INVENTÁRIO
PARTILHA DE BENS COMUNS DO CASAL
COMPENSAÇÕES STRICTO SENSU
CRÉDITOS ENTRE CÔNJUGES
Sumário


.1- Na partilha da comunhão conjugal, quando há movimentos entre o património comum e os patrimónios próprios dos cônjuges aparece a obrigação de fazer a compensação entre tais deslocações, equilibrando transferências não queridas pelo direito, como os casos em que um destes patrimónios responde por dívidas de outro património.
.2- Assim, quando um dos cônjuges responde com bens próprios por dívidas que a ambos responsabilizava ou injeta o valor de bens próprios no património comum, tem direito a ser reembolsado de metade do montante global de tais pagamentos, surgindo um crédito de compensação a seu favor, o qual só é exigível no momento da partilha dos bens do casal; esta compensação tem lugar preferencialmente na meação do cônjuge devedor no património comum (artigos 1697º nº 1 e 2, 1730.º, 524.º e 1697.º e 1689º nº 3 do Código Civil).

Texto Integral


 Cabeça de casal e Apelante: AA

Requerente interessada e apelada: BB
Autos de: inventário para partilha de bens subsequente a divórcio

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

.I- Relatório

1.  
Em 17.11.2017, o cabeça de casal apresentou a relação de bens, na qual relacionou, para além do mais os seguintes “direitos de crédito”:
Verba n.º 1 Crédito do cabeça-de-casal por amortização total do empréstimo habitação no Banco 1... relativo ao imóvel descrito na Verba n.º 41, liquidado com dinheiros próprios do Cabeça de Casal, provenientes do quinhão hereditário que lhe foi atribuído da herança do seu pai, liquidação da quantia de €143.173,55
Verba n.º 2 Crédito do cabeça-de-casal correspondente a depósito bancário na conta do ex casal do valor ainda recebido herança proveniente do seu pai €40.000,00;
 Verba nº 3 Bem próprio do Cabeça de casal, proveniente da venda de imóvel adquirido em solteiro e vendido em 31/10/2002 tendo o produto da venda sido aplicado na construção da casa €72.325,70».
2.
Em 23-4-2018, a requente reclamou contra a relacionação destas verbas, invocando, em síntese, que deveriam ser relacionadas como passivo, “por serem alegadas dívidas do património comum” e pugnou pela diminuição de alguns valores e a eliminação de outros.
3.
Em 10-2-2021, foi proferida sentença de incidente da reclamação da relação de bens pela qual se decidiu eliminar da relação de bens as verbas relacionadas como direitos de crédito e a verba relacionada como passivo.
4.
Interposto recurso deste despacho foi proferido acórdão que determinou “o aditamento à al. e) da decisão recorrida de 09.02.2021 do seguinte segmento: «sem prejuízo da discussão, nos termos e para os efeitos da aplicação do art. 1790º do C. Civil, da relevância e prova de valores que tenham sido recebidos pelo cabeça de casal por herança e por produto de venda de bem de solteiro e tenham contribuído para aquisição ou investimento em património do extinto casal».”
5.
Em 6-9-2023, o cabeça-de-casal veio apresentar proposta para elaboração do mapa de partilha, dando conta e defendendo: “-O Cabeça de Casal e a Requerida contraíram casamento a ../../1991; -os bens a PARTILHAR: são os Constantes das Verbas n.º 1 a 54 do ATIVO da Relação de Bens , licitados e adjudicados na conferência de interessados, no valor de €5.805,00 e os Constantes das Verbas n.º 1 a 3 da Rubrica DINHEIROS, TÍTULOS E CERTIFICADOS da Relação de Bens, no valor de €77.582,16 - DIREITOS DE CRÉDITO: Os Constantes das Verbas n.º 1 e 2 da Rubrica DIREITOS DE CRÉDITO da Relação de Bens de Fls, no valor de €195.499,25.
Somam-se o valor dos bens descritos na relação de bens, com os aumentos provenientes da Conferência de Interessados/avaliação e dividem-se em duas partes iguais. Cada parte constitui a meação de cada interessado, no valor de €341.693,58 (trezentos e quarenta e um mil, seiscentos e noventa e três euros e cinquenta e oito cêntimos). 3. Ao quinhão da interessada BB no valor de €341.693,58 abate-se os direitos de crédito do cabeça de casal, cabendo-lhe o valor de €146.194,33. (€341.693,58 - €195.499,25 = €146.194,33)”
6.
Em 8-9-2022, as partes declararam:
“Quanto aos quantitativos monetários a partilhar estão de acordo que ascendem aos seguintes montantes:
… Quanto aos direito de crédito:
- verba n.º 1- mantém-se o valor de €143.173,55, que fica a pertencer como direito de crédito do cabeça de casal.
 - verba n.º 2 - eliminada.
- verba n.º 3 - reduzem o valor para €52.325,70, que fica a pertencer como direito de crédito do cabeça de casal.“
7.
Em 12-9-2023, a interessada e Requerente do inventário veio apresentar proposta para elaboração do mapa de partilha, dando conta e defendendo:
 “os bens a partilhar: Verbas n.º 1 a 54 do ATIVO da Relação de Bens pelos valores licitados e adjudicados ao cabeça-de-casal na conferência de interessados, pelo valor de €5.805,00 Verba 55 – bem imóvel ao qua, após avaliação, foi atribuído o valor de € 600.000,00, adjudicado ao cabeça-de-casal e à Requerente em compropriedade. Verbas n.º 1 a 3 da Rubrica DINHEIROS, TITULOS E CERTIFICADOS da Relação de Bens, no valor de €77.582,16, todos em posse do cabeça-de-casal, a serem divididos entre ambos em partes iguais.
Para obtenção do valor dos bens a partilhar, somam-se os valores dos bens levados à partilha, acima identificados, obtendo-se o montante de € 683.387,16, correspondendo o quinhão da Requerente e do cabeça-de-casal a metade do referido valor, ou seja, € 341.693.58. Ao cabeça-de-casal foram adjudicadas as seguintes verbas, cujos valores serão abatidos ao seu quinhão: - € 5.805,00 referente às verbas 1 a 54 do activo. - € 300.000,00 referente a metade do valor do imóvel, verba 55, - € 38.791,08 referente a metade das verbas 1 a 3 de dinheiros. Total: 344.596,08 Leva a mais € 2.902,50, que repõe em tornas.
 Nos termos do disposto no artigo 1697º n.º 1 do Código Civil, o cabeça de casal também tem direito a ser compensado pela Requerente em metade dos valores referidos na verba n.º 1 e 2 do capítulo “Direitos de Crédito”, por ter pago a parte devida pela Requerente do empréstimo à habitação e nas obras da casa, com dinheiros próprios, no montante de € 97.749,62. O cabeça-de-casal não poderá beneficiar da totalidade dos valores relacionados naquelas verbas, uma vez que a habitação lhe foi adjudicada em compropriedade, pelo que metade de tais valores, serviram, na prática, para pagar a parte devida pelo cabeça-de-casal no empréstimo e nas obras, valores de que agora beneficia através da adjudicação do referido imóvel.”
8.
Em 8-11-2023, foi proferido o seguinte despacho quanto à forma da partilha: “…as dívidas comuns satisfeitas pelo cabeça-de-casal, com dinheiro próprio, e os dinheiros próprios investidos em bens comuns, nos moldes aceites nos autos, são compensados na meação da requerente pela parte correspondente de metade. Dito de outro modo, o montante satisfeito pelo cabeça-de-casal, com bens/fundos próprios, para liquidação/aquisição de bens comuns divide-se em duas partes; uma que lhe respeita, por ser codevedor/consorte, a outra que satisfez em vez do, agora, ex-cônjuge e que é abatida da meação deste. Deve, por isso, conforme se adiantou, ser elaborado mapa, conforme proposto pela requerente. ”
9.
Em 24-01-2024 foi elaborado o mapa de partilha, que sofreu reclamação, em 9-2-2024. pelo cabeça-de-casal, defendendo, além do mais, que tem direito a receber da interessada a compensação global de €195.499,25, do que esta discordou.
10.
Em 21-3-2024 foi elaborada sentença que homologou o mapa.

É desta sentença que o cabeça-de-casal apela, com as seguintes
 conclusões:
 “A) O Apelante, salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, discorda da douta sentença homologatória da partilha recorrida que homologa a partilha constante do mapa de partilha e julga procedente a proposta de mapa de partilha apresentada pela requerente.
B) Estabelece o artigo 1790º do Código Civil que: “Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos”.
C) Esta regra impõe que se determine o valor que caberia a cada um dos cônjuges no regime da comunhão de adquiridos, o qual constituirá um limite quantitativo, isto é, constituirá o valor que caberá a cada um dos cônjuges receber na partilha, após o que se procederá ao preenchimento dos quinhões.
D) É manifesto na doutrina que “a previsão de que nenhum dos cônjuges pode receber, no ato de partilha, mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos, equivale a dizer que, em caso de divórcio, cada um dos cônjuges receberá necessariamente na partilha o valor que receberia segundo o regime da comunhão e adquiridos”.
E) “Em caso de partilha através de inventário, a relação deverá ser apresentada de acordo com as regras que compõe o regime de bens aplicável ao casamento, funcionando o artigo 1790º como limite a aplicar à operação de partilha”.
F) Esta regra impõe que se determine o valor que caberia a cada um dos cônjuges no regime da comunhão de adquiridos, o qual constituirá um limite quantitativo, isto é, constituirá o valor que caberá a cada um dos cônjuges receber na partilha, após o que se procederá ao preenchimento dos quinhões.
G) Caso o casamento entre o cabeça de casal e a interessada tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos, o produto da venda do bem imóvel, propriedade do cabeça de casal à data do casamento, bem como os valores recebidos por herança de seu pai, seriam considerados bens próprios deste, nos termos do artigo 1722º, n.º 1, alínea a) e b) do Código Civil.
H) Apresentando a relação de bens como se de um regime de comunhão de adquiridos se tratasse, esses valores seriam considerados bens próprios do cabeça-de-casal, pelo que este teria direito a um crédito de compensação sob a interessada por com aqueles valores ter liquidado uma dívida da responsabilidade de ambos e ainda pelo investimento que fez com aqueles montantes na construção da casa de habitação, tudo no montante global de € 195.499,25 (cento e noventa e cinco mil, quatrocentos e noventa e nove euros e vinte e cinco cêntimos).
I)   O inventário não se destina apenas à partilha, mas à liquidação definitiva das responsabilidades dos cônjuges para com terceiros e das responsabilidades entre os próprios cônjuges.
J)  Quando a Mm. ª Juiz do Tribunal a quo refere o artigo 1730º do CC, tem em consideração que a participação por metade dos cônjuges é no ativo e no passivo da comunhão. No presente caso em apreço não existe passivo. Existe direitos de crédito do cabeça de casal sobre a requerente. Logo tais direitos terão de ser retirados à meação da requerente.
K) Decide o Tribunal a quo pela elaboração do mapa de partilha, conforme proposto pela requerente, ou seja, a compensação dos créditos do cabeça de casal será obtida à custa da meação da requerente, mas apenas pela parte correspondente a metade.
L)  Não pode o cabeça de casal concordar com tal decisão. Até porque, em sede de tentativa de conciliação ocorrida na diligência de inquirição de testemunhas, realizada no dia 8 de setembro de 2022, as partes chegaram a acordo relativamente aos valores dos direitos de crédito pertencentes ao cabeça de casal.
M) Tendo ficado acordado que os valores ali referentes correspondiam à totalidade dos valores a receber pelo cabeça de casal e não apenas em metade.
N) Da ata da diligência do dia 8 de setembro de 2022, cujo trânsito em julgado já ocorreu, resulta: “Quanto aos direitos de crédito:
-    verba n.º1 – mantem-se o valor de €143.173,55, que fica a pertencer como direito de crédito do cabeça de casal.
-    verba n.º2 – eliminada.
-    verba n.º3 – reduzem o valor para €52.325,70, que fica a pertencer como direito de crédito do cabeça de casal.”
O) Existe fixação do valor a título de direitos de crédito do cabeça de casal sobre a interessada, conforme acordo homologado e devidamente transitado em julgado. – ata de 8/09/2023.
P) É de elaborar o mapa de partilha de acordo com a relação de bens e o estipulado em acordo homologado.
Q) Assim, a Mm. ª Juiz a quo deveria ter decidido no sentido de elaboração do mapa de partilha, conforme proposto pelo cabeça de casal, ou seja, a compensação da totalidade dos créditos do cabeça de casal será obtida à custa da meação da requerente.
R) Por ser de inteira e merecida justiça.
Termos em que e com o douto suprimento de v. exas. venerandos juizes desembargadores, deve ser dado inteiro provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença homologatória da partilha sendo substituida por outra que se coadune com a pretensão aqui exposta, por ser inteira e merecida Justiça”


 O Apelada respondeu, pugnando para que seja negado provimento ao recurso deduzido pela Recorrente, com as seguintes
conclusões:

“1. Nada há a censurar à douta sentença, nem ao douto despacho, que está bem fundamentado, pelo que muito bem decidiu o Tribunal “a quo”.
2.  O Recorrente sabe que não tem razão nenhuma, mas insiste em tentar obrigar o tribunal a cometer uma manifesta injustiça contra a Recorrida, através de um argumento falacioso, mas fácil de desmontar.
3.  De facto, como refere o Recorrente, se o casamento tivesse sido celebrado no regime de comunhão de adquiridos, o valor em causa, concretamente, € 195.499,25, seria considerado bem próprio do Recorrente na sua totalidade.
4.  Partindo desta premissa verdadeira, o Recorrente parte para uma conclusão errada: a conclusão de que o respetivo crédito de compensação do referido valor de € 195.499,25 deverá incidir na sua totalidade sobre a Recorrida.
5.  Ora, o Recorrente não “emprestou” à Recorrida o montante de € 195.499,25. Tal valor, foi “emprestado” ao património comum. Deste modo, não pode o Recorrente pretender que o mesmo valor seja retirado da meação da Recorrida.
6.  O Recorrente injectou tal dinheiro no património comum dos cônjuges, concretamente na habitação de ambos, verba 55 da relação de bens.
7.  O valor em causa serviu para pagar o empréstimo da habitação contraído por ambos, e as obras da casa, cujo custo também era da responsabilidade dos dois.
8.  Para que o raciocínio do Recorrente fizesse sentido, e no mapa de partilha fosse de imputar o crédito de € 195.499,25 na meação da Recorrida, como o mesmo pretende, o Recorrente teria de ter injectado no património comum a quantia de € 390.998,50!
9. Como é de elementar justiça, a Recorrida apenas terá de devolver ao Recorrente o valor de que beneficiou, e que, no caso concreto foi de € 97.749,62.
10. Deste modo, não pode o Recorrente querer que a Recorrida lhe devolva um montante (a metade do valor que o mesmo reclama em causa) de que esta não beneficiou minimamente.
11. Como refere, e bem, o douto despacho em crise, o qual cita o douto Acórdão desta Relação, será de aplicar o disposto no artigo 1726º/2 do Código Civil, por força do disposto no artigo 1790º do mesmo diploma legal, sendo o crédito do Recorrente a retirar do património comum.

Acresce que,
12. Em momento algum ficou acordado que o Recorrente iria receber da meação da Recorrida o valor dos créditos em causa.
13. Da própria descrição da verba 1 e 2 do capítulo “Direitos de Crédito” da relação de bens definitiva não se pode retirar que os correspondentes valores sejam créditos do cabeça-de-casal sobre a requerente, ou sobre a meação desta.
14. Os créditos em causa são os mesmos que foram inicialmente incluídos na relação de bens do Recorrente.
15. Na resposta à reclamação à relação de bens o Recorrente especifica melhor a origem de tais créditos, como tendo servido para amortizar o empréstimo / dívidas do casal, em relação à casa morada de família, verba 55 da relação de bens.
16. Aliás, o próprio Recorrente, na referida resposta à reclamação, na parte em que trata desses créditos , atribui-lhe a epígrafe “a) Dos Direitos de Crédito / Dívidas do Património Comum”(sublinhado e realce nossos).
17. Da acta apenas resulta que os referidos créditos, no caso da verba um, se mantêm, e no caso da verba 3, são reduzidos para € 52.325,70.
18. Mas são os mesmos créditos que inicialmente o Recorrente reclama, e que, em todos os articulados, admite ter injectado no património comum do casal.
19. Na diligência de 08/09/2022 discutia-se o concreto montante do crédito do cabeça-de-casal (se o mesmo era igual ao que reclamava, ou menor, tal como pretendia a Recorrida).
20. O douto acórdão deste Relação, ordenou que tal montante fosse determinado, para aferição do valor a levar em conta nos termos do artigo 1790º no momento da partilha, ou seja, para que a Recorrida não pudesse receber na partilha um valor maior do que aquele que receberia se o regime em vigor fosse o da comunhão de adquiridos.
21. E o montante dos créditos ficou, efetivamente, determinado, através da manutenção da primeira verba, eliminação da segunda, e redução da terceira.
22. E a sua inclusão na relação de bens apenas teve como objetivo o cumprimento do determinado no Acórdão, para que tal valor fosse levado em conta no momento da partilha, nos termos do citado artigo 1790º do CC.
23. E em nada ficou, ou fica, prejudicado o Recorrente, como acima se explicou. Note-se, para que se perceba o contexto do acordo alcançado, na audiência de 08/09/2022, o Recorrente reduziu os créditos inicialmente reclamados no valor de € 255.499,25 para € 195.499,25, mas, por sua vez, a Recorrida abdicou da reclamação de depósitos bancários no valor de € 55.654,99, reduzindo o valor reclamado de € 133.237,15, para € 77.582,16 .
24. E repetindo o que acima foi dito, para que o raciocínio do Recorrente fosse válido, e de facto tivesse ficado acordado que a Recorrida deveria pagar ao Recorrente a quantia de € 195.499,25, aquele teria de ter inicialmente invocado créditos, na relação de bens que apresentou, no montante de € 390.998,50.
25. Não tendo havido qualquer ampliação do pedido por parte do Recorrente na referida audiência, nunca poderia ter estado em discussão um montante tão elevado de créditos, sob pena de nulidade.
26. Deste modo, também nunca poderia ter existido um acordo das partes em definir que a Recorrida teria de compensar o Recorrente em € 195.499,25, montante esse que, repete-se, em teoria, corresponderia a uma injecção no património comum no referido valor € 390.998,50.
27. Como refere, e bem, o douto despacho em crise, há que atentar ao disposto nos artigos 1726º n.º 2 e 1730º, ambos do Código Civil.
28. Aliás, de acordo com esta última disposição legal, qualquer estipulação que ofenda a meação dos cônjuges é nula.
29. Deste modo, a pretensão do Recorrente, sempre seria nula e de nenhum efeito por ofender a meação da Recorrida, e não permitir a justa composição igualitária na partilha.
30. Deste modo, e em conclusão, nada há a apontar ao douto despacho em crise, que apenas aplicou correctamente a lei.
31. Pelo que, não poderia ter sido outra a decisão.

TERMOS EM QUE
Deve ser mantida a douta decisão na sua totalidade”

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Face ao teor das conclusões do recurso, cumpre decidir se quando um cônjuge injeta dinheiro próprio na aquisição de bem comum se deve obter a compensação da totalidade desse montante à custa da meação da requerente.

III- Fundamentação de Facto
Os factos relevantes, de natureza processual, já foram descritos supra.

IV- Fundamentação de Direito
O inventário subsequente ao divórcio destina-se a pôr termo à comunhão de bens resultante do casamento, a relacionar os bens que integram o património conjugal e a servir de base à respetiva liquidação, tendo em vista a data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (cf. artigos 1404.º, n.º 1, e 1326.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e artigos 1688.º e 1789.º Código Civil).
Nessa partilha, em que se dividem os patrimónios de cada cônjuge e os bens comuns (em regra de acordo com o regime de bens que vigorou durante o casamento, com as exceções previstas nos artigos 1719.º e 1790.º do Código Civil), tem-se como objetivo essencial obter um equilíbrio entre os diversos patrimónios, de modo a que não haja enriquecimento de um deles à custa do outro.
Releva aqui a exceção mencionada no artigo 1790º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 61/2008, de 31/10: “Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos.”, como supra se verá.
Assim, considera-se que “0 processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos. É na partilha que os cônjuges recebem os bens próprios e a sua meação no património comum, é na partilha que cada um deles confere o que deve ao património comum (artº 1689º, nº 1), e é no momento da partilha que o crédito de um deles sobre o outro, ou do património comum sobre um deles, e ainda o dos credores do património comum, se tornam exigíveis (artºs 1697º e 1695º, nº 1)”, como se disse no Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 06-05-2008 no processo 202-E/1999.C1 (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano).
O processo especial de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento destina-se não só a dividir os bens do casal, mas a liquidar as responsabilidades mútuas e as dívidas do casal.
Quanto às responsabilidades entre os cônjuges, há que distinguir as compensações stricto sensu dos simples créditos entre cônjuges.
As compensações dão-se só nos regimes de comunhão e verificam-se quando há movimentos entre o património comum e os patrimónios próprios dos cônjuges: quando um destes patrimónios (um património próprio ou o património comum) responde por dívidas de outro património (o comum, se o que respondeu foi um património próprio, ou um património próprio se o que respondeu foi o património comum). Exemplo mais comum é o do caso em que um dos cônjuges responde por dívidas que a ambos responsabilizava: este tem direito a ser reembolsado de metade do montante global de tais pagamentos, surgindo um crédito de compensação a seu favor, o qual só é exigível no momento da partilha dos bens do casal; esta compensação tem lugar preferencialmente na meação do cônjuge devedor no património comum (artigos 1697º nº 1 e 2, 1730.º, 524.º e 1697.º e 1689º nº 3 do Código Civil).
“A compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça injustamente em detrimento e à custa de outra.” cf Cristina M. Araújo Dias, Do regime da responsabilidade (pessoal e patrimonial) por dívidas dos cônjuges (problemas, críticas e sugestões), pag 582.[1]
 É pacífico que nos termos do artigo 1691.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil se ambos os cônjuges, no decurso do casamento, contraem um empréstimo, a obrigação de reembolso de tal empréstimo responsabiliza ambos os cônjuges. Se um dos cônjuges suporta essa dívida com bens próprios tem direito a ver reposto no seu património o que pagou em excesso em benefício do património comum; é uma típica dívida de compensação.
 Nestes casos, em que se impõe uma compensação stricto sensu, mesmo que o pagamento ocorra depois da data em que a terminaram as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, desde que a dívida tenha sido contraída no decurso da comunhão e a ambos responsabilize, deve ser atendida no inventário, sem necessidade de recorrer a ação autónoma. (neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/03/2017 no processo 5208/14.9T8ALM-B.L1 e Cristina M. Araújo Dias, obra citada, 585). Com efeito, a mesma tem origem em crédito comum anterior a essa dissolução, não pode ser exigida anteriormente à mesma e deve ser paga preferencialmente pela meação do cônjuge devedor no património comum.
Ao invés das dívidas de compensação, os créditos entre cônjuges são apenas dívidas entre os cônjuges, em cuja origem não entrou o património comum, sendo possíveis em qualquer regime de bens e exigíveis a todo o tempo. A obrigação invocada pelo Recorrente que agora está em discussão não é uma dessas dívidas: o mesmo pagou com montantes (que nos termos do artigo 1790º do Código Civil se consideram próprios) débitos comuns, pelo que o património comum responde por elas.
Assim, o mesmo tem um crédito sobre o património comum, crédito esse cujo montante não está em discussão, visto que as partes acordaram sobre o seu montante.
Concordamos com o que o Recorrente cita em sede de alegações “na operação da partilha, considerado a imposição imperativa do artigo 1790.º do Código Civil, as dívidas comuns satisfeitas pelo cabeça-de-casal, com dinheiro próprio, e os dinheiros próprios investidos em bens comuns, nos moldes aceites nos autos, são compensados na meação da requerente pela parte correspondente de metade. Dito de outro modo, o montante satisfeito pelo cabeça-de-casal, com bens/fundos próprios, para liquidação/aquisição de bens comuns divide-se em duas partes; uma que lhe respeita, por ser codevedor/consorte, a outra que satisfez em vez do, agora, ex-cônjuge e que é abatida da meação deste.
Atente-se, para o efeito, no disposto pelos artigos 1726.º, n.º 2, e 1730.º do Código Civil, no sentido de que: 1726.º “1. Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza mais valiosa das duas prestações. 2. Fica sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àqueles, no momento da dissolução e partilha da comunhão.” (o sublinhado é nosso) 1730.º “1. Os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso”.”
No entanto, o cabeça-de-casal defende que a cotitular do património comum beneficiado com o montante próprio que ele entregou lhe deve devolver a totalidade do que o património comum recebeu (e não só metade desse valor).
A solução parece-nos translúcida: visto que metade desse património comum é atribuída ao Recorrente, o outro cônjuge só tem que devolver metade do crédito que foi entregue a tal património, sob pena do Recorrente enriquecer nessa parte. E isto ocorre considerando que o pagamento é efetuado com quantias que se consideram um bem próprio, de que o outro cônjuge não comunga.
Vejamos um exemplo com número redondos e intuitivos: imaginemos que um cônjuge “empresta” ao património comum 10.000 € para aquisição de um bem no valor de 30.000 €, sendo a parte restante (20.000 €) paga com dinheiro comum. Tal bem passa a ser um bem comum. Nas partilhas, o ex cônjuge que adiantou tais quantias tem direito a receber metade desse bem, no valor de 15.000 € e o outro cônjuge deve-lhe metade do valor injetado no património comum (5.000 €), que saírá da sua meação. Caso lhe entregasse a totalidade da quantia injetada, o credor sairia enriquecido, recebendo bens no valor de 25.000,00 €, quando só tinha contribuído com 20.000 € (10.000 ,00 € do seu património e metade do restante valor do bem suportado por ambos) e a contraparte receberia o equivalente a 5.000,00 € quando se entende que terá contribuído com metade da parte restante (20.000,00 €  fora paga com dinheiro comum, logo com 10.000,00 €).
Porque, como diz o Recorrente, “a previsão de que nenhum dos cônjuges pode receber, no ato de partilha, mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos, equivale a dizer que, em caso de divórcio, cada um dos cônjuges receberá necessariamente na partilha o valor que receberia segundo o regime da comunhão e adquiridos”, também nenhum deles deve receber menos do que receberia se o casamento fosse celebrado segundo esse regime.
Afirma ainda o Recorrente que no acordo que fizeram constar em ata de 8 de setembro de 2022, fixaram o valor que o cabeça de casal teria direito a ser compensado, porquanto aquele satisfez créditos bancários mútuos e investiu na construção da moradia do ex-casal. E tem razão. Mas do que ali resulta é que ele tem direito a ser compensado do património comum, visto que satisfez dívidas comuns e integrou tais valores em bens comuns, não que é credor da Requerente e que por isso o seu crédito deve sair na íntegra da sua meação. O crédito tem que se repercutir em metade na meação da Requerente e a outra metade na sua meação.
Improcede, pois, o recurso, confirmando-se a decisão proferida.
 
V- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente a apelação independente, mantendo a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo Recorrente.
  

Guimarães, 27 de junho de 2024

Sandra Melo
Anizabel Sousa Pereira
  Jorge dos Santos
 


[1]in https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/8132/1/Tese_Doutoramento_Cristina_Dias.pdf.