I.–O facto de das pesquisas efetuadas pela Secretaria na base de dados da Segurança Social resultar aí registada uma morada diferente da que o arguido indicou no termo de identidade e residência, não impõe ao Tribunal qualquer dever, nomeadamente de averiguar se é essoutra a sua morada efetiva.
II.–O vício de falta de fundamentação de despacho proferido oralmente e exarado em ata de audiência de julgamento pelo qual se determina o início da mesma na ausência do arguido por não se considerar a sua presença desde o início da audiência absolutamente indispensável à descoberta da verdade material, nos termos do art. 333º/1 do Código de Processo Penal, configura mera irregularidade a arguir nos termos do preceituado no art. 123º/1 do Código de Processo Penal;
III.–Não tendo essa irregularidade sido arguida em tempo, não pode invocar-se o vício de falta de fundamentação de tal despacho em recurso interposto da sentença condenatória subsequentemente proferida, posto que o mesmo transitou já em julgado.
IV.–A fundamentação desse despacho basta-se com a afirmação da verificação dos pressupostos que nos termos aí previstos permitem acionar a regra de iniciar a audiência de julgamento na ausência do arguido, pois que esses são «os motivos de facto e de direito da decisão» assim tomada, como prescrito pelo disposto no art. 97º/5 do Código de Processo Penal.
V.–Os Agrupamentos de Escolas constituem entes públicos dotados de órgãos próprios de gestão com autonomia para contratar a prestação de serviços e fornecimento de bens; essa contratação, por ser entidade adjudicante um ente público, obedece ao regime legal da contratação pública aprovado pelo DL 18/2008, de 29/01.
VI.–É legítimo concluir ter atuado com intenção de obter benefício ilegítimo o arguido que, na qualidade de Diretor de um agrupamento de escolas, ignorando por completo todas as regras e princípios de contratação pública, contrata pelo período de 4 anos os serviços de uma sociedade comercial gerida pela sua própria filha, adquirindo-lhe ainda nesse período alguns bens, destinados ao aludido agrupamento.
VII.–Esse benefício não decorre apenas do recebimento dos valores pagos pela prestação de serviços e aquisição de bens, com o lucro comercial inerente; antes se corporiza também na subtração da relação contratual aos efeitos da concorrência de outras empresas congéneres a operar no mercado, mediante um tratamento de favoritismo baseado na ligação familiar direta entre o representante do contraente público e a representante da contraente privada.
VIII.–O crime de abuso de poder é um crime de mera atividade, bastando que se prove a intenção de obter benefício ilegítimo, não sendo necessário provar que o mesmo foi efetivamente alcançado.
IX.–Comete o crime de abuso de poder o Diretor de Agrupamento de Escolas que, com essa intenção, celebra contrato de prestação de serviços e de fornecimento de bens com sociedade comercial da qual era sócia e gerente a sua filha, sem adotar os procedimentos de formação de contrato público previstos no Código dos Contratos Públicos, assim violando a lei e os respetivos deveres funcionais de atuar em obediência à lei e ao direito, de isenção e imparcialidade na relação com os particulares, assim como de transparência e prossecução do interesse público que nessa qualidade lhe estava confiado.
(Sumário da responsabilidade da relatora)
Trata-se, pois, de dar prevalência ao interesse da celeridade processual, eficiência da justiça criminal e boa administração da Justiça, na sua concordância prática com as garantias de defesa do arguido, as quais são asseguradas por via de uma sua regular notificação das decisões que pessoalmente o afetem, como é o caso da que designa a data para realização da audiência de julgamento, nos termos permitidos pelas normas conjugadas do art. 196º do Código de Processo Penal relativo ao termo de identidade e residência e do art. 113º do Código de Processo Penal atinente à forma das notificações.
O que significa que, estando o adiamento da audiência reservado a situações excecionais, em que «o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência», e sendo a regra a do início da audiência na ausência do arguido regulamente notificado que não comparece nem justifica a sua ausência, a afirmação expressa na decisão da verificação de tais pressupostos, traz implícita a ponderação da não indispensabilidade da presença do arguido desde o início do julgamento, não carecendo de mais extensa fundamentação além desta constatação e verificação.
Neste pressuposto e consonância, o acórdão do STJ de 08/03/2012, relatado no processo 245/07.2GGLSB.L1-A.S1 (AFJ 9/2012)[5], fixou a seguinte jurisprudência: «Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do nº 1 do art. 333º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.».
Como se sumariou ainda no acórdão desta Relação de Lisboa de 03/03/2009, relatado por Nuno Gomes da Silva no processo 406/08.7GTCSC-5 [6]:
«1–Se o arguido falta está legitimada [cfr. art. 196°, n° 3, al. d) e art. 385°, n° 3, al. a)] a possibilidade de julgamento na sua ausência mas apenas e só se ele não justificou essa falta da forma a que estava obrigado nos termos do art. 117°, n° 2. Nessa altura, sim, é correcto admitir que se desresponsabiliza do andamento do processo, como se dizia na exposição de motivos do Dec. Lei n° 320-C/2000, e perante esse comportamento omissivo é então justificado que em nome da celeridade se avance para o julgamento na sua ausência.
2–O actual regime legal interpretado sem cedências escusadas no que toca à salvaguarda do efectivo direito de defesa permite concluir que o legislador relativizou, de certo modo, o direito de presença do arguido na audiência mas apenas em circunstâncias muito concretas e acautelando, mesmo assim, esse direito.».
Assim, estando em causa a regra estabelecida no art. 333º/1 do Código de Processo Penal de início da audiência de julgamento na ausência do arguido que se mostra regularmente notificado para comparência e não comunica nem justifica a sua ausência, basta-se a fundamentação desse despacho com a afirmação da verificação dos pressupostos que nos termos aí previstos a permitem acionar no caso, pois que esses são «os motivos de facto e de direito da decisão» assim tomada, como prescrito pelo disposto no art. 97º/5 do Código de Processo Penal.
De resto, nem o arguido recorrente opõe a tal verificação e decisão qualquer óbice, apontando nomeadamente razões que contrariem o seu bem fundado; a verdade é que o julgamento se iniciou e concluiu sem a presença do arguido, não tendo o Tribunal recorrido tido necessidade dessa presença para a descoberta da verdade material e proferir sentença.
*
Em suma: inexiste qualquer nulidade da sentença, nomeadamente a prevista no art. 379º/1,c) do Código de Processo Penal, não sendo tal normativo aplicável aos despachos judiciais prévios e autónomos em relação a esta; não tendo sido invocada em tempo qualquer irregularidade quanto à fundamentação do despacho pelo qual se considerou ser dispensável a presença do arguido desde o início da audiência, que resultou assim sanada, tão pouco se havendo dele interposto recurso, transitou o mesmo em julgado.
De todo o modo, mostra-se suficiente a fundamentação apresentada nesse despacho, por permitir ao arguido conhecer os seus fundamentos de facto e de direito, salvaguardando o seu direito de defesa mediante impugnação do mesmo, que não operou em termos processualmente válidos.
Improcede, portanto, em toda a linha o recurso nesta parte.
*
2.3–DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
É do seguinte teor a sentença recorrida na parte relevante [transcrição]:
«(…)
II–Fundamentação:
2.1.–Matéria de facto provada:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
2.1.1.-O Agrupamento de Escolas ... (doravante designado apenas por ...) foi fundado em ....
2.1.2.-Durante o período temporal dos fatos que infra se passarão a descrever, o arguido AA assumiu as funções de Diretor e de Presidente do BB do referido Agrupamento de Escolas.
2.1.3.-BB é filha do arguido AA.
2.1.4.-CC, à data dos fatos que infra se passarão a descrever, era casado com BB.
2.1.5.-A sociedade comercial denominada “...”, com o NIPC ..., tem como objeto social o comércio, importação e exportação, o comércio por grosso e a retalho de têxteis e brindes publicitários, prestação de serviços de brindes publicitários e sua divulgação; comercialização de equipamentos informáticos; assistência técnica, construção, montagem e reparação de material informático; criação, edição e comercialização de programas informáticos; desenvolvimento de formação e outras atividades conexas à informática.
2.1.6.-Existindo a necessidade de prestação de serviços de apoio informático e elétrico às escolas J.I e 1° ciclo ... e ..., incluídos no ..., o arguido AA, BB e CC engendraram um plano que tinha como objetivo a contratação da sociedade “...” para prestar esses serviços no âmbito da sua atividade social, mas sem que essa contratação ficasse dependente do cumprimento das regras de contratação pública que se impunham para esse efeito.
2.1.7.-Efetivamente, o arguido AA e BB e CC, sabiam que o primeiro, por força das funções assumidas no referido ..., estava em posição de diligenciar pelo procedimento de contratação pública de sociedades comerciais para prestação de serviços de interesse público àquele Agrupamento de Escolas, e que para isso era necessário abrir processo de concurso público, no âmbito do qual, juntamente com outras sociedades de natureza idêntica, seria preciso apresentar a sua candidatura,
2.1.8.-Que seguindo os seus ulteriores trâmites, seria contratada a sociedade que apresentasse as melhores condições e sujeita ao escrutínio imparcial e isento de um concurso público.
2.1.9.-A fim de permitir que a sociedade “...” fosse contratada sem necessidade de sujeição a tal concurso, o arguido AA e BB e CC delinearam um plano a que todos aderiram de apresentar a mesma à contratação sem que houvesse abertura de concurso público para o efeito.
2.1.10.-Na concretização do plano assim delineado pelo arguido AA e BB e CC, aquele primeiro, atuando na qualidade de Diretor e de Presidente do Conselho de Administração do Agrupamento de Escolas referido, em ... e por um período de 4 (quatro) anos, contratou com a sociedade ..., a prestação de serviços de apoio informático e elétrico às escolas e jardins que integram o agrupamento, com um custo fixo mensal de 500,00 euros, acrescido de IVA à taxa legal em vigor,
2.1.11.-Assim, em …2012, entre o ... e a sociedade ..., foi celebrado o referido contrato para a prestação de serviços de apoio informático e elétrico às escolas J.I. e 1° ciclo ... e ..., pelo prazo e pelo valor anteriormente referidos.
2.1.12.-Contrato celebrado e assinado pelo arguido AA, na qualidade de Diretor do ... e BB, na qualidade de gerente daquela sociedade comercial.
2.1.13.-A celebração desse contrato de prestação de serviços, não foi precedida de parecer vinculativo do Ministério das Finanças e da Administração Pública, como imposto pelo art.° 26.° da Lei n.° 64-B/2011, de 30/12, que aprovou o Orçamento de Estado para o ano de 2012.
2.1.14.- O contrato teve início em ... de ... de 2012 com duração até ... de ... de 2016, sem prejuízo de ser renovado se ambas as partes assim o desejassem.
2.1.15.-Mais, em .../.../2014, .../.../2014, .../.../2014, .../.../2014, .../.../2015, .../.../2015 e .../.../2015, o Agrupamento de Escolas em apreço, através do seu Diretor e Presidente do Conselho de Administração à data, o aqui arguido AA adquiriu à referida sociedade comercial diversos bens,
2.1.16.-Aquisição de tais bens ascenderam aos valores de € 1.234, € 1.495, € 612,54, € 1.367,50, € 1.579,50, € 435 e € 585, respetivamente, acrescidos de IVA, no valor total de € 8.989,52.
2.1.17.-Em suma, no período temporal compreendido entre .../.../2012 e .../.../2016, foram emitidas pela sociedade ... ao ... faturas no montante total de € 24.480,37 (vinte e quatro mil, quatrocentos e oitenta euros e trinta e sete cêntimos) referentes à prestação de serviços de apoio informático e elétrico às escolas do ... e à aquisição de produtos diversos a essa sociedade.
2.1.18.-Com a sua atuação, o arguido AA permitiu que a sociedade ... estabelecesse relações comerciais com uma entidade pública, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública, faturando no período em apreço o montante apurado de € 24.480,37.
2.1.19.-O arguido AA e BB e CC agiram, em comunhão de esforços e intentos, com o intuito concretizado de tirarem proveito dos contratos assim celebrados e de obter benefícios financeiros em proveito próprio que poderiam não obter de outra forma se sujeitos às regras de transparência e de concorrência leal em contratação pública com outras sociedade comerciais do mesmo ramo de atividade.
2.1.20.-De fato o arguido AA, enquanto Diretor e Presidente do Conselho de Administração do Agrupamento de Escolas ..., ao celebrar o aludido contrato de prestação de serviços e os de aquisição de bens e equipamentos informáticos, fê-lo atenta a relação de proximidade e de interesse entre todos,
2.1.21.-Atuando em claro benefício de BB e CC, e em claro desrespeito das obrigações e deveres inerentes às funções por si desempenhadas na qualidade de Diretor e Presidente do Conselho de Administração do ..., não acautelando o interesse público que lhe cabia cumprir,
2.1.22.-Ao atuar do modo anteriormente descrito, beneficiando indevida e patrimonialmente BB e CC, o arguido AA violou os deveres de legalidade, isenção e prossecução do interesse público a que se encontrava adstrito, assim como o de proteção dos interesses financeiros e patrimoniais do Agrupamento de Escolas referido, que lhe incumbia administrar, fiscalizar e defender.
2.1.23.-Ao celebrar os referidos contratos de prestação de serviços e de aquisição de bens e equipamentos informáticos, o arguido AA bem sabia que atuava em violação dos seus deveres funcionais e inerentes às suas funções enquanto Diretor e Presidente do Conselho de Administração do ... e que atuava com intenção de obter para si e para BB e CC um beneficio ilegítimo.
2.1.24.-Agiu o arguido AA e BB e CC sempre, com a intenção consumada que se protelou no tempo de, assim obterem beneficio patrimonial indevido, querendo ficar na posse dos valores anteriormente discriminados e nunca inferiores a € 24.480,37 (vinte e quatro mil, quatrocentos e oitenta euros e trinta e sete cêntimos),
2.1.25.-O que foi conseguido pela atuação do arguido AA enquanto Diretor e Presidente do Conselho de Administração, o que conseguiram, conscientes que a atuação deste violava, como violou, os seus deveres funcionais e profissionais de Diretor e Presidente do Conselho de Administrativo de um Agrupamento de Escolas (a saber ...), e que punha, como pôs, em causa a credibilidade e fé pública associada à instituição em apreço e aos atos dos seus funcionários em exercício de funções, sabendo que só celebrava tais contratos nos termos e moldes anteriormente descritos por força das funções que ali exercia.
2.1.26.- Ao atuar nos moldes anteriormente descritos, arguido AA atuou com grave abuso da função e violação dos deveres que incumbem aos funcionários de escolas estatais, revelando indignidade no exercício das funções que lhes estão confiadas e a perda da confiança necessária ao exercício das suas funções.
2.1.27.-O arguido agiu na convicção de que as suas atuações estavam a ser bem-sucedidas e que não seriam detetadas, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração na prática descrita que levaram a cabo, homogeneamente, ao longo do período de tempo referido.
2.1.28.-Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, sempre bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, ainda assim, não se absteve de as praticar.
2.1.29.- Os factos acima descritos foram praticados com grave abuso da função e violação dos deveres que incumbem aos membros de Agrupamento de Escolas Estatais e revelam indignidade no exercício das funções que lhes estão incumbidas, conduzindo à perda de confiança necessária para o exercício daquelas funções.
2.1.30.-De fato, a atuação do arguido AA, na qualidade de funcionário, valendo-se do seu cargo, para a satisfação de interesses de natureza meramente privada, em grave violação dos deveres inerentes às suas funções, quebrou a confiança que nele foi depositada para o adequado exercício das suas funções.
O arguido tem antecedentes criminais tendo já sido condenado em pena de multa e pena de prisão substituída por multa, no âmbito do processo n.°5964/15.7T9AMD, pela prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada a 11.11.2015, e de difamação agravada a 23.11.2015, por sentença de 15.07.2019, transitada em julgado a 30.09.2019.
*
2.2.–Matéria de facto não provada:
Não existem factos não provados.
*
2.3.– Motivaçao da decisão de facto:
A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação e ponderação de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência de julgamento, nomeadamente:
- No depoimento da testemunha DD, ... na escola supra referida.
Esta testemunha referiu que naquela ocasião fez depósitos em numerário para a conta da filha do arguido, não sabendo, no entanto, a que é que estes se deviam.
- No depoimento da testemunha EE, ... da escola supra referida.
Esta testemunha disse que o arguido tinha que exercer as funções de Director da Escola em exclusividade, o que não acontecia, sendo que este através dos serviços prestado à escola por empresas a que ele estava ligado, também ganhava dinheiro.
Esclareceu que para haver contratação a escola tem sempre que pedir três orçamentos diferentes.
- No depoimento da testemunha FF, ... da escola.
Esta testemunha não tinha qualquer conhecimento dos factos.
- No depoimento da testemunha GG, ...da escola.
Esta testemunha não tinha conhecimento dos factos, afirmando apenas que por vezes levava o arguido ao Banco, mas não sabe qual o motivo.
- No depoimento da testemunha HH, ... da escola.
Esta testemunha referiu que o arguido apenas lhe comunicava posteriormente que tinha contratado e adjudicado um determinado serviço, sendo que não havia concurso nem apreciação de propostas.
Mais referiu não ter conhecimento da empresa supra descrita.
- No depoimento da testemunha II, ....
Esta testemunha era sub director e vice presidente do BB na altura, referiu que o arguido não fazia reuniões, nem abria concursos, pelo que não eram apresentadas quaisquer propostas.
Sendo o arguido quem decidia todo o processo e a adjudicação.
Mais referiu não ter conhecimento da empresa.
- No depoimento da testemunha JJ, ...
Esta testemunha foi colocado a exercer as funções do arguido, após a exoneração deste.
Disse que quando tomou conhecimento denotou várias irregularidades.
Esclareceu que antes de haver um ajuste directo ou adjudicação tem sempre que haver uma reunião da direcção do conselho administrativo que deliberam acerca de qual a proposta a aceitar e contratar.
Refere que sem deliberação não pode haver contratação.
Sendo que na altura em que o arguido era Director tal não sucedia.
Teve-se ainda em conta:
- Documentos de fls. 9-18,
- Parecer da Inspeção-Geral da Educação e Ciência de fls. 55 e ss.;
- Relatório proferido pela Inspeção-Geral da Educação e Ciência proferido no inquérito n.° 10.06/000093/SC/15 a fls. 65 a 179;
- Certidão permanente de teor da matrícula da sociedade “...”;
- Documentos de fls. 1048 a 1057, 1163 e ss.;
- Faturas de 1073 a 1084, 1988 a 2032;
- Contrato de prestação de serviços de fls. 1085 a 1086,1983 a 1984;
- Orçamentos de fls. 1087,1985;
- Informação de fls. 2033 e 2034.
- Relatório final de fls. 2055 e ss.;
- Nas pesquisas efectuadas nas bases de dados quanto às condições económicas do arguido.
- No Certificado de Registo Criminal, junto aos autos no que concerne aos antecedentes criminais do arguido.
- Assim, face à prova produzida dúvidas não existem em como o arguido praticou os factos que lhe eram imputados.
- Antes de mais tal resulta demonstrado com base nos vários documentos juntos nos autos.
- Ou seja, das faturas de 1073 a 1084, resulta que a sociedade ... cobrava à escola €500 mensais acrescidos de IVA.
- Por sua vez das facturas de fls. 1993, 1995, 1996, 1999, 2001, ..., 2009, 2015, 2017, 2018, 2019, 2022 e 2026 resulta que o arguido em nome da escola adquiriu diversos bens à sociedade ...;
- Mais do contrato de fls.1085 a 1086, 1983 e 1984 resulta que foi acordada uma prestação de serviços entre a sociedade e a escola representada pelo arguido, em que aquela se comprometia a dar apoio informático a esta;
- Por outro lado, temos o depoimento das três ultimas testemunhas que de forma expressa e convincente explicaram como é que o arguido fazia a adjudicação dos contratos, referindo claramente que era este quem decidia tudo, não havendo abertura de concurso, apresentação de propostas nem deliberação sobre as mesmas.
Por sua vez, o elemento subjectivo resultou provado com base nas regras de experiência, uma vez que é notório que o arguido sabia, e não podia ignorar que lhe era vedado, celebrar contractos, neste caso com familiar directo, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública, as quais conhecia, ainda assim querendo e prosseguindo com tal contratação, que sabia ser ilegítima, querendo a obtenção das quantias mencionadas na acusação, durante um largo período de tempo.
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III–Enquadramento Jurídico:
3.1.–Crime de Abuso de Poder
Dispõe o artigo 382.° do CP o seguinte:
“O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”
O bem jurídico tutelado por esta incriminação legal é a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outras pessoas.
O tipo objectivo consiste no abuso de poderes ou na violação dos deveres inerentes às funções do funcionário.
Trata-se, assim, de um crime de função e, por isso, um crime próprio: o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso dos mesmos para um fim diferente daquele para o qual a lei os concede.
Por abuso de poderes deve entender-se a instrumentalização de poderes - inerentes às funções - para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas, ou seja, para finalidades ilegítimas (ex: violação de lei, incompetência relativa, desvio de poder).
Já a violação de deveres compreende a violação de deveres funcionais (quer genéricos, quer específicos), ou seja, deveres que estão relacionados com o exercício da função, só subsistindo quando o funcionário se encontrar em atividade.
No que concerne ao elemento poderes inerentes à sua função, deve entender-se como prática de um acto, por parte do funcionário, que seja idóneo a produzir efeitos jurídicos enquanto manifestação da vontade do Estado.
Acresce que o agente, entendido como funcionário nos termos descritos no art.° 386° do Código Penal, terá de ter intenção, através da sua ação ou omissão, de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.
Ou seja, o crime de abuso de poder pressupõe que o agente, investido de poderes públicos, actue com violação dos deveres funcionais que sobre si impendem, sacrificando o interesse público para satisfação de finalidades ou interesses particulares que se venham a traduzir num benefício ilegítimo para si ou para terceiro ou num prejuízo para outra pessoa.
O primeiro limite do perímetro da tipicidade, é constituído pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, ou por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.
A violação dos deveres funcionais é já tutelada por outros tipos legais, nomeadamente, a violação do dever de sigilo, do dever de isenção, do dever de obediência e do dever de zelo. Neste tipo apenas se incluem as violações de outros deveres funcionais que não estejam incriminados por outras normas.
A violação pelo funcionário dos deveres inerentes às funções em que está investido (tenha aqui o significado que tiver) constitui o campo de delimitação da tipicidade. A estrutura do crime no primeiro momento de configuração da acção típica fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função.
Por fim, por benefício deve entender-se toda a vantagem que o sujeito ativo pretende retirar da sua atuação. Tal benefício deve ser ilegítimo, de modo a que um tal abuso de poder se manifeste exteriormente através da lesão do bom andamento e imparcialidade da administração.
O agente poderá, também, atuar com intenção de causar prejuízo a outra pessoa.
Quanto ao elemento subjectivo, o tipo admite qualquer modalidade de dolo.
O tipo inclui ainda um elemento subjectivo adicional: o mau uso dos poderes não pode resultar de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal.
Doutrinalmente chamados crimes de intenção ou de resultado cortado, esta espécie de crimes supõe para além do dolo de tipo a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo legal (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, págs. 329-330).
O crime de abuso de poder constitui um dos exemplos desta categoria dogmática.
A relação entre o agente, o resultado, e identificação de benefícios próprios ou a consideração intersubjectiva sobre os antecedentes e a natureza das relações entre o agente e um terceiro constituem índices pelos quais se poderá apreender a manifestação da atitude interna.
Não é necessário que o benefício patrimonial ou não patrimonial tenha sido alcançado, nem que o prejuízo se tenha verificado basta que o funcionário os tenha querido.
Neste sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-11-2013, relatado pela Des. Brízida Martins, no proc° n° 98/07.0 JALRA.C3, disponível em www.dgsi.pt “O crime de abuso de poder constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede.
O crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, ou por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.
Mas, com um elemento nuclear: o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal”.
Sobre esta matéria também se debruçou o acórdão da Relação de Lisboa de 21-2-2018, relatado pela Veneranda Desembargadora Maria da Graça Santos Silva, no proc° n° 5972/08.4TDLSB-L1-3, disponível em www.dgsi.pt. de acordo com o qual “Para se verificar a comissão do crime de abuso de poder, o benefício ilegítimo não tem que se substanciar em vantagem patrimonial bastando a sua ilegitimidade. Está abrangido na intenção da norma o simples favoritismo ou compadrio. Ora, nitidamente há um favoritismo quando se entrega uma obra a alguém, sem o necessário concurso (...)”.
Vejamos, então, se dos factos provados resulta que o arguido praticou o crime de abuso de poder, pelo qual veio acusado.
Ora resultou demonstrado que o arguido celebrou, enquanto director e Presidente do Conselho de Administração do A.E.A.N., com a empresa da sua filha, um contrato de prestação de serviços e aquisição de diversos bens, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública.
Assim, antes de mais resulta que o cargo que o arguido ocupava integra a definição de funcionário.
Mais, resultou que o arguido, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública, contratou directamente com a empresa da sua filha, violando de forma grosseira os deveres inerentes á sua função, de modo a obter, para si e para a empresa da sua filha, benefício ilegítimo.
Daqui resulta desde já que os elementos objectivos deste tipo de crime estão preenchidos.
Ou seja, o arguido com a sua conduta abusou dos seus poderes de forma a obter um beneficio próprio e a terceiro.
Mais resultou provado que o arguido sabia, e não podia ignorar que lhe era vedado, celebrar contractos, neste caso com familiar directo, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública, as quais conhecia, ainda assim querendo e prosseguindo com tal contratação, que sabia ser ilegítima, querendo a obtenção das quantias mencionadas na acusação, durante um largo período de tempo.
O que significa que também está preenchido o elemento subjectivo deste tipo de crime.
Motivo porque deve o arguido ser condenado pela prática do crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.° do CP.
(…)».
Num arrazoado de difícil compreensão, com uma argumentação em que mistura factos e direito, começando por elencar os elementos típicos do crime que lhe vem imputado, de abuso de poder, defende o recorrente que não pode pelo mesmo ser condenado.
Isto porque, segundo argumenta:
1.º-«não sendo a contratação da prestação de serviços ou da aquisição de bens pelo Agrupamento de Escolas da competência própria do seu diretor, nunca poderá ter cometido o crime que lhe vem imputado de abuso de poder uma vez que este crime constitui um crime de função, um crime próprio, especifico do funcionário que detém determinados poderes funcionais e faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede, envolvendo um mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais» (conclusão d)];
2.º-«atenta a tipificação do art. 382° do Código Penal, necessário é que tenha existido um benefício ilegítimo, um efectivo enriquecimento sem causa por parte do arguido ou de terceiro, algo a que os autos nem sequer fazem referência, não questionando que os serviços contratados tenham sido prestados, que os bens fornecidos tenham sido efectivamente facultados ao Agrupamento ou que os serviços prestados e os bens fornecidos tivessem um preço ou contrapartida excessiva ou desrazoável» (conclusão e)];
3.º-«carece de base mínima a afirmação contida em 2.1.18 de que a contratação foi concretizada “sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública”, porquanto os montantes pagos e a natureza da prestação de serviços e de fornecimento de bens, as formalidades a que a sentença recorrida refere como “regras de contratação publica” (cf. 2.1.6 dos factos provados), como sejam o “concurso publico” (cf. 2.1.7 dos factos provados) ou o “parecer do Ministério das Finanças e da Administração Publica” (cf. 1.1.13 dos factos provados) dependem, no primeiro caso, do valor em causa, sendo que, de acordo com o montante referido nos factos provados, estar-se-ia perante uma situação de ajuste directo ou consulta prévia e, no segundo caso, de estarem em causa verbas do orçamento escolar ou verbas próprias do Agrupamento, situações que a sentença recorrida não esclarece» (conclusão f)];
4.º-«caem pela base as conclusões probatórias contidas nos pontos 2.1.19 e 2.1.30 que nada mais fazem do que retirar conclusões e extrair ilações de elementos que os autos não revelam ou transmitem, como a fundamentação da matéria de facto bem elucida, não tendo sustentação nas regras da experiência e afrontando o princípio in dúbio pro reo» [conclusão g)].
Quid iuris?
O recorrente não invoca em momento algum erro de julgamento, muito menos dá observância ao preceituado sob o art. 412º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal para uma válida impugnação ampla da matéria de facto.
Nos termos previstos no art. 412º/3, 4 e 6, do Código de Processo Penal:
«(…)
3–Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)-As provas que devem ser renovadas.
4–Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(…)
6–No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.».
Nesta forma de impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida, como sucede com os vícios previstos no art. 410º/2 do Código de Processo Penal, alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova produzida em audiência, nomeadamente por via da análise da documentação dessa prova e/ou da audição da gravação, no caso da prova por declarações e testemunhal; essa análise e audição é, no entanto, sempre delimitada e guiada pela especificação que onera o recorrente, como previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal.
Ou seja, serão uma análise e audição cingidas aos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, às concretas provas que, na sua perspetiva, impõem decisão diversa da recorrida, sendo que, quando gravadas, mediante audição das passagens em que se funda a impugnação que forem especificamente indicadas.
Na prática, o que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida, como postulado pelo disposto no art. 412º/3,b) do Código de Processo Penal, garantindo-se um efetivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, como previsto nos arts. 428º e 431º/1, b), do Código de Processo Penal.
Ora, o recorrente não indica factos concretos dados como provados incorretamente julgados, tão pouco transcreve a prova que imporia decisão diferente da tomada quanto a dar-se tais factos como provados, para que este Tribunal de recurso pudesse formular o seu próprio juízo no confronto com o realizado na decisão recorrida.
É, por isso, liminarmente de afastar qualquer apreciação da matéria de facto provada à luz do disposto no art. 412º/3 do Código de Processo Penal e de uma impugnação ampla.
*
Da mesma argumentação resulta, porém, além do questionamento quanto à subsunção jurídico-penal realizada com referência ao crime de abuso de poder previsto e punido pelo art. 382º do Código Penal – 1.º e 2.º -, a tratar em seguida, a invocação de vícios da decisão recorrida com possível enquadramento no art. 410º/2 do Código de Processo Penal – 3.º e 4.º -, vícios que, de resto, como referido supra, são de conhecimento oficioso.
Vejamos melhor.
Nos termos do disposto no art. 410º/2 do Código de Processo Penal:
«Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
c)-Erro notório na apreciação da prova.
(…)» (sublinhado e negrito nossos).
Tratando-se de vícios intrínsecos da sentença, reportam um defeito estrutural da decisão que resulta do respetivo texto, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
Está, por isso, vedado o recurso a elementos estranhos a esse texto para fundamentar a sua verificação, nomeadamente, quaisquer dados existentes nos autos, ainda que provenientes do próprio julgamento. [7]
Isto porque dizem respeito a erros de lógica ao nível da decisão sobre a matéria de facto, que fazem com que a mesma resulte destituída de racionalidade lógica; a sua apreciação prescinde, assim, da análise da prova produzida, ao contrário do que sucede em caso de impugnação ampla nos termos do art. 412º/3 do Código de Processo Penal.
Aqui, o Tribunal de recurso limita-se a detetar os vícios evidenciados pela decisão recorrida, atendo-se a esta, e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento.
Não constitui, pois, fundamento da invocação de qualquer destes vícios, a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firmou acerca dos factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova, desde que esta convicção se mostre devidamente fundamentada e não contrarie as regras da lógica e da experiência comum.
No recurso não se nomeiam os vícios de que padecerá a decisão recorrida.
Todavia, alude-se a desconformidade com as regras da experiência e violação do princípio in dubio pro reo, quando se alega que «caem pela base as conclusões probatórias contidas nos pontos 2.1.19 e 2.1.30 que nada mais fazem do que retirar conclusões e extrair ilações de elementos que os autos não revelam ou transmitem, como a fundamentação da matéria de facto bem elucida, não tendo sustentação nas regras da experiência e afrontando o princípio in dúbio pro reo» [conclusão g)].
O que deverá ser apreciado à luz do vício de erro notório na apreciação da prova, com previsão na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal.
Além disso, quando no recurso se afirma carecer de base mínima a afirmação contida em 2.1.18 de que a contratação foi concretizada «sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública», porquanto os montantes pagos e a natureza da prestação de serviços e de fornecimento de bens, as formalidades a que a sentença recorrida refere como «regras de contratação pública» (2.1.6 dos factos provados), como sejam o «concurso público» (2.1.7 dos factos provados) ou o «parecer do Ministério das Finanças e da Administração Pública» (1.1.13 dos factos provados) dependem, no primeiro caso, do valor em causa, sendo que, de acordo com o montante referido nos factos provados, estar-se-ia perante uma situação de ajuste direto ou consulta prévia e, no segundo caso, de estarem em causa verbas do orçamento escolar ou verbas próprias do Agrupamento, situações que a sentença recorrida não esclarece» [conclusão f)], somos remetidos para eventual vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, com previsão sob a alínea a) do nº2 do art. 410º do Código de Processo Penal.
Vejamos então se pode estar verificado algum desses vícios.
*
Entende o recorrente que carece de base mínima a afirmação contida em 2.1.18 de que a contratação foi concretizada «sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública», porquanto os montantes pagos e a natureza da prestação de serviços e de fornecimento de bens, as formalidades a que a sentença recorrida refere como «regras de contratação pública» (2.1.6 dos factos provados), como sejam o «concurso público» (2.1.7 dos factos provados) ou o «parecer do Ministério das Finanças e da Administração Pública» (1.1.13 dos factos provados) dependem, no primeiro caso, do valor em causa, sendo que, de acordo com o montante referido nos factos provados, estar-se-ia perante uma situação de ajuste direto ou consulta prévia e, no segundo caso, de estarem em causa verbas do orçamento escolar ou verbas próprias do Agrupamento, situações que a sentença recorrida não esclarece.
Existirá uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, como parece decorrer desta alegação?
Vejamos.
Como recorrentemente tem sido decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça[8], o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem, isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, dada a sua importância para a decisão.
O vício consiste, pois, numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma [9].
Na prática, censura-se o tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo.
Ora, considerando que os factos dados como provados foram os constantes da acusação e da pronúncia, nada tendo sido alegado em sede de contestação na fase de julgamento, se bem compreendemos a tese do recorrente, caberia ao Tribunal recorrido apurar e esclarecer o valor em causa nos contratos celebrados, sendo que, de acordo com o montante referido nos factos provados, estar-se-ia perante uma situação de ajuste direto ou consulta prévia, e ainda se estavam em causa verbas do orçamento escolar ou verbas próprias do Agrupamento.
Diga-se que os valores envolvidos nesta contratação constam já dos factos provados em 2.1.10, 2.1.15 e 2.1.16.
Seja como for, qual a concreta relevância do apuramento de tais factos para a subsunção jurídico-penal?
Não indica.
Note-se que o que está imputado ao arguido é o facto de, na qualidade de Diretor do Agrupamento de Escolas ... ter firmado contratos de prestação de serviços e de aquisição de bens com sociedade comercial que tinha como sócios a filha e o genro, e gerente a sua filha, e de o ter feito sem observar qualquer procedimento de entre os disponíveis no código dos contratos públicos.
Como se impunha que fizesse.
Isto porque dúvidas não restam de que os Agrupamentos de Escolas, sob tutela do Ministério da Educação, são hoje entes públicos dotados de órgãos próprios de gestão, com autonomia para contratar, como decorre do regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, aprovado pelo D.L. 75/2008, de 22/04, e em particular dos respetivos arts. 8º/1 e 9º/1, d) e 2, a) e b) [10].
E como pode, aliás, constatar-se mediante simples consulta do Portal dos Contratos Públicos [11], onde se encontram publicados milhares de contratos públicos que têm como entidade adjudicante um Agrupamento de Escolas, sempre representado pelo seu Diretor.
Essa contratação, precisamente por ser entidade adjudicante um contraente que é ente público, inserido na Administração desconcentrada do Estado, obedece ao regime legal da contratação pública aprovado pelo DL 18/2008, de 29/01, encontrando-se abarcado no respetivo âmbito de aplicação – cfr. arts. 1º/2 e 2º/1, a) e 2.
Importa ainda notar que os factos objeto dos presentes autos situam-se temporalmente entre .../.../2012 e .../.../2016 – 2.1.10, 2.1.14, 2.1.15 -, o que significa que estava então em vigor o Código dos Contratos Públicos aprovado pelo D.L. 18/2008, de 29/01, na versão introduzida pela L. 64-B/2011, de 30/12, quanto à prestação de serviços, e na subsequente versão, introduzida pelo D.L. 149/2012, de 12/07, em vigor a partir de 12/08/2012 (30 dias após a publicação, conforme o seu art. 5º/1) quanto às aquisições de bens, que foram todas posteriores a essa data.[12]
O objeto contratual aqui em causa, de prestação de serviços e fornecimento de bens a um agrupamento escolar, não se mostra excluído da sujeição a este Código dos Contratos Públicos, seja qual for a versão do Código dos Contratos Públicos aplicável – cfr. arts. 4º a 6º.
Nessa medida, dúvidas não restam de que se impunha ao arguido seguir os procedimentos legais previstos no Código dos Contratos Públicos em vista da aquisição para o agrupamento escolar que dirigia, quer da prestação de serviços, quer da aquisição de bens, a esse agrupamento destinados.
Ora, o contrato público não pode deixar de considerar-se como resultado de um procedimento administrativo, surgindo como o ato principal de um conjunto ou série de atos funcionalmente ligados, que se sucedem segundo uma certa ordem, com vista à formação, conclusão e produção de plena eficácia jurídica de um contrato público, que se designa de procedimento contratual .[13]
Esse procedimento de formação dos contratos públicos mostra-se formalmente regulado no Código dos Contratos Públicos, ali se estabelecendo a sua tramitação por forma a garantir a imparcialidade, a igualdade de acesso e de tratamento, limitando o informalismo e a intervenção do princípio da adequação procedimental, previsto no art. 56º do Código de Procedimento administrativo.
A ilustrar essa legalidade procedimental, na fase de formação do contrato, ou pré-contratual, é estabelecido no art. 16º/1 do Código dos Contratos Públicos um princípio de tipificação taxativa dos procedimentos de adjudicação, cuja violação determina a ilegalidade da decisão com comunicação ao ato final do procedimento de adjudicação, à decisão de adjudicação e ao próprio contrato que venha a ser celebrado (invalidade subsequente).
Em suma: se o arguido enquanto diretor de um agrupamento de escolas pretendia contratar uma prestação de serviços e um fornecimento de bens destinados ao agrupamento, tinha que o fazer seguindo os procedimentos legais previstos no Código dos Contratos Públicos, seguindo pari passu tais procedimentos, sob pena de atuar fora da lei.
Isto, independentemente da proveniência das verbas utilizadas para o efeito e ainda que adotasse o procedimento mais simples, de ajuste direto, que sempre implicaria a prática de um conjunto de atos e desenvolvimento de peças procedimentais, como o convite à apresentação de propostas e o caderno de encargos, e um limite trienal à contratação da mesma entidade – cfr. os art. 40º/1,a) e 113º e sgs., do DL 18/2008, de 29/01, na versão aplicável à data da prática dos factos.
Diga-se que o procedimento de consulta prévia, a que o recorrente se refere en passant, com previsão sob os arts. 16º/1, b) e 112º, do Código dos Contratos Públicos, foi introduzido por via da alteração decorrente do D.L. 111-B/2017, de 31/08, a qual não é aplicável aos contratos objeto dos autos, como vimos supra, sendo que, de todo o modo, o seu regime sempre assemelha ao procedimento de ajuste direto, obrigando embora ao convite a três ou mais entidades.
Neste quadro, e em face dos factos provados, não vemos qualquer plausibilidade nas objeções do recorrente quanto à necessidade de averiguar outros factos além dos já considerados para efeitos da decisão recorrida.
Antes se enreda o mesmo em questões de pendor administrativo que não contendem com os factos e crime que lhe estão imputados.
Assim quando deixa no ar, de forma inconsequente, a diferenciação entre as verbas pertencentes ao Agrupamento por si dirigido com origem no respetivo orçamento, e as geradas pelo próprio Agrupamento.
O que releva isso na factualidade provada e na integração do crime imputado?
Parece pretender o recorrente que tal interferirá com a necessidade de parecer do Ministério das Finanças e da Administração Pública, mas não o explica.
Atentando no disposto no normativo indicado a este propósito, quer na decisão recorrida, quer no recurso, o art. 26º da L. 64-B/2011, de 30/12, Lei do Orçamento de Estado para 2012, ficamos na mesma.
Realça-se que no nº 4 deste art. 26º, prescreve-se efetivamente que: «Carece de parecer prévio vinculativo do membro do Governo responsável pela área das finanças, excepto no caso das instituições do ensino superior, nos termos e segundo a tramitação a regular por portaria do referido membro do Governo, a celebração ou a renovação de contratos de aquisição de serviços por órgãos e serviços abrangidos pelo âmbito de aplicação da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, alterada pelas Leis n.os 64-A/2008, de 31 de Dezembro, 3-B/2010, de 28 de Abril, 34/2010, de 2 de Setembro, e 55-A/2010, de 31 de Dezembro, e pela presente lei, independentemente da natureza da contraparte, designadamente no que respeita a: a) Contratos de prestação de serviços nas modalidades de tarefa e de avença; (…)».
O que tem a ver com isto a proveniência das verbas utilizadas nos pagamentos?
Não se vislumbra.
Na verdade, como vimos, independentemente da proveniência das verbas usadas no pagamento das quantias devidas por força da contratação descrita, o próprio recorrente aceita que se tratava de verbas do Agrupamento de Escolas onde exercia as funções de Diretor, portanto de verbas públicas a usar para prosseguir os fins de interesse público da entidade pública por si dirigida.
O mesmo quanto a ser o responsável pela contabilidade do Agrupamento o competente para a qualificação e cabimentação de tais despesas e a pessoa com capacidade para realizar o pagamento das mesmas.
Em que é que a sua responsabilidade como Diretor do agrupamento escolar em relação aos atos que concretamente lhe estão aqui atribuídos, resulta afetada por este facto?
Nada consta e nada se divisa.
Mais.
O Diretor do agrupamento «é o órgão de administração e gestão do agrupamento de escolas ou escola não agrupada nas áreas pedagógica, cultural, administrativa, financeira e patrimonial.» - art. 18º do DL 75/2008, de 22/04.
Ao abrigo do art. 20º do DL 75/2008, «4-Sem prejuízo das competências que lhe sejam cometidas por lei ou regulamento interno, no plano da gestão pedagógica, cultural, administrativa, financeira e patrimonial, compete ao diretor, em especial:
(…)
b)-Elaborar o projeto de orçamento, em conformidade com as linhas orientadoras definidas pelo conselho geral;
(…)
h)-Gerir as instalações, espaços e equipamentos, bem como os outros recursos educativos;
(…)
l)-Dirigir superiormente os serviços administrativos, técnicos e técnico-pedagógicos.
5–Compete ainda ao diretor:
a)-Representar a escola;
6–O diretor exerce ainda as competências que lhe forem delegadas pela administração educativa e pela câmara municipal.».
O Diretor preside ainda ao BB, o órgão deliberativo em matéria administrativo-financeira do agrupamento de escolas, composto apenas por si, pelo subdiretor e pelo chefe dos serviços administrativos, com competência, entre o mais, para aprovar o projeto de orçamento anual, elaborar o relatório de contas de gerência e autorizar a realização de despesas e o respetivo pagamento, fiscalizar a cobrança de receitas e verificar a legalidade da gestão financeira – arts. 36º, 37º/b) e 38º, do DL 75/2008.
Como se vê, estava no âmbito das competências do arguido como Diretor do agrupamento de escolas e presidente do BB a celebração, em representação daquele agrupamento, de contratos com entidades externas com vista à prossecução das finalidades públicas do agrupamento, mesmo que por via da delegação de competências da administração educativa ou da Câmara Municipal; além disso, os serviços administrativos operavam também sob a sua direção.
Ao pressupor todas estas considerações, que são em boa verdade de Direito, e os factos acessórios a elas subjacentes, a decisão recorrida veio a dar como provados os factos necessários à tomada de decisão quanto ao preenchimento do tipo legal de crime de abuso de poder pelo qual o arguido vinha pronunciado, como infra melhor se detalhará.
Pelo que, resulta encontrar-se provada toda a matéria de facto necessária à decisão, sendo de rejeitar a verificação do vício previsto no art. 410º/2, a) do Código de Processo Penal.
*
Aduz ainda o recorrente, de modo genérico, que caem pela base as conclusões probatórias contidas nos pontos 2.1.19 e 2.1.30 que nada mais fazem do que retirar conclusões e extrair ilações de elementos que os autos não revelam ou transmitem, como a fundamentação da matéria de facto bem elucida, não tendo sustentação nas regras da experiência e afrontando o princípio in dúbio pro reo [conclusão g)].
Pretende deste modo, como concluímos já, invocar o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto pelo art. 410º/2,c) do Código de Processo Penal.
Todavia, também aqui absolutamente sem razão.
O erro notório na apreciação da prova, bastamente invocado com apelo ao princípio in dubio pro reo, não pode ser, como é frequentemente, invocado para procurar sobrepor a própria convicção do recorrente acerca da leitura da prova produzida, àquela que foi a convicção do Tribunal estribada na fundamentação da decisão relativa aos factos.
Para que se verifique este erro é, pois, necessário muito mais do que uma simples divergência de apreciação da prova.
Terá, pois, o Tribunal que ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova.
Ocorre erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis, mas também quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Em suma: estamos perante o vício de erro notório na apreciação da prova sempre que o Tribunal valore a prova contra critérios legalmente fixados e/ou contra as regras da experiência comum, e o faça de forma grosseira e ostensiva, não passando o erro despercebido ao cidadão comum, muito menos ao juiz normal colocado no lugar do julgador, dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar; tem, pois, que tratar-se de erro percetível pelo homem médio, que é uma outra forma de dizer que o erro tem de ser manifesto ou notório, como expressamente comanda a lei.[14]
Em todo o caso, como começamos por referir, a análise a fazer para assim concluir tem por base exclusivamente o texto da decisão recorrida e a prova aí considerada para fundamentação da convicção do tribunal.
Daí que na aferição da verificação (ou não) de erro notório na apreciação da prova, se questiona, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o Tribunal a tenha valorado contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados.
Ora, olhando à decisão recorrida, verificamos que se apresenta estruturada e fundamentada com uma análise crítica da prova produzida, numa ligação aos factos provados elencados, segundo um princípio de livre apreciação e sem evidenciar a inobservância de quaisquer princípios ou regras, mormente os que decorrem da lógica e da experiência.
Em particular, no que toca ao segmento indicado a este propósito, de que as conclusões probatórias contidas nos pontos 2.1.19 e 2.1.30 nada mais fazem do que retirar conclusões e extrair ilações de elementos que os autos não revelam ou transmitem, sem sustentação nas regras da experiência e afrontando o princípio in dúbio pro reo, diremos: bem pelo contrário.
As «conclusões probatórias» a que o recorrente se reporta, mais não são do que a densificação fáctica do elemento subjetivo típico do crime de abuso de poder e da comparticipação criminosa na sua prática, atribuída aos três arguidos que foram primitivamente acusados (os outros dois beneficiariam da suspensão provisória do processos na fase de instrução), e encontra-se respaldada num conjunto de circunstâncias também aí detalhadamente descritas.
Por isso, como se escreveu na motivação da decisão de facto sob recurso:
«Por sua vez, o elemento subjectivo resultou provado com base nas regras de experiência, uma vez que é notório que o arguido sabia, e não podia ignorar que lhe era vedado, celebrar contratos, neste caso com familiar directo, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública, as quais conhecia, ainda assim querendo e prosseguindo com tal contratação, que sabia ser ilegítima, querendo a obtenção das quantias mencionadas na acusação, durante um largo período de tempo.».
Assim, ao contrário do pressuposto no recurso, não é apenas (o que já é muito) pelo facto de haver laços familiares diretos a ligar o recorrente aos representantes da sociedade contratada, que se conclui pela existência de uma atitude premeditada de favor e um regime de benefício ilegítimo; a esse circunstancialismo junta-se o não menos relevante facto de se ter passado literalmente por cima das regras legais em matéria de contratação pública nos exatos termos bem explicitados na factualidade dada como provada.
De tal forma que, do conjunto dos factos objetivos dados como provados - que se resumem no essencial a ter o arguido, como Diretor de um agrupamento de escolas, ignorando por completo todas as regras e princípios de contratação pública, contratado pelo período de 4 anos os serviços de uma sociedade comercial gerida pela sua própria filha, e adquirindo ainda à mesma nesse período alguns bens, destinados ao aludido agrupamento -, não pode senão extrair-se a conclusão extraída.
Que mais seria preciso para que se cogitasse existir na mente dos intervenientes nestes negócios um objetivo de obtenção de benefício ilegítimo?
Se:
- as sociedades comerciais têm naturalmente por objeto o exercício de atividades lucrativas, e esta, atento o seu objeto, indicado em 2.1.5, necessariamente contratava para poder lucrar com isso;
- com a sua contratação direta, sem qualquer auscultação do mercado ou convites a outras entidades para apresentação de propostas, pôde esta sociedade fixar e cobrar, sem concorrência, o preço que bem entendeu;
quem poderia beneficiar com tal tratamento de favoritismo, por um lado, e da não adoção dos procedimentos da contratação pública?
A resposta só pode ser esta: a gerente e sócia desta sociedade, filha do arguido, e em última análise o próprio arguido, por ser o seu pai, isto independentemente de se encontrarem atualmente de relações cortadas (não o poderiam estar certamente quando celebraram estes contratos); é evidente que a estabilidade financeira de um filho desonera os progenitores da sua obrigação alimentar – cfr. art. 2009º/1,c) do Código Civil.
Benefício que seria sempre ilegítimo porque alcançado com violação das regras legais aplicáveis, regras essas que visam precisamente evitar tais favoritismos e favorecimentos, em prejuízo da concorrência e do interesse público que deve nortear a contratação pública.
Cremos ficar assim demonstrado que as «conclusões probatórias» que o arguido genericamente censura por contrárias às regras da experiência e ao princípio in dubio pro reo (aqui também sem que se perceba minimamente em que medida), resultam na verdade como lógicas, evidentes e claras, diríamos mesmo, inelutáveis.
Nada por isso a censurar neste conspecto à decisão recorrida, sendo nesta parte também improcedente o recurso.
*
2.4–DO DIREITO
Aqui chegados, sendo a matéria de facto provada a considerada pelo Tribunal recorrido, sobra a questão jurídica implícita na argumentação arrazoada no recurso:
Os factos provados permitem o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de poder previsto e punido pelo art. 382º do Código Penal que vem imputado ao arguido?
A resposta é claramente afirmativa.
Nenhuma das objeções colocadas no recurso é relevante para perturbar a subsunção jurídico-penal realizada pelo Tribunal a quo.
Vejamos brevemente o tipo legal de crime aqui em causa.
Nos termos do disposto no art. 382º do Código Penal, sob a epígrafe «Abuso de Poder»:
«O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.».
*
Paulo Pinto de Albuquerque [15] indica como bem jurídico protegido por esta incriminação a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outra pessoa.
Já para Paula Ribeiro de Faria [16], está em causa a autoridade e credibilidade da administração do Estado ao ser afetada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços.
A sua tutela encontra-se, desde logo, na Lei Fundamental, prevendo o art. 266º/2 que «Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé.» (negrito nosso).
Ao nível do tipo objetivo tem que se verificar abuso dos poderes ou violação dos deveres inerentes às funções do funcionário, sendo esta qualidade de funcionário fundante crimes específicos próprios [17], cuja ilicitude é fundada na qualidade do agente e do especial dever que sobre ele impende por via dessa qualidade.
Tratando-se de um elemento típico da incriminação em análise importa atentar na definição legal de quem deve considerar-se como funcionário público para efeitos penais.
Essa norma conceptual, introduzida sob proposta de Eduardo Correia, autor do Anteprojeto do Código Penal de 1982 [18], mercê de um movimento contínuo de alargamento da punição reservada aos funcionários públicos para múltiplos outros agentes do Estado que àqueles vão sendo equiparados, estabilizaria com a redação do art. 386º do Código Penal, introduzida pela L. 94/2021, de 21/12 [19], com o seguinte teor na parte que aqui releva:
«1–Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:
a)-O funcionário civil;
b)-O agente administrativo; e
c)-Os árbitros, jurados e peritos; e
d)-Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
(…)».
Ora, o crime de abuso de poder consiste, na prática, numa instrumentalização dos poderes inerentes à função exercida pelo funcionário público, usando-os com desvio em relação ao fim público que deveria prosseguir, para finalidades ilegítimas, porque estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo.
A conduta típica há-de corresponder a uma ação/omissão ou decisão do funcionário que padeça de um dos seguintes vícios:
1.–Violação de lei substantiva ou processual – desrespeito por formalidades legalmente impostas, atuação fora dos casos estabelecidos na lei ou em contrário às normas jurídicas com que se devia conformar;
2.–Desvio de poder – uso dos poderes no exercício de faculdades discricionárias, para fim diverso daquele para os quais foram conferidos, preterindo o interesse público em nome de fins ou interesses de natureza particular;
3.–Incompetência relativa – agente que atua excedendo os poderes que lhe estão conferidos, em razão da matéria, do grau hierárquico, do lugar ou do tempo (Paula Ribeiro de Faria, na ob. e loc. cit., exclui do âmbito de proteção da norma as condutas que se subsumem a uma incompetência absoluta ou a usurpação de poderes, em que ocorre uma ausência de poderes por parte do agente);
4.–Violação de deveres funcionais – abrange todos os deveres que estão relacionados com o exercício da função e que só subsistem enquanto o funcionário está em atividade, e que podem ser específicos – impostos por normas jurídicas ou instruções de serviço, e relativos a uma particular função –, e genéricos – referentes a toda a atividade desenvolvida no âmbito da Administração do Estado.
A violação dos deveres funcionais, enquanto ação/omissão ou decisão do funcionário que fere os deveres a que está adstrito no exercício da sua função, já é tutelada por outros crimes, como é o caso do dever de sigilo (383º), o dever de isenção (368º), o dever de obediência (381º), o dever de zelo (385º), sendo, portanto, este tipo legal de crime residual para a violações de outros deveres funcionais, desde que com direta relação com o bem jurídico protegido pelo tipo.
Os deveres funcionais genéricos cuja violação pode integrar o crime de abuso de poder, são os que resultam desde logo dos princípios gerais da atividade administrativa, plasmados no Código de Procedimento Administrativo, aprovado pela L. 4/2015, de 07/01, e que nos termos dos nºs. 1 e 3, do art. 2º, «são aplicáveis à conduta de quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, adoptada no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por disposições de direito administrativo, e ainda a toda e qualquer actuação da Administração Pública, ainda que meramente técnica ou de gestão privada.» (negrito nosso).
Ou seja, são deveres resultantes de princípios gerais aplicáveis a todos os que, mesmo não detendo a qualidade de funcionário público, em sentido estrito, exerçam funções materialmente públicas.
Destacam-se os seguintes deveres genéricos que recaem sobre os funcionários:
1.–O dever de atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins – art. 3º, Princípio da Legalidade;
2.–O dever de prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos – art. 4º, Princípio da Prossecução do Interesse Público;
3.–O dever de, nas relações com os particulares, se reger pelos princípios da igualdade e da imparcialidade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever ninguém, devendo tratar todos de forma imparcial, considerando com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório, e adotando soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção – art. 6º e 9º, Princípios da Igualdade e da Imparcialidade;
4.–O dever de tratar de forma justa todos aqueles que entrem em relação com a Administração Pública, e rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa – art. 8º, Princípios da Justiça e da Razoabilidade.
5.–O dever de agir sempre segundo as regras da boa-fé – art. 9º, Princípio da boa-fé.
Também a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela L. 35/2014, de ..., prevê sob o art. 73º um conjunto de deveres do trabalhador em funções públicas, destacando-se os seguintes:
Prossecução do interesse público: defesa do interesse público, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos;
Isenção: não retirar vantagens, directas ou indirectas, pecuniárias ou outras, para si ou para terceiro, das funções que exerce;
Imparcialidade: desempenhar as funções com equidistância relativamente aos interesses com que seja confrontado, sem discriminar positiva ou negativamente qualquer deles, na perspectiva do respeito pela igualdade dos cidadãos.
E embora não exista ainda um código geral de conduta do funcionário público [20], podemos verificar que, com base nestes mesmos princípios e deveres, reafirmando-os, proliferam nos vários órgãos da Administração Pública os Códigos de Conduta, como o Código de Conduta da Direção-Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas [21], ou, a um subnível, os códigos de conduta aprovados pelos Conselhos Gerais de algumas escolas e agrupamentos escolares.
No caso do Agrupamento de Escolas ..., inexiste, pelo menos publicado no seu sítio da internet, esse Código de Conduta, desconhecendo-se qual o Regulamento Interno vigente à data da prática dos factos; encontra-se inscrito no seu Regulamento Interno vigente para o período de 2024 a 2026, um normativo genérico dirigido a todos os membros da comunidade escolar, independentemente da sua qualidade, impondo deveres de isenção, de zelo e lealdade – art. 3º.[22]
Importa também salientar que o abuso de poderes ou a violação de deveres, partindo de um conceito amplo de função pública, não tem que estar reportado a um ato administrativo, bastando que esteja em causa um ato idóneo a produzir efeitos jurídicos enquanto manifestação de vontade do Estado, abrangendo assim atos simples e complexos, informações, atos orais, atividades técnicas e todos os atos que, em ligação com outros, constituam um todo juridicamente relevante com referência ao aparelho do Estado.[23]
O agente terá que atuar com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.
«Benefício» é toda a vantagem que o agente pretende retirar da sua atuação e que, em concreto, poderá assumir natureza patrimonial ou não patrimonial.
Apenas se exige que esse benefício seja «ilegítimo», o que ocorrerá ainda que o abuso de poderes ou a violação de deveres funcionais tenha tido fins caritativos ou altruístas.
Como escreve a propósito Paula de Ribeiro Faria [24] citando Padovani, «(…) o favoritismo ou o compadrio (mesmo não remunerados), podem ser mais lesivos para o bom funcionamento da administração e para a imagem do Estado, do que a perspectiva da obtenção de um lucro.».
Da forma como está traçado o tipo legal de crime, o legislador entendeu que o abuso de poderes ou a violação de deveres apenas atingem o bem jurídico protegido – com lesão do bom andamento e imparcialidade da administração - quando o benefício visado com tais condutas não merece qualquer tutela da ordem jurídica, sendo, pois, ilegítimo, desse modo sublinhando a ilicitude daquela conduta típica.
Tal como o benefício ilegítimo, o prejuízo que o agente intenda causar a outra pessoa não tem que ser patrimonial, mas terá como sujeito os particulares destinatários do ato praticado ou os que de alguma forma sejam atingidos pelos seus efeitos.
Não se exige, em qualquer caso (benefício/prejuízo), indagação sobre os motivos do agente – ódio, rancor, racismo, inimizades políticas, prepotência, etc..
O crime consuma-se com a conduta de abuso de poderes ou de violação de deveres do agente, com esta específica intencionalidade, sendo irrelevante a efetiva verificação do dano ou vantagem, pois que se trata de crime formal ou de mera atividade.
De notar que a utilização do segmento «fora dos casos previstos nos artigos anteriores» nos remete para uma intenção legislativa de obstar à impunidade, prevenindo todo e qualquer abuso de poderes ou violação de deveres, inerentes à função desempenhada, que se não encontre abrangido pela previsão dos restantes tipos incriminadores do Capítulo em que está inserido.[25]
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Feito este périplo, e considerando tudo quanto já se expendeu, são de fácil resposta as objeções jurídicas trazidas ao recurso, já acima enunciadas.
Assim, quanto à primeira.
[Não sendo a contratação da prestação de serviços ou da aquisição de bens pelo Agrupamento de Escolas da competência própria do seu diretor, nunca poderá ter cometido o crime que lhe vem imputado de abuso de poder uma vez que este crime constitui um crime de função, um crime próprio, específico do funcionário que detém determinados poderes funcionais e faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede, envolvendo um mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais (conclusão d)].
O arguido recorrente não põe em causa a qualidade de funcionário público para efeitos penais, que detinha quando da prática dos factos, a qual decorre das funções exercidas como Diretor do Agrupamento de Escolas ... portanto na qualidade de agente administrativo ou atuando como tal, nos termos da previsão do art. 386º/1,b) e d), do Código Penal.
Questiona apenas que estivesse no âmbito das suas competências funcionais a prática dos atos que lhe foram imputados de contratação de uma empresa para prestar serviços e fornecer bens ao agrupamento que dirigia.
Desde logo, como vimos já, competindo ao BB autorizar a realização de despesa, esse Conselho é composto por três elementos, um dos quais o Diretor que ao mesmo preside; Diretor esse que é quem representa a Escola perante terceiros.
Ou seja, independentemente de haver ou não autorização (colegial) do Conselho Administrativo para a despesa (e não consta que tenha havido) e de quem tenha executado na prática o seu pagamento, mesmo que igualmente autorizado, estava nos poderes do Diretor, no exercício das suas competências de gestão e administração das instalações escolares, propor/orçamentar a despesa e despoletar o procedimento de contratação pública respetivo junto dos serviços administrativos que igualmente superintende; a ele caberia, a final, intervir em representação do Agrupamento de Escolas contratante na celebração dos contratos de prestação de serviços e de aquisição de bens, por ser a ele que compete a sua representação junto de entidades externas, mormente junto das empresas fornecedoras - arts. 20º, 36º, 37º/b) e 38º, do DL 75/2008.
Ao contratar determinada empresa para prestar serviços de apoio informático e elétrico às escolas do agrupamento, adquirindo-lhe bens destinados a essas escolas, fê-lo ainda no exercício funcional das competências que lhe estavam atribuídas no âmbito das atribuições legais de gestão e administração das instalações e recursos disponíveis no espaço escolar; sucede que, contrariamente ao que se lhe impunha, omitiu os atos destinados à formação do contrato público, violando grosseira e ostensivamente o regime legal da contratação pública.
Mas ainda que assim não fosse, estaríamos sempre perante uma situação de abuso dos seus poderes por incompetência relativa para a prática do ato, visto que esse ato, mesmo que não fosse da sua competência funcional, não deixaria de se circunscrever no âmbito do exercício funcional do arguido, como Diretor de um Agrupamento de Escolas com as atribuições legais indicadas de gestão e administração das instalações e recursos disponíveis no espaço escolar, tendo sido precisamente nessa qualidade que outorgou no contrato de prestação de serviços e ordenou a aquisição de bens à mesma empresa, qualidade sem a qual, de resto, não poderia sequer aceder à prática de tais atos com produção de efeitos práticos, como tiveram efetivamente.
Não colhe, por isso, a primeira objeção.
Igual sorte merece a segunda.
[Atenta a tipificação do art. 382° do Código Penal, necessário é que tenha existido um benefício ilegítimo, um efectivo enriquecimento sem causa por parte do arguido ou de terceiro, algo a que os autos nem sequer fazem referência, não questionando que os serviços contratados tenham sido prestados, que os bens fornecidos tenham sido efectivamente facultados ao Agrupamento ou que os serviços prestados e os bens fornecidos tivessem um preço ou contrapartida excessiva ou desrazoável (conclusão e)];
Como decorre do exposto supra acerca do tipo legal de crime de abuso de poder, estamos perante crime formal ou de mera atividade, bastando que se prove a intenção de obter benefício ilegítimo, não sendo necessário provar que o mesmo foi efetivamente alcançado.
Razão pela qual, ainda que nada conste dos factos provados quanto à (des)razoabilidade dos preços cobrados como contrapartida dos serviços prestados e bens fornecidos, ou à efetiva prestação desses serviços e fornecimento desses bens – de resto, se não tivessem sequer sido prestados ou fornecidos, diga-se, tal serviria apenas para agravar a ilicitude da conduta -, sempre os que constam a este propósito, mormente os descritos em 2.1.19, 2.1.23 e 2.1.24, se mostram suficientes para o preenchimento do concernente elemento subjetivo típico do crime de abuso de poder.
De todo o modo, resulta dos factos provados descritos em 2.1.24 que essa intenção de obtenção de benefício se consumou com o efetivo recebimento das quantias indicadas no contrato de prestação de serviços e faturas de aquisição de bens, facto que a defesa nem sequer questiona.
Mais.
Conforme consta expresso nos factos provados, e se abordou já supra, esse benefício não decorre apenas do recebimento dos valores pagos pela prestação de serviços e aquisição de bens, e lucro comercial inerente; antes se corporiza também na subtração da relação contratual aos efeitos da concorrência de outras empresas congéneres a operar no mercado, mediante um tratamento de favoritismo baseado na ligação familiar direta entre o representante do contraente público e a representante da contraente privada.
Cai, nessa medida, igualmente esta objeção equacionada no recurso ao preenchimento do tipo legal de crime com a factualidade considerada provada.
Em suma: em face dos factos provados, dúvidas não restam de que o arguido, exercendo funções de Diretor de Agrupamento de Escolas, portanto, na qualidade de funcionário, ao celebrar contrato de prestação de serviços e de fornecimento de bens com sociedade comercial da qual era sócia e gerente a sua filha, sem adotar os procedimentos de formação de contrato público previstos no Código dos Contratos Públicos, violou a lei e os respetivos deveres funcionais de atuar em obediência à lei e ao direito, de isenção e imparcialidade na relação com os particulares, assim como de transparência e prossecução do interesse público que nessa qualidade lhe estava confiado, fazendo-o ainda com intenção de alcançar para si e para aquela sua filha benefício que sabiam ser ilegítimo, consistente, desde logo, na contratação direta sem passar pelo crivo da concorrência.
Bem andou, assim, o Tribunal a quo, ao condenar o arguido em conformidade.
É, pois, totalmente improcedente o recurso.
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Constata-se que, como também se assinala no recurso, existe erro na identificação do arguido constante do relatório da sentença recorrida; com efeito aí se indica como sendo o seu nome AA, quando no restante texto da decisão figura com o nome de AA, sendo este efetivamente o nome correto.
Nos termos do disposto no art. 380º/1, b) e 2, do Código de Processo Penal cabe-nos nesta sede recursiva proceder à correção demandada pela verificação do que assoma como manifesto lapso de escrita, o que se determinará dispositivamente.
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III–DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em: