HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
DESPACHO DE PRONÚNCIA
IRREGULARIDADE
INSTRUÇÃO
ESPECIAL COMPLEXIDADE
Sumário


Não cabem no âmbito da providência de habeas corpus, eventuais irregularidades na instrução, nomeadamente a notificação do requerente com antecedência inferior a 5 dias em relação à data designada para o debate instrutório; indeferimento de diligências instrutórias requeridas em sede de instrução e indeferimento do adiamento e reagendamento do debate instrutório, as quais devem ser apreciadas através dos meios processuais adequados, nomeadamente pela via do recurso ou reclamação.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I Relatório

1. AA, arguido no processo n.º 15/22.8... que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo de Competência Genérica de ..., preso preventivamente, à ordem destes autos, desde 26 de Novembro de 2022, vem requerer a providência de habeas corpus com fundamento em prisão ilegal, com as seguintes razões: (transcrição)

1º - Nos presentes autos, no dia 26 DE NOVEMBRO DE 2022, foi aplicada ao arguido, a medida de coação de prisão preventiva.

2º - Tal medida foi sendo sucessivamente prorrogada ao longo das diversas fases deste processo.

3º - No dia 26 de Março de 2024, o arguido perfez dezasseis meses de prisão preventiva à ordem dos presentes autos.

4º - Sobre os prazos máximos de prisão preventiva , dispõem os nº 1 al. b) e nº 3 do Artigo 215º do CPP, que havendo lugar a instrução, tenham decorrido catorze meses sem ter havido decisão instrutória quando o procedimento for por um dos crimes referidos no nº 2 do mesmo Artigo 215º do CPP, e se revelar de especial complexidade.

5º - Foi decretada a especial complexidade do processo.

6º - O arguido foi acusado em co-autoria material e concurso efectivo da prática dos seguintes crimes:

- um crime de Associação Criminosa, p.p. pelo artigo 299.º, n.º 2

- 31 (trinta e um) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas timorenses);

- 6 (seis) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º4, al. d) (vítimasucranianas);

- 7 (sete) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas argelinas e marroquinas);

- 7 (sete) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4 , al. d) (vítimas moldavas);

- 2 (dois) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas moldavas);

- 2 (dois) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas moldavas);

- 1 (um) crime de branqueamento de capitais,p.p. pelo artigo 368.º-A, n.º1, al.d) e h), 3, 4 Todos do Código Penal.

Acontece que :

7ª – O arguido requereu a abertura da instrução.

8º - No passado dia 18.03.2024 foi remetido por E-Mail ao defensor do requerente o despacho de abertura da instrução, no qual foi designado o dia 22.03.2024 para a realização do debate instrutório.

9º - O requerente foi notificado desse despacho em lingua romena apenas no dia 21.03.2027.

9º - No que concerne ao defensor, tal notificação deve considerar-se igualmente efectuada no dia 21.03.2024.

10º - Do que se conclui, assim que a notificação não foi feita com a antecedência mínima de 5 dias em relação à data designada, com flagrante violacao do disposto no artigo 297.º nº 3, do CPP e, bem assim, do disposto no artigo 32.o, n.o 1, da Constituicao da Republica Portuguesa, na medida em que a aquela antecedência minima, legalmente imposta, visa dar ao arguido um periodo minimamente razoavel para preparar o debate instrutório, o que lhe foi vedado.

11º - O incumprimento do disposto no artigo 297º nº 3 do CPP causou graves prejuízos aos interesses de defesa do arguido, e traduz uma violação aos direitos e garantias fundamentais do arguido.

12º - Efetivamente, o mesmo despacho que designou data para o debate instrutório indeferiu todas as diligências instrutórias requeridas pelos arguidos nos respetivos requerimentos de abertura de instrução, nomeadamente, e no que concerne ao aqui requerente,a inquirição de três testemunhas por si já indicadas em sede de inquérito, e que o Ministério Público não ouviu.

13º - A confrontação com esse indeferimento exigia que a defesa do requerente redifinisse a sua estratégia para o debate instrutório, nomeadamente a sua opção de ter requerido a prestação de declarações pelo arguido nessa sede.

14º - Acontece que sendo o requerente romeno, e dominando precáriamente a lingua portuguesa, tal imporia ao defensor providenciar um tradutor que o acompanhasse ao EP ... para poder preparar de forma rigorosa o debate instrutório com o seu constituinte.

15º - O incumprimento do prazo de 5 dias por parte do tribunal impediu tal esforço, condicionando de forma significativa a defesa do requerente.

16º - Quadro que foi agravado pelo facto dos co-arguidos terem prestado declarações complementares em sede de instrução, declarações essas que o defensor do arguido não teve possibilidade de analisar de forma a preparar convenientemente o debate instrutório.

17º - O requerente, em sede de instrução, através do seu defensor, arguiu a irregularidade do despacho em causa, tendo requerido a prolação de novo despacho que designasse data não anterior a 27.04.2024 para a realização de debate instrutório, o que foi indeferido.

18º - Igualmente condicionante desse esforço, foi a inesperada transferência do processo do Juízo Central de Instrução Criminal de Lisboa para o Tribunal de Competência Genérica de ..., cuja competência foi objeto de decisão no mesmo despacho que designou a data para a realização do debate instrutório.

19º - De forma inesperado o processo viajou 175 Km com todas as dificuldades que tal acarretou aos defensores no plano do planeamento da sua agenda por força da longa deslocação até ao Tribunal de Beja onde decorreram as sessões de instrução.

20º - A instrução terminou com a prolação de despacho de pronúncia no dia 26.03.2024 pelas 19:30 horas.

Por outro lado;

21 º - Perante o indeferimento da realização de diligências/atos de instrução, dispunha o arguido do prazo (supletivo) de 10 dias para deduzir Reclamação (cf. artigos 105º, nº 1, e 291º, nº 2, do CPP.

22º - O prazo (para reclamar) terminará apenas no dia 01.04.2024, ou seja em data posterior ao dia marcado para a realização do debate instrutório (designado para o dia 22.03.2024).

23º - Por esse facto , o despacho em causa também violou um elementar direito de defesa do arguido, que é o de reclamar de um despacho que indeferiu a realização dos atos de instrução por si reputados pertinentes, ou mesmo imprescindiveis, para provar determinados pontos do Requerimento de Abertura de Instrução, ou seja, para provar aquilo que o motivou a promover a instrução.

24º - O despacho que designou a data para o debate instrutório é , portanto, irregular, vício que se arguiu já em sede de instrução ao abrigo do disposto no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por violação do disposto nos artigos 105.º, n.º 1, e 291.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

25º - Por força dessa irregularidade, e para o efeito pretendido com esta petição, e para efeito da consideração de estarem ultrapassados os prazos previstos nos nº 1 al. b) e nº 3 do Artigo 215º do CPP , deve ser considera sem efeito a instrução já concluida e o despacho de pronúncia entretanto proferido no dia 26.03.2024 pelas19:30 horas.

26º - Pelo que, em face da irregularidade da instrução, deve considerar-se que o arguido está preso ilegalmente desde as 0:00 horas do dia 27 de Março de 2024.

27º - Face ao exposto, verifica-se nos presentes autos, e no que ao ora requerente diz respeito, EXCESSO DE PRISÃO PREVENTIVA, pelo que deve de imediato ordenar-se a sua libertação pelo facto da prisão preventiva ser ilegal por se manter para além do prazo máximo estatuido pela alínea d) do nº 1 do Artº 215º do CPP.

Requerer, como se requer, a concessão imediata da Providência de Habeas Corpus em razão de prisão ilegal. (fim de transcrição)

2. Nos termos do artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, foi prestada a seguinte informação:

«Consigna-se que apenas na presente data a signatária retomou contacto com o presente processo, em virtude do decurso das férias judiciais de Páscoa durante o qual a mesma não esteve de turno.

Requerimento de Habeas Corpus:

AA veio interpor a providência de Habeas Corpus, requerendo a sua libertação imediata, ao abrigo do disposto no art.º 31.º da CRP e dos artigos 222.º e 223.º do CPP.

Para tanto, e em síntese, alegou que se encontra privado da liberdade, sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, desde o passado dia 26 de novembro de 2022 e que, apesar de deduzida contra si acusação em 23/11/2023, não foi até ao momento do seu requerimento proferida decisão de pronúncia.

Em consonância, entende o arguido que volvidos que se encontram um ano e quatro meses sobre tal data, a medida de coacção se extinguiu, pelo que a manutenção do seu estatuto coativo a partir de 26/11/2024 constitui uma prisão ilegal.

Nos termos do disposto no art.º 31.º da CRP, há lugar a pedido de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a interpor perante o tribunal judicial ou militar, consoante os casos e a apresentar pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

Nos termos do disposto no art.º artigo 222.º do CPP “a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus”.

A providência de Habeas Corpus é o meio processual adequado a uma reacção expedita contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, e não como um meio processual para reexame ou avaliação da verificação dos pressupostos de facto e de direito que em concreto determinaram a aplicação de uma medida de privação de liberdade, no caso da prisão preventiva.

A petição é dirigida em duplicado ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual o requerente se mantenha preso e deve fundamentar-se em ilegalidade da prisão por um dos seguintes motivos:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou decisão judicial;

Assenta o requerente a sua pretensão na alínea c) atrás citada por entender que se encontra esgotado o prazo máximo da prisão preventiva nos termos do disposto no artigo 215.º, n.º 1 b), 3 e 4 do CPP.

O arguido encontra-se sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, desde 26/11/2022, tendo sido proferida acusação contra o mesmo pela alegada prática de:

- um crime de associação criminosa, p.p. pelo artigo 299.º, n.º 2 e 3;

- 31 (trinta e um) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas timorenses);

- 6 (seis) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º4, al. d) (vítimas ucranianas);

- 7 (sete) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas argelinas e marroquinas);

- 7 (sete) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4 , al. d) (vítimas moldavas);

- 2 (dois) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas moldavas);

- 2 (dois) crimes de tráfico de seres humanos, p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) (vítimas moldavas);

- 1 (um) crime de branqueamento de capitais, p.p. pelo artigo 368.º-A, n.º1, al. d) e h), 3, 4, todos do Código Penal.

Nos presentes autos foi proferida decisão de pronúncia contra o aqui requerente no dia 26 de março de 2024, e assim antes do termo do prazo de 1 ano e 4 meses previsto no n.º 3 do supra citado preceito, pela prática dos seguintes crimes:

- um crime de associação criminosa, p.p. pelo artigo 299.º, n.º 2 e 3;

- 20 crimes de tráfico de pessoas p.p. pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d);

- 1 (um) crime de branqueamento de capitais, p.p. pelo artigo 368.º-A, n.º1, al. d) e h), 3, 4, todos do Código Penal.

Com a prolação de decisão instrutória mostra-se finda a fase de instrução.

De acordo com a alínea b) do artigo 215.º do CPP a prisão preventiva extingue-se decorridos oito meses, sem que tenha sido proferida decisão instrutória.

Acrescenta o n.º 2 do mencionado preceito legal, no que releva para o caso, que o prazo de 10 meses é elevado para seis meses em casos de criminalidade violenta ou altamente organizada (…) ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime: (…) e) De branqueamento de vantagens de proveniência ilícita;

Finalmente, e nos termos do disposto no art.º 215.º, n.º 3, aquele prazo é elevado para 1 ano e 4 meses quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.

A excecional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente (n.º4).

Os autos foram declarados com especial complexidade, do qual foi interposto recurso, mas que não foi provido, conforme acórdão da Relação de Lisboa proferido nos autos.

O acórdão que julgou não provido o recurso interposto quanto à declaração de especial complexidade não é passível de recurso, conforme resulta do disposto no artigo 400.º, n.º1, al. c), do CPP.

Na decisão instrutória proferida em 26/03/2024 o Tribunal pronunciou-se expressamente quanto à manutenção do estatuto coativo do requerente, conforme despacho proferido em 25/03/2024.

Assim, face ao supra exposto, conclui-se que o prazo máximo no caso vertente, atenta não só a natureza dos crimes pelos quais o arguido foi pronunciado, mas a especial complexidade dos autos, já declarada e confirmada por decisão não suscetível de recurso, bem como a prolação de decisão instrutória é agora de 2 anos e 6 meses (condenação em primeira instância), o qual não se encontra esgotado.

Face ao supra exposto, entendemos ser de manter a medida de coacção de prisão preventiva a que o arguido se encontra sujeito, nos seus exactos termos e, por isso mesmo, não se ordena, nesta instância a imediata libertação do arguido.

Sem prejuízo, Vossas Excelências farão, como sempre, a melhor Justiça.

Remeta, de imediato, a Sua Exª, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no artigo 223.º do CPP a presente informação, mais se ordenando a extração das seguintes processuais em ordem à elaboração do competente apenso de Habeas Corpus, para além dos já indicados no despacho de 27/03/2024:

- Requerimento do arguido;

- Despacho a declarar a especial complexidade do processo e acórdão da Relação de Lisboa que o confirmou.»

3. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência pública, nos termos dos artigos 223.º, n.º 3, e 435.º, do Código de Processo Penal.

Há agora que tornar pública a respetiva deliberação.

II Fundamentação

1. A Constituição da República Portuguesa no seu artigo 31º, estatui que haverá providência de habeas corpuscontra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente” (nº1), a qual pode ser “requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos” (nº2) devendo o juiz decidir “no prazo de oito dias” “em audiência contraditória” (nº3).

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira na Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, a providência de habeas corpus exige, como requisitos cumulativos, o exercício de abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e detenção ou prisão ilegal.

Para os mesmos constitucionalistas, na obra citada, a providência de habeas corpus é o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, “testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito.

Neste mesmo sentido, Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, Vol. II, pág.419, 5ª Edição Verbo, considera, seguindo José Carlos Vieira de Andrade, tratar-se de “um direito subjectivo (direito-garantia) reconhecido para a tutela de um outro direito fundamental, dos mais importantes, o direito à liberdade pessoal. Em razão do seu fim, o habeas corpus há-de ser de utilização simples, isto é, sem grandes formalismos, rápido na actuação, pois a violação do direito de liberdade não se compadece com demoras escusadas, abranger todos os casos de privação ilegal de liberdade e sem excepções em atenção ao agente ou à vítima”. Acrescenta que o “pressuposto de facto do habeas corpus é a prisão efectiva e actual; o seu fundamento jurídico é a ilegalidade da prisão ou internamento ilegal”.

O legislador ordinário, na densificação do conceito de detenção ou prisão ilegal, no artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, considera ilegal a prisão quando a mesma “a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

2. O requerente alega, em súmula, que está ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva, porquanto o despacho de pronúncia deve ser dado sem efeito por se terem verificado várias irregularidades na instrução, a saber: notificação do requerente com antecedência inferior a 5 dias em relação à data designada para o debate instrutório; indeferimento de diligências instrutórias requeridas em sede de instrução e indeferimento do adiamento e reagendamento do debate instrutório.

Vejamos.

Como ficou referido anteriormente, o legislador no artigo 222º, nº 2 do Código de Processo Penal, estabeleceu, taxativamente, os fundamentos da providência excepcional de habeas corpus.

Por força desse numerus clausus em relação aos fundamentos do habeas corpus, o mesmo “ (…) não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis”, “neste há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP" e “não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários”.1

De igual modo, no habeas corpus “(…),não cabe julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo)” e “não pode decidir sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso dos actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos ou dos modos processualmente disponíveis e admissíveis de impugnação” (...) “A medida não pode ser utilizada para impugnar irregularidades processuais ou para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o processo ou o recurso como modo e lugar próprios para a sua reapreciação”.2

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Maio de 2019, “Constitui jurisprudência reiterada deste Tribunal a de que a providência de habeas corpus não é o meio próprio para arguir ou conhecer de eventuais nulidades, insanáveis ou não, ou irregularidades, cometidas na condução do processo ou em decisões nele proferidas; para esse fim servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, deduzidos no tempo e na sede processual apropriados.”3

Perante esta jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça, é manifesto não caberem no âmbito da presente providência de habeas corpus as pretensas irregularidades na instrução, alegadas pelo requerente.

Tal matéria deve ser apreciada através dos meios processuais adequados, nomeadamente pela via do recurso ou reclamação.4

Assim, não pode deixar de se considerar como assente, para efeitos de contagem dos prazos de duração da prisão preventiva, a prolação do despacho de pronúncia, tal como consta dos autos.

Assim, pelas razões aduzidas, apenas se apreciará o reclamado excesso de duração da prisão preventiva.

Vejamos.

Resulta do despacho de pronúncia, constante da certidão que instruiu a presente providência de habeas corpus, que o requerente foi pronunciado pela prática em coautoria material e concurso efetivo, dos seguintes crimes:

- um (1) crime de associação criminosa, p.p. pelo artigo 299.º, n.º 2 e 3 do C.P.

- vinte (20) crimes de tráfico de pessoas, previstos e punido pelo artigo 160.º, n.º1, als. a), b), c) e d) e n.º 4, al. d) do C.P.,

- 1 (um) crime de branqueamento de capitais, p.p. pelo artigo 368.º-A, n.º1, al. d) e h), 3, 4, do C.P.

O processo foi, por despacho de 31 de Março de 2023, confirmado por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, declarado de especial complexidade.

O requerente encontra-se detido preventivamente desde o dia 26 de Novembro de 2022, tendo a prisão preventiva sido sucessivamente revista e mantida de acordo com os prazos legais, como consta da certidão remetida aos presentes autos.

O artigo 215º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Prazos de duração máxima da prisão preventiva” estatui, no seu nº1,

A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.

Por sua vez o número 3 do mesmo preceito legal, estatui que “Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e 4 meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.

Ora, tendo o requerente sido detido a 26 de Novembro de 2022 e a decisão instrutória sido proferida a 26 de Março de 2024, o prazo de um ano e quatro meses legalmente estabelecido, ainda não se encontrava esgotado no momento em que foi proferida a decisão instrutória.

Assim, o novo prazo máximo de duração da prisão preventiva, deixa de ser o estabelecido para a decisão instrutória, passando a ser o da condenação em 1.ª instância (alínea c), do nº1 do artigo 215), isto é, dois anos e seis meses.

Importa não esquecer que os prazos máximos de duração de prisão preventiva, previstos no artigo 215º do Código de Processo Penal, são sucessivamente alargados em função da fase processual em que os autos se encontram.

Inexiste, pois, qualquer excesso de duração dos prazos de prisão preventiva e, por arrastamento, qualquer prisão ilegal.

Perante todos estes dados, não se pode concluir de outra forma que não seja o indeferimento do presente pedido de habeas corpus.

Na verdade, a prisão foi ordenada por entidade competente (magistrado judicial), foi motivada por facto que a lei permite a sua aplicação e ainda se mantém dentro dos prazos impostos, sendo revista nos tempos e termos legalmente previstos (artigos 215º e 213º, ambos do Código de Processo Penal).

Conclui-se, pois, que a petição de habeas corpus é manifestamente infundada, a qual se indefere.

III Decisão

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus requerida pelo arguido AA.

Custas pelo requerente, com taxa de justiça fixada em três UC – n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa.

Tendo em conta que a providência é manifestamente infundada, condena-se o requerente no pagamento de 7 UC s, (artigo 223º, nº 6 do Código de Processo Penal)

Supremo Tribunal de Justiça, 03 de Abril de 2024.

Antero Luís (Relator)

Ana Maria Barata de Brito (1ª Adjunta)

M. Carmo Silva Dias (2ª Adjunta)

Nuno Gonçalves (Presidente)

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1. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 2015, Proc. 122/13.TELSB-L.S1, disponível em www.dgsi.pt

2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05 de Maio de 2009, Proc. 665/08.5JAPRT-A.S1, citado no acórdão de 04 de Janeiro de 2017, Proc. 109/16.9GBMDR-B.S1, disponível em www.dgsi.pt

3. Proc. 1206/17.9S6LSB-C.S1, disponível em www.dgsi.pt

4. Neste sentido, ao nível doutrinal, Tiago Caiado Milheiro, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, AA. VV., t. III, Coimbra, Almedina, 2022, p. 547, § 13, 14 e 16.