I - Independentemente de se seguir uma perspetiva mais objetivista ou, ao invés, mais subjetivista, a fraude à lei pressupõe uma atuação, em si mesma lícita, mas que contorna outra norma, de natureza imperativa, conduzindo à obtenção de um resultado que, precisamente, esta segunda norma proíbe.
II - A questão não se coloca em sede de fraude à lei quando a alteração contratual levada a cabo pela recorrida estava prevista no contrato celebrado com a recorrente: afastada a invalidade dessa previsão, ou seja, das cláusulas que permitiam a alteração contratual, a questão sempre tem de resolver-se pela interpretação das normas contratuais.
Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Mendes Coelho e Carlos Gil.
Acordam na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:
I - Relatório
A..., SA, veio propor a presente ação contra B... – Sucursal em Portugal, pedindo a condenação desta no pagamento de 248.838,75€, acrescido dos demais prejuízos que se vierem a verificar para a autora até 30 de junho de 2023 (data em que deveria ocorrer a caducidade do contrato) consequentes à violação contratual que imputa à ré.
Para tanto, em síntese, alegou ter celebrado com a ré, a 29.06.21, um contrato para fornecimento de energia elétrica, por um período de 24 meses e em regime de preço fixo por Kw/h. Em violação do contrato, a ré interpelou a autora para uma elevação dos preços dos fornecimentos, na sequência da alteração temporária das regras de mercado “estabelecidas no Decreto-Lei n.º 33/2022” e afirmando, erradamente, que a renovação do contrato ocorreria a 1 de julho de 2022. O “fundamento legal invocado para a legitimação unilateral na alteração do preço fixado, foi o DL n.º 33/2022 de 14 de maio” e, na “fatura emitida em 07/07/2022, imputou abusivamente o mecanismo de ajuste temporário no montante de 13.375,2185€”, o que constituiu um enorme aumento face ao valor pago nos meses anteriores. A comunicação da ré é ilegal e, na sequência, a autora resolveu o contrato, tendo tido de assegurar o fornecimento junto de outro contraente, a preços muito superiores aos que resultariam do cumprimento do contrato pela ré, o que importou no prejuízo peticionado, a que acrescerá o resultante deste acréscimo de custo até ao final do prazo previsto no contrato.
A ré contestou. Impugnando diversa factualidade e as conclusões de direito, alegou, nomeadamente, que a elevação de preço que comunicou à autora corresponde a um direito que lhe é atribuído pelo contrato assinado entre as partes e cujo clausulado a demandante não questionou. Refere que, à data da celebração do contrato, não havia a mínima previsão do aumento exponencial dos novos custos de aquisição de energia elétrica, aumento esse que tornou lícita a alteração contratual, devidamente explícita na carta enviada à autora. Diz que, das próprias faturas juntas pela autora, resulta que as margens praticadas pelo novo comercializador “são substancialmente superiores às praticadas no contrato de indexado”, defendendo que, se a autora “se tivesse mantido na carteira de clientes da ré, pagaria sempre valores inferiores aos praticados pela C... e mesmo menores em relação aos valores de tarifa fixa que tinha com a ré”. Concluiu pela improcedência da ação.
Depois de dada a oportunidade à autora para se pronunciar sobre a matéria alegada na contestação e potencialmente configurável como exceção, e tendo esta concluido como na petição inicial, foi realizada audiência prévia, antecedida de advertência às partes de que o tribunal ponderava o conhecimento imediato do mérito da causa, o que veio a fazer e, decidindo, julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo a ré do pedido.
II – Do recurso
Inconformada, a autora veio apelar. Colocando em causa (apenas) a aplicação do Direito, e pretendendo a revogação da sentença, apresenta as seguintes Conclusões:
1 - Pretende-se colocar em causa a aplicação do Direito, vendo assim, reconhecida a ilegalidade da conduta da recorrida, ao aplicar o Decreto-Lei 33/2022 de 14 de maio, e ao contrário do decidido.
2 – Entendeu o tribunal que a recorrida, tinha a faculdade de alterar livremente o preço a pagar pela recorrente, ao abrigo do mecanismo de ajuste temporário previsto no diploma supra indicado.
3 - Entre a recorrente e a recorrida foi celebrado um contrato de fornecimento de energia com preço fixo por Kw/h, o valor mensal apenas variava consoante o consumo energético existente no mês a que respeita.
4 - O contrato de fornecimento de energia referido foi celebrado por um período de 24 meses, vigorando entre 30 de junho de 2021 e 30 de junho de 2023.
5 - A recorrida, a 1.07.22, remete uma missiva onde ao abrigo da “alteração temporária das regras de mercado estabelecidas pelo Decreto-Lei 33/2022” altera a tarifa contratada para a TARIFA BASSIC INDEX.
6 - Entendeu o tribunal que recorrida tinha a faculdade de alterar livremente o preço a pagar pela autora nomeadamente nos casos de alteração dos custo de aquisição de energia elétrica, como foram os resultantes da Guerra na Ucrânia.
7 - O entendimento da recorrente vai no sentido contrário, uma vez que a recorrida baseou tal alteração de preços num mecanismo que não é possível aplicar ao contrato celebrado com aquela.
8 - O Decreto-Lei n.º 33/2022 de 14 de maio visa, como refere no seu preâmbulo, estabelecer um mecanismo excecional e temporário de ajuste dos custos de produção de energia elétrica no âmbito do Mercado Ibérico de Eletricidade, de forma a mitigar a atual instabilidade dos preços da energia elétrica.
9 - O mesmo diploma refere ainda que as medidas nele constantes aplicam-se apenas a consumidores sem contratos de fornecimento de energia elétrica a preços fixos, ou com contratos celebrados depois de 26 de abril de 2022.
10 - O contrato da recorrente encontra-se isento de tais medidas ao abrigo do artigo 7.º n.º 2 do Decreto-lei, uma vez que foi celebrado antes de 26 de abril de 2022.
11 - Apesar das medidas consagradas no Decreto-Lei 33/2022 se aplicarem aos contratos que sejam renovados, não é suscetível, por essa via, de se aplicar tal diploma ao contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida, uma vez que ao contrário do que entende a recorrida, o contrato de fornecimento celebrado não se renovou a 1 de julho de 2022, apenas estando prevista tal renovação para o dia 1 de Julho de 2023.
12 - A aplicar-se este mecanismo ao contrato celebrado, como aconteceu, não existiu nenhuma redução de preços, pelo contrário, o preço mensal aumentou cerca de 14.000,00€ a mais.
13 - Refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 1662/22.3T8PVZ.P1, de 23.10.23, relatora Anabela Morais: “Aos contratos de fornecimento de energia elétrica, com preço fixo, celebrados antes de 26 de abril de 2022, não é aplicável o custo do valor do ajuste de mercado, decorrente do regime previsto no Decreto-Lei n.º 33/2022, de 14 de maio para a fixação dos preços no Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL) uma vez que na contratação dos preços então fixados não foi tomado em consideração os efeitos da aplicação do mecanismo ibérico”.
14 - Entende a recorrente que o tribunal andou mal ao considerar que o contrato celebrado se qualifica como um contrato misto, devendo antes ser considerado como um contrato de adesão.
15 - A recorrente não teve liberdade para poder aditar, eliminar ou modificar quaisquer cláusulas, tendo as mesmas sido estabelecidas unilateralmente pela recorrida, sendo a liberdade contratual reduzida à aceitação ou rejeição dessas cláusulas, não havendo lugar a negociações.
16 - O objetivo da recorrida com as alterações feitas, foi ab inicio, aplicar o mecanismo previsto no Decreto-Lei 33/2022, entendendo a recorrente que existe uma clara fraude à lei.
17 - A recorrida bem sabia que a recorrente estava isenta da aplicação do mecanismo excecional e temporário de ajuste dos custos de produção de energia elétrica no âmbito do Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL).
18 - Ainda assim, por forma a conseguir o seu propósito de aplicar o mecanismo, instrumentalizou as cláusulas 3.3. e 3.4 do contrato de fornecimento de energia, mantendo a aparência de conformidade com a lei quando, na verdade, queria excecionar e contornar uma norma imperativa obtendo, assim, um resultado completamente contrário ao que a lei permite.
19 - A recorrente nunca aceitou tais alterações, como comprovam os documentos juntos aos autos.
20 - O princípio da segurança jurídica, intrínseco ao Direito, foi completamente violado, uma vez que a certeza, previsibilidade e estabilidade que se espera de um contrato foram completamente defraudadas.
21 - A recorrida foi completamente surpreendida com a imposição de uma nova tarifa, quando o expectável seria que, pelo menos até 1 de julho de 2023 a sua tarifa se mantivesse estável e, consequentemente, o preço a pagar por Kw/h fosse exatamente o mesmo durante todo esse período, o que não aconteceu, o que implicou consequências gravíssimas e bastante avultadas financeiramente, sem nunca a recorrente ter aceite qualquer alteração.
22 - Não se conforma com a decisão, sendo seu entendimento que tal alteração é ilegal, sendo que nos termos apresentados pela recorrida, as cláusulas contratuais gerais 3.3 e 3.4 nas quais a recorrida se baseou, são nulas.
23 - Foram, assim, violadas as normas do n.º 2. e n.º 5 do artigo 7.º do DL 33/2022.
Respondendo, a apelada defende o decidido e a improcedência do recurso, e sustenta, em síntese:
- O contrato foi outorgado muito antes da entrada em vigor do DL 33/2022 pelo que as cláusulas aí insertas são muito anteriores à imprevista necessidade de o Estado ter que intervir, tal o aumento do custo do gás (fonte principal) de obtenção de energia, que atingiu o seu máximo histórico em agosto de 2022.
- A rigidez das cláusulas do contrato e da qualificação jurídica deste contrato de adesão são questões novas, suscitadas em sede de recurso.
- Não se vê que fraude à lei é que a recorrente se refere, quando no quadro contratual por si assinado e mesmo como bem salienta a decisão em análise nada faz afastar o clausulado plenamente aceite pelas partes.
- O mencionado DL em lado algum afasta a possibilidade de aplicação das regras gerais de direito civil bem como o clausulado em que as partes tenham intervindo e obrigado.
- Invoca a recorrente um acórdão da Relação do Porto plenamente conhecido da recorrida por ter nesse acórdão obtido total ganho de causa, mas lamenta-se que o faça de forma sectorizada apenas trazendo a este recurso o que lhe interessa.
- As alterações de preço, legítimas, atempadas e fundamentadas como a ocorrida e bem apreciada pela 1.ª instância, implica a sujeição ao pagamento de MAT como bem flui quer da redação do n.º 5 do artigo 7.º do DL, bem como do resultado do texto do mencionado acórdão da Relação do Porto, trazido a este recurso pela recorrente ainda que de forma parcial.
O recurso foi recebido nos termos legais, conforme despacho cujo sentido, nesta sede, não se alterou. Dispensaram-se os Vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso. O objeto da apelação, atentas as conclusões da apelante, consiste em saber se a sentença deve ser revogada, porquanto a ré não podia aumentar os preços contratados antes do final do contrato, tendo atuado em fraude à lei, pois “instrumentalizou as cláusulas 3.3 e 3.4 do contrato”, cláusulas que são nulas.
III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
O tribunal recorrido considerou assente a seguinte factualidade, que no recurso não é questionada:
a) Representantes da autora e ré apuseram as suas assinaturas no escrito junto por cópia
como documento n.º 1 junto com a petição inicial, datado de 29 de junho de 2021, cujo
teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente “1. OBJETO DO CONTRATO 1.1. O objeto do presente contrato é o fornecimento de energia elétrica (...) pela D... nas instalações de que é titular o Cliente para sua utilização na morada indicada nas Condições Particulares. (...) 3. TARIFAS, PREÇOS E CONDIÇÕES ESPECIAIS 3.1. O Cliente está obrigado perante a D... ao pagamento dos preços estabelecidos nas Condições Particulares (...) 3.3. Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a D... poderá livremente introduzir alterações no preço a pagar pelo cliente nas seguintes situações: (...) 3.3.3. No caso de alteração dos custos de aquisição de energia elétrica e/ou gás natural, bem como de modificação do perfil de consumo especificado nas condições particulares para o fornecimento de energia elétrica e/ou gás natural. (...) 3.4. As modalidades contratuais, incluindo as modificações de preços previstas no número anterior, são previamente comunicadas por escrito ao cliente com uma antecedência não inferior a 14 dias à sua implementação. O cliente poderá no prazo de 14 dias a contar da receção da referida comunicação opor-se por escrito, caso em que o contrato será considerado resolvido, sem que recaia sobre o cliente qualquer encargo a título de penalização por esse facto. Decorrido esse prazo sem que o cliente tenha notificado a D... da sua oposição, considerar-se-á aceite a modificação das condições, entrando as mesma em vigor a partir da data definida pela D... para o efeito. (...); (art. 7.º da petição inicial)
b) Do mesmo escrito constava: “Duração do contrato 24 meses. Período de Fidelização 24 meses” e “Tarifa de acesso MT (...) Ciclo horários semanal com feriados” e com indicação de preços por Kw/hora de €0,077502 em Ponta, €0,074197 em Cheio, €0,069467 em Vazio, e €0,062930 em S/Vazio; (art. 7.º da petição inicial)
c) A ré fez remeter à autora, que o recebeu em 1 de junho de 2022, o escrito como documento n.º 3 com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente “Desta forma, e associado aos sucessivos aumentos do preço da energia elétrica no mercado grossista, seguindo o disposto da Cláusula 3.3. do contrato de fornecimento de energia (...) iremos proceder à modificação da tarifa comercial. Por este motivo, informa-se que, respeitando o prazo estabelecido na Cláusula 3.4. do contrato de fornecimento, a tarifa a aplicar será a seguinte: TARIFA BASSIC INDEX. OMIE*Perdas + CGS + taxa (€ 1/Mwh) + TAR. OMIE – Preço do mercado diário (OMIE). Perdas – perfil de perdas da rede de distribuição, com base no perfil de perdas regulado pela ERSE. CGS – corresponde à soma dos custos de gestão do sistema da REN e custos de desvio a pagar por todos os comercializadores de eletricidade, aos quais a D... aplica o valor de 0,00300 €/kWh para tarifas em MT, 0,004300 €/kWh para tarifas em BTE e 0,005500€/kWh para tarifas em NTN. TAR – custos de acesso às redes, atualizando-se nos termos do Regulamento tarifário. Taxa – margem comercial da D..., estabelecida para o preço indexado. DATA DE RENOVAÇÃO: 1 de Julho de 2022”; (art. 17.º da petição inicial)
d) A autora fez remeter à ré, que o recebeu, o escrito junto como documento n.º 12 com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido, datado de 14 de Junho de 2022, do qual consta nomeadamente “Vimos por este meio solicitar a rescisão do contrato de fornecimento de energia elétrica entre as partes, com efeito após 1 DE JULHO DE 2022”; (art. 41.º da petição inicial)
e) Desde o início da guerra da Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, ocorreram sucessivos aumentos do preço da energia elétrica no mercado grossista. (arts. 10.º, 19.º e 22.º da contestação).
III.II – Fundamentação de Direito
Considerou o tribunal recorrido, conforme ora, com síntese, se transcreve e sublinha: “(...) O contrato em causa é um contrato que tem por objeto o fornecimento de energia elétrica, com elementos essenciais da compra e venda, nos termos do art. 874.º, do CC, mas que inclui também os elementos da prestação de serviços, nos termos do art. 1154.º, do CC, tais como a instalação e manutenção do contador, na entrega da eletricidade e na medição do consumo. O regime do contrato é assim formado, além do seu clausulado, nos termos do art. 405.º, n.º 1, do CC, pelas normas supletivas integrantes dos tipos contratuais que o integram, e naturalmente pelas normas imperativas que possam sobrepor-se ao próprio clausulado, nomeadamente as resultantes do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais(...) e a Lei dos Serviços Públicos Essenciais. E deste regime não resulta o dever contratual da ré em fornecer energia elétrica à autora, durante 24 meses, ao preço fixo estipulado no contrato, sem a faculdade de o alterar, como argumenta a autora. Antes pelo contrário. Das cláusulas 3.3., 3.3.3., e 3.4., transcritas na alínea a) resulta que a ré tinha a faculdade de alterar livremente o preço a pagar pela autora, nomeadamente nos casos de alteração dos custos de aquisição de energia elétrica, como foram os resultantes da guerra na Ucrânia. Perante o exercício pela a autora deste direito contratualmente previsto, caberia à autora, em reação, o direito à resolução do contrato, possibilitando-lhe a procura de preços mais competitivos, direito que a autora exerceu. O tribunal não localizou qualquer norma imperativa que se sobrepusesse a este clausulado, postergando-o, nomeadamente no Decreto-lei n.º 33/2022, de 14 de Maio, invocado pela autora. A conduta da ré ao alterar o preço de fornecimento, através da comunicação descrita em c) não viola qualquer dever contratual suscetível de a fazer incorrer em responsabilidade civil, com obrigação de reparar os prejuízos causados, nos termos do art. 798, do CC”.
Em abono do seu entendimento e da procedência do recurso, a apelante cita uma acórdão desta Secção do Tribunal da Relação do Porto [acórdão de 23.10.23, Relatora, Desembargadora Anabela Morais, Processo n.º 1662/22.3T8PVZ.P1, dgsi[1]], acórdão esse que a recorrida entende abonar o seu próprio entendimento – naturalmente divergente.
O acórdão em causa merece ser aqui considerado, atenta a parcial semelhança factual – embora nele a aqui recorrida seja autora e apelante – e, por outro lado, por já ter sido confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, como especificaremos mais adiante.
Nele, deram-se como provados os seguintes factos: “1 - A A. dedica-se à atividade de comercialização de gás e eletricidade (...) 2 - Por acordo escrito datado de 09/09/2021 celebrou com a R. um contrato de fornecimento de energia, (que incluía dois pontos de entrega CPE) cuja duração dos mesmos era de 12 meses sendo automática e sucessivamente renovável por iguais períodos dos temporais, se nenhuma das partes fosse notificada, por escrito, com 30 dias de antecedência relativamente à data da sua cessação, da oposição da sua renovação. 3 - Ao abrigo desse acordo, obrigou-se a fornecer energia elétrica à R. mediante o pagamento do respetivo preço contratualizado, sendo a faturação correspondente emitida com uma periodicidade mensal. 4 - Nesse âmbito de atividade e do mencionado contrato a que corresponde o produto “MT – Semanal com Feriados BASSIC INDEX, ponto de entrega CPE: ...5DE, foram emitidas as seguintes faturas (...) 9 - Prestados os fornecimentos e vencidas as faturas nas datas acima referidas, a R. não as pagou apesar de interpelada para tal. (...) 11 - A A. enviou à R. a carta que foi junta aos autos como documento 1 da contestação, citando o DL. 33/2022, recebida pela R. pelo menos em 02/06/2022, e comunicando que iriam proceder à modificação da tarifa comercial para os CPES referidos para a “Tarifa Bassic Index”, indicando os termos em que seriam estabelecidos os preços, e que, no caso de se pretenderem opor deveriam informar a C... por escrito, por carta registada com aviso de receção, com uma antecedência mínima de 30 dias, nos termos das condições gerais do contrato, sendo que decorrido esse prazo sem que tivesse sido notificada a C... da sua oposição, ter-se-iam como aceites as atualizações de preços nos termos indicados, cujo teor aqui se considera reproduzido. 12 - A R. enviou missiva à A. reclamando no sentido de as condições contratuais acordadas a isentarem da liquidação do valor de ajuste de mercado. 13 - Por carta de 04/10/2022, a A. comunicou à R. ter corrigido as faturas que contemplavam de forma errada a aplicação do mecanismo de ajuste, entendendo que, em relação às demais, não se verificava a isenção desse mecanismo, acrescentando que a R. poderia resolver o contrato celebrado sem necessidade de qualquer pré-aviso ou sanção por rescisão antecipada. 14 - No acordo escrito celebrado, as partes acordaram que: “3 - Tarifas, preços e modificações contratuais: (...) 3.3. Qualquer alteração aos montantes das tarifas de acesso às redes ou a qualquer dos componentes regulados no preço da energia em vigor na data da celebração do presente contrato, que seja aprovado durante a vigência do mesmo, será automaticamente repercutida nos preços aplicáveis ao contrato, sem que tal possa ser considerado uma alteração das condições contratuais acordadas pelas partes. 3.4. Durante o período contratual, a C... poderá introduzir alterações ao contrato, incluindo aos preços aplicáveis, nomeadamente, no caso de alteração dos custos de aquisição da energia elétrica e/ou gás natural, bem como em caso de modificação do perfil de consumo especificado nas condições particulares para o fornecimento de energia elétrica e/ou gás natural, e, no que diz respeito ao fornecimento em gás natural, em caso de alteração de escalão de consumo promovida pelo ORD, podendo aqui verificar-se um aumento até 5 €MVh no custo da energia. (...)”.
E, aplicando o Direito, considerou-se, além do mais: “(...) A partir do momento em que tais consumidores passam a ter contratos indexados ao mercado diário e a suportar um preço inferior ao que seria praticado sem o mecanismo ibérico, deixa de ter justificação a isenção prevista no nº2 do artigo 7º do Decreto-Lei 33/2022. Isso ocorre com todos os consumidores que tenham iniciado ou renovado um contrato de fornecimento de eletricidade de preços fixos a partir de 26 de Abril de 2022 ou que o fornecimento esteja sujeito às tarifas indexadas ao OMIE. O mesmo sucede com os contratos celebrados antes de 26 de Abril de 2022, relativamente aos quais tenha sido acordada alteração sobre o preço, a operar após 26 de Abril de 2022. Aceite, pelo consumidor, a alteração do contrato, após 26 de Abril de 2022, quanto às condições relativas aos preços de fornecimento, passando de preço fixo para “Tarifa Bassic Index”, não pode o mesmo beneficiar de um preço inferior por força do mecanismo Ibérico e não suportar o custo do ajustamento. As renovações ou as alterações, por acordo, das condições relativas aos preços de fornecimento dos contratos incluídos no âmbito da isenção do custo de ajuste do mecanismo ibérico nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 33/2022, de 14 de maio, determinam a inclusão dos mesmos contratos na base da repercussão do mecanismo ibérico ao abrigo do n.º 5 do referido artigo. Não pode um consumidor passar a beneficiar de um preço inferior ao que existiria sem o mecanismo ibérico, com a renovação do contrato operada após 26 de abril de 2022 ou com alterações introduzidas nas condições relativas aos preços de fornecimento de energia elétrica, e pretender não suportar o custo do ajustamento. (...) Paralelamente, o Decreto-Lei n.º 33/2022, de 14 de maio determina que o valor da liquidação do custo do ajuste de mercado não se impute a um conjunto de consumos, entre os quais aos consumos realizados ao abrigo de contratos de fornecimento de energia elétrica a preços fixos celebrados antes de 26 de abril de 2022 (artigo 7.º, n.º 2)”. (...) Decorre do exposto, que aceite, pelo consumidor, em momento posterior a 26 de Abril de 2022, a alteração do preço fixo para preço indexado, deixa de beneficiar da isenção conferida pelo nº2 do artigo 7º do referido diploma. (...) Aceite, pela Ré, a nova tarifa comunicada pela Autora – cfr. ponto 16 dos factos assentes -, a partir dessa data deixou de estar integrada na isenção concedida pelo nº2 do artigo 7º do Decreto-Lei 33/2022. Conforme se explicou, nos contratos com preço fixo, celebrados em data anterior a 26 de Abril de 2022, sujeitos a renovação a operar em data posterior a 26 de Abril de 2022; ou com alterações das condições do preço, acordadas em data posterior a 26 de Abril de 2022; deixa de subsistir a razão para não se repercutir em tais contratos os custos do mecanismo de ajuste pois, beneficiam da aplicação do mecanismo ibérico que tem como efeito que o preço médio desça em virtude da fixação de um teto máximo para o preço do gás natural. A situação que não pode ocorrer é o consumidor aceitar a modificação de “preço fixo” para o fornecimento sujeito à “Tarifa Bassic Index”, beneficiando da aplicação do mecanismo ibérico, e não pretender suportar o custo daquele ajuste. (...) Em suma, após a renovação ou a alteração, acordada, de preços, passar a ser suportado, pelo consumidor, o custo do ajustamento. O artigo 7º, nº2, do Decreto-Lei 33/2022 proíbe a aplicação do custo do ajustamento aos contratos celebrados até 26 de Abril de 2022 com regime de preço fixo; não proíbe a aplicação do custo do ajustamento a tais contratos, caso ocorra renovação dos mesmos ou tenham sido sujeitos a alterações no regime de preços. (...)
Este acórdão, que decidiu a procedência do recurso interposto pela aqui recorrida foi objeto de Revista. E veio a ser confirmado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.02.24 [Relatora, Conselheira Fátima Gomes, Processo n.º 1662/22.3T8PVZ.P1.S1, dgsi[2]].
E o Supremo tribunal de Justiça deixou escrito, no que aqui importa: “Na interpretação da lei releva o sentido exposto pelo legislador no DL 33/2022 e saber se qualquer contrato celebrado antes de 26/04/2022 na modalidade de “com preço fixo” não ficar sujeita ao MAT, ainda que tenha havido alteração do contrato efetuado por vontade das partes (ainda que apenas por omissão de resposta de uma das partes ao aviso da outra de que se efetuará a alteração em determinado prazo podendo a destinatária resolver o contrato se não pretender a alteração). Para responder a esta dúvida, importa contextualizar a situação que esteve na origem da introdução do MAT, à luz da alteração dos preços energéticos ocorrida com o despoletar da Guerra da Ucrânia e das soluções que se procuraram para lidar com a nova situação com reflexos nos preços da energia. Foi nesse contexto que surgiu o DL 33/2022, com uma solução que se destinava a beneficiar os intervenientes no mercado, com a criação de um teto de referência de preço, a que viria acoplado um MAT, e com a indicação de que a sujeição a este regime não se aplicaria ao contratos de preço fixo celebrados antes de 26.4.2022, mas cujo sentido deve ser lido “celebrados antes e sem alterações voluntariamente aceites pelas partes”, porque ainda que existisse um contrato com preço fixo celebrado antes de 26.4.2022, a liberdade contratual (art.º 405.º do CC), não impede que as partes o alterem, por acordo. E quando assim sucede a alteração deve vigorar, porque resulta da vontade dos intervenientes, com as necessárias implicações. Nessas implicações está a sujeição ao MAT a partir do momento em que o contrato foi modificado, mesmo que a parte que não teve a iniciativa da alteração do contrato pudesse não ter equacionado a sua sujeição ao MAT, por entender que estaria sujeita a um regime de isenção. Não se podendo discutir aqui se houve falta ou deficiente informação sobre as repercussões da alteração para a “Tarifa Bassic Index”, à luz dos factos provados, ficou demonstrado que houve aceitação da alteração do contrato. Essa alteração implica que deixa de se aplicar o regime de isenção previsto no art.º 7º do diploma legal. Quer isto dizer que se concorda, na integra, com a justificação dada no acórdão recorrido, e com a decisão proferida, pelo que a questão suscitada pela recorrente improcede, tal como o recurso”.
A propósito da fraude à lei, acrescentou o Supremo Tribunal de Justiça: “Para que se pudesse entender que a solução indicada era de fraude à lei ter-se-ia de encontrar uma justificação que não a indicada pelo recorrente, como a de a lei ser imperativa na indicação de, em nenhuma circunstância, poderem os contratos anteriores serem modificados, nem por acordo dos interessados. Tal proibição não se identifica, nem se afigura justificada. (...) Não se afigura que exista aqui fraude à lei”.
Da (longa) transcrição antecedente, cremos ser de concordar com uma conclusão: aos contratos de fornecimento de energia elétrica celebrados antes de 26 de abril de 2022 – como sucede com o contrato em apreço, celebrado em junho de 2021 - e nos quais foi estipulado um preço fixo não é de aplicar o MAT (mecanismo de ajuste temporário), salvo se, havendo alteração do contrato (desde logo quanto ao preço) as partes concordarem. Mas impõe-se, ainda, outra conclusão, com relevo à apreciação do recurso: havendo alteração do contrato, fundada não na aplicação do MAT (consequência), mas nas cláusulas contratuais acordadas (causa), o contraente discordante tem – atento o clausulado e no caso presente – o direito de resolver o contrato.
Daí que, atento o concluído, a questão relevante não é saber se a recorrida podia ou devia aplicar os preços do mecanismo temporário, mas sim se podia alterar os preços do fornecimento de energia[3], pois podendo fazê-lo sem restrição contratada, poderia fazê-lo para preços não condicionados por aquele referido mecanismo de ajuste temporário.
O que nos remete diretamente para as cláusulas contratuais levadas à factualidade fixada: “3.3 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a D... poderá livremente introduzir alterações no preço a pagar pelo cliente nas seguintes situações: (...) 3.3.3 - No caso de alteração dos custos de aquisição de energia elétrica e/ou gás natural, bem como de modificação do perfil de consumo especificado nas condições particulares para o fornecimento de energia elétrica e/ou gás natural. (...) 3.4 - As modalidades contratuais, incluindo as modificações de preços previstas no número anterior, são previamente comunicadas por escrito ao cliente com uma antecedência não inferior a 14 dias à sua implementação. O cliente poderá no prazo de 14 dias a contar da receção da referida comunicação opor-se por escrito, caso em que o contrato será considerado resolvido, sem que recaia sobre o cliente qualquer encargo a título de penalização por esse facto. Decorrido esse prazo sem que o cliente tenha notificado a D... da sua oposição, considerar-se-á aceite a modificação das condições, entrando as mesma em vigor a partir da data definida pela D... para o efeito”.
Refere a apelante – ainda que apenas o refira em sede de recurso – que as aludidas cláusulas contratuais são nulas. São nulas, uma vez que “14 - Entende a recorrente que o tribunal andou mal ao considerar que o contrato celebrado se qualifica como um contrato misto, devendo antes ser considerado como um contrato de adesão. 15 - A recorrente não teve liberdade para poder aditar, eliminar ou modificar quaisquer cláusulas, tendo as mesmas sido estabelecidas unilateralmente pela recorrida, sendo a liberdade contratual reduzida à aceitação ou rejeição dessas cláusulas, não havendo lugar a negociações”.
Ora, se é certo que a nulidade (do contrato ou das cláusulas) é de conhecimento oficioso, o que (apenas) alega a apelante é que essa nulidade resulta do tipo contratual, aliás – e se assim podemos dizer, do tipo formal (contrato de adesão), que lhe parece incompatível com o tipo substantivo (contrato misto de fornecimento e compra e venda) – sem fundar a causa material de tal vício ou o normativo que o prevê. Em rigor, e nesta sede, sequer sabemos se os contornos definidores de um contrato de adesão[4] se verificam, factualmente. Dito de outro modo, invocar uma nulidade sem suporte fáctico para tal invocação não implica qualquer investigação oficiosa do tribunal no sentido de apurar da existência do vício: conhecimento e averiguação são realidades distintas, quando falamos de oficiosidade.
Assim, olhando a factualidade apurada – e não questionada em sede recursória – não podemos minimamente concluir que as cláusulas aqui em causa padecem de nulidade.
Mas a apelante também sustenta que a apelada agiu em fraude à lei. Efetivamente, refere nas suas conclusões: “16 - O objetivo da recorrida com as alterações feitas, foi ab inicio, aplicar o mecanismo previsto no Decreto-Lei 33/2022, entendendo a recorrente que existe uma clara fraude à lei. 17 - A recorrida bem sabia que a recorrente estava isenta da aplicação do mecanismo excecional e temporário de ajuste dos custos de produção de energia elétrica no âmbito do Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL). 18 - Ainda assim, por forma a conseguir o seu propósito de aplicar o mecanismo, instrumentalizou as cláusulas 3.3. e 3.4 do contrato de fornecimento de energia, mantendo a aparência de conformidade com a lei quando, na verdade, queria excecionar e contornar uma norma imperativa obtendo, assim, um resultado completamente contrário ao que a lei permite”.
Partimos do pressuposto que o “ab inicio” alegado pela apelante se refere ao momento da alteração das condições contratuais, pois se a referência fosse à ocasião da celebração do contrato a alegada fraude à lei estaria necessariamente afastada, por não ser compreensível a fraude a uma lei ainda inexistente.
A melhor compreensão do instituto justifica a transcrição do sumariado em quatro acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, todos publicados em dgsi, os quais, emblematicamente abordam a fraude à lei[5]:
- STJ, 25.01.05, Relator, Conselheiro Nuno Cameira, Processo n.º 04A3915: “ (...) 2 - Se a causa de pedir da acção assentar unicamente na previsão do artº 242º, nº 2, do Código Civil (nulidade do negócio simulado feito pelo autor da sucessão com o intuito de prejudicar herdeiro legitimário), o tribunal não fica impedido de apreciar e julgar o caso recorrendo à figura do negócio em fraude à lei e às disposições legais de que se extrai a respetiva nulidade (artºs 280º, 281º e 294º do Código Civil) (...) 6 - Decisivo para afirmar a ilicitude e consequente nulidade do negócio em fraude à lei é o resultado com ele obtido, não a intenção das partes; não há fraude juridicamente relevante se o resultado não coincidir com aquele a que a norma imperativa contornada pretende obstar (...)”.
- STJ, 20.10.09, Relator, Conselheiro Sebastião Póvoas, Processo n.º 115/09.0TBPTL.S1: “(...) 6. Embora o legislador não tenha tratado genericamente a figura de fraude à lei apenas consagrada para as normas de conflitos (direito internacional privado) a mesma pode e deve estender-se a todo o negócio jurídico, desde que se lance mão de uma norma de cobertura para ultrapassar – ou incumprir- outra norma (a defraudada). 7. Assim, por via indireta, através da prática de um ou vários atos lícitos, logra obter-se um resultado que a lei previu e proibiu. 8. É necessário um nexo entre o(s) ato(s) lícitos e o resultado proibido, não sendo essencial a intenção das partes em defraudar a lei, aderindo-se assim a uma conceção objetivista. 9. O negócio jurídico celebrado com fraude à lei é nulo”.
- STJ, 9.03.17, Relator, Conselheiro Lopes do Rego, Processo n.º 1629/13.2TBAMT.P1.S1: “(...) II. Pode verificar-se fraude à lei a propósito do exercício do direito de remir – desde logo, quando se verificar uma interposição fictícia de pessoas, tendente a iludir a impossibilidade de cessão do próprio direito legal de preferência em que se consubstancia, afinal, a dita remição – em função da qual os bens seriam transmitidos ab origine, não ao próprio remidor, mas a um terceiro, que seria, afinal, o verdadeiro e real adquirente dos bens remidos. III. Não podendo inferir-se do regime legal em vigor qualquer dever legal de manutenção, na sua titularidade, dos bens remidos – por a lei não prever e instituir um dever de indisponibilidade de tais bens pelo remidor - não pode considerar-se que – consumada a sua efetiva aquisição pelo próprio remidor (por indemonstrado qualquer fenómeno de interposição fictícia de pessoas) – traduz realização ínvia de um resultado legalmente proscrito a sua alienação a terceiros, no comércio jurídico, num prazo mais ou menos dilatado a contar do exercício do direito de remição – pelo que falta obviamente um pressuposto fundamental da figura da fraude à lei, perspetivada em termos objetivos”.
- STJ, 17.11.21, Relator, Conselheiro Manuel Capelo, Processo n.º 700/10.7TBABF.E3.S1: “I - A fraude à lei traduz a ideia de um comportamento que, mantendo a aparência de conformidade com a lei, obtém algo que se entende ser proibido por ela. II - A fraude à lei, em face da inexistência no nosso ordenamento jurídico de regra de índole geral que trate o conceito (para lá das referências, entre outras, nos arts. 21.º, n.º 2, 330.º, n.º 1, 418.º e 2067.º todos do CC), obtém-se pela via da interpretação da lei e do negócio jurídico no sentido de as situações criadas para evitar a aplicação de regras que seriam aplicáveis serem irrelevantes/ineficazes. III - Na verificação da existência de fraude à lei exige-se, como requisitos, a regra jurídica que é objeto de fraude (a norma a cujo imperativo se procura escapar); a regra jurídica a cuja proteção se acolhe o fraudante; a atividade fraudatória e resultado que a lei proíbe, pela qual o fraudante procurou e obteve a modelação ilícita de uma situação coberta por esta segunda regra, não sendo exigível a alegação e prova de intenção fraudatória. IV - Existe fraude à lei quando para evitar o cumprimento das exigências legais estabelecidas no regime do direito real de habitação periódica e no das cláusulas contratuais gerais, a ré celebra com os autores um contrato de adesão a uma associação e em que, como direito dos associados por força dessa adesão, passa a ser concedido o direito de utilização de determinadas suites em regime em tudo semelhante ao fixado no RGHP. V - À fraude à lei, que determina por regra a nulidade total do contrato, não é aplicável o regime da redução do negócio jurídico previsto no art. 292.º do CC que tem como exigências, para lá de ter de ser solicitada a nulidade (ou a anulação) parcial do contrato e existir vontade das partes no tocante ao ponto de redução, a invocação e prova por parte do interessado na redução dos factos de onde decorra a natureza meramente parcial da invalidade”.
Independentemente de se seguir uma perspetiva mais objetivista ou, ao invés, mais subjetivista, a fraude à lei pressupõe uma atuação lícita, em si mesma, que contorna outra norma, de natureza imperativa, conduzindo à obtenção de um resultado que, precisamente, a segunda norma proíbe.
No caso presente, parece-nos evidente que não estamos perante, ou a questão não se coloca em sede de fraude à lei: a alteração contratual levada a cabo pela recorrida estava prevista no contrato celebrado com a recorrente; afastada a invalidade dessa previsão, das cláusulas que permitiam a alteração contratual, a questão sempre haveria de resolver-se na interpretação das normas contratuais: a recorrida podia ou não podia alterar o contrato, em concreto aumentar o preço do fornecimento.
Não há, pois, que chamar o instituto da fraude à lei ou, o mesmo é dizer, não se verifica a nulidade que dele, a verificar-se essa fraude, existiria.
Entendemos, por tudo, que a decisão recorrida não merece reparo. O recurso mostra-se improcedente.
A apelante, atento o seu decaimento, é responsável pelas custas do recurso.
IV – Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se a sentença proferida em primeira instância.
Custas pela apelante.
Porto, 6.05.2024
José Eusébio Almeida
Mendes Coelho
Carlos Gil
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[1] Com o seguinte sumário: “I - Com o mecanismo para a fixação dos preços no Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL), previsto no Decreto-Lei n.º 33/2022, de 14 de Maio (MIBEL), o preço final a pagar pelo consumidor com contrato de fornecimento de eletricidade, com preço indexado ao mercado diário, é inferior ao preço que seria cobrado sem o funcionamento desse mecanismo ibérico. II - Aos contratos de fornecimento de energia elétrica, com preço fixo, celebrados antes de 26 de abril de 2022 , não é aplicável o custo do valor do ajuste de mercado, decorrente do regime previsto no Decreto- Lei n.º 33/2022, de 14 de maio para a fixação dos preços no Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL) uma vez que na contratação dos preços então fixados não foi tomado em consideração os efeitos da aplicação do mecanismo ibérico. IV - Renovados, após 26 de Abril, tais contratos de fornecimento de energia elétrica, com preço fixo, os consumidores finais titulares desses contratos deixam de beneficiar da isenção conferida pelo nº 2 do artigo 7º do Decreto- Lei n.º 33/2022, de 14 de maio, o mesmo sucedendo com os consumidores que tenham aceitado, após 6 de abril de 2022, a alteração do preço fixo para preço indexado ao mercado diário. V - Aceite a alteração do regime de preço fixo para preço indexado ao mercado, o consumidor final deixa de beneficiar da isenção conferida pelo nº2 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 33/2022 pois, o preço final a pagar com contrato indexado ao mercado diário é inferior ao preço que seria cobrado sem o funcionamento do mecanismo ibérico”.
[2] Com o seguinte sumário: “Aos contratos de fornecimento de energia elétrica, com preço fixo, celebrados antes de 26 de abril de 2022 , não é aplicável o custo do valor do ajuste de mercado, decorrente do regime previsto no Decreto- Lei n.º 33/2022, de 14 de Maio para a fixação dos preços no Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL), exceto se as partes acordarem na alteração do preço para um regime de Tarifa Bassic Index, momento a partir do qual o contrato fica sujeito ao MAT (mecanismo de ajuste temporário)”.
[3] Foi esse o raciocínio seguido pela primeira instância, no qual está, implícita, mas necessariamente, a questão da legalidade do aumento dos preços ou, melhor dito, e na perspetiva de quem exerceu o direito de resolução, o da sua ilegalidade.
[4] Como refere Ana Prata (Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, 2.ª Edição, Almedina, 2021, págs. 14/15) o “contrato de adesão pode caraterizar-se como aquele cujo conteúdo clausular é unilateral e rigidamente definido por um dos contraentes que o apresenta à contraparte, não podendo esta discutir qualquer das suas cláusulas: ou aceita em bloco a proposta contratual que lhe é feita, ou a rejeita e prescinde da celebração do contrato”.
[5] Acórdãos citados na conferência proferida pelo Senhor Conselheiro Manuel Capelo, Negócios Jurídicos em Fraude à Lei – Encontros de Jurisprudência: O negócio Jurídico. Lisboa: Supremo Tribunal de Justiça/ Centro de Estudos Judiciários, 2022 [Consult. 30 abr. 2024]. Disponível na internet: cej.justica.gov.pt/Link Click.aspx?fileticket=upWf7QeKYSQ%3D&portalid=30. ISBN: 978-989-9018-98-3.