ESCUSA
JUIZ CONSELHEIRO
IMPARCIALIDADE
DEFERIMENTO
Sumário


É fundamento bastante para o deferimento do pedido de escusa, a circunstância de o senhor conselheiro adjunto exercer funções na mesma secção que a senhora conselheira arguida naqueles autos.

Texto Integral

Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça,

1. O Colendo Juiz Conselheiro AA, a exercer funções na ... Secção deste Supremo Tribunal, solicitou escusa, nos termos do disposto no artigo 43º números 1 e 4 do Código de Processo Penal, para intervir como Adjunto nos presentes Autos.

2. Fundamenta tal pedido nos seguintes termos:

«- No identificado processo figura, entre outros, como denunciada, a senhora Dra. BB, juíza conselheira na ... Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça;

- Foi relativamente à denúncia/queixa contra ela apresentada que o Ministério Público proferiu o despacho de arquivamento parcial do inquérito a que a mesma dera lugar;

E foi desse despacho de arquivamento parcial que as assistentes reagiram mediante a apresentação do requerimento de abertura de instrução agora rejeitado e de que vem interposto o aludido recurso.

- Pese embora a senhora juíza conselheira BB não tenha sido constituída arguida pelo Ministério Público, ela passou a assumir essa qualidade com a apresentação do requerimento de abertura de instrução (art. 57º, nº 1, do C. Processo Penal);

- Nesta qualidade ou na de denunciada, a verdade é que a senhora juíza conselheira BB integra a referida ... Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, secção a que o requerente também pertence desde que tomou posse neste Tribunal, em ... de ... de 2023;

- Nos julgamentos na ... Secção o requerente tem sido adjunto ou tem tido como adjunta a senhora juíza conselheira BB, por aplicação das leis do processo e de acordo com as regras de distribuição diária vigentes, em função das quais, integraram, integram e continuarão a integrar, quando a sorteio assim o ditar, o mesmo coletivo;

- É facto notório que entre os membros do coletivo que em cada secção julga os processos que lhe são distribuídos há, por esse motivo, um contacto permanente e necessário, para troca de impressões e debate de questões jurídicas suscitadas nos processos, quer presencialmente, quer pelos mais variados meios de comunicação disponíveis, quer, também, por contacto pessoal;

- Este relacionamento próximo e constante verifica-se, natural e inevitavelmente, entre o requerente e a senhora juíza conselheira BB desde o início do conjunto de funções que derivaram da sua colocação na referida ... Secção Criminal;

- Ambos participando nos trabalhos comuns no mesmo dia das sessões, em geral uma vez por semana, à quinta-feira, mantendo desde então uma sã convivência e um relacionamento amistoso (tratando-se pelo nome, almoçando juntos, com os demais elementos da secção, tendo uma relação afetuosa e cordial);

- Neste contexto, admite o requerente que se considere – tal como já sucedeu relativamente a outros conselheiros a quem anteriormente foi deferido idêntico pedido de escusa [cf. apensos A), B), C e D)] –, que para a comunidade em geral e para a comunidade jurídica em particular, uma decisão do requerente, mesmo colegial, desde que favorável à senhora conselheira BB, e por mais fundada e fundamentada que se mostre, corre, ainda assim, um sério risco de ser por elas olhada com desconfiança por, no seu entender, ser tendenciosa e parcial, dado ter sido proferida por quem sempre trabalhou a seu lado no Supremo Tribunal de Justiça, discutindo e deliberando permanentemente sobre todos os processos por ambos relatados, o que continuará, aliás, a suceder nos processos em que, em resultado da distribuição, devam intervir, respetivamente, como relatores ou adjuntos;

- Esta situação, sendo desconfortável, não afeta a capacidade do signatário para apreciar e decidir as questões colocadas no presente processo de forma objetiva e isenta;

-Porém, constitui, pelo menos no plano das representações da comunidade – ampliadas pela crescente mediatização da intervenção processual dos conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça –, motivo sério e grave suscetível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão, se favorável à denunciada/arguida.

Pelo exposto, requeiro a V. a Exa. que se digne escusar-me de intervir no presente processo em que é denunciada/arguida a Senhora Juíza Conselheira BB.»

3. Com base no teor da petição de escusa do Colendo Conselheiro AA, consideramos assentes os factos constantes da mesma.

Inexiste, pois, necessidade de ordenar quaisquer diligências para produção de prova com vista à prolação da decisão.

4. Colhidos os Vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

5. O artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Independência”, estatui que “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”, a qual é assegurada, além do mais, pela sujeição dos juízes à lei, a sua inamovibilidade e imparcialidade. Esta mesma independência e imparcialidade é também uma exigência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem para a materialização de “um processo equitativo” (artigo 6º, nº1).

As garantias de imparcialidade do juiz, em matéria criminal, estão densificadas no artigo 39º e seguintes do Código de Processo Penal, através de - impedimentos, tipificados na lei (artigos 39 e 40º); - recusa desencadeada pelo Ministério Público, assistente, arguido ou partes civis (artigo 43º) - escusa, desencadeada pelo próprio juiz (artigo 43º, nº 4).

O artigo 43º, nº 4 do Código Processo Penal estatui que o juiz não pode, “(...) declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2”, isto é, desde que se verifiquem os pressupostos de recusa.

Em relação à recusa, o n.º 1 do mesmo preceito dispõe que, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

O que está em causa nos incidentes de recusa ou escusa são questões de “desconfiança” sobre a “imparcialidade” do juiz, as quais devem ser sérias e graves para poderem levar o decisor a postergar o preceito constitucional do “juiz natural”, consagrado no n.º 9 do artigo 32.º, segundo o qual “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.

Na verdade, sendo o princípio do “juiz natural” uma garantia fundamental do processo criminal, estritamente conexa com os direitos de defesa1 e com um julgamento justo e equitativo, dificilmente se perceberia que uma qualquer suspeita de imparcialidade,2 pudesse desencadear o deferimento de um pedido de recusa ou escusa os quais, em tais circunstâncias, poderiam traduzir-se numa fraude à lei e ao afastamento do referido princípio. É neste contexto que o legislador exige que o motivo invocado seja “sério e grave” e ao mesmo tempo adequado a gerar a desconfiança.

Exige-se assim, para além da gravidade e seriedade, um nexo causal entre o motivo invocado e desconfiança que o mesmo gera sobre a imparcialidade do juiz.

É tendo por base esta matriz fundadora e estruturante do princípio do “juiz natural” em matéria e garantias de processo criminal, que o seu afastamento apenas se concebe em situações de excepção, garantindo assim que o juiz do processo está pré-determinado segundo as regras de competência anteriormente estabelecidas nas leis do processo e nas leis de organização judiciária. Visa-se evitar os juízes “à la carte” ou tribunais “ad hoc”, historicamente vistos como parciais e típicos de um Estado não democrático.3

A imparcialidade exigida ao titular do poder judicial, pode ser encarada em duas dimensões: - objectiva (apreciação de terceiros/comunidade sobre a situação concreta) e/ou - subjectiva (interesse pessoal do juiz no processo).

A este propósito, Germano Marques da Silva, considera que a imparcialidade “pode apreciar-se de maneira subjectiva e objectiva. Naquela perspectiva, significa que o juiz deve actuar com serenidade, sem paixão, pré-juízo ou interesse pessoal; nesta, na perspectiva objectiva, que nenhuma suspeita legítima exista no espírito dos que estão sujeitos ao poder judicial”, ou seja, “à imparcialidade íntima das pessoas deve juntar-se a imparcialidade aparente do sistema” (Curso de Processo Penal, Vol. I, Edição de 2000, página 233).

Inexistindo critério legal para se aferir do que é um “motivo sério e grave” e sendo a norma, uma norma em branco, a necessitar de densificação jurisprudencial, a mesma deve ser feita e aferida em função do conceito de “cidadão médio”, das regras de senso e experiência comum.

Estamos, pois, em presença de uma questão, não de natureza subjectiva relacionada com o pensamento, convicção, preconceito ou pré-juízo do Juiz perante a situação concreta em análise, mas, antes, perante uma questão de natureza objectiva, isto é, uma situação que aos olhos da comunidade e tendo em atenção os critérios anteriormente referidos, não pode deixar qualquer dúvida, sobre a imparcialidade do Juiz na sua actuação processual.

Nesta vertente objetiva, esse hipotético motivo de dúvida das assistentes é suficientemente sério e grave para poder suscitar dúvida também ao comum dos cidadãos, sobre as condições de o requerente garantir aos seus olhos a objetividade e independência necessárias à função de Adjunto num recurso em que é arguida a Colenda Conselheira BB, a qual exerce funções na mesma secção, da qual é amigo e com a qual priva funcionalmente.

Não está em causa a capacidade e certeza, de o requerente actuar dentro da legalidade, objetividade e independência, mas, antes, a defesa de todo o sistema de justiça da suspeita de a não ter conservado e não dar azo a qualquer dúvida, reforçando, por esta via, a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados.

Por uma questão de coerência e uniformidade jurisprudencial, atenta a qualidade de adjunto nesse outro apenso do mesmo processo, em que é relatora a Colenda Conselheira CC e com a qual concordamos, permitimo-nos transcrever o acórdão por si relatado: “(…) no presente caso e neste mesmo processo, o Supremo foi já chamado a pronunciar-se sobre idêntico objecto de decisão.

Assim, no acórdão do STJ de 21.02.2024 (rel. Teresa Féria de Almeida), proferido neste processo e em situação idêntica à presente, decidiu-se conceder a escusa peticionada pelo senhor conselheiro relator do recurso ora em causa, justificando-se que “a valoração objetiva dos factos em apreço – o exercício de funções na mesma Secção Criminal deste Tribunal e a composição do Coletivo a que estão adstritos o requerente e a visada nos Autos – determina necessariamente que exista uma séria possibilidade de uma forte suspeição sobre a isenção e imparcialidade da decisão a proferir pelo requerente”, e rematando-se que “outra conclusão se não impõe que não seja a de considerar como justificada e legítima a escusa apresentada.”

No acórdão do STJ de 29.03.2023 (rel. Teresa Féria de Almeida) proferido igualmente neste processo, fora já decidida a concessão da escusa peticionada pelo senhor juiz conselheiro a quem o processo fora distribuído, então para a instrução, juiz conselheiro que integrava também a ... secção criminal.

No acórdão do STJ de 22.06.2023 (rel. José Eduardo Sapateiro), voltou a ser concedida a escusa peticionada pelo senhor juiz conselheiro a quem o processo foi redistribuído para instrução, juiz conselheiro que integrava igualmente a ... secção criminal.

Aqui se justificou:

“I. Não estando em dúvida as qualidades de objetividade, isenção e imparcialidade que o Juiz Conselheiro escusante possui como juiz de direito e que consolidou ao longo de uma experiência de várias décadas de exercício de funções jurisdicionais, também não se pode ignorar a relação judiciária e pessoal que existe entre aquele e a Juíza Conselheira e que tem de ser aqui devidamente pesada e pensada, pelas repercussões negativas [apesar de injustas e infundadas] que poderão ter na percepção enviesada da marcha dos autos em questão por parte dos assistentes e de terceiros e na inerente distorção da ideia e da imagem de independência e isenção da Justiça.

II. Esse quadro de proximidade constante e quase quotidiana, quer em termos profissionais, como pessoais - por referência à distribuição que foi feita ao aqui requerente e escusante do referido processo criminal, que, por força do pedido de abertura da instrução, se mostra ainda pendente e tem como visada a Juíza Conselheira -, é suscetível de gerar uma considerável, expectável e duradoura perturbação, desconfiança e suspeição, quer internamente, entre os queixosos/assistentes e respetivos mandatários judiciais, como externamente, nos órgãos de comunicação social e no seio da opinião pública.

III - O convencimento mais ou menos comum de que a referida instrução, a manter-se a distribuição do respetivo processo ao aqui escusante, será conduzida em moldes parciais, tendenciosos, favoráveis à posição processual da Juíza Conselheira por parte do Requerente é um risco efetivo que não pode ser aqui ignorado, desconsiderado ou desvalorizado.

IV - Tal perigo é agravado pela qualidade dos ofendidos, pelo objeto da instrução criminal, pela qualidade da pessoa visada, pela cobertura que é feita pelos media e pelo interesse da população em geral.

V - A escusa da intervenção do Juiz Conselheiro deste Supremo Tribunal de Justiça na fase de instrução do processo criminal instaurado na sequência de queixa feita contra a Juíza Conselheira tem de ser deferida, por ser manifesto o risco de aquela ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”

No acórdão do STJ de 28.09.2023 (rel. Agostinho Torres), voltou a ser concedida a escusa peticionada pelo senhor juiz conselheiro a quem o processo foi então, e de novo, redistribuído para instrução, juiz conselheiro que integrava igualmente a ... secção criminal.

E aqui se justificou que “no caso dos presentes autos de escusa a valoração objetiva dos factos em apreço - o exercício de funções na mesma Secção Criminal deste Tribunal e a composição do Coletivo a que estão adstritos o requerente e a visada nos Autos - determina necessariamente que exista uma séria possibilidade de uma forte percepção comunitária de suspeição sobre a isenção e imparcialidade da decisão a proferir pelo requerente.

Sendo assim, por existência de fundamento suficiente para tal, defere-se, sem mais, o pedido de escusa do Juiz Conselheiro deste Supremo Tribunal de Justiça.”

No caso presente, o senhor juiz conselheiro vem deduzir o incidente de escusa com um fundamento que, neste mesmo processo e num quadro de inteira similitude, o Supremo tem vindo sempre a considerar como configurando uma situação concreta e objectivamente atendível, por os motivos da escusa se revelarem suficientemente graves e sérios, atentos os princípios gerais a que se fez inicialmente alusão, e as razões já concretizadas em todos os acórdãos citados.

Na verdade, a ligação profissional e pessoal existente entre o senhor juiz conselheiro requerente e a senhora juíza conselheira visada na instrução, que aquele detalhadamente descreve no pedido que formula, independentemente de o mesmo senhor juiz conselheiro se considerar ou não afectado na sua imparcialidade (acreditando-se seriamente que o não esteja), pode ser tida como ligação da pessoa do julgador a um dos “lados” do processo. Circunstância que é susceptível de ser vista como adequada a poder influenciar a imparcialidade do juiz no caso concreto.”

Também neste processo, pelas mesmas razões, constitui fundamento de escusa.

Esta perspectiva e preocupação com a salvaguarda da imagem do Juiz aos olhos da comunidade, assente numa ideia de equidistância em relação aos intervenientes processuais, é uma das pedras basilares da imparcialidade e do julgamento justo e equitativo a que todo o cidadão tem direito e que a Constituição e a lei exigem e asseguram.

Existe, pois, do ponto de vista objectivo, apreciado pelo cidadão médio, motivo sério e grave, conforme exige o artigo 43.º n.º 1 do Código de Processo Penal, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do requerente, que justifica o seu afastamento do processo, afigurando-se-nos por adequado ser de conceder o solicitado pedido de escusa, em “coerência dos acórdãos do Supremo anteriormente proferidos, nos precedentes pedidos de escusa, formulados com idêntico(s) fundamento(s)”.

Nesta conformidade, outra conclusão se não impõe que não seja a de considerar como

justificada e legítima a escusa apresentada.

6. Termos em que se acorda em deferir o pedido de escusa apresentado.

7. Sem tributação.

Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Fevereiro de 2024.

Antero Luís (Relator)

Ana Barata de Brito

Pedro Branquinho Dias

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1. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Abril de 2003, proc. nº 1075/03.

2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-01-2015, Proc. 1969/10.2TDLSB.L1-A.S1, in www.dgsi.pt

3. Neste sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª edição, pág. 207; Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º vol., pág. 322 e segs.e ainda, por todos acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-12-2004, Processo n.º 4540/2004 in www.verbojuridico.net