EMBARGOS DE EXECUTADO
AVALISTA
MEIOS DE DEFESA
Sumário

I - O avalista presta uma garantia à obrigação cambiária do avalizado e não à obrigação causal subjacente
II - Atenta a natureza do aval como ato cambiário abstrato, o avalista não pode opor os meios pessoais de defesa do devedor principal contra o portador, exceto no que se refere ao pagamento.
III - Se interveio no pacto de preenchimento, o avalista está ainda legitimado a excecionar o preenchimento abusivo do título de crédito.
IV - Não se verificando nenhum dos pressupostos de defesa admissíveis, os embargos de executado movidos pelos avalistas devem ser liminarmente indeferidos.

Texto Integral

Proc. 871/24.5T8MAI-A.P1

Relatora: Teresa Fonseca

1.ª adjunta: Ana Olívia Loureiro

2.º adjunto: Miguel Baldaia

Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

AA e BB deduziram embargos à execução contra si movida pelo “Banco 1..., S.A.”.

Invocam:

- que o exequente reclamou créditos na insolvência do devedor principal pelo que se verifica a exceção de litispendência;

- que não foi invocada a existência de pacto de preenchimento;

- que a petição inicial é inepta, porquanto o exequente não alegou o facto constitutivo da relação causal.


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Foi proferida decisão que indeferiu liminarmente os embargos.

Inconformados, os embargantes interpuseram o presente recurso, finalizando com as conclusões que em seguida se reproduzem.

1 - Os recorrentes deduzem embargos de executado, que têm por base a litispendência, uma vez que o exequente reclamou créditos na insolvência do devedor principal, desconhecendo-se se o mesmo foi satisfeito, mas o qual temos de aferir.

2 - Também têm por base a falta de pacto de preenchimento, e mais ainda a ineptidão da petição inicial, ou seja, o exequente, recorreu à execução, não tendo alegado o facto constitutivo da relação causal, logo não pode revestir eficácia executiva, relativamente à obrigação fundamental.

3 - Deveria o exequente especificar qual o critério para o valor aposto na livrança, ou seja, ficamos sem perceber a razão de ser de tal montante, deveria ter sido discriminado, qual o montante do empréstimo, o que foi pago, e o que faltou pagar, ou seja, qual o capital em dívida, bem como o cálculo dos juros.

4 - A Douta Sentença, de que ora se recorre, não teve em consideração o plasmado do artigo 731º do Código de Civil, em apreço, que “podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados com a defesa no processo de declaração.”, e por via disso, já mais em momento algum, os embargos poderiam ter sido indeferidos liminarmente.

5 - O valor aposto na livrança, desprovido de qualquer explicação para a sua obtenção, consubstancia um preenchimento abusivo.

6 - Desconhecemos se na insolvência, o crédito do exequente foi, ou não, satisfeito, portanto os recorrentes colocam em causa o pagamento, pois a obrigação cambiária pode ter sido cumprida.

7 - A Douta Sentença plasma que os embargantes nem sequer alegam que tiveram intervenção no pacto de preenchimento da livrança, dada à execução, pois, como haveriam de o fazer, quando defendem que este pacto nem sequer existe!

8 - “I - A livrança em branco deve ser preenchida de harmonia com os termos convencionados pelas partes (acordo expresso) ou com as cláusulas do negócio determinante da emissão do título (acordo tácito) - STJ (Ac. 26/03/96).

9 - O exequente, nem sequer invoca a resolução do contrato, a fim de poder exigir o remanescente do crédito concedido.

10 - A livrança não possui qualquer número, não possui o NIB, não possui o n.º do contrato, nem um carimbo possui do exequente, e muito menos identifica o local de pagamento, desconhecendo-se até, se foi apresentada a pagamento.

11 - A petição inicial é inepta ou, pelo menos impede os recorrentes de oferecer defesa eficaz contra o pedido formulado pelo exequente, quando na mesma, o exequente se inculca credor dos recorrentes por determinada quantia proveniente de um contrato de empréstimo, sem que indique a qualidade, natureza, data de emissão, data de vencimento, e quantas prestações ficaram por pagar.

12 - Existe litispendência uma vez que ocorre identidade da causa de pedir.

13 - O embargo é destinado a contestar o direito do exequente, quer impugnando a própria exequibilidade do título, quer alegando factos que em processo declarativo constituiria matéria de exceção.

14 - O indeferimento liminar dos embargos, com base na sua manifesta improcedência está reservado a situações de evidente e absoluta certeza jurídica de que os fundamentos invocados nunca poderiam proceder qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais, isto é, quando se não tiver na doutrina a e na jurisprudência quem os defenda”( Acs. da RP de 22/11/2011 (Vieira e Cunha), de 07/06/2010 (Ferreira da Costa), Acs. da RL de 15/09/2015 (Cristina Coelho), de 2012/06/14 (Tomé Ramião), de 05/11/2013 (Ana Resende), de 21/03/2013 (Anabela Calafate), de 04/12/2012 (Manuel Tomé Soares Gomes), todos acessíveis in www.dgsi.pt.

15 - Nos termos do art. 590º do CPC, «findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a», entre o mais, «providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados» (n.º 2, al. b), no que se inclui o convite às «partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa» (n.º 3), incumbindo, ainda, «convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou  imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido» (n.º 4). Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova (n.º 5), sendo que as alterações à matéria de facto alegada devem conformar-se com os limites de alteração do pedido e da causa de pedir estabelecidos no art. 265º, quando introduzidas pelo autor, e com as regras da contestação previstas nos arts. 573.º e 574º, quando o sejam pelo réu.

16 - Não foi tida em consideração, a possibilidade do aperfeiçoamento, pois se, existe alguma falta de requisito legal, pois muito bem, as partes poderiam ser convidadas ao aperfeiçoamento.

17 - Os avalistas desconhecem por completo o valor da dívida.

18 - Em hipótese podemos considerar que pode haver deficiência, imprecisão, que importa completar ou corrigir, devendo ser proferido despacho de aperfeiçoamento no âmbito do art. 590º, n.ºs 4 e 6, do Código de Processo Civil, não sendo, todavia, caso de manifesta improcedência dos embargos.

19 - A Douta Sentença, que ora se recorre, vai mais longe, uma vez que considera os embargos legalmente inadmissíveis.

20 - Ora os embargos são admissíveis, podem é não ter provimento, mas isso é outra questão!

Termos em que deve a Douta Sentença, ser revogada e substituída por outra, que admita os Embargos de Executado, concedendo-se prazo ao exequente para contestar, caso assim o entenda.


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II - A questão suscitada consiste em determinar se os executados, na sua qualidade de avalistas, podem opor ao exequente a exceção de litispendência, a ausência de pacto de preenchimento e a ineptidão do requerimento inicial.

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III - A matéria de facto a atender é a que consta do relatório que antecede, enunciando-se ainda a seguinte:

1 - O título exequendo consubstancia-se em livrança com o valor aposto de € 45 148, 68, vencido em 16-01-2024, entregue ao exequente como caução ao contrato de empréstimo com n.º ...96 (doc. 1 junto com a execução).

2 - A livrança foi subscrita por “A..., Unipessoal, Lda.” e avalizada pelos embargantes.

3 - A “A..., Unipessoal, Lda.” foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 892/22.2T8STS, que correu termos no Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 1.

4 - Preenchida e apresentada a pagamento na data de vencimento, o montante aposto na livrança não foi pago, situação que se mantém inalterada.


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IV - Fundamentação jurídica

Os presentes embargos foram liminarmente indeferidos. O tribunal de 1.ª instância considerou que, atenta a qualidade de avalistas dos embargantes, não alegando estes ter tido intervenção no pacto de preenchimento da livrança dada à execução e que não sendo invocado o pagamento da obrigação inexistiria fundamento para a respetiva prossecução.

Dispõe o art.º 732.º/1/b do C.P.C. que os embargos são liminarmente indeferidos quando o fundamento não se ajustar ao disposto nos arts. 729.º a 731.º.

De acordo com o art.º 732.º/1/c os embargos são liminarmente indeferidos quando forem manifestamente improcedentes.

O art.º 729.º reporta-se à oposição à execução baseada em sentença e o art.º 730.º à execução baseada em decisão arbitral.

O art.º 731.º consigna, sob a epígrafe fundamentos de oposição à execução baseada noutro título, que não se baseando a execução em sentença ou em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, além dos fundamentos de oposição especificados no art.º 729.º, na parte em que sejam aplicáveis, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração.

Os embargantes foram demandados enquanto executados na qualidade de avalistas da livrança dada à execução.

Cumpre, pois, determinar quais os meios de defesa ao dispor dos embargantes na qualidade de avalistas.

São títulos executivos os títulos de crédito, nomeadamente as livranças (art.º 703.º/1/c do C.P.C.).

Segundo o disposto no art.º 77.º da LULLiv são aplicáveis às livranças, na parte em que não sejam contrárias à natureza deste escrito, as disposições relativas às letras, designadamente respeitantes ao aval (último parágrafo do referido artigo).

Os subscritores e os avalistas de uma letra ou de livrança - são todos solidariamente responsáveis para com o portador, que tem o direito de os acionar a todos, individual ou coletivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que aqueles se obrigaram (art.º 47.º da LULLiv).

Segundo o art.º 30.º da LULLiv, o pagamento de uma livrança pode ser em todo ou em parte garantido por aval, configurando-se a obrigação do avalista como uma obrigação de garantia autónoma, cuja extensão e conteúdo se afere pela obrigação do avalizado (arts. 7.º e 32.º da LULLiv)

Consigna o art.º 17.º da LULLiv que as pessoas acionadas em virtude de uma letra não possam opor ao portador as exceções fundadas sobre as suas relações pessoais com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.

É certo que o direito cartular, conquanto apresente uma feição unilateral, pois refere-se apenas ao direito de uma das partes, pressupõe uma relação jurídica cartular prévia - a relação subjacente ou fundamental -, tendo normalmente o conteúdo económico que decorre dessa relação jurídica.

Só que no âmbito das relações cambiárias mediatas (todas aquelas que não se reportam à relação entre um subscritor e um sujeito cambiário imediato, como sejam as relações sacador-sacado; sacador - tomador; tomador - 1.º endossado e assim por diante) o título caracteriza-se pela literalidade e pela abstração.

Esta disciplina jurídica especial da letra, consistente na proteção da boa-fé de terceiros, destina-se a assegurar a sua fácil circulação, deixando, todavia, de ter justificação no âmbito das relações cambiárias imediatas.

É que se em face da convenção executiva não se justifica o cumprimento da obrigação cambiária, o devedor, uma vez paga a letra, teria sempre o direito de pedir, num segundo momento, ao credor, a restituição do que indevidamente lhe prestara.

Assim, até por razões de economia processual, o devedor pode desde logo invocar contra a pretensão do portador da letra os termos da convenção não coincidentes com o teor literal da letra.

Desta forma, e segundo decorre do já citado art.º 17.º da LULLiv, a contrario sensu, no âmbito das relações imediatas já os obrigados cambiários podem opor-se mutuamente as suas relações pessoais.

Só que no caso vertente, em face do título, os oponentes são demandados enquanto avalistas da própria aceitante/subscritora.

O avalista é, ou um terceiro, ou um signatário da letra (art.º 30.º da LULLiv).

Todavia, como o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada (art.º 32.º/1 da LULLiv), parece lógico que possa opor as mesmas exceções que àquele seria legítimo opor.

Dispõe, sem embargo, o art.º 32.º da LULLiv, segunda parte: a sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

Nos termos do citado preceito da LULLiv, no que concerne aos avalistas, não tem repercussão ou efeito algum o facto de subjacente ao saque ou ao aceite inexistir obrigação causal.

"O aval é um ato pelo qual um terceiro, ou mesmo um signatário da letra garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores (Ferrer Correia, "Lições de Direito Comercial - Letra de Câmbio", Universidade de Coimbra, p. 206).

O aval visa garantir no todo ou em parte a obrigação avalizada, havendo, aparentemente, uma identidade na obrigação do avalista e da pessoa por ele avalizada.

O avalista está, portanto, numa posição paralela e nunca numa posição subsidiária, visto responder sempre - e logo - em primeira linha.

Diz Oliveira Ascensão ("Direito Comercial - Títulos de Crédito", vol. III, p. 170): ele (avalista) responde, mesmo que o avalizado não deva responder. A garantia dada pode funcionar separadamente da obrigação deste (...) A responsabilidade do avalista é autónoma. Não está sequer dependente da validade da obrigação garantida nem mesmo da existência da obrigação do afiançado (...) Por isso não podemos dizer que o aval é uma fiança, nem sequer é uma garantia. No regime legal funciona como uma obrigação autónoma.

A sua natureza e o seu fim específico são, assim, o de garantia de cumprimento pontual do direito de crédito cambiário. Trata-se uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado e não à obrigação fundamental decorrente do saque e aceite, que pode ou não existir. Está em causa jurisprudência há muito firmada (vejam-se, exemplificativamente, o ac. S.T.J., de 25-7-72, B.M.J., 279.º, 214, o ac. R.E., de 12 de novembro de 1987, C.J., V, p. 263 e ss. e o ac. R.C., de 6-1-94, C.J., I, p. 7).

Tratando-se de uma obrigação de garantia não tem em regra subjacente a ela qualquer relação fundamental entre o dador do aval e a pessoa a favor de quem é prestado.

Escreve Paulo Sendin (Letra de Câmbio, II, n.º 126, pp. 729 e 730): o avalista, enquanto tal, é sempre um terceiro. Está fora da operação cambiária que avaliza (...) Para o aval, pela sua natureza de declaração pessoal de confiança, não é de pôr a questão da sua causa (...) A declaração cambiária do avalista é expressão da sua vontade de garantia, de querer dar ao destinatário da operação avalizada a sua confiança pessoal sobre o reconhecimento pontual pelo sacado do direito de crédito, enquanto direito relativo à operação garantida (...) A razão pela qual se verifica, em cada caso concreto, a intervenção de um terceiro, que avaliza uma determinada operação, pode ser da mais variada ordem e frequentemente não radica numa relação obrigacional subjacente ao aval (...) e n.º 143, pp. 822 e ss.: o avalista, porque constitui o valor patrimonial de garantia acessório ao da operação avalizada, com a sua declaração de confiança, assegurando ao beneficiário, adquirente do título, que lhe será reconhecido pontualmente pelo sacado, assume na sua garantia o risco final de que o valor patrimonial da letra avalizada não venha a ser reconhecido pelo sacado. E nesse risco final assume o seu pressuposto forçoso: o risco inicial de que o valor patrimonial que deveria corresponder à operação que garante, para ser reconhecido pelo sacado, nem ao fim e ao cabo, se constitua.

Na sua função de garantia diretamente estabelecida para o adquirente o aval é independente de todas as vicissitudes do saque e o avalista um terceiro face à operação avalizada, garantindo exatamente o valor patrimonial que conste da letra (ou da livrança), independentemente de este se ter efetivamente formado ou não.

O ulterior desfecho dos acontecimentos, a existência de exceções pessoais, necessariamente assumidos no risco inicial do aval, não afetam este, não deixando de se constituir para o adquirente o valor patrimonial da letra.

O avalista não é sujeito da relação jurídica originária da obrigação cartular, antes e tão só da relação fundada no próprio aval, a qual só pode ser invocada nas relações entre o avalista e o avalizado.

O aval fundamenta-se, frequentemente, na confiança que o avalizado lhe merece. O avalista fica obrigado apenas pelo favor e não porque já o fosse em virtude de uma relação extra-cartular. A responsabilidade do avalista radica na subscrição do aval e não na obrigação causal aos mesmos.

Sendo a obrigação do avalista autónoma, em princípio não pode defender-se com as exceções do avalizado atinentes à relação subjacente, por hipótese, preenchimento abusivo, nulidade ou incumprimento do contrato, conforme entendimento jurisprudencial uniforme, porque o avalista presta uma garantia à obrigação cambiária do avalizado (subscritor da livrança) e não diretamente à obrigação causal subjacente.

Quer o aval seja havido como uma fiança com regime jurídico especial, quer se lhe atribua o carácter de uma garantia objetiva, está sempre em causa uma garantia autónoma, distinta de qualquer outra obrigação cambiária (cf. Gonsalves Dias, Da Letra e da Livrança, vol. VII, p. 329 e Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, III, p. 205).

Carolina Cunha (in Letras e Livranças Paradigmas Atuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, 2012, pp. 105 e 106) explicita que o ingresso do avalista no círculo cambiário se faz tipicamente por ligação com um determinado protagonista: o avalizado dispõe-se, portanto, a assumir voluntária e diretamente uma vinculação de garantia, sem qualquer nexo funcional com a criação ou transmissão do direito”. Todavia, a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado. Trata-se de uma responsabilidade solidária. O avalista não goza do benefício da excussão prévia, mas responde pelo pagamento da letra solidariamente com os demais subscritores (art. 47º, I). Além de não ser subsidiária, a obrigação do avalista não é, senão imperfeitamente, uma obrigação acessória relativamente à do avalizado. Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao aspeto formal.

Pedro Pais de Vasconcelos (in Direito Comercial, Títulos de Crédito, AAFDL, 1990, p. 128) nega, de igual sorte, a subsidiariedade, classificando a responsabilidade do avalista como solidária e cumulativa.

Lê-se no ac. desta Relação do Porto de 8-9-2020 (proc. 1862/19.3T8LOU-A.P1, Márcia Portela): a relação fundamental e a relação cambiária mantêm-se autónomas, independentes, não se comunicando as vicissitudes da primeira à segunda. A dependência do aval relativamente à obrigação fundamental é meramente formal por a lei reportar o aval a uma obrigação formalmente existente. Daqui resulta claramente que o aval, facilitando a circulação do título de crédito e potenciando a confiança, garante o pagamento do crédito cambiário, e não o crédito emergente da relação fundamental. Por isso se afirma que o avalista não garante que o avalizado pagará a dívida emergente da relação fundamental; ele responde perante o credor cambiário pelo pagamento da obrigação cambiária incorporada no título emancipado da obrigação fundamental. O aval convoca duas obrigações distintas, encabeçadas por sujeitos distintos: a obrigação emergente da relação fundamental e a obrigação cartular. Como corolário do princípio da autonomia, a obrigação cartular mantém-se imune às vicissitudes da relação fundamental, podendo sempre o credor cambiário intentar ação contra o avalista e outros obrigados cambiários, nos termos ao artigo 47.º LULL, ex vi artigo 77.º. Sendo alheio à relação fundamental que se estabeleceu entre o subscritor da livrança (…) e a embargada, e destacando-se o aval daquela relação, o avalista, em regra, não se pode prevalecer dos meios de defesa que assistem ao devedor».

É também o que resulta da fundamentação do acórdão uniformizador de jurisprudência/A.U.J. 4/2013, de 11-12-2012, onde se lê: do que ficou dito supra, o avalista não se obriga perante o avalizado mas sim perante o titular da letra ou da livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo, como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança. A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária, perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra. A circunstância de a relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária. A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal. Os efeitos da obrigação cartular assumida pelo avalista destacam-se da obrigação subjacente.

Em suma, a autonomia e a abstração do ato cambiário constituído pelo aval impedem o avalista de opor ao portador do título as exceções derivadas da relação causal existente entre este e o devedor principal.

Está, porém, firmado na jurisprudência o entendimento de que o avalista pode excecionar o preenchimento abusivo do título acaso tenha intervindo no pacto de preenchimento (veja-se o ac. da Relação de Lisboa de 16-12-2021, proc. 2096/19.2T8FNC-A.L1-2, Arlindo Crua, que detalhadamente o explica). Encontrando-se o título nas relações imediatas e tendo o avalista outorgado no pacto de preenchimento, reconhece-se ao avalista legitimidade para arguir o preenchimento abusivo.

Existe ainda um meio de defesa que o avalista pode sempre invocar perante o credor portador do título, a saber, o pagamento do título.

No caso vertente, os avalistas e embargantes garantiram ao subscritor o pontual cumprimento da obrigação cambiária, obrigação essa materialmente autónoma face à obrigação avalizada.

Não foram alegados nem decorrem dos títulos quaisquer vícios atinentes à forma, esses sim oponíveis pelo avalista ao portador, nos termos já descritos do art.º 32.º da LULLiv..

Os embargantes não invocam ter outorgado o pacto de preenchimento, nem a exceção de pagamento.

Deste modo, sempre os embargos teriam que improceder quanto aos avalistas, prosseguindo a execução.

Não podem, pois, os embargantes, com êxito, com fundamento nesta tese, pretender furtar o seu património à execução.

Neste sentido, teria sido inútil - e como tal vedado pelo art.º 130.º do C.P.C. - que o tribunal de 1.ª instância se tivesse detido sobre as exceções de litispendência, de ineptidão do requerimento inicial por não terem sido alegados os factos atinentes à relação causal e de falta de pacto de preenchimento. Como se viu, a autonomia e a abstração do ato cambiário que é o aval impedem o avalista de opor ao portador do título as exceções derivadas da relação causal existente entre este e o devedor principal.


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Dispositivo

Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar o presente recurso improcedente, mantendo-se a decisão de 1.ª instância.


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Custas pelos apelantes, por terem decaído na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).

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Porto, 17-6-2024

Teresa Fonseca

Ana Olívia Loureiro

Miguel Baldaia de Morais