EMBARGOS DE EXECUTADO
TÍTULO EXECUTIVO
INSOLVÊNCIA
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
Sumário


- Resulta do estabelecido no art. 233º, nº 1, al. c), do CIRE, em primeiro lugar, que os credores da insolvência, encerrado que seja o processo, podem exercer livremente os seus direitos contra o devedor;
- Em segundo lugar, decorre desse normativo que essa liberdade é restringida nas circunstâncias em que tenha sido estabelecido algum plano de pagamentos ou de insolvência ou modificada a obrigação original, situações essas nas quais o título executivo passa a ser alguma ou algumas das sentenças aí mencionadas, na medida e/ou porque das mesmas possa resultar uma modificação da obrigação a executar;
- Por fim, é admissível que alguma dessas sentenças possa, livremente, ser invocada como título, ainda que não ocorra alguma limitação ao crédito original, porque, v.g., o credor não dispunha de título executivo prévio ou pura e simplesmente optou por usá-lo.
- Contudo, tal não obsta a que possam servir de título executivo aqueles documentos que originalmente titulavam a dívida e tenham esse relevo à luz do preceituado no art. 703º, do C.P.C., nomeadamente quando estão em causa devedores cuja legitimidade passiva decorre da previsão do art. 54º, nº 2, do C.P.C..
- Os contratos de abertura de crédito que cumpram a forma prevista no art. 703º, nº 1, al. a), do C.P.C., e sejam acompanhados de documentos que atestem o cumprimento das obrigações futuras aí previstos por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes (cf. art. 707º, do C.P.C.), constituem títulos executivos válidos.
- Pelo contrário, um contrato que preveja obrigações futuras sem obedecer a alguma das formas previstas no citado art. 703º e/ou sem cumprir o ónus de prova complementar previsto nesse art. 707º, do C.P.C., não pode ser admitido como título executivo.
- Actualmente e desde que foi proferido o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 877/2023, não são revestidos de força executiva os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela Banco 1..., S. A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem outras formalidades relevantes para o efeito do art. 703º, do C.P.C..

Texto Integral


Relator – Des. José Manuel Flores
1ª - Adj. Des. Paula Ribas
2ª - Adj. Des. Maria Amália Santos

ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – Relatório

- Recorrente(s): Banco 1..., S.A;

- Recorrido/a(s):
- AA e mulher BB
...;
- CC e mulher
DD e
- AA e DD

*          
Na execução movida contra os aqui Recorridos, de que dependem os presentes embargos de executado, é Exequente a aqui Recorrente.

No requerimento inicial é alegado o seguinte:
(DOS CONTRATOS)
1. No exercício da sua actividade creditícia, o Banco 1..., S.A. celebrou os seguintes contratos:
A) Contrato de Abertura de Crédito n.º ...91, até ao montante de 200.000.000$00 (duzentos milhões de escudos), que equivalem a € 997.595,80 (novecentos e noventa e sete mil quinhentos e noventa e cinco euros e oitenta cêntimos), celebrado mediante escritura pública de abertura de crédito com hipoteca e fiança a 28 de Novembro de 2001, destinado a facultar recursos para o financiamento da construção de um empreendimento imobiliário, para venda, em que surge como mutuária a sociedade “EMP01..., Lda.” – cfr. Escritura pública que ora se junta como doc.n.º1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
B) Contrato de Abertura de Crédito n.º ...92, até ao montante de 20.000.000$00 (vinte milhões de escudos), que equivalem a € 99.759,58 (noventa e nove mil setecentos e cinquenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), celebrado mediante documento particular de abertura de crédito a 11 de Julho de 1997, destinado a facultar recursos para suprir eventuais défices de tesouraria, em que surge como mutuária a sociedade “EMP02..., Lda.” – cfr. contrato que ora se junta como doc.n.º2 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
C) Contrato de Abertura de Crédito n.º ...92, até ao montante de 220.000.000$00 (duzentos e vinte milhões de escudos), que equivalem a € 1.097.355,37 (um milhão noventa e sete mil trezentos e cinquenta e cinco euros e trinta e sete cêntimos), celebrado mediante escritura pública de abertura de crédito com hipoteca e livrança a 17 de Julho de 1998, sujeito a duas alterações contratuais, destinado a facultar recursos para apoio de tesouraria para financiamento da construção de um empreendimento imobiliário, para venda, em que surge como mutuária a sociedade “EMP02..., Lda.” – cfr. escritura pública e alterações contratuais que ora se juntam como docs.n.º3 a 6 e cujos teores se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
D) Contrato de Prestação de Garantia Bancária n.º ...93, até ao montante de 21.645.000$00 (vinte e um milhões seiscentos e quarenta e cinco mil escudos), que equivalem a € 107.964,80 (cento e sete mil novecentos e sessenta e quatro euros e oitenta cêntimos), formalizado mediante documento particular a 21 de Agosto de 1997, destinado a garantir as obras de infraestruturas, em que surge como garantida a sociedade “EMP02..., Lda.” – cfr. contrato e alteração contratual que ora se juntam como docs.n.º7 e 8 e cujos teores se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

(DAS GARANTIAS)
2. Para garantia do capital mutuado pelo contrato supra identificado em A), respectivos juros e despesas, a sociedade mutuária constituiu a favor do Banco 1... uma hipoteca voluntária sobre o seguinte bem imóvel:
- prédio urbano, actualmente composto por edifício constituído por dois blocos de sub-cave, cave, ... e três andares, sito no Lugar ... ou ..., na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...57/... e inscrito na respectiva matriz predial sob o art. ...87.º, tudo conforme cit.doc.n.º1.
3. A referida hipoteca foi levada a registo pela Ap. ...3 de 2001/09/20 – cfr. certidão predial que ora se junta como doc.n.º9 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
4. Após a construção e registo da hipoteca, sobre o identificado prédio foi constituída propriedade horizontal, pelo que a aludida hipoteca abrange, entre outras, as fracções autónomas designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... – cfr. certidões prediais que ora se juntam como docs.n.º10 a 19 e cujos teores se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
5. Para garantia de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir pela empresa “EMP02..., Lda.”, e, designadamente, as supra identificadas em B), C) e D), até ao montante de capital de 100.000$00 (cem milhões de escudos), que correspondem a € 498.797,90 (quatrocentos e noventa e oito mil setecentos e noventa e sete euros e noventa cêntimos), respectivos juros e despesas, aquela sociedade constituiu a favor da Banco 1... primeira hipoteca voluntária genérica sobre o seguinte bem imóvel:
- prédio urbano, actualmente composto por edifício de sub-cave, cave, ..., 1.º, 2.º, 3.º e 4.º andares com logradouro, sito no Lugar ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...27/... e inscrito na respectiva matriz predial sob o art. ...85.º, tudo conforme cit.doc.n.º3.
6. A referida hipoteca foi levada a registo pela Ap. ... de 1998/05/29 - cfr. certidão predial que ora se junta como doc.n.º20 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
7. Também para garantia de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir pela empresa “EMP02..., Lda.”, e, designadamente, as supra identificadas em B), C) e D), até ao montante de capital de 30.000$00 (trinta milhões de escudos), que correspondem a € 149.639,37 (cento e quarenta e nove mil seiscentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos), respectivos juros e despesas, aquela sociedade constituiu a favor do Banco 1... segunda hipoteca voluntária genérica sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo
Predial de ... sob o n.º ...27/... – cfr. cit.doc.n.º6.
8. A referida hipoteca foi levada a registo pela Ap. ...2 de 1999/02/25 – cfr. cit.doc.n.º20.
9. Após a construção e registo das hipotecas, sobre o identificado prédio foi constituída propriedade horizontal, pelo que as aludidas hipotecas abrangem, entre outras, as fracções autónomas designadas pelas letras ..., – cfr. certidões prediais que ora se juntam como docs.n.º21 a 30 e cujos teores se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

(DA DÍVIDA)
10. Por ter a mutuária “EMP01..., Lda.” deixado de cumprir as obrigações a que se achava adstrita, designadamente no que concerne ao pagamento pontual das prestações pecuniárias, encontra-se em dívida ao Banco 1... a quantia global de € 528.355,01 (quinhentos e vinte e oito mil trezentos e cinquenta e cinco euros e um cêntimo), correspondente a capital e três anos de juros – cfr. nota de débito que ora se junta como doc.n.º22 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
11. Por ter a mutuária “EMP02..., Lda.” deixado de cumprir as obrigações a que se achava adstrita, designadamente no que concerne ao pagamento pontual das prestações pecuniárias, encontra-se em dívida ao Banco 1... a quantia global de € 593.025,85 (quinhentos e noventa e três mil e vinte e cinco euros e oitenta e cinco cêntimos), correspondente a capital e três anos de juros - – cfr. notas de débito que ora se juntam como doc.n.º23 a 25 e cujos teores se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
12. Pelo que a dívida global ao Banco 1... ascende ao montante de € 1.121.380,86 (um milhão cento e vinte e um mil trezentos e oitenta euros e oitenta e seis cêntimos), montante a que acrescem as despesas que a Exequente efectue, da responsabilidade dos devedores, a liquidar oportunamente.
(DA LEGITIMIDADE)
13. Os aqui Executados são os actuais proprietários da nua propriedade e do direito de usufruto das fracções autónomas supra identificados, pelo que têm legitimidade para serem demandados nos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 54.º, n.º2 do Código do Processo Civil.
 (DA EXEQUIBILIDADE DOS CONTRATOS)
14. A força executiva dos contratos supra identificados em B) e é-lhes conferida elas disposições combinadas das alíneas b) e d), do n.º 1, do artigo 703.º do Código de Processo Civil, e do n.º 4 do art.º 9 do Decreto-Lei 287/93, de 20 de Agosto.

Os  Recorridos/embargantes, por sua vez, pedem na presente oposição a essa execução que, sic:

Termos em que deve a presente oposição ser julgada procedente e extinta a execução, com fundamento na manifesta falta de títulos executivos e pelo pagamento e prescrição das hipotecas e da dívida exequenda e também pela ineficácia e inoponibilidade das hipotecas aos opoentes por haverem adquirido as fracções por usucapião.
Mais requerem, em todo e qualquer caso seja ordenada a extinção das hipotecas que incidem sobre as fracções ..., ..., ..., ..., ...,”...”, “...”, “CI”, “CL” e “CX” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...02 e das fracções ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... do prédio descrito na mesma Conservatória sob o nº ...02 e consequente cancelamento das apresentações 4 de 29/05/1998, 22 de 25/02/1999 e 13 de 20/09/2001, respectivamente.
Requerem, por último, a suspensão da execução, ao abrigo do disposto no artigo 733 nº 1 al. c) do CPC, com base nos fundamentos supra alegados.
Igualmente o Executado AA deduziu embargos, tendo o respectivo pedido sido incorporado nos embargos precedentes.
A embargada contestou pedindo a sua improcedência.
Em audiência prévia (29.2.2024) os embargantes supriram deficiências da sua alegação inicial.
Foi deferido contraditório, tendo a embargada pedido a improcedência desse aditamento (8.3.2024).
O Tribunal dispensou a continuação da audiência prévia e apreciou o mérito dos embargos, tendo proferido decisão que culminou com o seguinte dispositivo:
 “Pelo exposto, decido julgar procedente a excepção da inexistência de título executivo e, em consequência, determino a extinção da execução apensa contra os ora embargantes.
Custas pelo banco exequente/embargado.”
*
Inconformada com tal decisão, dela interpôs a Embargada o presente recurso de apelação, em cujas alegações formula as seguintes
conclusões:

1. As sentenças proferidas no âmbito dos processos de insolvência das mutuárias e que reconhecem os créditos ali reclamados, ora Executados, não são título executivo válido contra os Recorridos, pois não lhes são oponíveis.
2. Isto, por opção expressa do legislador, que entende que as alterações provocadas nas obrigações nos processos de insolvência dos devedores principais não se aplicam às obrigações dos garantes perante os credores.
3. Ao que acresce o facto de que estes não puderam exercer o seu direito de contraditório relativamente aos créditos peticionados pela credora naqueles autos insolvenciais.
4. Além disso, as sentenças não encerram em si todas as características das obrigações executadas.
5. Designadamente, não permitem aferir da legitimidade processual dos Executados, ora Recorridos, que o são na qualidade de terceiros adquirentes dos imóveis hipotecados a favor da Exequente para garantia dos créditos exequendos,
6. Já que as referidas sentenças não fazem qualquer menção às garantias, dado que os imóveis em apreço nem sequer foram apreendidos pelas massas insolventes, pois já à data pertenciam aos Recorridos.
7. Sendo certo que, ainda que se entendesse que as sentenças são, efectivamente, títulos executivos bastantes, tal facto não retiraria força executiva aos contratos originais.
Sem prescindir,
8. Verdade é que, entendendo o douto Tribunal a quo tem o dever de notificar a Exequente para proceder ao aperfeiçoamento do requerimento executivo, designadamente juntando aos autos os documentos que se consideram essenciais à boa decisão da causa.
9. O que nunca sucedeu.
10. Sendo que tal omissão consubstancia uma nulidade processual, que determina a nulidade de todo o processado subsequente, como seja a prolação da sentença recorrida.

TERMOS EM QUE,
Dando provimento ao presente recurso e revogando a sentença recorrida, …

Contra-alegações
Os Recorridos (com excepção de DD) apresentaram contra-alegações nas quais pedem a ampliação do objecto do recurso, concluindo nos seguintes termos:
I) A jurisprudência é particamente unânime no entendimento que, considerando o disposto no artigo 233º, nº 1 al. c) do CIRE, quando o processo de insolvência é encerrado, o título executivo a ser utilizado por qualquer credor, cujos créditos estejam relacionados e reconhecidos no processo de insolvência - como acontece, in casu, em ambas - para exercer os seus direitos contra o insolvente incumpridor passa a ser a sentença de verificação de créditos (ou a sentença homologatória do plano de pagamentos).
II) Daí que se concorde em absoluto com a douta sentença recorrida quando afirma “… o crédito do Banco exequente decorrente dos citados contratos de abertura de crédito incumpridos e cuja obrigação de pagamento está garantida por hipotecas foi efectivamente “substituído” pelo crédito já reconhecido nos respectivos processos de insolvência” (pg. 3, in fine). Pelo que se afigura lógica e coerente a decisão de julgar procedente a excepção da inexistência de título executivo que deverá ser mantida.
III) Os efeitos do reconhecimento dos créditos invocados pela exequente circunscreveram-se aos processos de insolvência, aos quais os ora recorridos foram alheios. Contudo o efeito declarativo referente, designadamente, aos valores dos créditos ali reconhecidos não pode impor-se a terceiros a estes processos de insolvência. A isso obsta o regime resultante dos artigos 619º, 580º e 581º do CPC.
De facto, os embargantes devem ser tidos como terceiros juridicamente interessados e, nessa medida, não lhes pode ser oposta uma sentença em cujo processo não intervieram. Verifica-se, in casu, a “a ineficácia subjectiva do caso julgado material” formado por aquelas sentenças de verificação de créditos.
IV) Entendem os recorridos que também as sentenças de verificação e graduação de créditos prolatadas nas insolvências não são títulos executivos bastantes contra si. Porém, tal não pode ter como consequência “o efeito repristinatório” de conferir exequibilidade aos contratos de abertura de crédito celebrados entre a exequente e as devedoras. Isto porque os créditos alegadamente incumpridos foram substituídos pelos créditos reconhecidos e parcialmente pagos nos processos de insolvência. Pelo que os contratos de abertura de crédito não podem constituir títulos executivos, por, além do mais, não conterem quantias certas, líquidas e exigíveis.
V) Deste modo, no entendimento dos recorridos, e pelo somatório de fundamentos supra alegados, nem os contratos de abertura de crédito, dados à execução, nem as sentenças de verificação e graduação de créditos, prolatadas nas insolvências, são títulos executivos oponíveis aos embargantes, pelo que, querendo, não restará ao Banco 1... outra via que não seja o recurso a eventual acção declarativa contra os ora embargantes - que, segundo cremos, nenhuma viabilidade terá - na qual obtenha sentença condenatória que constitua título executivo contra estes.
VI) O artigo 636º do CPC confere à parte vencedora a possibilidade de requerer a ampliação do âmbito do recurso, com vista a prevenir a necessidade de apreciação de determinada matéria controvertida nos autos. Ora, os recorridos pretendem ver declaradas, por este alto tribunal, inoponíveis aos embargantes as sentenças de graduação de créditos obtidas pela embargada nas insolvências das sociedades devedoras, julgando-as inexequíveis quanto a eles.
VII) Por último, o que se encontra previsto nos contratos dados à execução é a existência de créditos a conceder ou mediante pedidos escritos das devedoras ou na sequência de vistorias a efectuar pelo credor Banco 1.... Pelo que, salvo melhor opinião, eram estes os documentos a apresentar, e não outros, para se constituir um título executivo válido, nos termos do artigo 707º do CPC. Ora, tais documentos não podem ser substituídos por alegados extractos da exclusiva autoria da exequente/embargado Banco 1... (pois nem sequer foram assinados pelas insolventes) que não comprovam nem os pedidos das sociedades financiadas, nem os efectivos créditos nas suas contas bancárias, na sequência das vistorias que terá efectuado.
VIII) Assim, caso este alto tribunal viesse a julgar o recurso procedente - o que apenas se admite por mero silogismo judiciário - sempre deveria considerar - e daí a ampliação do objecto do recurso - que os contratos de abertura de crédito, juntos aos autos sob documentos nos 1, 2 e 3 não podem constituir títulos executivos, porquanto se encontram desacompanhados de toda a documentação necessária para comprovar a concessão dos créditos às sociedades insolventes.
IX) O mesmo se diga da garantia bancária junta com o requerimento executivo, sob documentos nos 7 e 8, pois esta só constituiria título executivo acompanhada da documentação comprovativa de que a garantia havia sido accionada. Ora, a própria exequente já confessou nos autos de insolvência da sociedade EMP02... que tal garantia nunca foi accionada pelo que jamais foi disponibilizado a terceiros os montantes nela inscritos. Daí também não poder constituir título executivo.
X) A inexistência ou manifesta insuficiência dos títulos executivos pode ser apreciada oficiosamente, nos termos do artigo 734º do CPC, o que desde já se requer a este alto tribunal.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, considerando-se que os contratos de abertura de crédito juntos aos autos não constituem títulos executivos, pelo que se encontra verificada a excepção da inexistência de título executivo.
Mais requerem se dignem admitir a ampliação do objecto do recurso, julgando verificada a inexistência de título, em relação aos recorridos, das sentenças de graduação de créditos prolatadas nas insolvências das sociedades EMP02..., Lda. e EMP01..., Lda., nos termos das conclusões supra elencadas em III), IV) e V).

II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar:
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[2] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[3]
No caso, as questões enunciadas pela recorrente prendem-se com a (in)existência de título executivo e, subsidiariamente, com a nulidade decorrente da falta de convite ao aperfeiçoamento do seu pedido executivo.
Em resposta ao recurso, os embargantes suscitam a ampliação do seu objecto tendo em vista a alegada insuficiência dos contratos juntos pela Exequente para sustentarem a presente demanda executiva.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos (cf. art. 662º, do Código de Processo Civil)
São os que emergem do processo, nomeadamente os acima relatados, devendo ter-se em conta ainda o seguinte, de acordo com a documentação autêntica junta em 7.7.2023, 20.11.2023 e 15.12.2023:
A EMP01..., Ldª., foi declarada insolvente por sentença proferida em 1.6.2006.
Foi proferida decisão de encerramento do processo nos termos do art. 230º, nº 1, al. a), do CIRE, transitada em julgado em 6.10.2016.
O aí credor Banco 1..., S.A., reclamou e viu reconhecido o seu crédito no valor de 1200281,67 euros, tendo recebido a quantia de 446134,22€, tendo a respectiva sentença de graduação transitado em 30.11.2009.
Correram termos uns autos de insolvência com o nº 1116/06.... em que era insolvente a EMP02..., Ldª., tendo a sentença que declarou a insolvência transitado em 10.7.2006.
Em 26.2.2008 foi nesses autos proferida sentença de graduação de créditos, transitada em 1.4.2008.
À aqui Recorrente foi aí entregue a quantia de 114614,35 euros.
O despacho de encerramento deste processo foi proferido em 11.4.2012.

2. Direito
De acordo com o entendimento seguido pela decisão recorrida, invocando o disposto no art. 233º, nº 1, al. c), do CIRE,  “quando o credor que não vê o seu crédito satisfeito no âmbito do processo de insolvência pode efectivamente ainda diligenciar pela recuperação desse mesmo crédito que nesse processo de insolvência não tenha ficado satisfeito, mas o título executivo nunca poderá ser, numa nova execução intentada após o encerramento desse processo de insolvência, como é o caso em apreço, o título originário da dívida mas antes a douta sentença de reconhecimento e graduação desse crédito proferida no âmbito do processo de insolvência”.
Mais acrescentou a sentença que não pode aproveitar-se aqui a circunstância de as sentenças em causa já se encontrarem juntas “porquanto esta execução foi intentada em 22-02-2023, ou seja, quando os respectivos processos de insolvência já estavam confessadamente encerrados”.
Assente nesse silogismo, a primeira instância entendeu aqui julgar procedente a excepção de inexistência de título executivo e determinar a extinção da execução contra os aqui embargantes.
Em discordância com esse entendimento, a Apelante alega, em suma, que, por um lado, essas sentenças não são oponíveis aos aqui executados – “não são títulos executivos bastantes contra os aqui Executados”, terceiros garantes e, por outro, que só lhe resta o recurso aos “títulos executivos originais”, que têm força executiva bastante.
Mais defende que “a previsão do art. 233.º, n.º1. al. c) do CIRE não pretende retirar a força executiva dos títulos originais, mas antes conferir um título executivo aos credores da insolvência que ainda não dispunham de um, pois que os seus créditos já ali passaram pelo crivo jurisdicional.”
Por isso, conclui, os contratos apresentados são título executivo bastante.
Em sintonia parcial com essa argumentação, os Apelados, em suma, secundam esta ideia de que as sentenças proferidas nos referidos processos de insolvência não lhes são oponíveis.
Sem mais delongas, não podemos deixar de concordar com este entendimento que contende com aspectos estruturantes do nosso ordenamento jurídico-processual.
Com efeito, nunca essas decisões, fora dos casos excepcionais previstos na lei, poderiam ser oponíveis a terceiros estranhos à lide onde foram proferidas, tendo em conta o que resulta do disposto nos arts. 581º, 619º e 621º, do Código de Processo Civil, e os limites subjectivos aí impostos ao seu relevo.
Todavia, outra questão, é a de saber se, não obstante isso, poderia esse título ser aqui invocável, uma vez que o art. 54º, nº 2, do Código de Processo Civil, permite que a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro siga directamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor.
É que pode suceder, como aqui acontece, que os garantes não figurem no título mas não deixem de ter legitimidade passiva na demanda executiva, situação que neste caso se configura em qualquer um dos cenários admitidos pelas partes, nomeadamente o de valerem os títulos negociais invocados no requerimento executivo inicial, onde os mesmos também não figuram.
Sucede que, diferentemente do que entendeu a sentença recorrida, julgamos que o disposto no citado art. 233º, nº 1, al. c), do CIRE, não é aqui determinante.
Essa norma estipula que: Encerrado o processo, e sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 217.º quanto aos concretos efeitos imediatos da decisão de homologação do plano de insolvência: (…) c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência; (…).
O que resulta desta norma é (art. 9º, do Código Civil), em primeiro lugar, que os credores da insolvência, encerrado que seja o processo, podem exercer livremente os seus direitos contra o devedor.
Em segundo lugar, decorre desse normativo que essa liberdade é restringida nas circunstâncias em que tenha sido estabelecido algum plano de pagamentos ou de insolvência ou modificada[4] a obrigação original, situações essas nas quais o título executivo passa a ser alguma ou algumas das sentenças aí mencionadas, na medida e/ou porque das mesmas possa resultar uma modificação da obrigação a executar, interpretação essa que subjaz ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7.10.2021, citado pelo Tribunal recorrido, cujo processo envolvia o estabelecimento de um plano de pagamentos.
Por fim, não repugna que, como admite o citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23.2.2023, alguma dessas sentenças possa, livremente, ser invocada como título, ainda que não ocorra alguma limitação ao crédito original, porque, v.g., o credor não dispunha de título executivo prévio ou pura e simplesmente optou por usá-lo.
Contudo, tal não obsta a que possam servir de título executivo aqueles documentos que originalmente titulavam a dívida e tenham esse relevo à luz do preceituado no art. 703º, do Código de Processo Civil, nomeadamente quando estão em causa devedores cuja legitimidade passiva decorre da previsão do citado art. 54º, nº 2, do C.P.C., e relativamente aos quais não são oponíveis ou invocáveis aquelas sentenças proferidas no âmbito de processo judicial  e as restrições que delas eventualmente decorram.
É isso que decorre também do regime estabelecido no CIRE, nomeadamente da norma do art. 88º, nº 1[5], que ressalva na sua parte final o prosseguimento  das execuções pendentes à data da insolvência contra outros devedores ou executados que não o insolvente, bem como o dispositivo do art. 217º, nº 4, do mesmo Código, no qual se estabelece que as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.
Destas normas decorre que o processo de insolvência, pendente ou não, não influencia o direito dos credores relativamente a co-devedores ou, como sucede no caso presente, terceiros garantes de obrigação.
Posto isto, julgamos que a decisão recorrida não interpretou devidamente as normas em apreço, nomeadamente o citado art. 233º, nº 1, al. c), do CIRE, ao considerar que o único título viável nesta execução seria alguma das sentenças proferidas nos mencionados processos de insolvência, não explicando também porque é que, ainda que juntas, não seriam atendíveis por causa da referida cronologia.

Posto isto, tendo em conta o disposto no art. 665º, do Código de Processo Civil, o pedido de ampliação do objecto do recurso formulado pelos Recorridos e o disposto no art. 734º, do mesmo Código, a questão que se segue é a de saber se, ainda assim, o requerimento executivo em apreço está devidamente instruído, à luz do preceituado no actual art. 703º, do mesmo Código.
De acordo com o preceituado nesta norma (1) À execução apenas podem servir de base: b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação; (…) d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
Em complemento desta norma, dita o art. 707º, do Código de Processo Civil (correspondente o art. 50º, do precedente C.P.C.), que: Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.
Em especial e com relevo no presente caso, prescreve ainda o invocado art. 9º, nº 4, do D.L. nº 287/93, que: Os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pelo Banco 1..., prevejam a existência de uma obrigação de que o Banco 1... seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades.
No que contende com esta última norma, há ainda que atender ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 877/2023, de 25 de Janeiro, no qual foi decidido o seguinte: 3 - Em face do exposto, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, segundo a qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pelo Banco 1..., S. A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades, por violação do artigo 13.º da Constituição.

Posto isto, o que temos nos autos?
O requerimento executivo menciona quatro contratos (A a D), três de abertura de crédito e um de garantia bancária, todos eles configurando obrigações futuras.
Ora, conforme afirma Rui Pinto[6], “o contrato de abertura de crédito, enquanto contrato promessa de mútuo, supõe dois momentos contratuais correspondentes a duas eficácias jurídicas distintas: uma eficácia preparatória que se produz com um acordo de concessão de crédito que visa a disponibilidade futura do dinheiro, eventualmente, em conta corrente, ficando perfeito com o acordo das partes, sem necessidade de qualquer entrega monetária, e uma eficácia final – levantada a quantia concreta, máxime, da conta corrente, constitui-se o mútuo, dada a natureza real quoad constitutionem. Daí que se compreenda a necessidade de colmatar essa falta de documento que, titulando o mútuo, possa ser levado à execução, o que é permitido pelo artigo 50º, “desde que o exequente prove que entregou efectivamente o montante a recuperar.”
É o que sucede no caso em apreço, relativamente aos referidos contratos de abertura de crédito mas também em relação ao mencionado contrato de garantia bancária, nos quais se estipulam obrigações futuras de entregar quantias em dinheiro.
Em todos eles se exige, por aplicação do disposto no citado art. 707º, a demonstração de um título executivo complexo, constituído pelo contrato base que prevê a obrigação futura e pelos documentos que titulam as entregas cujo pagamento coercivo de reclama.

No caso, ab initio, podemos desde já adiantar, tendo em conta o decidido no referido Acórdão do Tribunal Constitucional, ao qual devemos obediência (art. 282º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa) que o contrato de abertura de crédito constante da al. B), do requerimento executivo (Contrato de Abertura de Crédito n.º ...92), não constitui ele próprio título executivo à luz do actual Código de Processo Civil, maxime do seu art. 703º, dado que se trata de documento particular simples, sem qualquer autenticação que admita a sua subsunção à previsão da al. b), do seu nº 1.
Deste modo, fica prejudicada a questão de estar devidamente complementado esse título nos termos do art. 707º.
Essa mesma falta inquina o escrito ou escritos que titulam o alegado contrato de garantia bancária (n.º ...93) referido em D), do requerimento executivo, nos quais, aliás, não se faz menção de qualquer norma convencional que permita admitir como boa a prova das entregas alegadamente feitas através do simples extracto bancário junto com a contestação dos presentes embargos, pelo que, neste caso, acresce o incumprimento do disposto no citado art. 707º, para se considerar indemonstrado título executivo bastante.
Já no que contende com os contratos referidos em A) e C), do requerimento executivo (Contratos de Abertura de Crédito n.ºs ...91 n.º ...92), estamos perante títulos base que estão suportados em documentos autênticos (escritura pública), sendo que cada um deles prevê expressamente, respectivamente na cláusula 16ª (pgs. 18 e 19 do pdf do requerimento executivo) e na cláusula 12, convenção que confere aos extractos de conta juntos com a contestação de embargos o relevo exigido pelo citado art. 707º. Mais resulta desse primeiro escrito que na outorga do contrato foi entregue a quantia de 95000 escudos (vide cláusula 1ª, nº 3).
Neste conspecto, seguindo o silogismo normativo acima exposto, temos de concluir, diversamente do que alegam os Embargantes, que nestes dois contratos está satisfeita formalidade dos arts. 703º e 707º, do C.P.C., tendo a Exequente demonstrado cabalmente o título executivo que invoca.
           
Subsidiariamente, a Apelante conclui que, seguindo-se o entendimento da sentença em crise, devia ela ter sido convidada aperfeiçoar o requerimento executivo, designadamente juntando as sentenças em falta, nos termos dos arts. 725º, nº 3, 590º, nº 3, e 732º, nº 2, todos do Código de Processo Civil, o que, não tendo ocorrido, constitui nulidade, ao abrigo do seu art. 195º, nº 1.
Assim, defende que “deverá ser declarado nulo todo o processado subsequente, designadamente a prolação da sentença ora recorrida, ordenando-se a notificação da Exequente para proceder ao aperfeiçoamento do requerimento executivo e juntar aos autos as sentenças de verificação e graduação de créditos proferidas nos processos de insolvência das sociedades mutuárias.”
Contudo, perante o que acima se conclui, esta questão está prejudicada (cf. art. 608º, nº 2, do C.P.C.).
           
No que diz respeito às restantes questões suscitadas pelos embargantes nos respectivos articulados, decorre do dispositivo do art. 665º, nº 2, do Código de Processo Civil, que “se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.”
Sucede que, no caso, a decisão recorrida não exarou qualquer factualidade atinente às demais questões suscitadas e, no que diz respeito à alegada aquisição por usucapião, estamos perante factos controvertidos sem suporte na prova documental produzida e que importam a eventual produção prova indicada nos articulados em apreço.
Aliás, vem sendo entendido por este Tribunal em decisões recentes[7] e em consonância com as produzidas nesse sentido por outros Tribunais[8] e ou Secções deste mesmo Tribunal da Relação de Guimarães[9] (cf. art. 8º, nº 3, do C.C.), que a regra da substituição do Tribunal recorrido, maxime nos termos do art. 662º, do Código de Processo Civil, em sede de matéria de facto, tem de ter uma interpretação restritiva que não ponha em causa de forma estruturante o segundo grau de jurisdição.
Conforme ficou dito nesse âmbito, a propósito da aplicação do citado art. 665º, no Ac. do  Tribunal da Relação de Lisboa, de 9.4.2024 : “Na análise de Rui Pinto, ao direito de acção universal, contrapõe-se um direito ao recurso mínimo que cumpra a função de válvula de segurança residual. Concretizando esse direito ao recurso mínimo, afirma que «o direito à verdade material imporá um recurso por erro de facto, não para todas, mas para as situações mais graves e manifestas» - Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL, 2020, pp. 120-122.
O dever de substituição previsto no Artigo  665º, nº1, visa, em primeira linha, conduzir a uma resolução célere do litígio, no pressuposto de que o Tribunal da Relação disponha dos elementos necessários para tal (cf. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª ed., p. 381). Todavia, a esse valor da celeridade há que contrapor o da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, afigurando-se que este valor é mais garantístico e proeminente para a realização de um processo equitativo, na vertente de um processo que permita, num prazo razoável, a descoberta da verdade material e a prolação de uma decisão ponderada (Artigo  20º, nº4, da Constituição; cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I,  2ª ed., p. 441). Havendo que se sacrificar um dos valores, cremos que deverá ser o da celeridade, tanto mais que a situação em apreço nem contém contornos que demandem particular urgência na sua definição final.
Assim sendo, justifica-se uma interpretação restritiva do Artigo 665º, nº1, do Código de Processo Civil, nos termos da qual em situações como a presente, em que ocorre uma total ausência de fundamentação de facto da decisão impugnada, ocorra a anulação da decisão impugnada, ordenando-se ao tribunal a quo que a fundamente, garantindo-se efectivamente o duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.”

No mesmo sentido, decidiu o Ac. do mesmo  Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.3.2022[10]: “I.– O dever de substituição previsto no Artigo 665º, nº1, visa, em primeira linha, conduzir a uma resolução célere do litígio, no pressuposto de que o Tribunal da Relação disponha dos elementos necessários para tal. Todavia, a esse valor da celeridade há que contrapor o da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, afigurando-se que este valor é mais garantístico e proeminente para a realização de um processo equitativo, na vertente de um processo que permita, num prazo razoável, a descoberta da verdade material e a prolação de uma decisão ponderada.”

No caso em apreço, não só não está garantido aquele recurso mínimo em termos de matéria de facto, como é indispensável que as partes, nomeadamente os embargantes, tenham a possibilidade de produzir a prova indicada ou outra que venha a ser admitida para que se julguem os factos atinentes à referida usucapião, razão pela qual não se conhecem, por agora, as restantes questões suscitadas pelas partes nos articulados produzidos em primeira instância, por neste caso ser inaplicável a regra do citado art. 665º.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em:

1. Julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e, em sua substituição, considerar:
a. procedente a excepção de inexistência de título executivo no que diz respeito aos contratos referidos em B) (Contrato de Abertura de Crédito n.º ...92) e D) (Contrato de Prestação de Garantia Bancária n.º ...93) do requerimento executivo, julgando nessa parte extinta a execução;
b. improcedente a excepção de inexistência de título executivo no que diz respeito aos contratos referidos em A) (Contrato de Abertura de Crédito n.º ...91) e C) (Contrato de Abertura de Crédito n.º ...92) do requerimento executivo.
2. Determinar o prosseguimento dos autos para apreciação das restantes questões colocadas ao Tribunal no que contende com estes últimos títulos, nomeadamente com o julgamento da matéria de toda a matéria de facto pertinente.
Condena-se desde já a Embargada nas custas dos embargos na parte em que ficou vencida, ou seja, na proporção do valor em foi declarada a extinção parcial (art. 527º, do C.P.C.).
Condenam-se nas custas da apelação a Recorrente e os Recorridos, na proporção de 50% para cada (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil).
N.
*
Sumário[11]:

- Resulta do estabelecido no art. 233º, nº 1, al. c), do CIRE, em primeiro lugar, que os credores da insolvência, encerrado que seja o processo, podem exercer livremente os seus direitos contra o devedor;
- Em segundo lugar, decorre desse normativo que essa liberdade é restringida nas circunstâncias em que tenha sido estabelecido algum plano de pagamentos ou de insolvência ou modificada  a obrigação original, situações essas nas quais o título executivo passa a ser alguma ou algumas das sentenças aí mencionadas, na medida e/ou porque das mesmas possa resultar uma modificação da obrigação a executar;
- Por fim, é admissível que alguma dessas sentenças possa, livremente, ser invocada como título, ainda que não ocorra alguma limitação ao crédito original, porque, v.g., o credor não dispunha de título executivo prévio ou pura e simplesmente optou por usá-lo.
- Contudo, tal não obsta a que possam servir de título executivo aqueles documentos que originalmente titulavam a dívida e tenham esse relevo à luz do preceituado no art. 703º, do C.P.C., nomeadamente quando estão em causa devedores cuja legitimidade passiva decorre da previsão do art. 54º, nº 2, do C.P.C..
- Os contratos de abertura de crédito que cumpram a forma prevista no art. 703º, nº 1, al. a), do C.P.C., e sejam acompanhados de documentos que atestem o cumprimento das obrigações futuras aí previstos por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes (cf. art. 707º, do C.P.C.), constituem títulos executivos válidos.
- Pelo contrário, um contrato que preveja obrigações futuras sem obedecer a alguma das formas previstas no citado art. 703º e/ou sem cumprir o ónus de prova complementar previsto nesse art. 707º, do C.P.C., não pode ser admitido como título executivo.
- Actualmente e desde que foi proferido o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 877/2023, não são revestidos de força executiva os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pelo Banco 1..., S. A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem outras formalidades relevantes para o efeito do art. 703º, do C.P.C..
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Guimarães, 27-06-2024


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
[2] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efectivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
[4] Cf. art. 217º, nº 1, do CIRE
[5] 1 - A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes.
[6] In “Manual da Execução e Despejo”, Coimbra Editora, Agosto 2013, pp.189 e 190, conforme citado no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra publicado em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/077286e32471767b8025822100519afb?OpenDocument
[7] V.g. Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 16.5.2024, in https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/6d54606360981c7380256879006d6592?CreateDocument ; e o proferido em 29.5.2024, no proc. Nº 468/18.9T8VLN.G1, inédito.
[8] Cf. Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 11.2.2021, in https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/bb67f17b77c62b888025868800764265?OpenDocument
[9] Cf. v.g., Ac. deste T.R.G., de 7.6.2023, in https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/d286fe45c7d7423c802589d4004ce829?OpenDocument
[10] In http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/16d0adf64ba0d4fc8025881d00552ba8
[11] Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.