VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VITIMA
GRAVAÇÃO
Sumário

I.–A proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (ou da imagem que as retrata) tem de ceder perante o interesse de proteção da vítima e a eficiência da justiça penal pois a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime.

II.–Num contexto em que está fortemente indiciada da preocupação do agressor em agredir física e verbalmente a ofendida longe dos olhares de outras pessoas e que se fez valer da sua profissão para controlar a vida da ofendida e das pessoas que com ela se relacionam, a que acresce a sua postura de vitimização e acusação face à ofendida bem como a personalidade que procurou transmitir ao tribunal, é forçoso concluir que a gravação da “palavra falada” do agressor, ainda que por este não consentida, constituiu o único meio que a ofendida teve ao seu dispor para demonstrar a verdadeira personalidade deste e consequentemente a veracidade da versão dos factos por si apresentada (a violência, a agressividade e a linguagem obscena a que era sujeita).

III.–É inadmissível sancionar criminalmente a vítima de violência doméstica que através da gravação da “palavra falada” do agressor pretende demonstrar os comportamentos ilícitos deste sobretudo quando a mesma não possui quaisquer outros elementos probatórios, para além das suas próprias declarações, contrariadas pelas declarações do agressor, atuando a mesma ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO


No processo de inquérito nº 233/24.4KRSXL, do Juízo de Instrução Criminal de Almada, a Mma Juíza de Instrução Criminal de Almada, em 21.03.2024, proferiu o seguinte despacho:

“Nestes termos, e de acordo com o preceituado nos arts. 191°, 193°, 196°, 200° n.º 1, al d) e e), 201.°, n.° 1, 2 e 3 e 204° al c) do CPP, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito:
a.-Ao TIR já prestado;
b.-A medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica;
c.-À medida de coacção de proibição de contactos com a ofendida, por qualquer meio (excepção feita aos contactos necessários à prática de actos processuais relativos as filhas menores);
d.-A medida de coação de proibição de contactos com qualquer das testemunhas indicadas nos autos;
e.-coação de obrigação de entregar armas que possua, bem como não adquirir ou usar armas enquanto perdurarem as medidas de coacção ora aplicadas.
O arguido aguardará a instalação dos meios técnicos de controlo à distância sujeito à medida de coação prisão preventiva pelo que deverão emitir os competentes mandados de condução do arguido ao EP competente.
Oficie à DGRSP para que, assim que possível, proceda à instalação dos meios técnicos de controlo da medida aplicada, na morada constante do TIR”.
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O arguido AA veio recorrer do despacho que lhe aplicou a medida de coação, formulando as seguintes conclusões:
A.– De forma a defender a licitude e a valoração como meio (legítimo) de prova, nos termos do artigo 167.° do Código de Processo Penal, das gravações das conversas entre o arguido e a vítima, efectuadas por esta última sem o consentimento do primeiro, constantes da “pen” a que o Ministério Público alude nos meios de prova, a Senhora Juíza de Instrução Criminal enquadra esta actuação no âmbito da existência de um estado de necessidade, cf. artigo 34.° do Código Penal.
B.– Não obstante, sempre se dirá que a nulidade da prova proibida que atinge os direitos fundamentais à privacidade previstos no artigo 126.°, n.° 3 do CPP pode ser conhecida em qualquer fase do processo, a requerimento do titular do direito infringido.
C.– Em face do caso concreto, dúvidas não restam quanto à falta de consentimento do arguido no sentido da gravação das suas conversas com a ofendida. Tão-pouco, no sentido da sua reprodução, transcrição e junção aos autos. Pois que, apesar de ser incontroverso o direito à prova que assiste aos particulares no âmbito do processo penal, mediante o fornecimento de elementos às autoridades responsáveis pela investigação, verifica-se, igualmente, ser incontroversa a afirmação de que o propósito de carrear provas para o processo penal não pode, enquanto tal, excluir, de forma leviana, a ilicitude das gravações efectuadas por particulares.
D.– Como nos parece, ressalvado o devido respeito, que é muito, ter sucedido nos presentes autos. Desde logo, porque a sua obtenção não é lícita em face da flagrante violação do direito à privacidade, nomeadamente do direito à palavra, o qual se encontra constitucionalmente protegido, e que se traduz, por isso, no direito que assiste a cada um de decidir livremente se e quem pode gravar a sua palavra, bem como, depois de gravada, se e quem pode ouvir a gravação.
E.– Nesta senda, o direito à palavra concretiza-se na pretensão de que a palavra é, por princípio, ouvida no momento e no contexto em que é proferida, não podendo ser perpetuada para ser posteriormente invocada contra o seu autor, fora do espaço, tempo, ambiente e outros factores relevantes. Destacando, in casu, o evidente conflito de desentendimento conjugal, notoriamente relacionado com as filhas menores de ambos.
F.– Sendo que, a matéria em causa recai, inequivocamente, no âmbito da legalidade de obtenção dos meios de prova, à qual, também os particulares estão subordinados.
G.– Deste modo, em obediência a tal desiderato, não se vê como se poderá sustentar a legalidade das gravações levadas a cabo pela ofendida, relativamente à qual se abriu mão do controlo e aparato jurisdicional evidenciado, por exemplo, numa normal escuta telefónica, subtraindo prontamente a ideia de que tal procedimento probatório se executou à margem das condições permitidas e expressamente previstas na lei, cf. artigos 125.°, 126.°, 187.° a 190.° do CPP.
H.– A não ser que se entenda que a prova assim obtida por particulares tem uma força probatória supra legal e supra constitucional. Bastando, desta forma, que as autoridades se socorram deste método quando, elas próprias, não o puderem fazer com sucesso, contornando os rígidos procedimentos legais a observar em matéria de obtenção de prova.
I.– Deste modo, impõe-se sufragar que a prova obtida nas preditas condições é nula, não podendo ser valorada nem utilizada contra o arguido, uma vez que esta a única interpretação que se mostra compatível com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana do processo justo e equitativo, conforme consagrados nos artigos 1.° e 20.°, n.° 4 da CRP.
J.– Por tudo quanto antecede, perante a condição pessoal e sócio- laboral do arguido, a não verificação dos pressupostos enumerados no artigo 204.°, n.° 1, al. b) e c) do CPP, conjugados com os artigos 18.°, 27.° e 32.°, n.° 2 da CRP e com os artigos 193.°, n.° 1,2 e 3 do CPP, normas que se consideram violadas, o que determina a nulidade da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, deve a mesma ser revogada e substituída por uma medida de coacção não privativa da liberdade, como sendo a obrigação de apresentações semanais num posto da Guarda Nacional Republicana, a acrescentar às restantes medidas previamente determinadas, o que, desde já, se requer cf. artigos 122, n.° 1, 212.°, n.° 1, al. a), n.° 3 e 4 e 198.°, todos do CPP.
K.– Nestes termos, com os demais de direito que V. Exas. justa e perfeitamente se dignarem suprir-nos, assim decidindo se fará a consabida e costumada JUSTIÇA!”
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O recurso foi admitido por despacho proferido em 23.04.2024, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
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O Ministério Público apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
1.–Os factos constantes dos autos são suscetíveis de integrar a prática pelo arguido AA de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal.
2.–In casu, as gravações realizadas pela vítima de uma vídeo-chamada realizada pelo arguido, foi o único meio que a mesma teve para se proteger e demonstrar em termos probatórios o temor que sentia do arguido perante as reiteradas agressões físicas, injúrias, humilhações e ameaças realizadas entre “quatro paredes", demonstrando, assim, a violência a que era sujeita, permitindo tal gravação perceber o terror que o arguido ccnseguia incutir na vítima que, submissa, lhe respondia em voz baixa e lhe pedia desculpas.
3.–Como vem sendo entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores e pela doutrina, em tal contexto de violência doméstica, a gravação da palavra falada ainda que não consentida, seja por via do argumento de sentido vítimodogmático, excludente da tipicidade da conduta, seja porque se verifica uma das causas de justificação previstas no art go 31.º, do Código Penal, que excluem a ilicitude de tal conduta, tem como consequência a inexistência de responsabilidade penal quanto a quem procedeu à gravação.
4.–Assim, como bem entendeu o tribunal a quo, as gravações realizadas pala vítima são válidas e podem e devem ser utilizadas nos presentes autos, não se encontrando feridas de qualquer vício de nulidade. 
5.–A decisão de aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica ao arguido AA mostra-se proporcional e adequada aos perigos verificados e aos fundamentos elencados em sede de primeiro interrogatório judicial.
6.–Inexiste qualquer violação dos princípios norteadores da aplicação das medidas de coação, designadamente, previstos nos artigos 191.º, 192.º e 193.º, do Códigc de Processo Penal.
7.–In casu, conforme bem decidiu o tribunal a quo, tendo em atenção a natureza do crime em apreço, as circunstâncias em que o mesmo foi praticado, a gravidade dos factos e a personalidade violenta revelada pelo arguido, apenas uma medida de coação privativa da liberdade se revela suficiente para acautelar os perigos de continuação da atã/idade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
8.–O recurso apresentado deve, pois, improceder, por se não verificarem, em absoluto, os fundamentos invocados para a sua interposição”.
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Nesta Relação, o Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que “o recurso interposto pelo Arguido AA deve ser julgado improcedente e, consequentemente, o despacho recorrido deve ser mantido”.
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Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal, tendo o recorrente respondido ao parecer.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.
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II.–OBJETO DO RECURSO

Conforme é jurisprudência assente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”.
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respetiva motivação, pelo que “[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras” (Pereira Madeira, Art. 412.º/ nota 3, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2021, 3.ª ed., p. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ, de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do CPPenal).
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Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, cumpre apreciar:
- a valoração como meio (legítimo) de prova, nos termos do art. 167º do C.P.Penal, das gravações das conversas entre o recorrente e a vítima, efetuadas por esta última, sem o consentimento do primeiro;
- se se verificam os pressupostos legais necessários à aplicação ao recorrente da medida de coação de OPHVE, ou, ao invés, se a mesma deverá ser substituída pela medida de obrigação de apresentações semanais num posto da Guarda Nacional Republicana.

III.–FUNDAMENTAÇÃO

1.–Em 21.03.2024, em sede de interrogatório de arguido, o tribunal a quo proferiu o seguinte:
“DESPACHO
(…)
Da nulidade da prova obtida mediante gravação e constante da “pen" a que alude o Ministério Público nos meios de prova.
Veio o arguido arguir a nulidade das gravações constantes da “pen” indicada pelo Ministério Público e que suportam os factos constantes do despacho de apresentação do arguido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, mormente os constantes dos pontos 64 a 77 do aludido despacho, fundamentando tal pretensão na circunstância de ser prova obtida mediante gravações não autorizadas pelo arguido e, por isso, ilícitas, na medida em que foram obtidos; mediante abusiva intromissão na vida privada - artigos 26°, n° 1 e 32°, n° 8 da Constituição da República Portuguesa, 199° do Código Penal e 126° do Código de Processo Penal.
Em consequência, defende que este meio de prova não deve ser admitido e valorado, arguindo a nulidade do mesmo.
Em tese, as proibições de prova representam meios processuais de imposição da tutela de direitos materiais, constituindo limites à descoberta da verdade que têm em si subjacentes o fim de tutela de um direito.
Nesta perspectiva, as proibições de prova representam, portanto, «meios processuais de imposição do direito material» que visam «prevenir determinadas manifestações de danosidade social» e garantem «a integridade de bens jurídicos prevalentemente pessoais», (cfr. Costa. Andrade in "Sobre as proibições de prova em processo penal", Coimbra Editora, 1992, p. 83).
Reflexo deste entendimento, encontra-se plasmado no artigo 126° do Código de Processo Penal, sob a epígrafe "métodos proibidos de prova", que refere, no seu n° 3, que "ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular".
Seguindo muito de perto a jurisprudência do Acórdão do Tribunal de Lisboa de 28.05.2009, diremos que, sendo o processo penal «direito constitucional aplicado», "ao prescrever a proibição de prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento do respectivo titular, o art. 126º/3 do CPP indica o dever dos investigadores e autoridades judiciárias respeitarem normativos que, excepcionalmente, e para prossecução de outros direitos ou fins constitucionalmente contemplados, designadamente a perseguição penal, autorizam restrições aos direitos fundamentais. É o caso de normativos como os já acima referidos arts. 187º CPP ou 6.° da Lei 5/2002, em concretização ainda do respeito pelos direitos fundamentais contemplados nos arts. 26.º e 34.° da CRP". Continua dizendo: "No que respeita, por seu lado, a provas obtidas por particulares o legislador remete-nos para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal como tutela do referido direito fundamental à privacidade. Bem ilustrativo desta linha de concretização legislativa se revela o normativo inserto no art. 167° do CPP ao fazer depender a validade da prova, produzida por reproduções mecânicas da sua não ilicitude penal" (cfr. Acórdão do Tribunal de Lisboa de 28.05.2009, Proc. n° 10210/2008-9, disponível nas bases de dados da dgsi).
Aqui chegados, cumpre verificar se estamos ou não perante um crime de gravações ilícitas.
Assim, refere o n° 1 do artigo 199° do Código Penal que incorre na prática de um crime quem, sem consentimento “gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas” ou “utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas (…) mesmo que licitamente produzidas”.
Na senda de Costa Andrade, “o art. 199° contém duas incriminações autónomas - a saber: gravações e fotografias ilícitas - preordenadas à tutela de dois bens jurídicos distintos: o direito à palavra e o direito à imagem. Trata-se de duas incriminações homólogas, mas não inteiramente sobreponíveis".
No caso dos autos, a ofendida procedeu a gravações de uma conversa que o arguido teve consigo, sem que tivesse obtido da parte deste o necessário e prévio consentimento. Encontram-se, por isso, preenchidos os elementos do tipo legal (artigo 199° do Código Penal).
Diríamos, portanto, numa análise mais superficial, que a gravação é ilícita e que, consequentemente, não poderá servir de meio de prova (nem tão pouco as transcrições da gravação, por dela decorrerem).
Todavia, como bem chama à atenção o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, “ao estabelecer-se, no art. 167.° do CPP, que as reproduções fotográficas ou cinematográficas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um acto ilícito e culposo (...). Importa, porém, não perder de vista a possibilidade de verificação de alguma causa de justificação da ilicitude ou mesmo da culpa configuráveis no caso. Tal como salientado por Costa Andrade (Comentário cit.), a razão para algumas controvérsias suscitadas em torno da justificação nos primes de gravações e fotografias ilícitas radicam sobretudo na necessidade de aplicar velhas causas de justificação (historicamente vinculadas a factos como homicídio, ofensas corporais, dano, etc.) novas expressões de comportamento penalmente relevante”, concluindo mais adiante que não há razão nenhuma para não se aplicar a figura da legítima defesa, por exemplo, à gravação da palavra no crime de extorsão, não cabendo o argumento que por vezes costuma contrapor-se da falta de verificação de pressupostos como a actualidade da agressão ou a idoneidade e a necessidade do meio”.
Idêntica jurisprudência, resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.06.2011, onde se considerou que “as imagens recolhidas pela assistente só não poderão ser valoradas como meio de prova se a sua obtenção constituir um ilícito criminal, por isso, importa apurar se a conduta da assistente integra um ilícito criminal”. E acrescenta: “tem sido entendimento da jurisprudência que não constitui a obtenção de imagens, mesmo sem o consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento (como p. ex. estado de necessidade, legitima defesa) ou quando enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos, ou hajam ocorrido publicamente" (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora dê 28.06.2011, Proc. n° 2499/08.8TAPTM.E1. No mesmo sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.06.2012, Proc. n° 914/07.7TDLSB.L1 -9, os dois disponíveis nas bases de dados da dgsi).
No caso em apreço, ouvidas as gravações constantes da “pen” indicada como prova pelo MP, resulta que as gravações áudio se reportam a um monólogo que o arguido dirigiu à vítima, onde lhe dirige palavras como “és um escroto. (...) és podre, és um nojo (...) se eu vejo que continuas a fazer isso eu rasgo-te da cona ao pescoço, entende? Eu não estou a brincar! (...) Mas tu não vais morrer à primeira, isso te garanto, quando eu estiver a rasgar, mas vais ter convulsões (...) sua puta, sua rameira, tu não és mulher de jeito (...) as pessoas não me conhecem aqui neste país eu arranco-te o coração fora, a ti ou seja a quem for (...) acordas com o coração ao teu lado, não me faças fazer merda, ouviste?”.
Dessa conversa resulta um arguido manipulador e controlador e uma vítima submissa, que fala baixo e pede desculpa (mesmo quando não tem de o fazer).
Nestes termos, concluímos que a ofendida se socorreu de um meio necessário para fazer face a um perigo actual e iminente (injúrias e ameaças do arguido).
A situação de perigo não foi criada pela vítima, como resulta das gravações.
Há, ainda, uma manifesta superioridade dos seus interesses em detrimento dos interesses do arguido. Na verdade, ponderados os interesses e os bens jurídicos em confronto (dignidade da pessoa humana vs direito à palavra), fácil é de concluir que o direito do arguido à palavra terá que ceder perante o direito da vítima, hierarquicamente superior e que merece, desta forma, preferência e outra tutela legal.
Termos em que este Tribunal conclui que a ofendida, ao ter gravado conversas que o arguido teve consigo, actuou pelo menos, em Estado de Necessidade (artigo 34° do Código Penal), não sendo, desta forma, ilícito o facto por si praticado.
E ao não ter praticado um facto ilícito, a gravação pode e deve valer como meio (legítimo) de prova, nos termos do disposto no artigo 167° do Código de Processo Penal.
Termos em que, de harmonia com o disposto nos artigos 167° do Código de Processo Penal e 34° e 199° do Cdigo Penal, declaro válidas as gravações das conversações entre o arguido e a vítima e entendo que tal meio de prova poderá e será utilizado nos autos.
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Assim sendo, considerando todos os elementos juntos aos autos, nomeadamente BB - fls. 25 a 29, CC - fls. 56 a 60, queixa - fls. 2 a 11, pen - fls. 12, assentos de nascimento - fls. 20 a 21 e 22 a 23, informação APAV - fls. 78 a 79, certificado de Registo Criminal - fls. 17 a 18, resultam fortemente indiciados nos autos os seguintes factos:
1.–O arguido AA e a ofendida BB começaram a namorar em 2009 e a viver como se marido e mulher se tratassem em 2013.
2.–No início do relacionamento, o arguido AA e a ofendida residiram na residência da mãe do arguido e em data não concretamente apurada de fevereiro de 2014 foram residir para a ..., onde permaneceram cerca de dois anos.
3.–Posteriormente, em data não apurada de 2016, o arguido AA e a ofendida foram residir para a ..., onde viveram cerca de um ano.
4.–Entre data não apurada de 2017 e junho de 2018 o arguido AA e a ofendida viveram na ....
5.–Após, entre julho de 2018 e 22 de janeiro de 2024, o arguido AA e a ofendida BB residiram na ...
6.–Do relacionamento entre o arguido AA e a ofendida BB nasceram duas filhas, DD, nascida a ........2013 e EE, nascida a ........2018.
7.–Desde o início do relacionamento, o arguido AA revelou ciúmes em relação à ofendida BB, o que originava discussões entre ambos.
8.–Após a gravidez da primeira filha, o arguido AA, por várias vezes, disse à ofendida BB que não era "fit" o suficiente, que não se cuidava, que não se esforçava e "Não cuides de ti, não trates de ti, depois não te queixes".
9.–Desde essa altura, no âmbito das discussões entre ambos, o arguido AA apelidou a ofendida BB de "burra", "estúpida" e "deficiente mental".
10.–A partir de data não concretamente apurada de 2016, as discussões entre o arguido AA e a ofendida BB começaram a ser mais frequentes.
11.–Nessas discussões, o arguido AA, por várias vezes apelidou a ofendida BB de "burra", "estúpida" e disse-lhe "Es uma tristeza".
12.–Aquando da gravidez da segunda filha de ambos ao ser confrontado pela ofendida BB com uma traição, o arguido AA dirigiu-se-lhe e apelidou-a de "louca" e disse-lhe que, "estava descompensada hormonalmente" e que não lhe despertava interesse sexual por se encontrar grávida.
13.–Nessa ocasião, a ofendida BB ficou internada no ... durante 15 dias devido a uma rutura na bolsa.
14.–A partir do nascimento da filha EE, as discussões entre o arguido AA e a ofendida BB começaram a ocorrer com mais frequência, pelo menos quatro vezes por semana e mais que uma vez num dia.
15.–Nessas discussões, o arguido AA, por várias vezes, apelidou a ofendida BB de "burra do caralho”, "estúpida de merda", "acéfala".
16.–Em data não concretamente apurada do verão de 2020, a ofendida BB foi passar um fim-de-semana ao ... com a mãe e com a irmã do arguido AA e com as filhas de ambos, o que não agradou ao arguido.
17.–No dia de regresso, ia arguido AA, por várias vezes, contactou telefonicamente a ofendida BB e disse-lhe Onde é que estás, vem para casa, estás a gozar comigo, és uma tristeza".
18.–Aquando do regresso da ofendida BB à residência comum na companhia da mãe e da irmã do arguido AA e das filhas de ambos, o arguido AA disse-lhe que queria ir dar uma volta consigo.
19.–Nesse dias e momento a irmã do arguido FF, disse que os acompanhava e desceu a escadas do prédio.
20.–Porém, apôs a ofendida BB se introduzir no interior do veículo automóvel, o arguido AA trancou as portas do veículo e iniciou a marcha, impedindo a sua irmã de os acompanhar.
21.–De seguida, no percurso que realizaram até um descampado próximo da residência de ambos, o arguido AA ao mesmo tempo que disse à ofendida BB "Estás a gozar comigo, eu ando a trabalhar para tu andares a brincar" desferiu-lhe um murro na coxa esquerda.
22.–No descampado, a ofendida BB começou a chorar e o arguido AA voltou para a residência comum.
23.–Em data não apurada de setembro de 2023, a ofendida BB disse ao arguido AA que queria terminar o relacionamento amoroso.
24.–O que o arguido AA não aceitou dizendo-lhe que ia ser um homem novo.
25.–Em dezembro de 2023, aquando de um jantar de Natal da ofendida BB, num restaurante …, em …, o arguido AA contactou-a telefonicamente e descreveu-lhe a pessoa que estava à sua frente, as pessoas que estavam ao seu lado, o prato que estava a servir e perguntou-lhe se a pessoa que estava ao seu lado era o GG de que lhe tinha dito gostar.
26.–Após tal data, o arguido AA, por várias vezes, disse à ofendida BB que a ia buscar à escola onde leciona o que a ofendida BB recusou.
27.–No dia 8 de janeiro de 2024, cercas das 01h00, na residência comum, o arguido AA perguntou à ofendida BB se já tinha mantido relações sexuais com o GG, se tinha vontade de o fazer e se já lhe tinha passado pela cabeça querer beijá-lo, ao que a ofendida BB lhe respondeu que sim.
28.–Nesse momento, o arguido AA foi buscar malas da ofendida BB e disse-lhe para se ir embora naquele instante, para ligar ao GG para a ir buscar ou que o próprio a levaria, à casa do GG, do qual já sabia a morada, a data de nascimento, as coimas que havia tido, pois tinha muitos meios para saber tais informações.
29.–Posteriormente, enquanto colocava pertences da ofendida BB nas malas, o arguido AA disse-lhe "Traíste-me, uma traição emocional é muito pior que uma traição física", "és uma puta", "não me mereces”, "dei-te demais".
30.–De seguida, o arguido AA, por várias vezes, empurrou a ofendida BB, puxou-a para a porta da residência e com as duas mãos, apertou-lhe o pescoço.
31.–O que fez com que a ofendida BB permanecesse momentaneamente sem respirar.
32.–No dia seguinte, pelas 07h00, o arguido AA acordou a ofendida BB e pediu-lhe o telemóvel para falar com o GG.
33.–O que a ofendida BB recusou.
34.–Em ato continuo, o arguido AA retirou o telemóvel à ofendida BB e pediu-lhe que a desbloqueasse, o que a ofendida BB recusou.
35.–A ofendida BB conseguiu retirar o telemóvel ao arguido AA.
36.–Nesse momento, a filha de ambos, EE, entrou no quarto e começou a chorar.
37.–Ao que, a ofendida BB largou o telemóvel.
38.–O arguido AA agarrou no telemóvel da ofendida BB e dirigiu-se para a cozinha.
39.–De seguida, a ofendida BB agarrou a filha ao colo e foi atrás do arguido AA, conseguindo retirar-lhe o aparelho.
40.–Ao ver a ofendida BB sair da cozinha, o arguido AA deu-lhe uma dentada no braço direito.
41.–De seguida, o arguido AA dirigiu-se à ofendida BB, retirou-lhe o telemóvel e partiu-o ao meio.
42.–Nessa ocasião, a filha de ambos, EE, chorou.
43.–Seguidamente, o arguido AA, através do seu telemóvel contactou telefonicamente GG e combinou encontrar-se com o mesmo.
44.–Após tal encontro, cerca das 13h00, na residência comum, o arguido AA disse à ofendida BB que o GG lhe parecia boa pessoa e que lhe dava aprovação para estar com o mesmo.
45.–Como consequência da conduta do arguido AA, a ofendida BB sofreu dores, mas não recorreu a tratamento hospitalar.
46.–Durante essa semana, a ofendida BB informou o arguido AA que se iria mudar para uma casa de GG que se encontrava vaga, o que o arguido AA aceitou dizendo-lhe que queria conhecer a casa onde as filhas iam viver.
47.–No dia 22 de janeiro de 2023, pelas 00h00, ao chegar à residência comum, o arguido AA disse à ofendida BB que nem para se ir embora ia rápido, desferiu pontapés e pisadelas em sacos, contendo bens da ofendida BB, e retirou-lhe as chaves da residência comum.
48.–Nessa noite, a ofendida BB saiu de casa e foi residir para a ....
49.–Desde que a ofendida BB saiu da residência comum, o arguido AA contactou-a diariamente, através de videochamadas, e disse-lhe que estragou a família e para pensar bem no que estava a fazer.
50.–No dia 5 de fevereiro de 2024, a ofendida BB dirigiu-se à residência do arguido AA para ir buscar as filhas.
51.–Nessa ocasião, o arguido AA disse à ofendida BB para levar uns sacos com pertences seus ao carro antes de levar as filhas e acompanhou a ofendida BB até à porta do prédio.
52.–Temendo o comportamento do arguido AA quando visse o veículo no qual se fazia transportar, a ofendida BB colocou tais sacos no contentor do lixo.
53.–No regresso à residência, o arguido AA perguntou à ofendida BB se o carro era do GG e disse-lhe "és uma puta", "vendida", que "se tinha vendido por uma casa e por um carro" e que lhe "tinha roubado o carro que lhe tinha dado".
54.–Ao subir as escadas ate à sua residência, no segundo andar do prédio, o arguido AA voltou-se para trás e desferiu uma chapada no lado esquerdo da face da ofendida BB.
55.–Após, no vão de escadas seguinte, o arguido AA desferiu uma chapada no lado direito da face da ofendida BB.
56.–E, no último degrau antes da sua residência, o arguido AA, com as duas mãos, apertou, com força, o pescoço da ofendida BB.
57.–O que fez com que a ofendida BB permanecesse momentaneamente sem respirar.
58.–Seguidamente, o arguido AA desferiu um murro no tronco da ofendida BB.
59.–O que fez com que a ofendida BB sentisse falta de ar e começasse a gritar.
60.–Ao que o arguido AA lhe disse "Vá levanta-te, cala-te que eu nem fiz isso com força".
61.–Assim que a ofendida BB se levantou, o arguido AA agarrou na cabeça da ofendida BB e bateu com a mesma contra a parede.
62.–De seguida, o arguido AA disse à ofendida BB"recompõe-te".
63.–Como consequência da conduta do arguido AA, a ofendida BB sofreu dores e hematomas na cabeça, mas não recorreu a tratamento hospitalar.
64.–No dia 31 de janeiro de 2024, o arguido AA contactou a ofendida BB através de video-chamada e disse-lhe que tinha que assinar que a venda da casa era 20% % para si e 80% para ele, porque a própria é que tinha saído de casa e perdido todos os direitos, que ainda estava a ser muito bonzinho, pois se fosse para tribunal já tinha feito as contas e só lhe davam 9% e "Qualquer coisa agarro no carro patrulha e ponho-me aí em 5 minutos. Tu não te estiques".
65.–No dia 17 de fevereiro de 2024, pelas 21h40, o arguido AA dirigiu-se à porta do prédio da residência da ofendida BB a fim de levar as filhas de ambos.
66.–Ali chegado, o arguido AA deixou as filhas no carro com uma amiga e dirigiu-se à residência da ofendida BB.
67.–Ali chegado, o arguido AA pediu à ofendida BB para se sentarem para conversar.
68.–No âmbito de tal conversa, o arguido AA disse à ofendida BB que a amava incondicionalmente, que foi uma vergonha, que não são coisas que uma mãe de família faça, que dá conversa aos outros homens, que é vendida, que isso é coisa de puta.
69.–Após, o arguido AA perguntou à ofendida BB pelo seu computador portátil e disse-lhe que como o havia comprado com o seu dinheiro o mesmo era seu, ao que a ofendida BB lhe entregou o computador.
70.–Seguidamente, o arguido AA perguntou à ofendida BB quantas vezes o havia traído.
71.–E, em ato continuo, com as duas mãos, apertou-lhe a face, empurrou-a contra a ombreira da porta e, com força, apertou-lhe o pescoço e desferiu-lhe um murro no tronco.
72.–O que fez com que a ofendida BB caísse ao chão.
73.–Com a ofendida BB caída no chão, o arguido AA, por várias vezes, puxou-lhe as orelhas e os cabelos afim de levantá- la, ao mesmo tempo que lhe disse "puta", "vendida", "destruíste a família", "nunca te vou perdoar por isto", "mato-te a ti e ao teu amigo", "mato-te e não és só tu".
74.–Assim que a ofendida BB se conseguiu levantar, o arguido AA puxou-lhe as orelhas e o cabelo e disse-lhe "E bom que assines os 20% ouviste", "vou arranjar um psicoterapeuta diferente porque aquele que tu tens não vale um caralho ", "conheço um bacano e tu vais lá ouviste que eu preciso de perceber umas coisas", "estripote de um lado ao lado ao outro", "tu não metes dentro desta casa nenhum homem, se não eu venho aqui mato-o à tua frente, deixo-te em convalescença e depois estripo-te de um lado ao outro".
75.–Após, quando a ofendida BB foi buscar as filhas, o arguido AA disse-lhe que tinha que se comportar como uma mãe de família, que não podia estar a fazer isto, que tinha que se por boa e que queria que ficasse bem para as suas filhas.
76.–Como consequência da conduta do arguido AA, a ofendida BB sofreu dores e permaneceu momentaneamente sem respirar, mas não recorreu a tratamento hospitalar.
77.–No dia 19 de fevereiro de 2024, após se ter encontrado novamente com GG, cerca das 21h00, o arguido AA contactou a ofendida BB através de videochamada e disse-lhe: "Es um escroto", "és podre, és um nojo, não és exemplo para as minhas filhas", "e se eu vejo que tu continuas a fazer isso eu rasgo-te da cona ao pescoço, entendes? Entendes? Eu não estou a brincar! Olha bem para mim, pá. Eu rasgo-te da cona ao pescoço, ouviste?", "mas tu não vais morrer à primeira, isso te garanto, quando eu estiver a rasgar, mas vais ter convulsões", "sua puta, és uma rameira, tu não és mulher de jeito, uma mulher de jeito, como eu tenho ao meu lado, tem duas empresas, tem mais outros dois trabalhos, tem 200 000 € na conta (...) Cada vez que estiveres com alguém na cama, sou eu quem te vai vir à cabeça, não vais ter nunca mais um caralho como o meu, nunca mais vais ter uma performance como a minha, não vais BB" (...) "Estares-te a fazer a um homem, isso é de puta" (...)" tu és pior que uma puta porque tu dás-te, tu dás a cona, é o que tu estás a dar, tu vendes a cona por isto, conforto, dinheiro" (...) "és uma puta, eu tenho outra mulher, uma loira de olhos azuis, não de olhos verdes, linda, linda, linda, linda," com um corpo estrutural, foda-se maravilhosa" (...) "nenhum homem vai entrar nessa casa, conviver com as minhas filhas, já te disse isso durante anos, verdade ou mentira? Achavas que eu estava a mentir ou a brincar? E bom que não aches" (...) "as pessoas não me conhecem aqui neste pais, eu arranco-te o coração fora, a ti ou seja a quem for (...) se for precisa vou aí e arranco o coração fora seja quem for (...) acordas com o coração ao teu lado, não me faças fazer merda, ouviste?' (...) Comporta-te condignamente, sê mãe digna para as minhas filhas, sê uma mulher digna, não é alguém que vai atrás, a mandar mensagens, para ir atrás... isso é puta, isso é uma mulher puta'"(...) tu és pior que isso sua puta, tu vais atrás, és puta, és uma rameira nojenta, entendes isso? Consegues ver isso? Estás a ouvir? Consegues perceber a puta que estás a ser, a rameira que estás a ser a atirares-te a um homem?" (...) "e querias chupar-me a picha, quando eu cheguei a casa quiseste-me chupar a picha e eu acabei por te ir à cona, eu devia ter-te deixado chupar a picha e esporrar-te essa tromba toda, e ainda te ia ao cu e dava-te um soco nessa cabeça" (...) eu vou-te matar, ouviste? E bom que acredites... Eu dilacero-te essa pachacha toda e queimo-te isso, mas acho que ainda fazia pior, é que eu vou mesmo fazer-te desaparecer, entendes? Comporta-te como mulher, ouviste?".
78.–No dia 20 de fevereiro de 2024, cerca das 21h30, o arguido AA dirigiu-se à residência da ofendida BB e disse-lhe se achava bem ter saído de casa, se estava feliz, se era isso que queria para as filhas, destruir o seio familiar por tão pouco e que tinha planeado tudo.
79.–De seguida, o arguido AA solicitou à ofendida BB o telemóvel.
80.–Receando o comportamento do arguido AA, a ofendida BB dirigiu-se para o quarto das filhas.
81.–Ao que, o arguido AA foi atrás da ofendida BB e pediu-lhe para sair, o que a ofendida BB recusou.
82.–Nessa ocasião, por várias vezes, a ofendida BB dirigiu-se à porta do quarto das filhas para ver onde se encontrava o arguido AA e o que estava a fazer.
83.–Numa ocasião em que a ofendida BB se dirigiu à porta do quarto das filhas, o arguido AA, ao mesmo tempo que colocou a mão dentro do casaco que vestia disse à ofendida BB "Para já com isso que dou-te um tiro já aqui".
84.–Noutra ocasião, à porta do quarto das filhas, o arguido AA agarrou a ofendida BB pelo roupão e puxou-a, fazendo com que a ofendida BB embatesse contra o roupeiro.
85.–O que fez com que a filha mais velha de ambos acordasse.
86.–O arguido AA, na presença da filha dirigiu-se à ofendida BB e disse-lhe "anda já aqui se não eu arrasto-te ate cá fora", que não se esquecesse da sua profissão, que a levava para o hospital psiquiátrico e que ficava lá.
87.–E noutra ocasião, o arguido AA, a sussurrar, disse à ofendida BB "Eu mato-te, eu mato-te, eu mato-te, vou-te matar por causa disto".
88.–De modo a cessar com as condutas do arguido AA, a ofendida BB disse-lhe para se ir embora e que falariam no dia seguinte os dois sozinhos, o que o arguido AA acatou.
89.–No dia 27 de fevereiro de 2024, o arguido AA transferiu todo o dinheiro que se encontrava na conta bancária conjunta para outras contas bancárias.
90.–As condutas acima descritas geram na ofendida BB sentimentos de insegurança e temor, vivendo a sua vida em sobressalto, perturbada e receosa do que o arguido AA possa vir a fazer contra a sua pessoa, temendo pela sua vida e saúde.
91.–Ao agir da forma descrita, o arguido AA agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente a ofendida BB, ofende-la na sua honra e consideração, humilhá-la, intimidá-la, perturbá-la na sua paz e sossego, coartando-a na sua liberdade pessoal com as expressões que lhe dirigiu e com os seus atos, fazendo-a temer pela sua vida e pela sua saúde, tratando-a de forma incompatível com a dignidade humana, bem sabendo que a ofendida BB era sua ex-companheira e mãe das suas filhas menores de idade e bem sabendo ainda que todas as suas descritas condutas eram adequadas a atingir tais propósitos.
92.–Mais, ao não se coibir de praticar tais factos no interior da residência da ofendida BB onde esta se deveria sentir protegida e onde ninguém a pode auxiliar e na presença das suas filhas menores de idade, bem sabia o arguido AA que as suas condutas eram especialmente gravosas e censuráveis.
93.–O arguido AA agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser penalmente proibido o seu comportamento”.
A factualidade supra descrita compromete o arguido com a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.° 152.°, n.° 1, alínea b) e n.° 2, alínea a), do Código Penal, punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
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Em sede de primeiro interrogatório o arguido quis prestar declarações, tendo apresentado a sua versão que. em súmula, passou por negar a generalidade dos factos que lhe são imputados.
Na verdade, o arguido negou que alguma vez tenha agredido a vítima - nessa medida negou todas as agressões físicas que se mostram descritas no despacho de apresentação -, negou ter ciúmes (pois que na sua versão quem tinha ciúmes era a ofendida), admitiu ter tido “um deslize” da sua parte no ano de 2017 a 2018, ou seja ter tido um relacionamento extra conjugal, mas atestou que nunca discutia com a ofendida, pois que nunca lhe levantou a voz, sendo ela quem gritava de forma “histérica” e que as discussões tinham a ver com a forma negligente como ela tratava a casa e as filhas menores de ambos – na versão do arguido a ofendida atrasava-se para o trabalho mas imputava essa responsabilidade às próprias filhas. Admitiu como possível que tenha dito à ofendida que a mesma era “uma tristeza”, assim como admitiu ter dito “estás a gozar comigo, ando eu a trabalhar para tu andares a brincar” e ainda “és uma puta, tu não me mereces”, mas assegurou que era “ela quem discutia”.
Quanto ao episódio do ..., atestou não ter ficado agradado com o comportamento da ofendida, pois que a mesma se deslocou ao ..., acompanhada das filhas, sem lhe dar qualquer conhecimento. Assim, e quando a mesma regressou, não a obrigou a “dar uma volta” de carro; na versão do arguido, ambos acordaram em “ir conversar”, nunca tendo trancado a ofendida no interior do veículo. Quanto às palavras constantes do ponto 21 do despacho de apresentação, confirmou ter proferido as referidas palavras, mas negou, mais uma vez, ter desferido qualquer murro na coxa da ofendida BB.
No mais, o arguido assegurou que sempre foi ele quem quis terminar a relação, opção que a ofendida não aceitava, começando a “chorar histericamente” e disse-lhe inclusivamente, que se iria vingar e que os papéis seriam invertidos.
Nesse dia, nas palavras do arguido, a ofendida “atirou-se contra a porta de costas e empurrou-me”, ou seja, na versão do arguido, a ofendida é que foi a agressora, não só dela própria como do próprio arguido.
Nessa medida, o arguido aceitou em reatar a relação e a ofendida começou então a ajudar mais em casa, pois que, também neste aspecto, o arguido avançou que era ele quem tomava conta da casa ei confecionava as refeições, sendo a ofendida muito pouco participativa nessas tarefas.
Negou o arguido todos os factos relacionados com o “jantar de Natal”, atestando que nesse dia a ofendida foi jantar com colegas da escola (onde na versão do arguido a que concluiu por ter questionado os vizinhos da mesma no local para onde esta foi residir, na versão do arguido apenas queria saber das filhas, contudo apurou que já era namorada do “GG” há muito tempo e por isso concluiu que a ofendida não ia para a escola, antes saia da escola e “ia ter com o tal GG”) e que o arguido ficou em casa a tomar conta das filhas, pelo que apenas lhe ligou para saber se estaria tudo bem e para lhe dar indicações de que as menores estariam bem.
Também negou ter feito as malas da ofendida, ter desferido pontapés em sacos, ter retirado o telemóvel das mãos desta, arguindo que esta sempre lhe deu o telemóvel voluntariamente bem como o PIN de acesso ao mesmo apenas e tão só porque queria consultar os extratos da conta bancária comum, domiciliada no ..., admitindo, contudo, ter partido o telemóvel da mesma com as próprias mãos.
Reforçou, também, que apenas lhe pediu o telemóvel, não para contactar o GG mas para confirmar os extratos da conta comum e confirmar que a ofendida se encontrava a subtrair dinheiro, razão pela qual entrou no email da própria, tirou um print, verificou que ali existia um email com o número do referido GG e remeteu esse print para o seu próprio telemóvel, de onde depois contactou o GG a fim de agendar um encontro. Quanto a este encontro, assegurou que o referido indivíduo não lhe pareceu “mau rapaz”.
Confirmou que em determinado dia a ofendida foi à sua residência buscar uns sacos que continham trabalhos escolares das filhas de ambos e que a acompanhou ao carro, sendo que esta acabou por colocar no lixo os referidos trabalhos. Ainda assim, conseguiu visualizar o veículo que a mesma conduzia, e que apurou pertencer a GG, tendo reproduzido ao Tribunal, a matrícula do referido veículo, marca, cor e modelo. Confessou, também, ter-se deslocado até às imediações da residência da ofendida para apurar do paradeiro desta, tendo questionado vizinhos/pessoas sobre onde as filhas poderiam estar e outras informações relacionadas com as filhas mas, também, a ofendida e GG.
Quanto ao episódio ocorrido no interior da residência da ofendida, atestou que apenas se dirigiu ao local a pedido desta e para recolher os instrumentos musicais da filha menor, sendo que foi a ofendida quem o convidou para entrar a fim de dar “um beijinho de boa noite” às menores que ainda se encontravam, acordadas. Acontece que, estando já no interior da residência, e quando visualizou sacos de roupa da mesma, perguntou à ofendida o que seria aquilo, tendo aquela começado a “chorar histericamente”, atirou-se para trás e foi bater contra um roupeiro, o que na perspectiva do arguido fez acordar a filha mais velha, que começou a chorar.
Ou seja, na versão do arguido, e mais uma vez, foi a ofendida quem se “jogou” contra os móveis, agredindo-se a si própria, começou, sem razão a “chorar histericamente” e, sem que se compreenda, as filhas que minutos antes estavam acordadas, estava uma a dormir profundamente, ao ponto de não acordar, e outra terá então acordado com o choro “histérico” na versão do arguido, da ofendida.
Ora, aqui chegados, cumpre referir que a versão do arguido não convence.
Admitida que foi a prova resultante das gravações efectuadas pela ofendida e que se mostram juntas aos autos, é, já nesta fase, inequívoca a existência de fortes indícios por banda do arguido dos factos que lhe são imputados no despacho de apresentação.
Na verdade, o arguido tendo confessado a prática de factos só por si suficientes para preencher os elementos típicos do crime imputado (mormente face às palavras que assumiu dirigir à ofendida, bem como ao facto de lhe ter partido o telemóvel), assumiu quanto a todos os outros uma postura desculpabilizante, assegurando ser ele a vítima pois que a ofendida é que seria a ciumenta, controladora e negligente.
Contudo, a prova já recolhida, mormente as declarações prestadas pela ofendida, corroboradas pelo depoimento da testemunha GG e confirmadas pelas gravações juntas aos autos, permitem ao Tribunal concluir pela bondade da versão apresentada pela ofendida, versão essa pormenorizada, circunstanciada e reveladora de grande temor.
Aliás, bastará ouvir as já mencionadas gravações para concluirmos pelo forte ascendente do arguido sobre a ofendida, que se limita a murmurar poucas palavras e a ouvir monólogos de injúrias e ameaças por banda do arguido, tanto dirigidas à pessoa daquela como a terceiros.
O arguido, mantendo-se sob a capa de uma completa frieza e vitimização (tanto que apresenta documentos reveladores de uma série de queixas/acções/providências contra a ofendida, a APAV, GG e seu pai, procurando com estas demonstrar a sua posição de vítima), o que também sucedeu durante o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, revela nas aludidas gravações e nas acções já descritas pela ofendida, de forma muito forte, sendo que o mesmo não se uma personalidade violenta, impulsiva e nada compatível com a “vítima”que pretende transmitir ser coibiu de atormentar a sua ex-companheira, mesmo na presença das filhas menores, diminuindo-a enquanto ser humano.
E esta postura arrogante e manipuladora que o arguido adopta nos monólogos que se mostram gravados é reveladora de uma pessoa narcisista, egocentrica e dominadora, o que é em tudo compatível com a versão que a ofendida apresenta nos autos e com a versão e posição que a testemunha GG apresenta nos autos, pois que dos depoimentos colhidos resulta um receio profundo das condutas que o arguido já manteve e poderá ainda vir a manter, postura essa incompatível com a personalidade serena e compungida que o arguido procurou transmitir a este Tribunal.
Aliás, dessa postura é revelador o facto de o arguido achar que pode inclusivamente opinar quanto à pessoa de GG, nomeadamente sobre se o mesmo seria “bom ou mau” rapaz, como se o arguido tivesse o poder de decidir com quem a ofendida se poderá ou não relacionar.
Também, a circunstância do arguido se fazer valer da sua profissão e eventuais conhecimentos e mecanismos de pesquisas para controlar a vida da ofendida e das pessoas com esta se relaciona, chegando ao ponto de soletrar em pleno interrogatório judicial matrícula do carro de GG, é revelador do controlo que o arguido exercia sobre a ofendida, mesmo depois de assumidamente se encontrar a relação terminada.
Assim sendo, considerando o depoimento da ofendida de fls. 25 a 29, o depoimento de GG de fls. 56 a 60, a queixa de fls. 2 a 11 e a informação da APAV de fls. 78 e 79, o Tribunal entende que os factos imputados ao arguido se mostram fortemente indiciados. Esta indiciação sai ainda reforçada com a audição das gravações constantes da pen de fls. 12 que, assim, nos permite concluir pela veracidade da versão apresentada pela ofendida.
O arguido já tem antecedentes criminais, tendo o mesmo avançado ao Tribunal que os factos que levaram às referidas condenações ocorreram em episódios de ordem profissional e não pessoal. De referir, quanto a este aspecto, que é, também aqui, bastante revelador da sua personalidade impulsiva, o facto do mesmo aquando do exercício das suas funções não se coibir de incorrer na prática de crimes contra a integridade física das pessoas, o que se lhe impunha, já que representa o garante da ordem e tranquilidades públicas.
Na verdade, analisada toda a prova já trazida aos autos, cumpre concluir que os autos revelam um completo desrespeito do arguido para com a vítima, sua companheira, sendo também evidente que o mesmo não consegue controlar os seus impulsos, persistindo na perseguição da vítima, intentos que, num crescendo, culminam com a agressão descrita no despacho de apresentação e que o arguido imputa à própria ofendida.
Ou seja, é em nosso entender completamente desrazoável que a vítima, que se encontra acolhida em casa abrigo se lance sucessivamente sobre os móveis da casa apenas para depois poder afirmar que foi o arguido quem a lançou. Tanto assim, que durante muito tempo a vítima não revelou tais factos, o que seguramente estará relacionado com o forte temor que mantém para com a pessoa do arguido.
É também desrazoável que a vítima apresente queixa contra o arguido apenas porque este tentou terminar o relacionamento, numa vingança da ofendida contra o arguido. Na verdade, e como resulta dos autos, a vítima tentou refazer a sua vida com outra pessoa, pelo que mal se compreenderia que os presentes autos e os factos que imputa ao arguido resultassem apenas duma qualquer vingança por aquela orquestrada.
Tal resulta sem quaisquer reservas da prova já recolhida, mormente das declarações da ofendida, onde a mesma descreve uma relação conturbada e com demonstrações permanentes de posse e de controlo por parte do arguido, claramente reveladoras de uma violência que se foi agravando com o tempo.
Tudo ponderado, entende o Tribunal que se mostra fortemente indiciada a prática pelo arguido dos factos que constam do despacho de apresentação.
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Violência doméstica
Nos termos do 152.º, nº 1, alínea b) e n.° 2 do Cód. Penal quem “de modo reiterado, ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (…) b) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Nos termos do n.º 2 do mesmo diploma legal, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
Assim, o tipo legal de crime de violência doméstica inclui comportamentos que de forma reiterada ou intensa (o que não exige a mencionada reiteração), lesam a dignidade humana do cônjuge/companheiro.
O bem jurídico por ele protegido é a saúde do cônjuge nas suas vertentes física, psíquica e mental.
Como refere a exposição de motivos da proposta de Lei n.º 98/X “na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, não sendo imprescindível uma continuação criminosa”.
Efectivamente a actual redacção do tipo (art. 152° do CP) estatui-se que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
O tipo assim definido tanto consente uma reiteração de condutas que se traduzem, cada uma à sua maneira, na prática de agressões físicas ou psíquicas ao cônjuge ou a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma ação analoga à dos cônjuges, como uma só conduta que manifeste gravidade intrínseca suficiente para nele se enquadrar.
É defensável afirmar que com esta formulação, foi acolhido o entendimento segundo o qual um só acto de ofensas corporais já configura um crime de violência doméstica. Nesse sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código Penal”, 2ª edição actualizada, UCE, 465-466) e concretiza: «os “maus tratos físicos” correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas’’, ocorrendo uma relação de especialidade entre o crime de violência doméstica e “os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, o crime de sequestro simples, o crime de coacção sexual previsto no artigo 163°, n.° 2, o crime de violação previsto nos termos do artigo 164°, n° 2, o crime de importunação sexual, o crime de abuso sexual de menores dependentes previsto no artigo l72.°, n.° 2 ou 3, e os crimes contra a honra”.
Cremos, no entanto, que se o crime de violência doméstica é punido mais gravemente que os ilícitos de ofensas à integridade física, ameaças, coacção, sequestro, etc., e se é distinto o bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora, então, para a densificação do conceito de maus tratos não pode servir toda e qualquer ofensa.
Segundo Augusto Silva (“Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física”, AAFDL, 2ª edição, 2007, pág.110), com o crime tipificado no art. 152.° do Código Penal, protege-se a integridade física e psiquica e dignidade da pessoa humana em contextos de subordinação existencial, coabitação conjugal ou análoga, estreita relação de vida e relação laboral.
Em sentido idêntico se tem pronunciado a jurisprudência como é sublinhado no acórdão do STJ, de 02.07.2008, disponível em www.dgsi.pt (relator: Cons. Raul Borges), citando-se aí o acórdão daquele Supremo Tribunal de 30.10.2003 (CJ/Acs. STJ, 2003, T. 3) em que se manifesta o entendimento de que “o bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem-estar físico, psíquico e mental, podendo, este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem-estar”.
Assim, se a fórmula legal (“de modo reiterado ou não") não permite qualquer dúvida quanto ao propósito do legislador de ultrapassar a querela doutrinal e jurisprudencial e consagrar o entendimento de que o tipo legal (de violência doméstica) não exige reiteração de acções ofensivas, tambem é certo que um único acto ofensivo só consubstanciará um “mau trato” se se revelar de uma intensidade tal, ao nível do desvalor (quer da acção, quer do resultado), que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido - a saúde física, psíquica ou emocional -, pondo em causa a dignidade da pessoa humana. Como afirma Plácido Conde Fernandes (''Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal", in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.° semestre de 2008, n.° 8, pág. 305), não havendo razão para «alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral” também de mantém válida a asserção de que “a dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa" (neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.12.2010 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.06.2014, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
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Analisados os factos, que se mostram fortemente indiciados, e face à gravidade da agressão descrita e à relação que une a vítima e o agressor, entendemos não existirem dúvidas de que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivo do tipo de crime em análise.
Como é sabido, nenhuma medida de coação pode ser aplicada se em concreto não se verificar algum dos perigos a que alude o art.° 204 do CPP, sendo certo que como resulta do art.° 193° do mesmo diploma legal as medidas a aplicar ao caso concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que possivelmente venham a ser aplicadas.
Com efeito, tais indícios resultam não só dos elementos constantes do processo, mas essencialmente das regras de experiência comum, as quais nos permitem concluir que, em casos como os dos autos, as agressões mantêm-se até que é tomada uma medida judicial ou até que a mulher pretende pôr fim ao relacionamento e o companheiro reage de forma agressiva, violenta e infelizmente definitiva.
Ora, a lei permite que, em certas condições, se imponham medidas restritivas ou limitativas da liberdade individual, mas acentuando exigências de legalidade/tipicidade e dos modos de intervenção na esfera da liberdade de quem é arguido no processo.
Assim, as medidas de coação admissíveis são as previstas nos arts. 196.° e seguintes do CPP, as quais vão num crescendo de gravidade, a saber, termo de identidade e residência; caução; obrigação de apresentação periódica; suspensão do exercício de funções; proibição de permanência, de ausência e de contactos; obrigação de permanência na habitação e prisão preventiva.
A taxatividade/tipicidadde das medidas, obstando a aplicação de outras não expressamente previstas, conforma-se com o princípio da legalidade previsto no art. 191.°, do CPP segundo o qual a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei.
As medidas de coação, enquanto medidas cautelares restritivas de direitos fundamentais estão sujeitas, na sua aplicação, aos princípios da legalidade, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (arts. 191° e 193°, do CPP).
Pelo princípio da proporcionalidade em sentido restrito ou princípio da “justa medida” cuida-se de indagar e avaliar, mediante um juízo de ponderação, se o meio utilizado é ou não proporcionado em relação ao fim. O mesmo é dizer, se na balança entre as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins, ocorre um equilíbrio ou, ao invés, são excessivas as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins.
Pelo princípio da exigibilidade ou da necessidade (também conhecido pelo princípio da menor ingerência possível) coloca-se a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível, exigindo-se,por isso, de quem toma a medida, a prova de que, para obtenção de determinados fins não é possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão.
Finalmente pelo princípio da conformidade ou da adequação controla-se a relação de adequação da medida à prossecução do fim ou fins que lhe estão subjacentes.
Assim, resulta deste princípio que a medida de coação a aplicar deve ser idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso e, por isso, terá de ser escolhida em função da finalidade a que se destinar.
Acresce que, nenhuma medida de coação, com excepção do termo de identidade e residência pode ser aplicada se, em concreto, não se verificar algum ou alguns dos requisitos elencados no art 204° do CPP, a saber:
a)- Fuga ou perigo de fuga;
b)- Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c)- Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.
Com efeito, a medida do coação deve ser idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso, sendo escolhida em função da finalidade a que se destina, isto é, como resulta do nº 1 do art. 193.º deve ser adequada às exigências cautelares que o caso requer (princípio da adequação).
No caso vertente, tendo em atenção o que se deixou dito é manifesto e por demais evidente que as exigências cautelares que o caso vertente reclama apenas se satisfazem cabalmente com a sujeição do arguido a outras medidas de coação para além do TIR já prestado nos autos.
Refira-se, aliás, que a gravidade dos factos se espelha, desde logo, no facto de a lei ter erigido o ilícito criminal pelo qual o arguido se mostra fortemente indiciado como constituindo criminalidade violenta. E, por outro lado, as consequências da conduta do arguido, espelhadas nas graves lesões que a vítima apresentava.
(…)
Assim, analisados os factos no seu todo, é de concluir que o arguido não controla os seus impulsos e não se coibe de maltratar a ofendida, ou seja, de a agredir na sua integridade física e psíquica, o que veio a suceder ao longo da relação e se agravou quando a ofendida entendeu terminar o relacionamento, pelo que apenas posso concluir, face à personalidade do arguido manifestada nos factos que se mostram fortemente indiciados, que é elevado o perigo de continuação da actividade criminosa.
Esse perigo é ainda revelado pelo facto de o arguido passar também a “perseguir” as pessoas que a possam a acompanhar ainda que escudando essa procura na vontade (que não se discute) de saber do paradeiro das filhas menores. É que, em bom rigor, o arguido já tinha este comportamento de posse e controlo mesmo quando todos viviam na mesma casa pelo que cai por terra o argumento por ser lançado de “apenas” querer saber do paradeiro das menores.
De igual modo não podemos afastar o aludido perigo com a circunstância da ofendida se encontrar em casa abrigo e, por isso, em local que o arguido desconhece pois que, tal como o mesmo revelou, o arguido tem mecanismos e meios para contornar esta situação e para descobrir ou, pelo menos tentar descobrir, o actual paradeiro da ofendida, o que seguramente continuará a fazer. Também não podemos impor à ofendida e às filhas menores que permaneçam escondidas e sem possibilidade de regressar às suas rotinas enquanto perdura a investigação, pois que isso apenas se traduziria numa penalização inaceitável à própria vítima.
Assim, somos do entendimento que, no caso objeto dos presentes autos, se verifica não só perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas por força do alarme social que condutas como a ora fortemente iniciadas geram nos cidadãos e no seio da comunidade onde ocorrem mas também perigo, em função da personalidade do arguido, de continuação da actividade criminosa pois que, continuando os diferendos com a ofendida, como facilmente se perspectiva que continuará, facilmente poderão situações como as já relatadas poderão repetir-se e ainda agravar-se. Aliás, o arguido já tem antecedentes criminais pela prática de crimes contra a saúde e integridade física, tendo sido condenado em penas de prisão suspensas na sua execução e ainda assim não se coibiu de praticar os factos que se mostram fortemente iniciados nos autos.
Na verdade, a conduta do arguido evidenciada nos autos revela uma postura algo doentia relativamente à sua companheira, coisificando-a e pretendendo moldá-la a seu belo prazer como se esta fosse uma espécie de “boneco” que entende subjugar e utilizar com sentimentos de posse, provocando com a sua conduta uma constante utilização de meios logísticos e humanos, realidade absolutamente desestabilizadora da vida em sociedade e que, em concreto, é reveladora da existência de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Estes dois perigos, que se manifestam de forma muito severa nos autos, impõem a aplicação de medidas de coação diferentes do TIR.
(…)
Como já se referiu, a prática do crime supra descrito encontra-se fortemente indiciada, sendo assim, muito provável que o arguido venha a ser condenado pelo mesmo e numa pena de prisão efetiva, considerando as fortes exigências de prevenção geral em matéria de punição de crimes contra a vida, quer em atenção à natureza do bem jurídico tutelado, quer à proliferação deste tipo de crimes e aos sentimentos de insegurança e indefesa que provocam nas comunidades onde há notícia da sua ocorrência que impõem a opção de princípio pela aplicação de penas privativas da liberdade consideradas mais eficazes para dissuadir os condenados da reincidência e, sobretudo, para repor a crença da comunidade na validade e eficácia das normas que incriminam as ofensas à vida ou a sua perda efetiva como também considerando que o arguido já possui antecedentes criminais pela prática de crimes de ofensa à integridade física simples e qualificada, tendo sido condenado em penas de prisão suspensas na sua execução.
Por outro lado, na ponderação conjugada dos elementos de prova supra referenciados resulta, para nós de forma inequívoca, que os autos evidenciam a forte indiciação da prática, por banda do arguido, da factualidade supra elencada, pelo que, temos por preenchido o requisito dos “fortes indícios” a que alude o nº 1 do art. 202º do CPP.
Entendemos assim que, face a todo o exposto, atenta a natureza do crime em apreço e as circunstâncias que rodearam a sua prática bem como a gravidade os factos e a personalidade impulsiva e desviante revelada pelo arguido, se impõe aplicar ao arguido , para além da proibição de contactos com ofendida e com as testemunhas deste processo, a obrigação de entregar armas que possua bem como não adquirir ou usar armas enquanto perdurarem as medidas de coação, uma medida de coação limitativa da liberdade por considerar que só dessa forma se poderá acautelar os mencionados perigos.
Estando o arguido em liberdade estamos certos que o mesmo não se vai coibir, como nunca se coibiu - nem com as suas condenações pela prática de crime - de continuar a procura, injuriar, ameaçar a ofendida e aqueles que a rodeiam.
Tudo ponderado, entendemos que a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, acrescida da medida de proibição de contactos (excepção feita às necessárias a actos processuais relativos às filhas menores) e das demais referidas e que serão aplicadas, será justa, adequada e proporcional à factualidade que se mostra já indiciada nos autos e suficiente para acautelar os perigos a que já aludimos.
Face a todo o exposto e com os fundamentos já exarados, determinam que o arguido aguarde a instalação dos meios de vigilância eletrónica sujeito à medida de coação de prisão preventiva.
Nestes termos, e de acordo com o preceituado nos arts. 191°, 193°, 196°, 200° n.º 1, al d) e e), 201.°, n.° 1, 2 e 3 e 204° al c) do CPP, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito:
a)- Ao TIR já prestado;
b)- A medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica;
c)- À medida de coacção de proibição de contactos com a ofendida, por qualquer meio (excepção feita aos contactos necessários à prática de actos processuais relativos as filhas menores);
d)- À medida de coação de proibição de contactos com qualquer das testemunhas indicadas nos autos;
e)- A medida de coação de obrigação de entregar armas que possua, bem como não adquirir ou usar armas enquanto perdurarem as medidas de coacção ora aplicadas.
O arguido aguardará a instalação dos meios técnicos de controlo à distância sujeito à medida de coação prisão preventiva pelo que deverão emitir os competentes mandados de condução do arguido ao EP competente.
Oficie à DGRSP para que, assim que possível, proceda à instalação dos meios técnicos de controlo da medida aplicada, na morada constante do TIR”.
*

Apreciação do recurso:

A.– A valoração como meio (legítimo) de prova, nos termos do art. 167º do C.P.Penal, das gravações das conversas entre o recorrente e a vítima, efetuadas por esta última sem o consentimento do primeiro.

O recorrente começa por invocar a nulidade da prova obtida através das gravações das conversas entre o recorrente e a vítima por terem sido efetuadas por esta última sem o consentimento do primeiro pelo que a mesma não pode ser valorada nem utilizada contra o recorrente (conclusões A, D e I).
Em processo penal vigora o princípio da legalidade da prova, sendo admissíveis as provas não proibidas por lei (art. 125º do C.P.Penal).

Dispõe o art. 126º do C.P.Penal, sob a epígrafe “Métodos proibidos de prova” que:
1– São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2– São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a)- Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b)- Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c)- Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d)- Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e)- Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3–Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular (negrito nosso).
4– Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo”.

Os nº 1 e 2 deste preceito legal consagram proibições absolutas de prova, o que implica que em caso algum, as provas obtidas através de tais procedimentos poderão ser tidas em conta pois jamais poderão ser utilizadas, nem mesmo com o consentimento do próprio titular, uma vez que atentam contra direitos indisponíveis.
Já as proibições de prova a que se reporta o nº 3 são proibições relativas, dado que, caso as provas sejam recolhidas com prévia autorização ou consentimento dos titulares dos direitos ali previstos, as mesmas são válidas e eficazes e são suscetíveis de valoração, podendo fundamentar a convicção do Tribunal, na fixação da matéria de facto.
Incidem sobre os processos de obtenção de provas à custa da intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, que, apesar da sua tutela constitucional, mantêm a natureza de direitos disponíveis.
Por conseguinte, só se verificará a proibição de valoração, se e quando, as provas forem obtidas à custa da ofensa a tais direitos à reserva da vida privada, do domicílio, da correspondência ou das telecomunicações e sem o consentimento dos respetivos titulares para o efeito.

Em suma, o mencionado art. 126º do C.P.Penal contempla dois graus de intensidade da proibição:
- quanto a provas obtidas à custa do direito à integridade física e moral, a interdição do seu uso é absoluta e incluí os direitos enumerados nos nº 1 e 2;
- as provas obtidas mediante a compressão da privacidade da pessoa humana, a interdição é sanável pelo consentimento do titular do direito, conforme a previsão contida no nº 3.
“Este consentimento poderá ser prestado, antes ou depois do procedimento abusivo, seja através de autorização expressa para a obtenção da prova, seja por efeito da renúncia a arguir a nulidade, ou da aceitação dos efeitos do acto, com a consequente transformação da proibição de prova, em prova admissível e válida (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, 2007, em anotação XV ao artigo 32.º, pág. 524; Maia Gonçalves, Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal, 1989, pág. 195, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, Dezembro 2007, pág. 326, anotação 3). Pese embora as proibições de prova e as nulidades sejam conceptualmente autónomas mesmo para quem aceite que essa autonomia é apenas dogmática e considere que os correspondentes regimes jurídicos estão numa relação de especialidade (em que o regime das nulidades é o regime geral e o das proibições de prova apresenta certas especificidades que obrigam à adaptação daquele a estas, v.g. Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, p. 195; Paulo Sousa Mendes, As Proibições de Prova no Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coimbra, Almedina, 2004, p. 148-149), não pode deixar de reconhecer que a imposição de limites à própria investigação criminal quando o desenvolvimento desta implica violações intoleráveis a direitos fundamentais dos cidadãos por ela visados, a um ponto tal que as razões éticas que impõem a verdade material são precisamente as mesmas que não podem deixar de a proibir, sob pena de investigador e criminoso ficarem no mesmo patamar, com total quebra da legitimidade do Estado na administração da justiça penal, envolve muito mais do que meras sanções à inobservância de formalidades legais referentes à forma ou ao iter processual adotado na recolha das provas, que é do que se trata com a previsão das nulidades” – Acórdão deste TRL de 24.01.2024, Proc. nº 449/20.2PBSCR.L1-3.

A propósito, nomeadamente de gravações, dispõe o art. 167º do C.P.Penal:
1-As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.
2- Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no título iii deste livro”.

O disposto no nº 1 significa que as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só podem ser usadas em processo penal, como meio de prova, se na sua obtenção não tiver sido violada qualquer disposição legal substantiva, nomeadamente no que se reporta a normas que protejam os direitos pessoais em concretização dos preceitos constitucionais ínsitos nos arts. 26º, nº 1 e 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa.

O art. 26º, nº 1 da CRP estabelece que: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação” e o art. 32º, nº 8 da CRP dispõe que: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.

Todavia, não sendo o direito à imagem, nem o direito à palavra1 direitos absolutos (tal como sucede com todos os direitos, liberdades e garantias fundamentais), encontram-se sujeitos às restrições, nos termos previstos no nº 2 do art. 18º da CRP, que estiverem expressamente previstas na Constituição e que se mostrem indispensáveis à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos2.

O crime de gravações e fotografias ilícitas encontra-se previsto no art. 199º, nº 1 do C.Penal, o qual preconiza que:
1– Quem sem consentimento:
a)- Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou
b)- Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas;
é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias”.

A este respeito, o Acórdão do TRL de 23.05.2023, Proc. nº 924/20.9PBCSC.L1-5, refere que o art. 167º do C.P.Penal estabelece “uma conexão entre a ilicitude penal substantiva e a inadmissibilidade da prova em processo penal, constituindo a não ilicitude penal substantiva da reprodução mecânica condição essencial para a prova ser admissível - o que não significa que seja, efectivamente, admitida, pois existe, ainda, o crivo de outros critérios gerais sobre a admissibilidade probatória. Assim, se for de concluir que a conduta traduzida na gravação áudio em causa configura um ilícito penal, não poderá ser atribuído valor probatório à gravação; caso não configure um ilícito penal, tendo sido admitida e a tal não obstando os critérios gerais sobre admissibilidade probatória, será prova válida e sujeita à livre apreciação, nos termos do artigo 127.º do C.P.P”.

Por conseguinte, a validade e eficácia da prova obtida por gravação da voz e das palavras ditas por outrem, fora dos casos de consentimento, nos termos previstos no art. 126º nº 2 do C.P.Penal, fica condicionada à inexistência de relevância penal do modo de obtenção e uso da gravação3.
Transpondo para o caso dos autos as considerações expostas, tendo a vítima procedido a gravações de conversas que o recorrente teve consigo, sem que tivesse obtido da parte dele o necessário e prévio consentimento, mostram-se, desde logo, preenchidos os elementos do mencionado tipo legal previsto no art. 199º, nº 1 do C.Penal (o qual protege o direito à palavra4 e o direito à imagem como bens jurídicos pessoais, correspondentes a duas expressões diretas da personalidade), o que, à partida, impediria que tais gravações servissem de meio de prova.
Porém, exigindo o art. 167º do CPPenal a não ilicitude das reproduções nele mencionadas e considerando que a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime, para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um ato ilícito e culposo.
Como bem refere, a este propósito o Acórdão do TRP de 24.09.2020, Proc. nº 308/16.3GAVFR.P2: “o preenchimento, em abstrato, dos elementos constitutivos do ilícito criminal, pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da ilicitude ou da culpa, e, em consequência, pode ser considerada válida a gravação de palavras efetuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio (…) Entre nós, vem sendo entendimento jurisprudencial dominante que a elaboração de gravação áudio ou vídeo destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, já que o autor da gravação atua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude. - Neste sentido, vide Acórdãos da Relação de Coimbra de 24/02/2016, processo nº 2638/12.4TALRA.C1; da Relação de Guimarães de 29/04/2014, processo nº 102/09.8GEBRG.G2; da Relação de Évora de 29/03/2016, processo nº 558/13.4GBLLE.E1. E, ainda na mesma linha, se pronuncia o Tribunal desta Relação do Porto Acórdãos de 23/10/2013, processo nº 585/11.6TABGC.P1; de 27/01/2016, processo nº 1548/12.0TDPRT.P1 e de 06/11/2019, processo nº 457/17.0PAVFR.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.”.

As causas que excluem a ilicitude e a culpa estão previstas nos art.º 31º a 39º do C.Penal.

O art. 34º do C.Penal (Direito de necessidade) dispõe que:
“Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:
a)- Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;
b)- Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e
c)- Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado”.

Conforme bem refere, a este propósito o Acórdão deste TRL de 24.01.2024, Proc. nº 449/20.2PBSCR.L1-3: “O estado de necessidade (em sentido amplo) em direito penal, reporta-se a situações que não sendo de legítima defesa, se caracterizam pela existência de um conflito de interesses e pela circunstância de só ser possível salvar certos interesses ou valores ameaçados ou em risco de perda ou de lesão, à custa do sacrifício de outros interesses juridicamente protegidos, traduzindo esse sacrifício, um comportamento que preenche um tipo legal de crime. À luz da teoria da diferenciação, consoante o interesse protegido seja de maior importância que o interesse violado, ou de valor igual ao daquele que se salva, ou mesmo de valor inferior, mas ao agente não era exigível outro comportamento, assim o estado de necessidade exclui a ilicitude, como previsto no art.º 34º do CP, ou só exclui a culpa, como quando se preenche a previsão do art.º 35º do mesmo código (cfr. Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, trad. da 5ª edição, 2002, pág. 317. Eduardo Correia, II, p. 82), São pressupostos do estado de necessidade como excludente da ilicitude: Circunscrição do seu âmbito de aplicação aos interesses privados do próprio agente ou de terceiro, estando, portanto, excluídos os interesses públicos; O perigo deve ser actual, objectivo e real e ser causado por acção humana ou por acontecimentos naturais e não deve provir do titular do interesse que está em perigo (distingue-se da legítima defesa por poder provir de acontecimento natural); Adequação do facto lesivo para afastar o perigo; Superioridade do interesse a salvaguardar em relação ao interesse sacrificado, pois que o direito de necessidade assenta no princípio do interesse preponderante (a cláusula da ponderação prevista no artigo 34.º, al. b). A análise comparativa entre os interesses jurídicos a sacrificar e a proteger deve partir de critérios que incluem a penalidade, a intensidade da lesão do bem jurídico, o grau de perigo e a autonomia pessoal do sacrificado. «É desde logo evidente que se não pode tratar de critérios puramente económicos, mas jurídicos: como tal eles devem retirar-se, antes de tudo, da lei e da força com que esta protege os diversos bens, conexionando todavia os critérios estritamente legais com outros de natureza ético-social, a que não se pode renunciar» (Eduardo Correia, in Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral Volume I e II, edição da AAFDL, p. 234). Razoabilidade da imposição ao lesado do sacrifício do seu interesse em função da natureza ou valor do interesse colocado em risco. Em termos subjectivos, que o agente conheça a situação de conflito e actue com a consciência de salvaguardar o interesse preponderante, ainda que não seja exigido «animus salvandi» (não se exige que o agente tenha vontade de defender o interesse preponderante)”.

No caso vertente, o recorrente questiona a validade, como meio de prova, das gravações das conversas mantidas com a vítima, efetuadas por esta última sem o consentimento e autorização daquele, o que, face à conjugação dos mencionados normativos legais, está condicionada à inexistência de atividade criminosa na obtenção da gravação.

Trata-se de gravações obtidas por particular, enquanto vítima de crime, que podem arrogar-se como provas particularmente relevantes na descoberta da verdade e que podem conflituar com os direitos fundamentais à privacidade e à palavra do visado.

O tribunal a quo considerou que: ”ouvidas as gravações constantes da “pen” indicada como prova pelo MP, resulta que as gravações áudio se reportam a um monólogo que o arguido dirigiu à vítima, onde lhe dirige palavras como “és um escroto. (...) és podre, és um nojo (...) se eu vejo que continuas a fazer isso eu rasgo-te da cona ao pescoço, entende? Eu não estou a brincar! (...) Mas tu não vais morrer à primeira, isso te garanto, quando eu estiver a rasgar, mas vais ter convulsões (...) sua puta, sua rameira, tu não és mulher de jeito (...) as pessoas não me conhecem aqui neste país eu arranco-te o coração fora, a ti ou seja a quem for (...) acordas com o coração ao teu lado, não me faças fazer merda, ouviste?”. Dessa conversa resulta um arguido manipulador e controlador e uma vítima submissa, que fala baixo e pede desculpa (mesmo quando não tem de o fazer). Nestes termos, concluímos que a ofendida se socorreu de um meio necessário para fazer face a um perigo actual e iminente (injúrias e ameaças do arguido). A situação de perigo não foi criada pela vítima, como resulta das gravações. Há, ainda, uma manifesta superioridade dos seus interesses em detrimento dos interesses do arguido. Na verdade, ponderados os interesses e os bens jurídicos em confronto (dignidade da pessoa humana vs direito à palavra), fácil é de concluir que o direito do arguido à palavra terá que ceder perante o direito da vítima, hierarquicamente superior e que merece, desta forma, preferência e outra tutela legal. Termos em que este Tribunal conclui que a ofendida, ao ter gravado conversas que o arguido teve consigo, actuou pelo menos, em Estado de Necessidade (artigo 34° do Código Penal), não sendo, desta forma, ilícito o facto por si praticado. E ao não ter praticado um facto ilícito, a gravação pode e deve valer como meio (legítimo) de prova, nos termos do disposto no artigo 167° do Código de Processo Penal. Termos em que, de harmonia com o disposto nos artigos 167° do Código de Processo Penal e 34° e 199° do Código Penal, declaro válidas as gravações das conversações entre o arguido e a vítima e entendo que tal meio de prova poderá e será utilizado nos autos”.

Também considerou que os factos indiciados consubstanciam o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de violência doméstica (“Analisados os factos, que se mostram fortemente indiciados, e face à gravidade da agressão descrita e à relação que une a vítima e o agressor, entendemos não existirem dúvidas de que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivo do tipo de crime em análise).

O crime de violência doméstica integra o conceito de criminalidade violenta do art. 1º, al. j) do CPPenal.

O bem jurídico tutelado pela incriminação do crime de violência doméstica “consiste na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana bem como da própria saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, pretendendo aqui prevenir-se todas as violações deste bem jurídico que ocorram no seio da família, entendida esta num conceito lato. Na verdade, o crime em apreço pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos, sempre pressupondo um nexo relacional presente ou pretérito, de vida em comum, numa acepção ampla do termo, sendo em certos casos para tutela do património afectivo comum - a tutela do bem jurídico é projectada numa relação de afectividade ou coabitação, que pode materializar-se em casamento ou relação análoga, com ou sem coabitação ou mesmo em mera coabitação quando a vítima seja pessoa particularmente indefesa, entendendo o legislador existir uma necessidade acrescida de tutela quando as vítimas estejam nalguma das referidas relações com o agente dos factos. O crime imputado ao arguido é aquilo que a doutrina considera um crime específico, que desde logo pressupõe a existência de uma determinada relação entre o seu agente e o sujeito passivo dos comportamentos em causa, relação essa que é, precisamente, a ratio desta incriminação” (Acórdão deste TRL de 09.11.2023, Proc. nº 1169/19.6PASNT-9).

Nessa medida, considerando que as condutas que integram este tipo legal ocorrem, em regra, no domicílio conjugal, em contexto familiar, no âmbito privado do casal, longe dos olhares de terceiros e que, por norma, só o agressor e a vítima têm conhecimento da maioria dos factos (por não terem sido presenciados por outras pessoas), a prova dos factos revela-se particularmente difícil, por faltar a prova direta.
Nos presentes autos, mostra-se fortemente indiciado que a sequência dos atos praticados pelo recorrente (ligados entre si pelo elo comum da relação que manteve com a vítima, assentes na especial relação entre agressor e vítima), transmite uma imagem global gravosa que nos leva a considerar que tais comportamentos fortemente indiciados são suscetíveis de serem aglutinados no crime de violência doméstica (em vez de se autonomizar cada um desses comportamentos em outros tantos crimes, como se tivesse sido indiferente a relação existente que está na base do acréscimo de tutela dado pelo art. 152º do C.Penal).

Acresce que as condutas desvaliosas fortemente indiciadas foram consideradas como tendo sido praticadas de molde a terem enquadramento no elemento subjetivo correspondente ao crime de violência doméstica.
Com efeito, mostra-se fortemente indiciado o contexto de violência doméstica que ocorre desde data não concretamente apurada de 2016 (cfr. facto 10º) e se traduz em insultos (nomeadamente “burra”, estúpida, “és uma tristeza”, “louca”, “acéfala”, “és uma puta”, “vendida”), agressões (nomeadamente “um murro na coxa esquerda”, “apertou-lhe o pescoço”, “deu-lhe uma dentada no braço direito”, “desferiu uma chapada no lado direito da face da ofendida”, “agarrou na cabeça da ofendida BB e bateu com a mesma na parede”, “apertou-lhe a face, empurrou-a contra a ombreira da porta e, com força, apertou-lhe o pescoço e desferiu-lhe um murro no tronco”, “puxou-lhe as orelhas e os cabelos”), ameaças (nomeadamente para que assinasse a venda da casa e para que ela não aceitasse viver com outro homem), humilhações (nomeadamente quando lhe retirou o telemóvel e o partiu e lhe exigiu a entrega do computador).

A factualidade fortemente indiciada demonstra a preocupação do recorrente em agredir física e verbalmente a ofendida longe dos olhares de outras pessoas (cfr. factos 18º a 22º). Tal circunstância, associada à sua profissão de agente da PSP (da qual se fez valer para controlar a vida da ofendida e das pessoas que com ela se relacionam – cfr. factos 28º e 86º), à sua postura de vitimização e acusação face à ofendida (imputa-lhe comportamentos de agressão a si própria e ao recorrente, motivada pela vingança por ele ter terminado o relacionamento, e assegura que ele é a vítima, sendo a ofendida ciumenta, controladora e negligente) e à personalidade que procurou transmitir ao tribunal (que classificou de “serena e compungida”), é forçoso concluir que a gravação da “palavra falada” do recorrente (à qual se reporta a videochamada mencionada no facto 77º e a cuja audição procedemos), ainda que por este não consentida, constituiu o único meio que a ofendida teve ao seu dispor para “desmascarar” o recorrente, demonstrar a verdadeira personalidade deste (que o tribunal a quo adjetivou de “narcisista, egocêntrico e dominador”) e consequentemente a veracidade da versão dos factos por si apresentada (a violência, a agressividade e a linguagem obscena a que era sujeita).
Nessa medida, a gravação áudio destinou-se a defender um interesse protegido, numa situação de direito de necessidade, constituindo a mesma o único meio prático e eficaz de garantir à ofendida o seu direito de proteção contra a vitimização pela prática de crimes e ainda de combater a impunidade.

Neste quadro factual fortemente indiciado, visando o processo penal servir “a realização da justiça, a estabilização contrafáctica das normas, a restauração da paz jurídica, por razões de economia, a eficácia da justiça penal”5 e ponderando todos os interesses em conflito (nomeadamente a importância da prova face à gravidade do crime), concluímos que o sacrifício do direito à palavra mostra-se justificado por as gravações constituírem meios necessários e idóneos à salvaguarda de valores/interesses prevalentes e transcendentes ao processo penal.
Pelo que, sancionar criminalmente a vítima de violência doméstica que, através da gravação da “palavra falada” do agressor, pretende demonstrar os comportamentos ilícitos deste afigura-se-nos inaceitável, sobretudo quando a mesma não possui quaisquer outros elementos probatórios, para além das suas próprias declarações, contrariadas pelas declarações do agressor (veja-se que, em sede de primeiro interrogatório, o recorrente negou a generalidade dos factos que lhe são imputados, como pudemos atestar através da audição das suas declarações) e pela sua postura pública, o qual, inclusivamente, é agente da PSP.
Esta inadmissibilidade tem sido doutrinal e jurisprudencialmente6 defendida quer com o argumento de sentido vítimodogmático (com base em critérios de redução teleológica do tipo excludentes da tipicidade da conduta, de modo a tutelar os direitos fundamentais da vítima) quer com o enquadramento da situação nas causas de justificação previstas no art. 31º do C.Penal (por se tratar de um caso em que, num juízo de necessidade, proporcionalidade e adequação, o interesse público de realização da justiça se deve sobrepor ao direito à palavra do arguido, no âmbito do direito de necessidade).
De qualquer forma, o resultado é o mesmo e traduz-se na não responsabilidade penal de quem, nas referidas situações, procedeu à gravação e a utilizou para prova do crime em processo penal.
Como vimos, o tribunal a quo apelou à existência de um estado de necessidade probatório pois considerou que a vítima atuou ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude, estando a sua atuação justificada, no quadro do direito de necessidade, e considerou válida a prova obtida por esse meio, o que merece o nosso acordo.
Assim, ponderando a importância da prova face à gravidade do crime fortemente indiciado e considerando na esteira do Acórdão do STJ de 28.02.2024, Proc. nº 115/19.1GCSTB.E1.S1 que a proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (ou da imagem que as retrata) tem de ceder perante o interesse de proteção da vítima e a eficiência da justiça penal (pois a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui um crime), consideram-se válidas as gravações efetuadas pela vítima, sem consentimento do recorrente, bem como, se considera válida a prova obtida por esse meio, improcedendo, em consequência, este segmento do recurso.
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B.–Verificação dos pressupostos legais necessários à aplicação ao recorrente da medida de coação de OPHVE, ou, ao invés, se a mesma deverá ser substituída pela medida de obrigação de apresentações semanais num posto da Guarda Nacional Republicana

Por despacho proferido em 21.03.2024, foi determinado que o recorrente aguardaria os ulteriores termos do processo sujeito a TIR já prestado, à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, à medida de coacção de proibição de contactos com a ofendida, por qualquer meio (exceção feita aos contactos necessários à prática de atos processuais relativos as filhas menores), à medida de coação de proibição de contactos com qualquer das testemunhas indicadas nos autos e à medida de coação de obrigação de entregar armas que possua, bem como não adquirir ou usar armas enquanto perdurarem as medidas de coação ora aplicadas.
O recorrente insurge-se por ter sido sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.
Sustenta, para o efeito, que não se verificam os “pressupostos enumerados no artigo 204.°, n.° 1, al. b) e c) do CPP, conjugados com os artigos 18.°, 27.° e 32.°, n.° 2 da CRP e com os artigos 193.°, n.° 1,2 e 3 do CPP, normas que se consideram violadas, o que determina a nulidade da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, deve a mesma ser revogada e substituída por uma medida de coacção não privativa da liberdade, como sendo a obrigação de apresentações semanais num posto da Guarda Nacional Republicana, a acrescentar às restantes medidas previamente determinadas (…)” (conclusão J.).

O juízo que foi feito pelo tribunal recorrido quanto à existência de fortes indícios da prática pelo recorrente do crime de violência doméstica previsto pelo art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a) do C.Penal (e punível com pena de prisão de dois a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal), mostra-se bem fundado nos elementos de prova que indica, sendo também legítimo concluir no sentido que foi decidido pelo tribunal recorrido, ou seja, que os factos descritos no auto de interrogatório se consideram fortemente indiciados.
Quanto aos perigos que a medida visa acautelar, o tribunal recorrido considerou: ”Assim, analisados os factos no seu todo, é de concluir que o arguido não controla os seus impulsos e não se coibe de maltratar a ofendida, ou seja, de a agredir na sua integridade física e psíquica, o que veio a suceder ao longo da relação e se agravou quando a ofendida entendeu terminar o relacionamento, pelo que apenas posso concluir, face à personalidade do arguido manifestada nos factos que se mostram fortemente indiciados, que é elevado o perigo de continuação da actividade criminosa. Esse perigo é ainda revelado pelo facto de o arguido passar também a “perseguir” as pessoas que a possam a acompanhar ainda que escudando essa procura na vontade (que não se discute) de saber do paradeiro das filhas menores. É que, em bom rigor, o arguido já tinha este comportamento de posse e controlo mesmo quando todos viviam na mesma casa pelo que cai por terra o argumento por ser lançado de “apenas” querer saber do paradeiro das menores. De igual modo não podemos afastar o aludido perigo com a circunstância da ofendida se encontrar em casa abrigo e, por isso, em local que o arguido desconhece pois que, tal como o mesmo revelou, o arguido tem mecanismos e meios para contornar esta situação e para descobrir ou, pelo menos tentar descobrir, o actual paradeiro da ofendida, o que seguramente continuará a fazer. Também não podemos impor à ofendida e às filhas menores que permaneçam escondidas e sem possibilidade de regressar às suas rotinas enquanto perdura a investigação, pois que isso apenas se traduziria numa penalização inaceitável à própria vítima. Assim, somos do entendimento que, no caso objeto dos presentes autos, se verifica não só perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas por força do alarme social que condutas como a ora fortemente iniciadas geram nos cidadãos e no seio da comunidade onde ocorrem mas também perigo, em função da personalidade do arguido, de continuação da actividade criminosa pois que, continuando os diferendos com a ofendida, como facilmente se perspectiva que continuará, facilmente poderão situações como as já relatadas poderão repetir-se e ainda agravar-se. Aliás, o arguido já tem antecedentes criminais pela prática de crimes contra a saúde e integridade física, tendo sido condenado em penas de prisão suspensas na sua execução e ainda assim não se coibiu de praticar os factos que se mostram fortemente iniciados nos autos. Na verdade, a conduta do arguido evidenciada nos autos revela uma postura algo doentia relativamente à sua companheira, coisificando-a e pretendendo moldá-la a seu belo prazer como se esta fosse uma espécie de “boneco” que entende subjugar e utilizar com sentimentos de posse, provocando com a sua conduta uma constante utilização de meios logísticos e humanos, realidade absolutamente desestabilizadora da vida em sociedade e que, em concreto, é reveladora da existência de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Estes dois perigos, que se manifestam de forma muito severa nos autos, impõem a aplicação de medidas de coação diferentes do TIR”.

Por conseguinte, mostra-se evidente que do circunstancialismo fáctico fortemente indiciado resultam os assinalados perigos de perturbação do decurso do inquérito e de continuação da atividade criminosa ou perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas (art. 204º, als. b) e c) do C.P.Penal).

Nessa medida, considerando o tipo de relacionamento entre o recorrente e a vítima e o forte ascendente que exerce sobre a mesma, impõe-se que aquele se mantenha afastado do agregado familiar desta, evitando que possa exercer qualquer influência relativamente ao decurso do inquérito e ao posicionamento da vítima e demais testemunhas perante os factos já relatados.
A extensão e a gravidade dos factos delituosos que fortemente se indiciam (consubstanciados em violência psicológica e física sobre a ofendida que se foi agravando com o tempo), a reiteração no tempo, a personalidade impulsiva e persecutória demonstrada pelos próprios factos indiciados e pelas gravações áudio reportadas a um monólogo que o recorrente dirigiu à vítima (das quais constam insultos - “és um escroto … és podre, és um nojo … sua puta, sua rameira” – e ameaças “eu rasgo-te da cona ao pescoço … tu não vais morrer à primeira … quando eu estiver a rasgar, mas vais ter convulsões … eu arranco-te o coração fora … acordas com o coração ao teu lado, não me faças fazer merda …”), permitem aceitar como efetivo o perigo de continuação da atividade criminosa.

Por fim, impõe-se ressalvar que a gravidade dos factos fortemente indiciados e a natureza do crime de cuja prática o recorrente se encontra fortemente indiciado são geradoras de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, causando indignação, desordem e alarme social.
No caso vertente, o recorrente invoca que a aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação deve ser substituída por outra menos gravosa como a medida de coação de obrigação de apresentação periódica.
Conforme bem refere, a este propósito, o Acórdão deste TRL de 23.04.2024, Proc. nº 1718/23.5PBOER-A.L1-5: “o direito à liberdade pessoal, na aceção de liberdade ambulatória, é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e também na Constituição da República Portuguesa. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III, proclama a validade universal do direito à liberdade individual e no artigo IX, que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso, admitindo, no artigo XXIX, apenas as limitações à liberdade individual que resultem da lei, para prossecução do reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e da satisfação das justas exigências da ordem pública. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais) consagra o direito à liberdade pessoal, no seu artigo 5º, estabelecendo que ninguém pode ser dela privado, a não ser que seja preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal e que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal. Nos termos do artigo 27º da Constituição da República Portuguesa, todos têm direito à liberdade e à segurança, de harmonia com a consagração do direito à liberdade individual como um direito fundamental. O direito fundamental a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é, porém, um direito absoluto, como os próprios instrumentos de direito internacional e a Constituição da República Portuguesa, admitem. As medidas de coação são, justamente, meios processuais de limitação da liberdade pessoal que têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 254). «As medidas de coação emergem como condição indispensável, embora num quadro de excecionalidade, à realização da justiça» (Frederico Isasca, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, pág. 103)”.

Ponderada a argumentação do recorrente consideramos que, no caso em apreço e face às circunstâncias já expressas neste acórdão (nomeadamente os perigos reais e concretos, a natureza e gravidade da sua conduta), a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, é a única que permite salvaguardar as exigências cautelares que, no caso, se fazem sentir pois é a única medida que obstará aos perigos supra elencados.

Com efeito, a medida de obrigação de apresentação periódica não se mostra adequada ou suficiente às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime, pois não permite obstar ao perigo de continuação da atividade criminosa, na medida em que é obviamente insuficiente e inadequada para impedir que o recorrente volte a controlar o dia a dia da ofendida, a agredi-la física e psicologicamente, tal como vem fortemente indiciado.

Por conseguinte, existe uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar, no caso concreto, e a medida de coação imposta, assim se garantindo o princípio da adequação.

Resta dizer que está igualmente cumprido o princípio da proporcionalidade, por não haver excesso entre o sacrifício que a medida de coação implica e a gravidade do crime e a natureza e medida da pena que previsivelmente, com base nele, será em definitivo aplicada.

Em conclusão, a medida de coação de obrigação de permanência na habitação aplicada ao recorrente apresenta-se necessária, adequada e proporcional, pelo que improcede o recurso, devendo o recorrente manter-se sujeito às medidas de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, proibição de contactos com a ofendida, por qualquer meio (exceção feita aos contactos necessários à prática de atos processuais relativos as filhas menores), proibição de contactos com qualquer das testemunhas indicadas nos autos e obrigação de entregar armas que possua, bem como, não adquirir ou usar armas enquanto perdurarem as medidas de coação aplicadas.
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IV–DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, em julgar improcedente o recurso interposto por AA, confirmando-se a decisão do tribunal a quo que determinou a sujeição do arguido às medidas de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, proibição de contactos com a ofendida, por qualquer meio (exceção feita aos contactos necessários à prática de atos processuais relativos as filhas menores), proibição de contactos com qualquer das testemunhas indicadas nos autos e obrigação de entregar armas que possua, bem como não adquirir ou usar armas enquanto perdurarem as medidas de coação aplicadas.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC’s (art. 513º do C.P.Penal e 8º, nº 9 do RCProcessuais e tabela III anexa).
Comunique de imediato ao Tribunal recorrido, remetendo cópia do presente acórdão.
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Lisboa, 2 de julho de 2024


Luísa Oliveira Alvoeiro
(Juíza Desembargadora Relatora)
Alda Tomé Casimiro
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Rui Coelho
(Juiz Desembargador Adjunto)


1.O qual “ se desdobra no direito à voz e no direito às concretas palavras proferidas num determinado contexto” – Natália Vidal de Lucena in “Da Valoração das Gravações Produzidas por Particulares como Meio de Prova no Processo Penal”, Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, ..., Universidade de Coimbra, pág. 40.
2.“Entre o interesse público na perseguição penal e o interesse público também da tutela de determinados interesses, a ordem jurídica opta por uns ou outros, conforme considere que devem prevalecer, pois a perseguição penal não é necessariamente o interesse predominante da vida em sociedade. Por isso, os meios utilizados em ordem à repressão penal têm de acomodar-se aos princípios jurídicos que predominam num dado momento e aos valores fundamentais da nossa civilização” (Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, II, 1993, pág. 103.
3.“Na íntima relação que coexiste entre o regime de admissibilidade de prova por reprodução mecânica - artigo 167º do Código de Processo Penal e o crime de gravação e fotografia ilícita - artigo 199º do Código Penal pode-se dizer, de forma redutora, que a gravação, ou fotografia, que não é crime, é admissível como prova», (…) «o direito à palavra e o direito à imagem não são, nem devem ser, sacralizados como núcleo essenciais da vivência pessoal, e da comunidade, que se sobreponham a todo e qualquer tipo de ponderação de outros valores» (…) «age no exercício de um direito e, portanto vê excluída a ilicitude do seu comportamento, o agente cuja conduta é autorizada por uma disposição de qualquer ramo de direito» (Ac. do STJ de 28.9.2011, proc. 22/09.6YGLSB.S2, in http://www.dgsi.pt)” – Acórdão deste TRL de 24.01.2024, Proc. nº 449/20.2PBSCR.L1-3.
4.“Traduz-se, por isso, no direito que assiste a cada um de decidir livremente se e quem pode gravar a sua palavra bem como, e depois de gravada, se e quem pode ouvir a gravação. O que se protege é, assim, “a confiança na volatilidade da palavra bem como, na conexão das palavras entre si e com a respectiva a atmosfera (lugar,tempo e demais circunstâncias da expressão. Nesta perspectiva pode representar-se o direito à palavra como o direito à transitoriedade da palavra: a pretensão e a convicção de que a palavra seja, por princípio. apenas ouvida no momento e no contexto em que é preferida, não podemos ser perpetuada para ser posteriormente invocada contra o autor, fora do espaço, tempo, vivência, gesto, ambiente de simbolizações e outros significantes)” – Manuel da Costa Andrade in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, pág. 821.
5.CostaAndrade in “Sobre as proibições de prova em Processo Penal, 2ª Edição, pág. 247.
6.No sentido de que “aceitar-se a condenação por crime contra o direito à imagem de quem se limita a documentar através de filme ou fotografia o facto ilícito de que é vítima” representaria “uma inversão dos valores e interesses penalmente tutelados, se não mesmo a subversão, em alguma medida, do regime dos direitos fundamentais. Tanto mais que para além do interesse em proteger a esfera pessoal ou patrimonial da assistente de atentados ilícitos, estará igualmente em causa projeção do direito fundamental de acesso dos particulares ao direito e a tutela jurisdicional efetiva que a CRP reconhece no art. 20º da CRP, pois as mais das vezes a fotografia ou filme são determinantes na prova do ilícito típico” – Acórdão do TRE de 29.03.2016, proc. nº 558/13.4GBLLE.E1.