabia que ele era agente da PSP, “investido dos seus poderes de autoridade e no exercício das suas funções” e que “agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que toda a descrita conduta era proibida e punida por lei penal e tinha a liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento”.

VI – Pelo que estão preenchidos os elementos típicos do referido crime, objectivos e subjectivos, deles resultando que a arguida actuou dolosamente, o que é suficiente, pois o tipo não exige uma intenção específica; mas extraindo-se ainda dois factos – empurrão e tentativa de mordedura – que a mesma actuou com a vontade de molestar corporalmente o ofendido.

VII – Assim como está preenchido o tipo de culpa agravada, do art. 145.º em referência ao art. 132.º/2-l: o agente da PSP estava uniformizado e no exercício de funções, como sabia a arguida, que actuou em desrespeito pelo visado e com desprezo pela sua qualidade e pelas funções exercidas, o que é especialmente censurável.

VIII – O despacho de não pronúncia, que violou o disposto nos art. 283.º/2, e 308.º/1, do CPP, e 143.º e 145.º/1-a/2, em referência ao art. 132.º/2-l, do CP, deverá ser substituído por outro que pronuncie a arguida, em concurso real com o crime pelo qual foi pronunciada, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art. 143.º e 145.º/1-a/2, em referência ao art. 132.º/2-l, do CP, na pessoa do agente BB.

IX – Sem conceder, ainda que se entendesse que tais factos não são suficientes, tendo sido afastado o propósito imputado na acusação, os factos considerados indiciados já permitem concluir, como se disse, pela indiciada intenção da arguida, de molestar corporalmente o visado.

X – Pelo que deveria o despacho de não pronúncia, por violar o disposto nos art. 283.º/2, 303.º/1, e 308.º/1, do CPP, e 143.º e 145.º/1-a/2, em referência ao art. 132.º/2-l, do CP, ser substituído por outro que comunicasse à arguida essa alteração não substancial de factos. »

3. Admitido o recurso, respondeu-lhe a arguida, pugnando por que lhe seja negado provimento, em substância (e descontando deslocadas iterações sobre a matéria dos já afastados crimes de desobediência e resistência, e até imputações contra os ofendidos), exprimindo, quanto às razões de recurso, o entendimento de que nem sequer teriam ficado indiciados objectivos actos agressivos sobre o agente da PSP, e que no plano subjectivo a intenção agressiva indiciada se reporta isso sim à agressão praticada sobre a outra agente da PSP e pela qual acabou pronunciada – ao que acrescenta que mesmo a assumir o dito empurrão como indiciado, se não teria na pessoa daquele primeiro agente sido produzida lesão bastante para o preenchimento do tipo, e não certamente em termos que da sua parte implicassem a culpa agravada pressuposta na forma qualificada dele.

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que, acompanhando as razões de recurso, defende a respectiva procedência, sendo que cumprido depois o disposto no art. 417.º/2, do CPP, nada mais se acrescentou, de sorte que, ao exame preliminar não se tendo patenteado dúvidas relevantes, sem vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso está limitado às focadas nas conclusões apresentada pelo recorrente. Nenhuma daquelas se perfilando, temos, considerando estas últimas, que a matérias aqui a apreciar, de direito somente, se limita à do alegado erro de qualificação dos factos indiciados, ao se não ter dado por preenchido pela arguida, com os relevantes originalmente do acusado crime de resistência, e se necessário com prévio procedimento de alteração não substancial dos constantes da acusação, de um outro crime de ofensas à integridade físicas qualificadas, isso sim, além do imputado na pronúncia – daí decorrendo a supostamente indevida não pronúncia por também esse outro.

         

1.2. Não incidindo sobre decisão que tivesse conhecido a final do objecto do processo, nos precisos termos do art. 97.º/1-a, do CPP, sempre e de acordo com disposto no art. 419.º/3-c, do CPP, deveria o recurso ser julgado em conferência, como foi.

2. A decisão recorrida

Cumprindo fazer aqui presentes o que da decisão recorrida se mostre relevante para a boa decisão da causa, resulta, sendo certo que estão fora do âmbito do recurso a não pronúncia pelos crimes de desobediência e de resistência, e bem assim a pronúncia por um crime de ofensas à integridade física qualificada (sobre a agente da PSP CC), que isso se cinge afinal à enunciação dos factos tidos por indiciados e não indiciados, sobre os quais se imporá a formulação de juízo sobre se devia ou não ter sido a arguida igualmente pronunciada por outro crime idêntico, este sobre o agente da PSP BB. Assim delimitado, é o seguinte o teor da decisão:

« (…)

Existem, assim, indícios da seguinte factualidade descrita na douta acusação pública e que ora se transcreve:

1. No dia 19.06.2020, cerca das 20h00, a arguida encontrava- se na companhia de outras pessoas nas escadas da Igreja da Sé Velha, situadas no Largo ..., em ....

2. Na altura, a arguida encontrava-se a estudar na Universidade ..., entendendo a língua portuguesa.

3. Nas circunstâncias de tempo e lugar acima referidas, os agentes da Polícia de Segurança Pública BB, DD e CC, devidamente uniformizados, trajando o uniforme identificativo da P.S.P, levavam a cabo, no exercício das suas funções, uma Operação Especial de Prevenção Criminal, no âmbito do Regime Jurídico das Armas e suas Munições e Tráfico e Consumo de produtos estupefacientes.

4. Nessa sequência, após visualizarem junto da arguida, pousado no solo, um moinho de cor vermelha, próprio para moer produto estupefaciente, e a posse de liamba por parte de uma das pessoas que ali se encontrava, o agente BB, depois de se identificar verbalmente com a palavra “Polícia”, abordou a arguida, questionando-a se o referido moinho lhe pertencia, ao que a mesma, logo, respondeu que os agentes da polícia não a podiam questionar naquele sentido, uma vez que se encontrava na via pública.

5. Perante tal atitude, o agente BB pediu à arguida a sua identificação.

6. A arguida começou a filmar os agentes da Polícia;

7. O agente BB informou a arguida de que a mesma tinha que se identificar, uma vez que estava em curso a Operação Especial de Prevenção Criminal identificada em 3., ao mesmo tempo que a advertiu que, caso se recusasse a fornecer a respetiva identificação, incorria na prática de um crime de desobediência.

8. Nesta decorrência, perante a anterior visualização junto da arguida do moinho de cor vermelha referido em 4., o agente da PSP disse à ofendida que a mesma seria sujeita a uma revista sumária a ser efetuada por um Agente da Polícia do sexo feminino.

9. Perante a ordem de revista, a arguida, empregando força, empurrou o agente BB, fazendo com que o mesmo se desequilibrasse e caísse ao chão.

10. Em face de tal comportamento da arguida, o agente BB deu voz de detenção à arguida, a qual, em ato contínuo, tentou mordê-lo, sendo a mesma conduzida à viatura policial.

11. Já no interior da viatura policial, a arguida dirigiu-se à agente CC e desferiu-lhe uma mordedura no membro superior direito.

12. Como consequência direta e necessária de tal mordedura, a agente CC sofreu, no membro superior direito, no terço distal da face anterior do braço, uma equimose com 03 (três) centímetros de diâmetro.

13. A lesão descrita em 12. determinou um período de doença fixável em 04 (quatro) dias, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.

14. A arguida bem sabia que BB, DD e CC eram agentes da Polícia de Segurança Pública, investidos dos seus poderes de autoridade, e que atuavam no exercício das suas funções.

15. Mais atuou a arguida com o objetivo conseguido de molestar o corpo e a saúde da agente CC, e de lhe produzir a lesão descrita em 12.

16. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a descrita conduta era proibida e punida por lei penal e tinha a capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

Não existem indícios da seguinte factualidade descrita na douta acusação pública:

1. A arguida recusou a identificação ao agente BB;

2. Não obstante tal advertência, a arguida recusou fornecer a sua identificação e entregar um documento relativo à sua identificação.

3. A arguida incitou as outras pessoas que a acompanhavam a não fornecerem as suas identificações.

4. Com a conduta descrita, a arguida agiu com o propósito concretizado de persistir na recusa em fornecer a sua identificação, bem sabendo que, ao fazê-lo, desrespeitava uma ordem legítima, emanada por autoridade pública competente.

5. A arguida bem sabia que devia respeitar a ordem que lhe foi regularmente comunicada, estando ciente de que, não a acatando, incorreria na prática de um crime de desobediência.

6. Com o comportamento descrito em 9., a arguida atuou com o propósito conseguido de impedir a concretização da revista sumária ordenada por agente da PSP e assim dissuadir os agentes a cumprirem com as suas funções, opondo-se a que a PSP praticasse tal ato relativo às suas funções.

7. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que todas as descritas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e tinha a capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

(…) »

3. Enfim apreciando

3.1. Comecemos por observar que na acusação de 07/06/2023, e além dos crimes de desobediência e de resistência porque veio depois a ser não pronunciada, o crime de ofensas à integridade física qualificada que à arguida vinha imputado, e pelo qual isso sim acabou pronunciada, teria sido cometido sobre uma agente da PSP, CC – e o que o MP em recurso pretende é que à pronúncia sobre esse crime se some pronúncia também por outro idêntico, mas este cometido sobre outro agente da PSP, EE, relativamente ao qual e com os actos descritos no libelo acusatório se configurara neste aquele depois prejudicado crime de resistência.

A posição do recorrente pode pois reconduzir-se à sustentação de que, não integrando aqueles indiciados factos o crime de resistência (pelo qual e por isso se conforma com a decisão de não pronúncia por este), sempre integrariam, isso sim, o de ofensas à integridade física qualificada sobre aquele outro agente da PSP, e desse modo também por este deveria a pronúncia ter tido lugar.

Concretamente, o recorrente extrai a alegada perfectibilização desse outro tipo de crime, tanto nos respectivos elementos objectivos como subjectivos, dos factos enumerados como indiciados sob 3 a 5, 7, 8 e 16 (que densificam o cabal conhecimento pela arguida da qualidade funcional em que o ofendido consigo interagia), 9 e 10 (em que se descreve a material acção agressiva tipicamente relevante), e enfim 14 (em que se enunciariam suficientemente os elementos do dolo); e de resto, segue a argumentação, ainda que a este último respeito assim se não entendesse, designadamente por não se ter afinal tido por indiciado um concreto propósito da sua actuação sobre aquele agente da PSP (factos tidos como não indiciados sob 6 e 7), então, e porque de todo o modo uma intenção de molestar fisicamente o visado se inferiria com segurança bastante da objectividade daquela actuação, deveria quando menos ter tido lugar, com vista a tê-la em consideração para a pretendida pronúncia, o mecanismo da alteração não substancial dos factos (art. 303.º/1, do CPP).

3.2. Adiantamos, desde já, não poder acompanhar um tal entendimento das coisas, dando assim o recurso por fadado à improcedência. Reconhecemos, sem hesitação e face à pacificidade e até evidência do ponto (independentemente, é claro, de o visado ter ou não sentido dores), que o empurrão desferido pela arguida sobre aquele agente da PSP em funções, bastaria para afirmar o preenchimento do tipo objectivo (ofender o corpo de outrem), à luz do art. 143.º/1, do CP, e ainda que, tal actuação, com conhecimento de serem aquelas a qualidade e funções do mesmo, seria até e ao menos em primeira análise suficiente para configurar a qualificação do crime em causa, aqui à luz dos art. 145.º/1-a/2, e 132.º/2-l, também do CP.

Todavia, e independentemente do que pode na verdade inferir-se daquela actuação objectiva, o que sempre se imporia era a constatação de que logo a acusação não incluía qualquer descrição de uma intenção da arguida de fisicamente agredir aquele agente BB (contrariamente ao que sucedeu relativamente à sua actuação sobre a agente CC – cfr. o ponto 18 da acusação, correspondente ao facto na decisão instrutória dado como indiciado sob 15).

E claro, não constava da acusação e nem consta do elenco daqueles factos tidos por indiciados no culminar da decisão instrutória, notando-se que o como tal enunciado sob 16, relativo à liberdade e voluntariedade de acção, a despeito da consciência da proibição e punibilidade criminal dela, se reporta claramente à de agredir a dita CC, não podendo ser dissociado do teor daquele facto indiciado sob 15 (o objectivo de molestar fisicamente aquela agente).

Não podendo decerto aproveitar-se a descrição do elemento volitivo do dolo (a intenção de agredir) relativo a uma agressão, sobre uma pessoa, para o configurar relativamente a outra, sobre pessoa diversa, sucede mesmo que, quanto a esta última (o agente BB), o que nesse plano pudesse da acusação aproveitar-se resultou até na decisão instrutória como não indiciado (cfr. o facto como tal enunciado sob 7). 

3.3. Certamente, e como o recorrente argumenta, o tipo de crime de ofensas à integridade física não reclama, no plano subjectivo, um qualquer dolo específico, no sentido de mais do que os correspondentes elementos intelectual/cognitivo e volitivo (directo, necessário ou eventual), por referência ao tipo e nos termos gerais do art. 14.º/1/2/3, do CP; mas o ponto está em que nem por isso prescinde de cabal afirmação do dolo, em ambos os seus elementos, incluindo desde logo, claro está, o volitivo, e relativamente à específica acção com que se perspective o seu preenchimento.

É dizer, e nas palavras das conclusões de recurso, “o tipo não exige uma intenção específica” (conclusão VI), mas certamente não prescinde de uma intencionalidade, que é a de praticar a acção típica, sendo isso o que não pode dizer-se abrangido pelo juízo de indiciação de factos formulado na decisão recorrida.

Breve, na falta de descrição, entre os factos tidos por indiciados na decisão instrutória (e até logo na acusação), do dolo da arguida relativo concretamente a ofensas à integridade física daquele agente BB (claramente: da própria intencionalidade de agredi-lo), falta que não pode ser suprida com apelo à descrição do dolo relativo às ofensas sobre a agente CC (!), como que generalizando este último a todas as mais condutas, não seria sequer equacionável a pronúncia por também aquele suposto crime, baldado sendo, salvo o devido respeito, quanto em contrário procura argumentar o recorrente.

Aliás, é certamente por disso ter afinal consciência que este, em jeito de segunda linha de argumentação, ensaia sustentar que para suprir aquela falta deveria o tribunal recorrido, em vista da afirmação dos correspondentes factos como indiciados, e em última análise da dita pronúncia, ter lançado mão do mecanismo de alteração não substancial dos factos, nos termos do art. 303.º/1, do CPP: ter anunciado à arguida que, inferido a partir dos apurados empurrão àquele agente e tentativa de mordê-lo, ponderaria a consideração do seu dolo nisso, dando-lhe prazo para adequação da respectiva defesa e, ulteriormente, na decisão e em tudo ponderado a ser o caso, incluir a descrição desse dolo entre os factos enunciados e decorrentemente pronunciá-la por também esse crime.

3.4. Ora, reiterando que nada custaria, e até que em termos gerais a experiência comum o imporia, extrair do apurado acto de empurrar o agente BB uma vontade/intenção da arguida de com isso o molestar fisicamente, não cabendo duvidar da sua consciência da ilicitude disso e estando até assente, para efeitos da qualificação, que sabia bem quais as qualidade e funções daquele nessa ocasião, sucede contudo que o que àquela segunda linha de argumentação do recorrente temos de contrapor é, sempre salvo o devido respeito, que se nos afigura uma incorrecção postular como indiciada, na decisão instrutória e à margem da descrição da acusação, uma afirmação do dolo da arguida na acção sobre aquele agente, daria afinal corpo a nada mais do que uma alteração não substancial dos factos.

Muito pelo contrário, colocar na pronúncia esse dolo (relativo concretamente ao empurrão sobre o agente BB), quando da acusação não constava, e precisamente porque isso conduziria em última análise à perfectibilização de outro crime (ofensas à integridade física qualificadas) que não o nesta última imputado (resistência), traduzir-se-ia isso sim em uma alteração substancial dos factos, à luz do art. 1.º/f, do CPP: tratar-se-ia de uma alteração de factos (na pronúncia e relativamente à acusação), do espírito mas factos, que redundaria na imputação à arguida de um crime que, embora não sendo mais gravemente punível nos limites máximos de moldura (quatro anos, no caso das ofensas à integridade física qualificada e de acordo com o art. 145.º/1-a, do CP, em comparação com os cinco anos previstos para a resistência pelo art. 347.º/1, do CP), seria um crime diverso (não obstante as margens de coincidência quanto aos bens jurídicos acessoriamente protegidos por um e por outro).

E, como alteração substancial que isso representaria, o art. 303.º/3, do CPP, teria terminantemente vedado ao tribunal recorrido, aliás sob pena de nulidade da decisão (art. 309.º/1, do CPP), tomar em conta, para efeito de pronúncia neste processo, esses novos factos (enfatizemos: tradutores de dolo da arguida relativamente a ofensas à integridade física contra o agente BB).

3.5. Temos então que, ao invés do que sustenta o recorrente, nem os factos tidos por indiciados consentiriam, por falta de descrição do pertinente dolo, deslocar a imputação do crime de resistência para a do de ofensas à integridade física qualificada (a não ser assim, tratar-se-ia até e em rigor de nada mais do que uma aliás simples alteração da qualificação jurídica, de que teria cumprido cuidar nos termos do art. 303.º/1/5, do CPP), nem a inclusão dessa descrição na decisão instrutória, quando antes não constava da acusação, e a consequente pronúncia pelo dito crime que na acusação não vinha imputado, poderiam consentir-se sob a capa de mera alteração não substancial, única viável, e a ser o caso devida, nos termos daquele art. 303.º/1, do CPP.

Donde, e em suma, com a não pronúncia da arguida pelo dito crime de ofensas à integridade física qualificadas (contra o agente BB), a decisão recorrida não se fez incursa em violação alguma dos art. 283.º/2, 303.º/1, e 308.º/1/2, do CPP, e menos dos art. 143.º/1, 145.º/1-a/2, e 132.º/2-l, do CP, sendo isenta das censuras que o recorrente lhe dirigiu.

E daqui resultando sem mais a negação de provimento ao recurso, com a consequente manutenção do decidido, resta apenas referir que fora de equação ficam as questões que a recorrida, a pretexto de àquele responder, quis afinal renovar a respeito do que se indiciou ou não: nem por seu lado recorreu nem em rigor o recurso lhe seria admissível – na parte em que não foi pronunciada, pelos acusados crimes de desobediência e de resistência, ou por outro qualquer que não constasse da acusação, porque não teria para tanto interesse em agir (art. 401.º/2, do CPP); e na parte em que foi pronunciada, pelo de ofensas à integridade física qualificadas que na acusação vinha já imputado (sobre a agente CC), porque isso directamente lho vedariam os art. 310.º/1, e 400.º/1-g, do CPP.  

 

III – Decisão

À luz do exposto, nega-se provimento ao recurso do Ministério Público, com isso se mantendo integralmente a recorrida decisão de 25/01/2024.

Sem custas, por ser delas isento o recorrente (art. 4.º/1-a, do RCP).

Notifique


*
Coimbra, 19 de Junho de 2024
Pedro Lima (relator)

Carolina Cardoso (1.ª adjunta)

João Novais (2.º adjunto)

Assinado eletronicamente