RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO AO PROCESSO
IRRECORRIBILIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I - Não recorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação que mantém prisão preventiva quando, logo aquando do primeiro interrogatório, foi aplicada ao arguido e ora Recorrente, pelo Juiz de Direito em funções de JIC, essa mesma medida de coação;
II - Não desconformidade dessa interpretação do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP com as normas e princípios constitucionais, designadamente no que concerne ao direito de defesa e recurso, previstos nos arts. 18.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da CRP.

Texto Integral






ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:


A - Relatório


A1. AA, arguido e ora recorrente, com a identificação dos autos, interpõe recurso para este Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 9 de janeiro de 2024, que, revogando decisão proferida pela primeira instância, determinou que o arguido aguardasse o prosseguimento do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva.


A2. São, há muito, doutrina e jurisprudência pacíficas (cfr., v.g., Germano Marques da Silva, Curso de Direito Processual Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V e Acórdão do STJ de 28 de abril de 19991 e Acórdão do Pleno do STJ nº 7/95, de 19 de outubro de 20232) que, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, da apreciação das questões de conhecimento oficioso.


Ora, o recorrente termina a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição integral):


“I-) O despacho da 1ª Instância, revogado pela decisão recorrida, está devidamente fundamentado na superveniência das circunstâncias que o justificam;


II-) O perigo de perturbação do decurso do Inquérito e para a aquisição e conservação da prova, está afastado pelo decurso do Inquérito;


III-) E os perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas estão objectiva e fortemente diminuídos, por se tratar de uma actividade habitualmente sazonal, que se faz sentir no período estival;


IV-) Perigos esses que, actualmente, objectivamente desapareceu o primeiro e estando o segundo fortemente diminuído;


V-) São circunstâncias supervenientes que justificam a alteração da medida de prisão preventiva para obrigação de permanência na habitação, com controlo electrónico;


VI-) O Acórdão recorrido violou os artigos 204° e 212°, n° 1, alínea b), do CPP.”


A3. Na resposta apresentada junto do Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público defendeu que o recurso devia ser rejeitado e que, caso assim não acontecesse, devia ser provido, apresentando, para o efeito, as seguintes conclusões: (transcrição integral)


“I – Nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP não é admissível recurso de decisões das Relações proferidas em recurso que não conheçam, a final, do objeto do processo, sendo que a única exceção a esta regra, em resultado da alteração introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21/12, diz respeito a decisões que apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, verificados que sejam os seguintes pressupostos: que sejam decisões inovadoras, isto é, que aplicam uma medida nova, não anteriormente aplicada, e que em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além do termo de identidade e residência previsto no art.º 196.º do CPP.


II) – No caso dos autos, a única questão que se discute diz respeito ao estatuto coativo do arguido, sendo que a medida de prisão preventiva aplicada pelo Tribunal da Relação de Guimarães não é nova, pois já tinha sido aplicada na primeira instância, aquando da detenção do arguido.


III) – Conclui-se, pois, pela inadmissibilidade do recurso que, como tal, deverá ser rejeitado (art.ºs 400.º, n.º 1, al. c), 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, al. b), todos do CPP).


Caso assim se não entenda:


IV) – Pese embora a enorme gravidade da conduta do arguido – integrativa da prática de nove crimes de incêndio florestal, previstos no art.º 274.º. n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal, punidos com pena de prisão de 3 a 12 anos – constata-se que as circunstâncias que determinaram a aplicação da prisão preventiva se alteraram substancialmente, porquanto:


- na altura (julho de 2023), estávamos em plena época estival, com condições climatéricas propícias à propagação de incêndios florestais, o que não sucede agora;


- o alarme social normalmente associado a este tipo de criminalidade mostra-se esbatido nesta época do ano;


-o perigo de perturbação do decurso do Inquérito apresenta-se significativamente atenuado, uma vez que o Inquérito se encontra em fase terminal de investigação, tendo já sido realizadas praticamente todas as diligências pertinentes.


V) – Neste cenário, afigura-se-nos que as exigências cautelares do caso poderão ser asseguradas através da medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica que, de resto, já está a ser cumprida desde 27/10/2023, aparentemente sem qualquer contratempo.”


A4. No seu mui douto parecer, o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto junto deste Supremo Tribunal de Justiça adere à tese da irrecorribilidade da decisão ora em apreço consignando, designadamente, o seguinte:


“Acompanha-se, no presente parecer, a questão prévia colocada pelo Ministério Público junto do tribunal a quo, no sentido da irrecorribilidade da decisão ali proferida.


Na verdade, parece-nos claro o artº 400º do CPP ao excluir a possibilidade de recurso nestes casos, nomeadamente a sua alínea c) quando ali se refere não ser admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo. É o caso – estamos apenas perante uma decisão judicial em sede de recurso que versa sobre questão interlocutória, que não perante decisão que tenha versado sobre decisão final, questão que só surgirá posteriormente, eventualmente após o julgamento do arguido.


E, note-se, no presente caso nem nos podemos socorrer da segunda parte do preceito, quando ali se refere uma exceção àquela regra geral -- o caso de a decisão da Relação ter aplicado medida coativa ou de garantia patrimonial, de forma inovadora, e mesmo assim quando em 1ª instância se tenha decidido não aplicar qualquer medida que não a do simples termos de identidade e residência: isso não sucedeu, pois que foi logo aplicada medida de coação, e logo a de prisão preventiva, como se viu atrás.


Assim sendo – e a isso não obsta o facto de ter sido o recurso admitido (artº 414º, nº 3, do CPP) – entende o Ministério Público que o recurso não deverá prosseguir termos, antes sendo, pelo Colendo Senhor Juiz Conselheiro Relator, dentro dos poderes que a lei lhe confere, SUMÁRIAMENTE REJEITADO, nos termos e ao abrigo do disposto nos artºs. 400º, nº 1, al. c), a contrario, 414º, nº 2 e 417º, nº 6, al. b), do Código de Processo Penal.”


A5. Devidamente notificado nos termos do disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente apresentou a seguinte resposta (transcrição integral):


“O recorrente não desconhece o texto vigente da alínea c), do artigo 400º, do C.P. Penal.


Nem desconhece a atual redação do artigo 219º, que continua a admitir o recurso das decisões que apliquem, substituam ou mantenham as medidas de coação, mormente as de prisão preventiva.


A questão não está na literalidade da lei contida na alínea c) do artigo 400º do C.P. Penal.


Mas sim no direito constitucional ao recurso, pelo menos em menor grau, de uma decisão desfavorável ao arguido, designadamente, que lhe impõe a prisão preventiva;


O que está em causa é pura questão de direto de se apreciar, com os factos assentes pelas instâncias, se o Tribunal da Relação de Guimarães aplicou ou não a medida cautelar exigível ou se a mesma não era exigível;


Tanto mais que o MP, promotor da ação penal, defendeu o contrário do decidido.


A eventual rejeição do recurso ao abrigo da literalidade da segunda parte da alínea c), do nº1 do artigo 400º do C.P. Penal, torna esta norma inconstitucional, por violar os direitos de defesa e recurso, por violação dos artigos 18º, nºs 1 e 2 e 32º, nº1 da Constituição da República Portuguesa


De referir ainda que o princípio da reserva do Supremo Tribunal de Justiça às decisões de direito não se pode sobrepor ao princípio constitucional do recurso, ainda mais, que os factos atinentes são públicos e notórios, e publicados diariamente pelo IPMA.


Termos em que deve conhecer-se do recurso e julgá-lo procedente.”


B - Fundamentação


B1. O despacho inicial que aplicou a prisão preventiva


Apresentando um relato cronológico da tramitação do processo começaremos por referir que AA foi detido, por ordem de autoridade de polícia criminal, no dia 11 de julho de 2023 e apresentado, pelo Ministério Público, ao Juiz de Direito em exercício de funções de Juiz de Instrução Criminal no Juízo Local Criminal ... – Comarca de Braga –, no dia 13 de julho, para primeiro interrogatório e aplicação das adequadas medidas de coação.


Na sequência desse interrogatório, o Juiz de Direito em exercício de funções de Juiz de Instrução Criminal proferiu a seguinte decisão: (transcrição integral)


“Decisão:


Nestes termos, tendo em atenção tudo o acima dito e sem necessidade de ulteriores considerações, e ao e nos termos do disposto nos artigos 191.º, 193.º, 195.º, 202.º e 204.º, alíneas b) e c) todos do C.P.P. determino que o arguido AA aguarde os ulteriores termos processuais sujeito:


- Às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, já prestado nos autos;


-À medida de coacção de prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos 191º, 193.º, 196.º, 204.º alínea b), e c), e 202.º, todos do CPP.”


B2. O despacho que substituiu a prisão preventiva por OPHVE


Posteriormente, através de requerimento entrado a 25 de setembro de 2023, veio o arguido, ao abrigo do disposto nos artigos 212º, nº 1, alínea b) e nº 3, 200º, nº 1, alínea e) e 201º, nº 3, todos do Código de Processo Penal, solicitar “(a) substituição da medida de prisão preventiva pela proibição de ser portador de qualquer instrumento de ignição de fogo, proibição de circular fora dos leitos das estradas e caminhos públicos, com controlo eletrónico, fundamentando tal pedido nos artigos.”


Perante este pedido e não obstante a oposição do Ministério Público o Juiz de Direito em exercício de funções de Juiz de Instrução Criminal proferiu, a 10 de outubro de 2023, a seguinte decisão (transcrição Integral):


“Termos em que decido que o arguido AA aguarde os ulteriores termos processuais sujeito, cumulativamente, às seguintes medidas de coacção:


- Termo de identidade e residência, já prestado nos autos a fls. 96;


-A obrigação de permanência na habitação com sujeição a vigilância electrónica, caso a DGRSP confirme que o mesmo reúne condições técnicas para efectivar tal medida, sendo que em caso negativo se manterá o mesmo então a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva.”


B.3.O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães recorrido


Inconformado com esta decisão, dela recorreu o Ministério Público, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães proferido o acórdão ora recorrido o qual, revogando a decisão da primeira instância, determinou que o arguido se mantivesse em prisão preventiva durante os ulteriores termos do processo.


Tal acórdão mostra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição parcial):


“4. Apreciemos, então, a questão que constitui objeto do recurso, enunciada supra.


Após o interrogatório a que alude o artigo 141.º do Código de Processo Penal, foi proferido despacho judicial que aplicou ao arguido a medida de coação de prisão preventiva, por existirem fortes indícios da prática de nove crimes incêndio florestal, previsto e punido pelo artigo 174º nº 1, e nº 2, alínea a) do Código Penal, e se continuam a verificar-se, ou não, os perigos de continuação da atividade criminosa, de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para aquisição e manutenção da prova e existir perigo de perturbação e tranquilidade públicas.


O arguido não questionou o teor do despacho que, na sequência do seu primeiro interrogatório judicial, lhe aplicou a medida de coação de prisão preventiva, do qual não recorreu.


Insurge-se o Ministério Público contra o despacho recorrido, que alterou o regime coativo que havia sido aplicado ao arguido, de prisão preventiva para OPH sujeito a VE, alegando que o mesmo viola o princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade impostos no artigo 193, n.° 1 do CPP, e ainda o disposto no artigo 204° do CPP.


Entendendo, por isso, que o despacho recorrido deverá ser revogado.


Como se depreende da motivação e das conclusões do recurso apresentados pelo recorrente, o que pretende é questionar o despacho proferido em reexame da medida de coação aplicada na sequência do 1º interrogatório judicial do arguido, manifestando o entendimento de que continuam a existir os indícios de que os factos que aí são imputados foram por este perpetrados, bem como que se mantêm os pressupostos que conduziram à aplicação ao arguido da medida de prisão preventiva.


Vejamos.


No despacho recorrido entendeu-se:


“(…)


Dito isto, e tudo visto, quer-nos parecer que, se por um lado, a privação da liberdade do arguido ainda se impõe, atento o perigo de continuação da actividade criminosa e alarme social associado aos crimes aqui em discussão, não sendo possível substituir a medida de coacção de prisão preventiva por outra medida de coacção não privativa da liberdade, designadamente nos moldes requeridos pela defesa, por tal não acautelar devidamente os perigos que aqui ainda se fazem sentir, será por outro lado, face ao acima enunciado, actualmente bastante, adequado e proporcional sujeitar o arguido à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com recurso a vigilância electrónica-como por si requerido em sede de interrogatório e para o que deu consentimento-, pois estando a investigação praticamente concluída, se afigura que, ficando o arguido privado da liberdade e confinado ao seu espaço de habitação, no que é controlado com vigilância electrónica, se responde de forma bastante e cabal às necessidades cautelares que actualmente se fazem sentir, assim se respeitando o P. da necessidade, adequação e proporcionalidade que presidem à sua aplicação-com efeito não se deve olvidar que uma medida de coacção não se confunde com uma execução antecipada da pena, servindo propósitos próprios-sendo que, neste caso, o arguido é primário, tendo em fases anteriores do processo chegado até a colaborar com a PJ na reconstituição dos factos” Sublinhado nosso


Cumpre então, averiguar se se mantêm verificados os perigos aludidos no artigo 204.º do Código de Processo Penal, ou seja, os requisitos gerais de aplicação das medidas de coação, concretamente os que fundamentaram a opção pela aplicação daquela medida coativa, prisão preventiva, como é entendimento do recorrente, ou se, entretanto, se verificaram circunstâncias que conduzam à revisão da situação processual do arguido, e à aplicação de uma medida menos gravosa, concretamente da obrigação de permanência na habitação, com sujeição a vigilância eletrónica, como se decidiu no despacho recorrido.


A este respeito importa começar por mencionar o disposto no artigo 191.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que consagra o princípio da legalidade e da tipicidade das medidas de coação, do mesmo passo que afirma implicitamente o princípio da necessidade, ao estipular que só exigências processuais de natureza cautelar podem limitar, total ou parcialmente, a liberdade das pessoas.


O artigo 193.º, n.º 1 do mesmo diploma estabelece, por sua vez, os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade das medidas às exigências cautelares e da proporcionalidade à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.


O princípio da necessidade significa que a medida a impor deve ser estritamente necessária aos fins do processo.


O princípio da adequação significa que a medida a aplicar deve ser a mais ajustada, a mais idónea à satisfação das necessidades cautelares que o caso concreto requer.


O princípio da proporcionalidade significa que a medida escolhida deve ser conformada, deve ser harmónica quer com a gravidade do crime, quer com a pena que previsivelmente venha a ser aplicada.


No caso específico da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação há ainda que observar o princípio da subsidiariedade, também decorrência do princípio da presunção de inocência e do princípio da liberdade.


O carácter subsidiário da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação é acentuado no artigo 193.º do Código de Processo Penal, ao mencionar-se, no seu n.º 2, que “[a] prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação.”.


Condição necessária à aplicação da prisão preventiva é, pois, a inadequação ou insuficiência das seguintes medidas de coação: termo de identidade e residência (artigo 196.º); caução (artigo 197.º); obrigação de apresentação periódica (artigo 198.º); suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos (artigo 199.º); proibição de permanência, ausência e de contactos (artigo 200.º); e obrigação de permanência na habitação (artigo 201.º).


Como salienta o Prof. Germano Marques da Silva, «a lei estabelece uma certa progressão da gravidade das diversas medidas cuja diversa gravidade deve ser sempre tida em conta pelo juiz no momento da escolha da que julgue mais idónea a salvaguardar as exigências cautelares de cada caso.» (- Curso de Processo Penal, Volume II, 5ª edição, revista e atualizada, pág. 364).


A aplicação da medida de prisão preventiva – que é a mais gravosa das medidas de coação – depende, para além dos requisitos especiais da própria medida, da verificação, em concreto, de requisitos ou condições gerais enunciadas no artigo 204.º do Código de Processo Penal, ou seja:


«a) Fuga ou perigo de fuga;


b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou


c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.».


Estes requisitos ou condições gerais enumeradas taxativamente nas alíneas a), b) e c) do artigo 204.º do Código de Processo Penal, são alternativos, bastando que se verifique alguma destas situações para que, conjuntamente com os respetivos requisitos especiais, seja aplicada uma determinada medida de coação.


No caso dos autos, como decorre do despacho inicial, foi considerada a existência dos perigos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 204.º relativamente ao arguido.


Como se infere do despacho impugnado, continuam a verificar-se, em concreto, dos perigos previstos na alínea c) do artigo 204.º do Código de Processo Penal, o de continuação da atividade criminosa atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, tendo, no entanto, deixado de persistir o perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo e para a aquisição, conservação ou veracidade da prova.


Atenta a especificidade dos crimes indiciados, incêndios florestais, e mantendo-se os perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, afigura-se-nos que a prisão preventiva continua a manter-se como medida indispensável para assegurar as exigências cautelares requeridas pelo caso em apreço e mostra-se proporcional à gravidade do ilícito e à pena que previsivelmente virá a ser definitivamente aplicada, sendo certo que em crimes da natureza dos em causa nos autos, e face ao número de vezes em que o ilícito indiciado foi cometido, a medida de coação aplicada inicialmente é a que se revela mais adequada, suficiente e proporcionada para satisfazer aquelas exigências cautelares.


De qualquer forma, tem-se entendido que as medidas de coação, maxime a prisão preventiva, encontram-se sujeitas à condição rebus sic stantibus (“estando as coisas assim"), ou melhor dito, ao princípio do caso julgado rebus sic stantibus, o qual significa que, embora as decisões judiciais que apliquem medidas de coação, como quaisquer outras, transitem em julgado, porém, dada a peculiar natureza das exigências que as justificam e a presunção de inocência do arguido, neste domínio, a eficácia do caso julgado não é absoluta, dependendo da rigorosa manutenção dos pressupostos da respetiva decisão.


Assim, as medidas coativas podem e devem ser revistas e modificadas desde que se verifique que foram decretadas fora das condições legais ou desde que ocorra uma posterior alteração das circunstâncias que as justificaram (art. 212º, n.ºs 1, al. b), e 3) do CPP.


Como assinala Paulo Pinto de Albuquerque [In Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Portuguesa, 3ª edição atualizada, pág. 550, onde é citada vária jurisprudência], do referido princípio resultam duas consequências práticas.


- A primeira traduz-se no seguinte: permanecendo inalterados os pressupostos da medida de coação e as exigências cautelares que a determinaram, ela não pode ser alterada.


- A segunda consiste nisto: se aquando do reexame dos pressupostos da medida de coação e, designadamente, da prisão preventiva, não se verificarem circunstâncias supervenientes que modifiquem as exigências cautelares ou alterem os pressupostos que determinaram a sua aplicação, basta a referência à persistência do condicionalismo que justificou a medida para fundamentar a decisão da sua manutenção.


Como tem sido entendimento constante, a decisão que impõe a prisão preventiva, apesar de não ser definitiva, é intocável e imodificável enquanto não se verificar uma alteração, em termos atenuativos, das circunstâncias que a fundamentaram, ou seja, enquanto subsistirem inalterados os pressupostos de facto e de direito da sua aplicação. – (Cf., entre os mais recentes, os acórdãos do TRL de 08-11-2016 (processo n.º 1028/15.1TELSB-5), 15-09-2016 (processo n.º 1005/12.4PBAMD-A.L1-9) e 28-01-2016 (2210/12.9TASTB-L.L1-9); do TRP de 20-11-2013 (processo n.º 832/10.1JAPRT-A.P1); do TRG de 24-10-2016 (processo n.º 7/15.3GBBRG-E.G1) e 18-04-2016 (processo n.º 1131/15.PBGMR.G1); do TRC de 26-06-2013 (processo n.º 40/11.4JAAVR-K.C1); do TRC de 06-03-2013 (processo n.º 52/12.0GBNLS-F.C1); e do TRE de 21-06-2016 (211/13.9GBASL-N.E1), 14-04-2016 (processo n.º 23/13.0GBSTR-B.E1) e 19-01-2016 (processo n.º 276/15.9JALRA-A.E1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt


Embora neste domínio, excecionalmente, o princípio do caso julgado formal não vigore na sua plena dimensão, permanecem válidas as razões que desaconselham as decisões de sentido contrário perante situações de facto e de direito idênticas. Não existindo alterações relevantes ou significativas das circunstâncias que contribuíram para fixar a medida de prisão preventiva ao arguido, não pode o tribunal "reformar" tal decisão, sob pena de, fazendo-o, provocar a instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios, com inevitáveis reflexos negativos no prestígio dos tribunais e nos valores de certeza e segurança que constituem os verdadeiros fundamentos do caso julgado. (Cf. o acórdão do TRE de 03-02-2015 (processo n.º 321/14.5GDLLE-A.E1), disponível em http://www.dgsi.pt.)


Em resumo, o despacho judicial que aplique a prisão preventiva não é definitivo, mas a decisão deve permanecer imutável enquanto “tudo se mantenha igual”, isto é, sempre que posteriormente não se verifiquem circunstâncias, quer de facto quer de direito, que justifiquem a revogação ou a alteração da medida de coação.


Daqui decorre que o despacho proferido nos termos do art. 213º, como é o caso da decisão recorrida, destina-se unicamente a proceder à reapreciação dos pressupostos constantes do despacho que anteriormente determinou a aplicação da prisão preventiva e que a justificaram.


Como tal, a sua fundamentação tem por objeto, apenas, a análise de circunstâncias supervenientes cuja ocorrência possa abalar a sustentabilidade dos pressupostos que conduziram à aplicação da medida de coação, alterando-os, e por esta via, levando à sua substituição ou revogação.


Assim sendo, verdadeiramente, e não obstante tudo o dito supra, neste momento, não está em causa saber se a medida de coação de prisão preventiva imposta ao recorrente o foi em conformidade, ou não, com as exigências prescritas nos art.s 191º a 194º, 202º, n.º 1, al. a), e 204º, invocados no despacho que a decretou, situação que no caso não se coloca. O que importa averiguar é se, após o interrogatório judicial em que a mesma lhe foi aplicada, sobreveio algum facto ou circunstância que implique a insubsistência ou a diminuição das exigências cautelares que a justificaram.


No caso da prisão preventiva, o art. 213º, n.º 1, al. a), determina que o juiz proceda oficiosamente, pelo menos de três em três meses, ao reexame da subsistência dos seus pressupostos, exclusiva finalidade a que se destinou o despacho recorrido.


O art. 212º regula os casos de revogação ou de substituição da medida de coação por outra menos gravosa, prevendo o art. 203º a imposição de medida mais gravosa que a anterior.


No entanto, em ambos os casos a lei pressupõe sempre que algo mudou entre a primeira e a segunda decisão. Em caso algum pode o juiz, sem alteração dos dados de facto ou de direito, “repensar” o despacho anterior ou, simplesmente, revogar a anterior decisão na medida em que, também aqui, proferida a decisão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto ao seu objeto (art. 613º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil). (cfr. Ac. Rel. de Guimarães, de 03 de abril de 2017, in www.http://dgsi.pt)


No caso vertente, como vimos, o despacho que decretou a prisão preventiva fundou-se na existência de fortes indícios da prática pelo arguido de factos suscetíveis de o fazerem incorrer em crimes de incêndio florestal, bem como na verificação dos perigos de continuação da atividade criminosa, perturbação do decurso do inquérito e da paz e tranquilidade pública.


Decorre da lei que a insubsistência e a modificação das circunstâncias de facto e/ou de direito que subjazem à aplicação de medidas de coação impõem ao tribunal o dever de proferir nova decisão que obedeça às exigências legais, em face do novo condicionalismo, dando satisfação às exigências cautelares do caso concreto.


Assim, preceitua o artigo 212.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Código Processo Penal, ao prever a revogação, em caso de insubsistência das circunstâncias subjacentes à sua aplicação, e a substituição por outra medida menos grave ou por uma forma menos gravosa da sua execução, quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação, oficiosamente ou por impulso quer do Ministério Público quer do arguido. (Vd. Código Processo Penal Comentado, pág. 885, Os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, que regem a aplicação das medidas de coacção, impõem a adaptação das medidas de coacção à evolução das exigências cautelares, devendo elas ser substituídas no caso de menor exigência cautelar, ou revogadas, caso, não subsistam tais exigências. É a permanência e o grau destas exigências que serve permanentemente de padrão de avaliação da subsistência das medidas decretadas. As medidas de coacção são pois necessariamente precárias, na medida em que a cada momento devem ajustar-se às finalidades cautelares que visam salvaguardar, e portanto a todo o tempo podem ser alteradas ou revogadas.)


Relativamente à prisão preventiva e à obrigação de permanência na habitação a lei determina ainda o reexame oficioso da subsistência dos seus pressupostos, com vista a decidir sobre a respetiva manutenção, substituição ou revogação, no prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame, bem como em certas fases processuais, nos termos do artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. (Cfr. Código Processo Penal Comentado, pág. 886, A obrigação de reexame periódico oficioso, por parte do juiz, dos pressupostos da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação constitui uma importante garantia de defesa dos direitos do arguido, já que esse reexame oficioso nunca poderá levar à agravação da medida de coação, e justifica-se essencialmente, pela já assinalada precariedade das medidas de coacção, que determina a necessidade de adequar, ao longo da tramitação processual, as medidas de coação à situação do processo.)


No cumprimento deste dispositivo legal, no despacho recorrido, ao alterar a medida coativa inicialmente aplicada, a Exma. Srª Juíza a quo reafirma a manutenção de dois daqueles pressupostos de facto e de direito, mas, entendendo pela existência de novos factos, pela alteração de uma das circunstâncias que fundamentou a opção pela medida de prisão preventiva, concretamente por ter deixado de se verificar o perigo de perturbação do decurso do inquérito e da aquisição de prova, conclui que se verificou uma atenuação das respetivas exigências cautelares. Tendo essa suposta atenuação sido entendida como suficiente para justificar a alteração da medida de coação.


Mas, como já se salientou, não existindo alterações relevantes ou significativas das circunstâncias que contribuíram para fixar a medida de prisão preventiva ao arguido, o tribunal não deve, não pode alterar a decisão anteriormente tomada.


Não sendo o despacho judicial que aplique a prisão preventiva definitivo, essa decisão deverá ser mantida se o essencial das circunstâncias que presidiram a essa decisão continuar igual, ou seja, sempre que continuem a verificarem-se as circunstâncias, quer de facto quer de direito, que justificaram aquela tomada de decisão. E, naturalmente, não ocorrer uma alteração relevante das mesmas que possa levar à revogação ou a alteração da medida de coação.


E assim acontece no caso vertente, porquanto após o despacho que aplicou a prisão preventiva ao arguido, nenhum facto ou circunstância, pelo menos que possamos considerar de relevante, ocorreu suscetível de alterar os pressupostos que a determinaram, sendo certo que as circunstâncias tidas como fundamento da alteração verificada no despacho recorrido não são, a nosso ver, e salvo o devido respeito por opinião diversa, suscetíveis de conduzir, fundamentar, semelhante alteração, uma vez que continuam a verificar-se, como é reconhecido naquele despacho impugnado, dois dos requisitos que determinaram a tomada de posição assumida inicialmente, quando do 1º interrogatório do arguido.


Senão vejamos.


O requisito de perigo de continuação da atividade criminosa, a que alude a alínea c) do artigo 204.º do Código de Processo Penal, será de se ter como verificado quando, atentas as circunstâncias do crime ou a personalidade do arguido, for de recear que este continue a praticar o crime pelo qual está indiciado.


Para o efeito torna-se necessário efetuar um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, atendendo às circunstâncias anteriores ou contemporâneas à sua indiciada atividade delituosa, juízo esse que deverá estar conexionado com a existência dessa conduta ilícita e não com quaisquer preocupações genéricas de defesa ou de alarme social, que sejam jurídico-penalmente neutras ou com situações de alarme social despidas de qualquer ilicitude.


A este respeito salienta o Prof. Germano Marques da Silva que a aplicação de uma medida de coação não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da atividade criminosa pela qual o arguido está indiciado e que pode justificar-se a aplicação de uma medida de coação se, atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido, for de presumir a continuação da atividade criminosa pela qual está indiciado no processo, esclarecendo, contudo, que continuação da atividade criminosa não significa continuação do mesmo crime, mas a prática de crimes análogos ou da mesma natureza pelos quais está a ser processado(Ibidem, pág. 359 e nota 1).


No caso em apreço, a natureza e gravidade do ilícito criminal que é imputado ao arguido, o concreto comportamento que lhe é atribuído (em que avulta o número de vezes, gravidade potencial e extensão dos incêndios florestais que provocou), o facto de estarmos em presença de um indivíduo com comportamentos desajustados, delituosos, que não controla, com manifesta propensão para a prática deste tipo de ilícitos, ainda por cima exercendo uma atividade destinada a combater precisamente os incêndios provocados, permite afirmar a existência de uma personalidade desviante, com forte tendência para a prática desse tipo de ilícitos, verificando-se, em concreto, um sério perigo de continuação da atividade criminosa, face à incontrolabilidade manifesta dos impulsos criminosos, que o assaltam. Podendo afirmar-se, com alto grau de probabilidade, que estaremos na presença de um pirómano.


Em suma, tal como exarado no despacho recorrido, mostra-se verificado, em concreto, o perigo previsto na alínea c) do artigo 204.º do Código de Processo Penal.


Por último, atenta a especificidade do crime indiciado, e a já apurada personalidade do arguido, manifestada no elevado número de incêndios florestais que estão fortemente indiciados como tendo sido por ele praticados, a manifesta dificuldade em controlar os seus impulsos pirómanos e o facto de residir numa zona rural, próximo da área de mato e florestal, o que constitui incentivo à prática de novos factos, por se tratar de local onde é fácil a repetição dos comportamentos indiciados, entendemos que a retirada da liberdade ambulatória do arguido, através da obrigação de permanência na habitação, como é sua pretensão, e foi decretado no despacho recorrido, não será suficiente para assegurar as exigências cautelares requeridas pelo caso em apreço, e mostrar-se-ia desadequada e não proporcional à gravidade dos ilícitos e à pena que previsivelmente virá a ser aplicada. Sendo certo que a prisão preventiva que lhe foi inicialmente aplicada, sempre se mostra a única adequada, ajustada e proporcionada para a situação concreta deste arguido.


Neste caso, cremos que a medida de coação ora impugnada, de OPH,, com VE, não iria satisfazer as exigências do presente caso relativamente ao arguido.


Por um lado, pela conotação junto da comunidade da continuação da assunção de comportamentos tendentes à prática do crime de incêndio, no caso florestal, e do alarme social e perigo para comunidade daí decorrente.


Por outro, e principalmente, pela circunstância de, mesmo com controlo de vigilância eletrónica, a permanência em habitação não permitir garantir que o arguido não promova todas as diligências para prosseguir a atividade criminosa, continuando a incendiar matos ou zonas florestadas que podem desencadear em incêndios florestais de grande dimensão, com consequências imprevisíveis não só nessas áreas como nas habitações e outras edificações localizadas nas redondezas do local onde vive.


Assim, perante tal situação e tendo em conta o tipo de crime em questão, manifestamente se torna insuficiente e inadequada qualquer outra medida de coação que não seja a prisão preventiva.


Não obstante o tribunal recorrido fundamentar a sua opção pela alteração da medida de coação da prisão preventiva para obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, concretamente por entender que já não se verificar o perigo de perturbação do inquérito e de recolha de prova, depois de apreciar e ponderar todos os factos indiciados, as especificidades concretas que envolvem a vida deste arguido, e a sua personalidade e propensão para assumir condutas como as em causa nos autos, bem como aos demais fatores acima enumerados, afigura-se-nos que dessa realidade se infere a existência de um perigo manifesto de o recorrente continuar a adotar comportamentos semelhantes, e a trazer em alvoroço a comunidade do local onde reside e populações vizinhas. Sendo certo que, a investigação que está a ser levada em sede de inquérito não está concluída, e até subsistem suspeitas de que o arguido possa ser o autor de outros crimes idênticos verificados na região, como se extrai do recurso intentado, o que coloca em questão que o fundamento que justificou a alteração decretada possa ser tido como seguro.


Sendo, pois, nosso entendimento que não estão reunidos pressupostos suficientes, que se tenha verificado uma alteração relevante dos motivos que conduziram à aplicação da prisão preventiva, para se alterar esta medida de coação, continuando a ser a única medida adequada à situação do recorrente.


Sendo certo que, neste crime de incêndio florestal e, muito especialmente, quando se reside nas proximidades de áreas florestadas, a alvitrada medida de coação de obrigação de permanência na habitação normalmente se revelar inadequada e insuficiente para satisfazer aquelas exigências cautelares, e, no caso vertente, esse perigo concreto mostra-se indiciariamente muito relevante, pelos motivos acima exprimidos, pelo que será insuficiente para acautelar os perigos apontados.


Sendo, pois, a prisão preventiva a medida que se afigura mais precavida, ajustada e proporcionada para o caso vertente.


Em conclusão, no caso vertente a medida de prisão preventiva é a que se mostra proporcionada e é a única adequada a realizar os fins em vista.


Pelo que, face ao exposto, o recurso interposto merece provimento.


*


III. DISPOSITIVO


Nos termos, e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido;


Mantendo-se o arguido a aguardar o prosseguimento do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva.


Custas pelo recorrente (…)”


B4. Do âmbito do recurso


O âmbito do recurso delimita-se, como já atrás se referiu, pelas conclusões do recorrente (artigos 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal) sem prejuízo, se necessário à sua boa decisão, da competência do Supremo Tribunal de Justiça para, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, (acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95 in D.R. I Série de 28 de dezembro de 1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do aludido artigo 410º) e de nulidades da sentença ( artigo 379º, nº do Código de Processo Penal).


No caso em apreço, o recurso tem por objeto o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, a 9 de janeiro de 2024, o qual:

• revogou a decisão de 10 de outubro de 2023, proferida pelo Juiz de Direito em exercício de funções como Juiz de Instrução Criminal, do Juízo Local Criminal ..., através da qual, na sequência de reapreciação das medidas coativas inicialmente aplicadas ao arguido, substituiu a medida de prisão preventiva pela de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância eletrónica;

• determinou que o arguido continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva.


Das conclusões apresentadas pelo arguido e ora recorrente resulta que este pretende a manutenção do despacho proferido na primeira instância, a 10 de outubro de 2023, porquanto, no seu entendimento, ocorreram circunstâncias supervenientes que justificam a determinada substituição da medida de prisão preventiva pela de obrigação de permanência na habitação, com controlo eletrónico.


E, para justificar tal posição, alega que, como bem se consigna na decisão da primeira instância:

O perigo de perturbação do decurso do Inquérito e para a aquisição e conservação da prova está afastado pelo decurso do Inquérito;

O perigo de continuação da atividade criminosa está fortemente diminuído / desapareceu, por se tratar de uma atividade sazonal, que se faz sentir no período estival;

E, pelas mesmas razões, o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas está fortemente diminuído.


C – Apreciação


Assim e em suma, a questão a apreciar no presente recurso é a de saber se, in casu, se justificava ou não revogar a decisão da primeira instância e determinar a manutenção da aplicação ao arguido e ora recorrente da medida coativa de prisão preventiva


C1. Questão prévia – A (i)rrecorribilidade do acórdão


Contudo, como referem o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães e o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto junto deste Supremo Tribunal de Justiça, antes de abordar a aludida questão coloca-se a questão prévia de apurar se o acórdão em apreço é suscetível de recurso para este Alto Tribunal.


Nos termos do disposto no artigo 432º do Código de Processo Penal:


Artigo 432.º


Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça


1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:


a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;


b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;


c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;


d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.


2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º


No caso dos autos, a questão que, concretamente, temos de, previamente, apreciar, é a de saber se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães é ou não suscetível de recurso nos termos do disposto no artigo 400º do Código de Processo Penal.


Estabelece esta norma o seguinte:


Artigo 400.º


(Decisões que não admitem recurso)


1 - Não é admissível recurso:


a) De despachos de mero expediente;


b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;


c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º;


d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;


e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;


f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;


g) Nos demais casos previstos na lei.


2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.


3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.


Voltando ao caso concreto, a norma que ora nos interessa é a que está inscrita na alínea c), do nº 1, do artigo 400º do Código de Processo Penal e, mais concretamente, a exceção que está estabelecida no último segmento desse preceito legal.


A atual redação desta alínea foi introduzida pela Lei n.º 94/2021, publicada no Diário da República n.º 245., 1.ª série, de 21 de dezembro, que foi aprovada por unanimidade na Assembleia da República e que entrou em vigor a 20 de março de 2022.


A propósito das alterações introduzidas por esse diploma no regime de recursos estabelecido no Código de Processo Penal escreveu Nuno Gonçalves, Juiz Conselheiro e Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, um artigo intitulado “Alterações ao Regime de Recursos Ordinários”, que consta a pág. 79 e sgs. do primeiro número de “A Revista”, publicada por este Alto Tribunal e que tem particular interesse para a decisão a proferir nos presentes autos.


Assim, logo na nota introdutória escreve o seguinte:


“A exata compreensão do sentido e alcance das alterações demandam atentar no respetivo processo legislativo, desencadeado com a apresentação no Parlamento, em 5 de maio de 2021, da Proposta de Lei 70/ XVI/2, do Governo3. Do “conjunto de propostas visando a promoção da resolução célere e eficiente dos processos-crime”, nenhuma respeitava ao regime dos recursos regulado no Código de Processo Penal. A medida estrela ali proposta, mas que não vingou, era a introdução da condenação negociada, habitualmente denominado por acordo de sentença, ali designado por “acordo sobre a pena aplicável”.


Confrontado com a proposta governamental, um dos partidos da oposição apresentou na Assembleia da República, em 11 de junho de 2021, o Projeto de Lei 876/XVI, propondo, para o que aqui releva, a modificação de normas de oito artigos do regime do recurso ordinário estabelecido no Título I, do Livro IX do Código de Processo Penal. Da respetiva exposição de motivos constava, relativamente às normas que vieram a colher normatividade, que as alterações projetadas tinham em “vista o reforço dos direitos do arguido a um processo justo, leal e equitativo” e também consagrar na “letra de lei a jurisprudência do Tribunal Constitucional, através dos seus acórdãos n.º 595/2018, de 13 de novembro, e n.º 31/2020, de 16 de janeiro, reafirmando o direito dos arguidos a recorrer, ao menos por uma vez, das decisões condenatórias após uma decisão absolutória da 1.ª instância.”


Com “igual raciocínio quanto às decisões do tribunal da Relação que, inovadoramente, apliquem pela primeira vez uma medida de coação ou de garantia patrimonial, quando a primeira instância não aplicou qualquer medida”, motivava-se a alteração ao art.º 400.º n.º 1 al.ª c) do CPP (Código ao qual pertencem as disposições que a seguir se indicam sem outra identificação).


Na sequência da discussão havida no seio da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, alcançou-se entendimento (no qual duas Senhoras Deputadas tiveram um papel determinante) que se traduziu num acordo tácito de retirada do aludido Projeto e daquela Proposta de lei, dando lugar a “um texto de substituição apresentado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias relativo à Proposta de Lei n.º 90/XIV/2.ª (GOV) e aos Projetos de Lei n.ºs 875/XIV/2.ª (PSD) e 876/ XIV/2.ª (PSD)”. Texto que foi aprovado, por unanimidade, na sessão plenária da Assembleia da República, e que uma vez publicado constitui a vigente lei n.º 94/2021.”


(…)


Agora, também admitem recurso para o Supremo Tribunal os acórdãos da Relação que, em recurso, aplicam medida de coação ou garantia patrimonial, quando a 1.ª instância não tenha aplicada nenhuma medida, com exceção da prevista no art.º 196.º do CPP.”


E, mais adiante, pronunciando-se especificamente sobre as alterações introduzidas na alínea c) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, escreve o seguinte (transcrição integral da anotação a esta norma):


“2.1 Na redação anterior da alínea c) do número 1 do artigo 400.º, os acórdãos da Relação proferidos em recurso de decisão que recusou a aplicação de medidas de coação, porque não conhecem a final do objeto do processo, não admitiam recurso para o Supremo Tribunal de Justiça4.


Com o aditamento à mesma alínea passaram a admitir recurso os acórdãos da Relação, proferidos em recurso:

-“que, inovatoriamente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além” do termo de identidade e residência”.

São pressupostos cumulativos da recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça que: (i) a 1.ª instância tenha recusado, – “tenha decidido não aplicar” – a imposição de qualquer medida coativa ao arguido, diferente do termo de identidade e residência ou de qualquer medida de garantia patrimonial; e (ii) que a Relação, em recurso, decida aplicar, inovatoriamente, alguma daquelas medidas.


Com esse novo segmento daquela norma, reforça-se o direito de defesa do arguido permitindo-lhe submeter ao reexame, pelo Supremo Tribunal de Justiça, acórdão da Relação que em recurso contra decisão da 1.ª instância que havia indeferido a aplicação de qualquer medida coativa ou de garantia patrimonial, aplica, inovatoriamente, alguma ou algumas daquelas medidas, diferente daquele a que obriga o art.º 196.º - cfr. também artigo 61.º n.º 6 alínea c).


Da letra da lei resulta inequivocamente que apenas admitem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, acórdãos da Relação proferidos em recurso de decisão da 1.ª instância que havia denegado a aplicação de qualquer medida cautelar ou de garantia patrimonial e que, revogando essa decisão, decide aplicar, inovatoriamente, ao arguido qualquer medida coativa com exceção do termo de identidade e residência ou medidas de garantia patrimonial.


Continua a não admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, acórdão da Relação que em recurso revoga ou declara extintas medidas de coação ou de garantia patrimonial aplicadas pela 1.ª instância.


Resulta ainda que não é recorrível acórdão da Relação que, em recurso, altera, agravando-o, o estatuto coativo do arguido, aplicando-lhe medida ou medidas de coação ou de garantia patrimonial diferentes, ainda que mais graves, das que tinham sido aplicadas na decisão da 1.ª instância.


A solução legislativa adotada, não suscitando dúvidas interpretativas, contudo, não é a mais razoável à luz da proporcionalidade constitucionalmente imposta ao legislador e bem assim da função de tribunal de revista que deveria caber ao Supremo Tribunal de Justiça.


Não se vislumbram fundamentos bastantes para que seja recorrível acórdão da Relação que, em recurso contra decisão do juiz de 1.ª instância que indeferiu a aplicação de quaisquer medidas coativas, decide aplicar, inovatoriamente, ao arguido, por exemplo, a medida de coação de apresentação periódica, mas não admita recurso acórdão da Relação que, também em recurso, agravando o estatuto coativo aplicado em 1.ª instância, impõe ao arguido a medida de coação de obrigação de permanência na habitação ou prisão preventiva. Se a gravidade objetiva e o paralelismo com a declaração de inconstitucionalidade decidida no Acórdão do TC n.º 595/2018, justificavam a introdução da recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão da Relação que, em recurso, aplica, inovatoriamente, medida de coação privativa da liberdade ambulatória, somente a inércia de raciocínio pode ter levado à adoção da fórmula ampla da parte final da norma alínea e), induzindo o legislador a admitir impugnação, perante o mais alto Tribunal, de acórdão da Relação que, em recurso, impõe as demais medidas coativas, escassamente compressivas de direitos e liberdades, ou medidas de garantia patrimonial de baixo valor económico, tão-somente porque foram aí, decretadas, inovatoriamente, e a 1.ª instância tinha decidido não aplicar nenhuma medida coativa ou de garantia patrimonial. Um legislador atento e razoável teria consagrado apenas a recorribilidade do acórdão da Relação que, em recurso, aplica ao arguido, inovatoriamente, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação. A falta de racionalidade da consagração da recorribilidade em mais um grau, de qualquer acórdão da Relação que, em recurso, aplica, inovatoriamente, quaisquer medidas de coação ou de garantia patrimonial, é bem evidenciada pela norma do artigo 219.º n.º 1 que fixa em 30 dias o prazo máximo para julgar o recurso, a contar do momento em que o processo foi recebido no Supremo Tribunal conjugada com outras que regulam os prazos de decisões do Supremo Tribunal de Justiça. O legislador parece que ignorou que o STJ está constitucionalmente obrigado a decidir as providências de habeas corpus em oito dias (artigo 31.º, n.º 3 da Constituição da República), os pedidos de escusa e os requerimentos de recusa em 30 dias (artigo 45.º n.º 5 do CPP), os recursos extraordinários de revisão em que o condenado esteja preso ou internado preferem a qualquer outro serviço (artigo 466.º) e que o julgamento de recurso de decisões proferidas no processo de execução do Mandado de Detenção Europeu é urgente, com prazos de 5 dias para o relator e 5 dias para os vistos simultâneos, com imediata inscrição na tabela (artigo 25.º da Lei n.º 65/2003) sendo de 10 e oito dias esses prazos no processo de extradição (artigo 59.º da Lei n.º 144/99). Situações com as quais fica muito mal comparada a urgência de ter de julgar no prazo máximo de 30 dias um recurso de acórdão da Relação que, em recurso, inovatoriamente, aplicou por exemplo, a medida coativa de obrigação de apresentações periódicas em órgão policial, ou quaisquer outras medidas de coação, com exceção da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação.


A solução de recorribilidade irrestrita de recurso de acórdão da Relação proferido em recurso, que aplica, inovatoriamente, quaisquer medidas de coação ou de garantia patrimonial quando a 1.ª instancia tinha decidido não aplicar nenhuma, sem que se admita recurso de acórdão da Relação que, em recurso, decide agravar o estatuto coativo fixado pela 1.ª instância e aplica ao arguido obrigação de permanência na habitação ou prisão preventiva, faz esperar forte litigiosidade perante o Tribunal Constitucional com vista ao controlo da sua conformidade com alguns dos comandos da Lei Fundamental que reconhecem e garantem direitos fundamentais. Embora seja previsível que aquele Tribunal aplique aqui a jurisprudência firmada que tem adotado relativamente ao agravamento da condenação decretada em 1.ª instância sem que daí resulte a aplicação de pena superior a cinco anos de prisão efetiva.”


Também Paulo Pinto de Albuquerque5 escreveu, sobre esta norma, o seguinte:


Não obstante não conhecerem, a final, do objeto do processo, desde a Lei nº 94/2021, de 21.12, são também expressamente recorríveis os acórdãos do TR que, em recurso, apliquem, pela primeira vez, medida de coação ou de garantia patrimonial, quando a primeira instância se tenha limitado a aplicar termo de identidade e residência (artigo 196º). Uma interpretação da redação anterior conforme ao artigo 32º, nº 1, da CRP já impunha esta solução, pois, de outra forma, o arguido ficaria privado da possibilidade de recorrer de uma decisão judicial que restringisse de modo inovador os seus direitos fundamentais.”


Também no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13 de abril de 2023, proferido no Proc. 270/19.0SFLSB-J.L1.S1 – in www.dgsi.pt – se consignou o seguinte:


15. Dispõe o artigo 400.º, n.º 1, do CPP, na parte que agora interessa, especificando restrições ao princípio geral de recorribilidade das decisões judiciais estabelecido no artigo 399.º, que «não é admissível recurso: (…)


c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º; (…)».


A redação desta alínea c) – que, na anterior redação, se limitava a dizer que não era admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conhecessem, a final, do objeto do processo –, aditando a atual exceção a esta regra, é a que resulta do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, que alterou o Código de Processo Penal, com origem no texto de substituição da Proposta de Lei n.º 90/XIV/2 (GOV), do Projeto de Lei n.º 875/XIV/2 (PSD) e do Projeto de Lei n.º 876/XIV/2 (PSD), aprovado na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, da iniciativa dos Grupos Parlamentares do PS e do PSD (DAR II Série - A, de 17.11.2021, p. 27ss). O Projeto de Lei n.º 876/XIV/2 justificava a alteração com o objetivo de “reforço dos direitos do arguido a um processo justo, leal e equitativo”, “reafirmando o direito dos arguidos a recorrer, ao menos por uma vez”, das decisões do tribunal da relação “que, inovadoramente, apliquem pela primeira vez uma medida de coação ou de garantia patrimonial, quando a primeira instância não aplicou qualquer medida.””


(…)


“18. Nos termos da al. c) do n.º 1 do artigo 400.º (supra, 15) não é, pois, em regra, admissível recurso de decisões das relações proferidas em recurso que não conheçam, a final, do objeto do processo, isto é, de decisões que não tenham por objeto o conhecimento dos factos e dos crimes imputados ao arguido na acusação ou na pronúncia, conhecendo do mérito ou do “fundo da causa”, e que, chegando o processo ao seu termo normal, se pronunciem, após julgamento, sobre as questões da culpabilidade e, sendo caso disso, da determinação da sanção (artigos 368.º e 369.º do CPP) (cfr., neste sentido, Pereira Madeira, anotação ao artigo 400.º, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, Coimbra, 4.ª ed., p. 1240).


A única exceção a esta regra, recentemente introduzida pela Lei n.º 94/2021, que permite o recurso para o Supremo de decisões da Relação que não conhecem, a final, do objeto do processo, diz respeito, como se viu, a decisões que apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, verificados que sejam dois pressupostos: que sejam decisões inovadoras, isto é, que aplicam uma medida nova, não anteriormente aplicada, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além do termo de identidade e residência, previsto no artigo 196.º do CPP.”


*


Feito este excurso, recordemos agora os factos que temos em apreciação:

a. AA foi detido, por ordem de autoridade de polícia criminal, no dia 11 de julho de 2023 e apresentado, pelo Ministério Público, ao Juiz de Direito em exercício de funções de Juiz de Instrução Criminal no Juízo Local Criminal ... – Comarca de Braga – no dia 13 de julho, para primeiro interrogatório e aplicação das adequadas medidas de coação;

b. Por despacho devidamente fundamentado de 13 de Julho de 2023, por entender que “a única medida de coacção proporcional, adequada, necessária e suficiente, e que deve ser aplicada no caso concreto é a de prisão preventiva, nos termos e para os efeitos dos art.s 204º, 193º e 202º., n.º 1, al. b) e c) do Código Processo Penal, uma vez que a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, ainda que com sujeição a eventual vigilância eletrónica, ponderando todo o já acima exposto, pelo menos por ora, não se revela, adequada, suficiente ou proporcional aos elencados perigos e à indiciária personalidade do arguido” o Juiz de Direito em funções de Juiz de Instrução Criminal proferiu decisão com o seguinte conteúdo:


“Nestes termos, tendo em atenção tudo o acima dito e sem necessidade de ulteriores considerações, e ao e nos termos do disposto nos artigos 191.º, 193.º, 195.º, 202.º e 204.º, alíneas b) e c) todos do C.P.P. determino que o arguido AA aguarde os ulteriores termos processuais sujeito:


- Às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, já prestado nos autos;


-À medida de coação de prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos 191º, 193.º, 196.º, 204.º alínea b), e c), e 202.º, todos do CPP.”;

c. Dessa decisão não foi interposto recurso;

d. Na sequência de requerimento, entrado a 25 de setembro de 2023, veio o arguido, ao abrigo e invocando o disposto nos artigos 212º, nº 1, alínea b) e nº 3, 200º, nº 1, alínea e) e 201º, nº 3 do Código de Processo Penal, solicitar “(a) substituição da medida de prisão preventiva pela proibição de ser portador de qualquer instrumento de ignição de fogo, proibição de circular fora dos leitos das estradas e caminhos públicos, com controlo eletrónico, fundamentando tal pedido nos artigos.”;

e. Perante este pedido e não obstante a oposição do Ministério Público, o Juiz de Direito em exercício de funções de Juiz de Instrução Criminal, com os fundamentos atrás consignados e através de decisão proferida a 10 de outubro de 2023, substituiu a medida de coação de prisão preventiva pela de obrigação de permanência na habitação com sujeição a vigilância eletrónica

f. Desse despacho foi, também nos termos já relatados, interposto recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação de Guimarães, o qual, através de acórdão de 9 de janeiro de 2024 (do qual se transcreveu integralmente a sua fundamentação), decidiu revogar aquela decisão e manter o arguido e ora recorrente em prisão preventiva;

g. E é desta última decisão que é interposto o presente recurso, desta vez pelo arguido.


Destes factos resulta, com inequívoca clareza e absoluta exatidão, que o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 9 de janeiro de 2024 não aplicou, INOVADORAMENTE, a prisão preventiva do arguido, tendo esta medida sido aplicada pela primeira instância na sua primeira decisão de 13 de julho de 2023.


Mais, em momento algum do processo o arguido foi sujeito, apenas, a termo de identidade e residência, nos termos do disposto no artigo 196º do Código de Processo Penal.


Com efeito, mesmo a medida aplicada pelo tribunal da primeira instância, a 10 de outubro de 2023 – e que foi revogada pelo Tribunal da Relação de Guimarães –, aplicou-lhe a medida de obrigação de permanência na habitação com sujeição a vigilância eletrónica, nos termos do disposto no artigo 201 do Código de Processo Penal.6


Daqui resulta, pois, que não se mostram presentes os pressupostos de que, nos termos da segunda parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, depende a admissibilidade do recurso.


Na verdade, porque a primeira instância já tinha aplicado a medida de prisão preventiva e, bem assim, a de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica – e não, apenas, o termo de identidade e residência previsto no artigo 196º do Código de Processo Penal – o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que manteve o arguido em prisão preventiva é, face ao disposto no artigo 400º, nº 1 alínea c) daquele diploma legal, irrecorrível e, por isso, nos termos estabelecidos no artigo 432º do mesmo código (v.g. na alínea b) do seu nº 1), dele não pode conhecer este Alto Tribunal.


Conforme estatuído no artigo 420.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão, nos termos do n.º 2 do artigo 414.º do mesmo diploma legal.


De acordo com este preceito, o recurso não é admitido quando, entre outros motivos, a decisão for irrecorrível.


A decisão que admitiu o recurso não vincula o tribunal superior (artigo 414.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).


Finalmente, a procedência desta questão prévia obsta ao conhecimento de mérito, prejudicando a apreciação das questões suscitadas no recurso.


C2. Questão prévia – A invocada inconstitucionalidade


Vem o recorrente alegar, em resposta ao douto parecer emitido pelo Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto junto deste Supremo Tribunal e em síntese, que:

“(…) O artigo 219º continua a admitir o recurso das decisões que apliquem, substituam ou mantenham as medidas de coação, mormente as de prisão preventiva.

O que está em causa é pura questão de direto de se apreciar, com os factos assentes pelas instâncias, se o Tribunal da Relação de Guimarães aplicou ou não a medida cautelar exigível ou se a mesma não era exigível; (t)anto mais que o MP, promotor da ação penal, defendeu o contrário do decidido.

(…) o princípio da reserva do Supremo Tribunal de Justiça às decisões de direito não se pode sobrepor ao princípio constitucional do recurso, ainda mais, que os factos atinentes são públicos e notórios, e publicados diariamente pelo IPMA.”

“A eventual rejeição do recurso ao abrigo da literalidade da segunda parte da alínea c-), do nº1 do artigo 400º do C.P. Penal, torna esta norma inconstitucional, por violar os direitos de defesa e recurso, por violação dos artigos 18º, nºs 1 e 2 e 32º, nº1 da Constituição da República Portuguesa”;


Não se pode concordar com esta abordagem, desde logo pelas razões que anteriormente deixámos expostas, mas também pelo que a seguir se consignará.


Com efeito, embora o nº 1 do artigo 219º do Código de Processo Penal estabeleça que da decisão que aplicar, substituir ou mantiver medidas de coação cabe recurso, não pode daí concluir-se que esse direito ao recurso é ilimitado e insuscetível de ficar subordinado a determinados requisitos, o que, aliás, tem sido negado pelo Tribunal Constitucional7.


De igual forma, embora a eventual apreciação por este Alto Tribunal da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães se possa considerar uma questão de direito, tal não conduz a que essa apreciação tenha de ocorrer em todas as situações.


Por outro lado, atente-se que, em regra, dos acórdãos proferidos em recurso pelos Tribunais da Relação que não conheçam, a final, do objeto do processo, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.


E bem assim que, apenas com a alteração introduzida pela Lei 94/2021, de 21 de dezembro, se abriu uma exceção a essa regra, mas subordinada a pressupostos claramente enunciados na alínea c) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal.


Não faz, pois, sentido, aludir à “literalidade da segunda parte da alínea c-), do nº1 do artigo 400º do C.P. Penal”, quando o objetivo do legislador ordinário foi, justamente, subordinar a determinados pressupostos a exceção que quis consagrar relativamente àquela regra de irrecorribilidade.


Com efeito, parece-nos evidente que o que o legislador claramente pretendeu foi permitir, na situação mencionada (de aplicação pelo Tribunal da Relação, de forma inovadora, de medidas de coação ou garantia patrimonial), a possibilidade de recurso, mas somente nos casos em que, anteriormente à decisão recorrida, apenas tinha sido aplicado termo de identidade e residência.


E este entendimento não nos parece violar qualquer norma ou princípio constitucional.


De facto, e como é mencionado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça atrás referenciado (e que seguimos de perto), o que o regime de recursos tem de assegurar adequadamente é a garantia do duplo grau de jurisdição, quer em matéria de facto quer em matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos (artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais).


Com efeito, em «jurisprudência ampla, sucessiva e reiterada», na expressão do tribunal, vem o Tribunal Constitucional reafirmando que o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição» ou de «um duplo grau de recurso», em relação a quaisquer decisões condenatórias.


Citando o recente acórdão n.º 57/2022, de 20.01.2022: «(…) não decorre do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição o direito a um triplo grau de jurisdição em matéria penal, dispondo o legislador de liberdade de conformação na definição dos casos em que se justifica o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (ver, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 189/2001, 336/2001, 369/2001, 49/2003, 377/2003, 495/2003 e 102/2004, acessíveis, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt), posto que os critérios consagrados não se revelem arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados. Acresce que este Tribunal tem também reiteradamente entendido não ser arbitrário, nem manifestamente infundado, reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada (cfr., entre outros, os acórdãos n.º 189/2001, 451/2003, 495/2003, 640/2004, 255/2005, 64/2006, 140/2006, 487/2006, 682/2006, 645/2009, e 174/2010).»


Assim e na senda do referido por Paulo Pinto de Albuquerque8, cremos que a alteração introduzida na al. c) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal pela Lei 94/2021, de 21 de dezembro, veio justamente harmonizar o sistema de recursos, no que concerne à aplicação de medidas de coação e garantia patrimonial, com o direito constitucional às garantias de defesa (v.g. ao recurso), parecendo-nos que a solução encontrada se mostra equilibrada e conforme ao disposto nas normas e princípios constitucionais.


Com efeito, em nosso entender, as garantias do direito de defesa e de interposição de recurso previstos no artigo 32º, em conjugação com o artigo 18º, ambos da Constituição da República Portuguesa, só se devem considerar excessiva e desproporcionalmente comprimidos nos casos em que o Tribunal da Relação aplique, de forma inovadora, medidas coativas e de garantia patrimonial (como é o caso da prisão preventiva), quando, anteriormente, apenas se tinha aplicado o termo de identidade e residência.


E só essa excessiva e desproporcionada compressão das garantias de defesa de interposição de recurso poderia justificar um juízo de inconstitucionalidade.


Concluindo, não nos parece que a interpretação que fazemos da alínea c) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal viole normas ou princípios constitucionais.


C3. Das custas processuais:


Ao abrigo do disposto no artigo 524º do Código de Processo Penal e dos artigos 1,º 2º e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Judiciais (aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro), o Recorrente tem de pagar custas judiciais, cuja taxa de justiça varia, in casu e face à Tabela Anexa III ao aludido Regulamento, entre 5 e 10 unidades de conta.


Face ao exposto e tendo em conta a não complexidade da decisão, vai condenado em 5 (cinco) unidades de conta


Por outro lado, a rejeição do recurso implica ainda a condenação da recorrente no pagamento de uma importância entre 3 UC e 10 UC (que não são meras custas judiciais, tendo natureza sancionatória), por força do disposto no artigo 420º, nº 3, do Código de Processo Penal.


Com efeito, são cumulativas a condenação em custas do incidente e em multa no caso de pedido manifestamente infundado, pois elas visam propósitos diferentes: uma tributa o decaimento num ato processual a que deu causa e a outra castiga a apresentação de requerimento sem a prudência ou diligência exigíveis (Salvador da Costa, As custas Processuais, Coimbra: Almedina, 6.ª ed., 2017, p. 86).


Atendendo, por um lado, à não complexidade do objeto da decisão e, por outro, à manifesta improcedência do recurso, considera-se ajustado fixar essa importância em 3 (três) unidades de conta.

D – Decisão

Por todo o exposto, decide-se rejeitar o recurso interposto por AA, dado o mesmo não ser admissível, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 432º, nº. 1, al. b), 400º, nº. 1, al. c) e 420º, nº. 1, al. a) e al. b) e 414º nº 2, todos do Código de Processo Penal.


Vai ainda o recorrente condenado no pagamento de 5 (cinco) U.C., relativas às custas devidas, a que acrescem 3 (três) U.C., nos termos do artº 420º, nº. 3, do Código de Processo Penal.


Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada


(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)


Celso Manata (Relator)


Agostinho Torres (1º Adjunto)


João Rato (2º Adjunto)


____________________________________________

1. In CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196.↩︎

2. In DR I Série - A, de 28 de dezembro de 1995.↩︎

3. Foi publicada no DAR II série A n.º 126., 2021.05.05, da 2.ª SL da XIV Legislatura 2.º Supl. (pág. 53-96)↩︎

4. Consagrado no regime adjetivo penal a recorribilidade do acórdão da Relação que, em recurso, aplica inovatoriamente medida de garantia patrimonial extrai-se que o legislador entende que também esse é um recurso penal, a apreciar e julgar pelas secções criminais da Relação e, quando em 2.º grau, do Supremo Tribunal de Justiça↩︎

5. In “Comentário do Código de Processo Penal”, 5ª edição, Vol. II, pág. 571.↩︎

6. Aliás, se nesta decisão se tivesse acolhido o pedido de substituição da prisão preventiva pela medida de “proibição de ser portador de qualquer instrumento de ignição de fogo, proibição de circular fora dos leitos das estradas”, também ficaria igualmente inviabilizada a possibilidade de recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que manteve o arguido em prisão preventiva.↩︎

7. Veja-se, neste sentido e a título meramente exemplificativo, o Acórdão nº 595/208 (no sitio do Tribunal Constitucional e acessível em TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 595/2018 . (tribunalconstitucional.pt)↩︎

8. Obra citada↩︎