ABSOLVIÇÃO EM 1.ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
PERDÃO
Sumário


I. Os espaços de diversão nocturna ou estabelecimentos sujeitos a regime de licenciamento para o exercício da actividade e à implementação de um conjunto de medidas de segurança, conforme resulta do Decreto-lei nº 135/2014 de 8 de Setembro, devem ser espaços de segurança, por serem locais grande concentração de pessoas, de consumo de álcool e, por força disso, também de relaxamento das medidas pessoais de segurança pelos frequentadores.
II. Na punição de crimes de ofensas corporais praticadas por funcionário de espaço de diversão nocturna, a opção pela pena de multa não satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
III. Não compete ao Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre a aplicação da Lei 38-A/2023, de 02 de Agosto, a qual deverá ser ponderada pela 1.ª instância.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. Por acórdão de 08 de Novembro de 2023, do Tribunal da Relação do Porto, 4ª Secção, proferido no Processo 104/20.3SJPRT.P1, foi julgado procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, da sentença do Tribunal Singular de 13/04/2023, que absolvera o arguido, AA da prática, em autoria material e concurso efectivo, de dois crimes de “ofensa à integridade física simples”, p. e p. na disposição do artigo 143º do Código Penal e em consequência foi o mesmo condenado nas penas, respectivamente, de 2 meses de prisão e 8 meses de prisão e em cúmulo jurídico na pena única de oito (8) meses e quinze (15) dias de prisão suspensa na sua execução, pelo período de um (1) ano, sob condição do pagamento das quantias de 250.00€ e de 1.500.00€ aos ofendidos.

2. Inconformado o arguido interpôs recurso do douto acórdão, extraindo da respectiva motivação, as seguintes conclusões: (transcrição)

a) Por sentença de 1ª instância foi o ora Recorrente absolvido da prática de dois crimes de ofensa à integridade física, previstos e punidos nostermos doartigo143.º doCódigoPenal;

b) Não concordando com o teor da referida sentença, veio o Ministério Público interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto;

c) Alegando para o efeito a existência de fundamentos que determinariam a aplicação de decisão diversa da absolvição;

d) Nessa sequência, foi proferido Acórdão, pelo Tribunal da Relação do Porto revogando a decisão absolutória de 1ª instância, e condenando o Recorrente pela prática dos dois crimes de ofensa à integridade física de que vinha acusado;

e) Aplicando para o efeito, a pena de prisão de 8 (oito) meses e 15 (dias), suspensa na execução contra o pagamento de um quantum pecuniário de € 1.750,00 (mil setecentos e cinquenta euros);

f) Acontece, porém, que o Acórdão proferido e ora recorrido padece de graves vícios, nomeadamente, de incoerências de fundamentação e, acima de tudo, padece de erro notório na apreciação da prova;

g) Circunstâncias que habilitam o Recorrente a arguir tais vícios perante o Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com o disposto no artigo 410.º n.º 2 alienas a), b) e c) do Código de Processo Penal;

h) Vícios esses, inerentes ao teor do Acórdão recorrido, e que se traduzem na circunstância de terem sido, erroneamente dados como provados, factos que não poderiam ser em face da prova testemunhal produzida;

i) Nomeadamente, os artigos 3.º e 4.º dos factos dados como provados, a saber:

a. “3. De imediato, o arguido, relações públicas naquele espaço, em conjunto c com outros indivíduos cuja identidade não se apurou, empurrou os ofendidos, tentando que saíssem do bar, dizendo-lhes que não eram bem-vindos, provocando, desta forma, a queda do ofendido BB”

“4. Após, com este no chão, o arguido, em conjunto com outros indivíduos cuja identidade não se apurou, desferiu diversos pontapés no ofendido BB;”

j) E por sua natural decorrência, os artigos 5.º, 6.º e 7.º dos factos dados como provados:

a. “5. Como consequência direta e necessária das referidas agressões, a ofendida CC

sofreu dores e o ofendido BB sofreu escoriação no lábio e na perna direita, que lhe determinou 10 dias de doença, sem afetação para o trabalho geral e para o trabalho profissional;

6. O arguido, em comunhão de esforços e intentos com outros indivíduos não concretizados, agiu de forma livre, voluntaria e consciente, no propósito concretizado de molestar o corpo dos ofendidos e lhes provocar as lesões que efetivamente provocou;

7. O arguido sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;”

Para o efeito,

k) O Tribunal da Relação do Porto, revogou a referida absolvição do Recorrente, tendo apenas em consideração a congruência dos depoimentos do Assistente e da Ofendida;

l) Consignando, também, como fundamento da sua decisão, a circunstância de os depoimentos das testemunhas DD e EE corroborarem os depoimentos daqueles;

m) A verdade é que tal não aconteceu, existindo evidentemente, um erro notório na apreciação da prova;

n) Ora, as referidas testemunhas – no decurso da audiência de discussão e julgamento – consignaram, ao contrário do que vem dito no Acórdão recorrido, que não conseguiram o Recorrente estava no local dos acontecimentos;

o) Sendo certo que dessa circunstância faz referência a sentença de 1ª instância;

p) Aliás, o Ministério Público, reconhece tal evidência no recurso apresentado, porquanto apenas recorre aos depoimentos do Assistente e da Ofendida para justificar uma putativa condenação do Recorrente;

q) Em face do demais, o Recorrente, em sede de resposta ao recurso apresentado, reforçou a circunstância de apenas o Assistente e a Ofendida o colocarem como autor das agressões;

r) Para além destes, nenhuma das referidas testemunhas corroboraram as imputações realizadas pelo Assistente e pela Ofendida;

s) Aduziu ainda o Acórdão recorrido, que a decisão assenta na consistência e congruência dos depoimentos do Assistente e da Ofendida;

t) Esquecendo-se, de justificar, ao abrigo dos critério de razoabilidade e de homem médio, o porquê de os Ofendidos não terem conseguido identificar o Arguido logo no momento do auto de notícia;

u) Visto que o conheciam bem;

v) Tendo admitido tal circunstancialismo, em plena audiência de discussão e julgamento;

w) Infelizmente – contrariamente ao que seria de esperar por uma análise dos factos, o Assistente e a Ofendida tem uma clara visão dos factos ocorridos há mais de dois anos!

x) Considerando, portanto, o Acórdão recorrido, perfeitamente possível e lógico, que decorridos mais de 2 anos dos factos, o Assistente e a Ofendida tenham uma memória irrepreensível dos acontecimentos daquele dia;

y) Aqui chegados, obviamente, se perceciona que a fundamentação do Acórdão ora recorrido, não pode subsistir quando confrontado com a prova testemunhal – gravada – produzida em audiência de discussão e julgamento;

z) Muito pelo facto, de nenhuma das testemunhas – excetuando o Assistente e a Ofendida – conseguir imputar ao Arguido a prática dos crimes de que vem ora acusado;

aa) E tanto assim o é, que tal circunstância decorreu na presença do Arguido em sede de audiência de discussão e julgamento;

bb) Não subsistindo, portanto, nenhuma razão ao Acórdão recorrido, quando consigna (na sua fundamentação para a condenação do Arguido) o facto de as testemunhas – DD e EE – corroborarem a tese do Assistente e da Ofendida;

cc) Existindo, obviamente, e em face de tal circunstancialismo, um erro notório na apreciação da prova!

dd) Por sua vez, olvidou-se o Tribunal “A Quo” de analisar atentamente o princípio in dúbio pro reo.

ee) Na verdade, e tal como defendido por diversos arestos jurisprudenciais, o referido princípio impõe ao julgador que decida a favor do arguido quando dos factos carreados para os autos não seja possível imputar de forma assertiva a autoria de um ou vários crimes.

ff) Por outras palavras, o Tribunal encontra-se vinculado a decidir da absolvição do Arguido, em caso de dúvida ou no caso de ausência de prova;

gg) Contudo, in casu, o Tribunal “A Quo” olvidou-se de aplicar tal princípio, na medidaem que, da análise da prova existente nos autos, nomeadamente a prova testemunhal, não podia, nem pode, permitir que o Tribunal crie uma convicção de que o Arguido foi o autor das referidas agressões.

hh) Nessa senda e não tendo sido possível determinar com certezas quem foi o autor das agressões deveria o aqui Recorrente ter sido absolvido da prática do crime, isto porque o princípio in dúbio pro reo não é um princípio de direito probatório, mas uma regra de decisão na falta de convicção.

ii) Sem prescindir e no que diz respeito ao princípio da livre apreciação da prova, mal andou o Tribunal “A Quo” a criar a sua convicção em elementos probatórios que padecem de concretização, isto porque a prova capaz de imputar responsabilidade criminal é manifestamente insuficiente.

jj) Na verdade, segundo o consignado na lei, deveria o Tribunal “A Quo” apreciar a prova segundo as regras da experiência comum e segundo critérios lógicos, objetivos e devidamente justificados.

kk) Acontece que, in casu, o Tribunal “A quo” retirou conclusões que, com o devido respeito, não poderia retirar, alheando-se totalmente do seu dever de procurar a “verdade material”, acabando por julgar segundo convicções próprias e infundadas.

ll) Veja-se que, o Tribunal “A quo” sustentou a sua convicção nos depoimentos do Assistente e da Ofendida, que teriam sido corroborados pelos amigos destes que se encontravam no local dos factos e que “presenciaram” os acontecimentos;

mm) Acontece que, tal não sucedeu, porquanto esse suporte testemunhal – que serviu de base à condenação - não existiu, nem existe!

nn) Peloque, aofazer uma interpretação, claramente,extensivae presuntiva, violouo Tribunal “A Quo” o princípio da livre apreciação da prova;

SEM PRESCINDIR,

DA PENA E DA MEDIDA DA PENA APLICADA

oo) Para além dos vícios invocados em supra, o Tribunal “A Quo” condenou o Recorrente a uma pena de prisão em detrimento da pena de multa

pp) Contudo, não consegue o recorrente compreender os fundamentos que originaram tal condenação;

qq) Porquanto, a pena aplicada viola, de forma ostensiva, os mais basilares princípios de direito penal, legalmente estatuídos no Código Penal, nomeadamente os art.ºs 70º e 71.º.

rr) De facto, o Tribunal “A Quo” condenou o Arguido a uma pena de prisão, sem atender a todos os fatores que militam a favor do arguido;

ss) Nomeadamente, o relatório social, a ausência de Registo Criminal bem como o facto de o mesmo se encontrar profissionalmente e socialmente integrado;

tt) Fatores que permitiam, inevitavelmente, e sem prejuízo do que se disse, que ao Arguido fosse aplicada uma pena de multa;

uu) Na medida em que tal pena, revelar-se-ia suficiente, adequada e proporcional.

vv) Sendo certo, que tendo o Tribunal “A quo” condenado o Arguido a pena de prisão não atendeu à aplicação legal dos critérios estatuídos nos art.ºs 70.º e 71.º do Código Penal;

ww) Ainda assim, caso não seja dada razão à argumentaria deduzida pelo ora recorrente, sempre deverá ser o mesmo perdoado da pena de prisão aplicada, em face do disposto na Lei n.º 38-A/2023, nomeadamente, pelo cumprimento dos pressupostos do artigo 2.º n.º 1;

xx) Sendo decretado,nessasequência, o perdãoda penade prisãoora consignada,nos termos do artigo 3.º n.º 1 do referido diploma legal;

PRINCÍPIOS E NORMAS VIOLADAS OU INCORRETAMENTE APLICADAS

- O Acórdão de que ora se recorre violou ostensivamente os seguintes princípios: a) Princípio in dúbio pro reo;

b) Princípio da livre apreciação da prova;

c) Violou os artigos 70º, 71º do Código Penal.

Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, e em consequência, a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que:

- Absolva o Arguido AA, da prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º do CP;

- Caso assim não se entenda, o que só por mero deleito intelectual se concebe, mas não se concede, deve o ora Recorrente ser condenado em pena de multa, pelos crimes de ofensa à integridade física simples, próxima do mínimo legal.

- Em última ratio, caso assim não se entenda, deverá ser perdoada a pena de prisão aplicada ao Arguido nos termos do disposto na Lei n.º 38-A/2023

FAZENDO ASSIM, VEXA INTEIRA E JUSTIÇA! (fim de transcrição)

3. Respondeu o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto, não apresentando conclusões, mas manifestando-se pela improcedência do recurso.

4. Neste Supremo, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer concluindo, nos seguintes termos:

Não ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova;

Não foram violados os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo;

Na alternativa com a multa, é de aplicar pena de prisão (suspensa na sua execução), pela prática dos crimes de “ofensa à integridade física simples”, p. e p. na disposição do art.143º do Código Penal, a quem, sendo relações-públicas no estabelecimento de diversão nocturna em causa, no seu interior, empurra um casal de clientes, atirando ao chão o ofendido, após o que, juntamente com outros indivíduos, lhe desferiu diversos pontapés, provocando-lhe 10 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho;

À luz da disposição do art. 3º/1, 2-d) e 3 da L-38-A/2023, de 02/08, não são objecto de perdão as penas de prisão cuja execução seja declarada suspensa sob condição do cumprimento de deveres.

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

-Deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.

5. Proferido despacho preliminar e cumprido o artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não houve resposta.

6. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II. Fundamentação

1. É pacífica a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3

Da leitura das conclusões do recorrente, o mesmo pretende ver apreciadas as seguintes questões:

Verificação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal;

Violação do in dúbio pro reo;

Violação do princípio da livre apreciação da prova;

Medida da pena;

Aplicação do perdão previsto na Lei 38-A/2023, de 02 de Agosto.

2. Elencadas as questões suscitadas pelo recorrente, vejamos, antes de mais, a factualidade dada por assente no douto acórdão recorrido e qual a fundamentação efectuada.

3. Foram dados como provados, e não provados os seguintes factos:

A. Factos provados

1. Na noite de .../.../2020, pelas 1h10, o ofendido BB e a ofendida CC, dirigiram-se para a Rua ..., para o bar M..., Lda, com alguns amigos;

2. Nestas circunstâncias, depois de entrarem naquele estabelecimento comercial, decidiram sair de imediato por se terem apercebido que não era o bar em que pretendiam estar;

3. De imediato, o arguido, relações públicas naquele espaço, em conjunto com outros indivíduos cuja identidade não se apurou, empurrou os ofendidos, tentando que saíssem do bar, dizendo-lhes que não eram bem-vindos, provocando, desta forma, a queda do ofendido BB;

4. Após, com este no chão, o arguido, em conjunto com outros indivíduos cuja identidade não se apurou, desferiu diversos pontapés no ofendido BB;

5. Como consequência direta e necessária das referidas agressões, a ofendida CC sofreu dores e o ofendido BB sofreu escoriação no lábio e na perna direita, que lhe determinou 10 dias de doença, sem afetação para o trabalho geral e para o trabalho profissional;

6. O arguido, em comunhão de esforços e intentos com outros indivíduos não concretizados, agiu de forma livre, voluntaria e consciente, no propósito concretizado de molestar o corpo dos ofendidos e lhes provocar as lesões que efetivamente provocou;

7. O arguido sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;

8. O demandante é cidadão de nacionalidade brasileira, com título de residência válido e residente em Portugal, há cerca de dois anos;

9. É licenciado em ..., e, em Portugal, está inscrito e frequenta o ciclo de estudos conducente ao grau de Mestre em 2º Ciclo em ... da Faculdade de ... Porto, referente ao ano letivo de ...2.../2022;

10. Exerce a profissão de personal trainer, em regime de prestação de serviços, e presta serviços para o grupo F...;

11. Além disso, promove a prática de exercício físico (...), por intermédio de vídeos ilustrativos com várias atividades físicas, cujos conteúdos são disponibilizados nas suas plataformas digitais, como sejam, Facebook, Instagram e YouTube;

12. Aufere em média, o valor de 162,36€ por conteúdo digital, além dos serviços que presta presencialmente no F...;

13. Os ferimentos em causa, muito visíveis, impossibilitaram o demandante de gravar exibir esses conteúdos nos canais digitais mencionados durante cerca de um mês; impossibilitaram o demandante de prestar serviços de personal trainer para o grupo F..., e durante todo esse tempo ele teve que sofrer perda de rendimentos e obrigaram à sua exibição pública inevitável perante os colegas do grau de Mestre em 2º Ciclo em ... da Faculdade de ... e outros conhecidos do demandante durante cerca de um mês, e durante todo esse tempo ele teve que sofrer o vexame inerente a essa situação;

14. E obrigaram-no a adotar cuidados especiais para não prejudicar a cura, traduzidos nomeadamente em evitar executar tarefas que pudessem provocar algum choque na zona afetada ou o contacto com quaisquer agentes nocivos, limitando-lhe a liberdade de movimentos;

15. A mãe do demandante, que reside no Brasil, viajou para Portugal para lhe prestar auxílio e apoio emocional;

16. O arguido AA é oriundo de uma família estruturalmente funcional e que se configurou como suporte relevante na organização da sua trajetória de vida. O seu processo de socialização ocorreu num espaço familiar orientado por padrões normativos, direcionado para a concretização de objetivos promotores de autonomia e configurando-se potenciador de uma inserção ajustada nas diferentes instâncias de socialização. O seu percurso escolar decorreu de modo adaptativo e sem retenções até à conclusão do 9º ano de escolaridade, tendo sido pai aos 15 anos de idade, facto que conduziu à interrupção do processo de escolarização para assumir as funções parentais, coadjuvado pela família de origem. Decorridos dois anos retomou os estudos, tendo concluído curso de Educação e Formação em regime noturno. Em termos profissionais iniciou atividade laboral com aos 19 anos de idade numa fábrica de cablagem na ..., durante 2 anos sendo que, findo o contrato de trabalho, com cerca de 22 anos foi admitido na empresa M..., Lda.sita na R. da ... 68, ... Porto, onde ainda se mantém como relações públicas da empresa, com contrato de trabalho sem termo, auferindo um vencimento base no montante de 760.00€. Na sua trajetória vivencial, o arguido referencia a coesão familiar como elemento primordial, constituindo-se relevante na coadjuvação das suas funções parentais, consequentemente no processo desenvolvimental também do descendente, uma vez constituir-se o único elemento do casal parental a assumir as responsabilidades inerentes. O arguido vive com o descendente, FF, de 16 anos de idade, a frequentar o 11º ano de escolaridade, existindo entre ambos forte vinculação afetiva, a qual é extensível aos restantes elementos da família de origem. Como despesas fixas menciona a assunção dos custos com eletricidade, água e gás numa média mensal de 250.00€, comparticipação para as despesas comuns, no valor aproximado de 180.00€. Não obstante o desenvolvimento da atividade laboral num contexto de convivialidade/diversão noturna, afirma ter funções de relações públicas há aproximadamente 8 anos, sem que tenha vivenciado qualquer problema relacional, orientando o seu comportamento por padrões de conduta adequados;

17. O arguido nunca antes foi condenado pela prática de qualquer infração criminal.

B. Factos não provados

Não resultou provado que

a) A descrita atuação do demandado tivesse causado danos ao demandante, resultantes em enervamento, desgosto, vergonha, angústia, aviltamento da sua imagem, que se tivessem traduzido em forte abalo moral;

b) As graves lesões traumáticas descritas em a) tivessem sido causa direta e adequada dos diversos socos e pontapés que o demandado desferiu no ofendido BB;

c) Que por causa da atuação do demandado - e desde o seu início até agora - o demandante tivesse passado a viver continuamente aterrorizado, angustiado e desesperado, e esse estado ainda permaneça; que o demandante temesse permanentemente e continue a temer pela sua vida; que tivesse passado numerosas noites sem dormir, e que a ansiedade continuasse durante vários meses, assim como a angústia e o desespero.

4. Em sede de fundamentação da matéria de facto, escreveu-se na decisão recorrida:

2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos

Discorda o recorrente da decisão de facto relativamente às al. A), B), C), D), E, F), G), H) e I) dos factos dados como não provados. E primordialmente quanto aos pontos A) e B), que são centrais, enquanto pressuposto lógico da verificação da realidade dos demais, já que traduzem a imputação ao arguido de condutas objetivas típicas de agressão física sobre o assistente e a ofendida, factos que o Tribunal a quo considerou não estarem probatoriamente demonstrados, por ter entendido que os meios de prova produzidos encerram contradições que, na respetiva avaliação, à luz do art.º 127º do CPP e do princípio da livre apreciação da prova aí contido, fundamentam uma dúvida que impõe a aplicação do princípio in dubio pro reo.

O Ministério Público, discordando de um tal entendimento, sustenta que os excertos das declarações do assistente e do depoimento da ofendida, concretamente indicados na motivação do recurso, bem como o exame pericial de fls. 18 a 20, no qual se enumeram as lesões sofridas pelo assistente, ademais o documento junto a fls. 121, impõem decisão diversa da recorrida.

Ouvimos os excertos das declarações do assistente e da ofendida, indicadas pelo Ministério, mas a consistência, a congruência objetiva dos mesmos, a linearidade e a concretude com que neles se revelaram os factos, com uma singular objetividade e coerência, levou-nos à necessidade de ouvir tais declarações na integra, audição que nos permitiu confirmar a força probatória que as mesmas objetivamente representam, enquanto meio de prova aferível e valorizável pela mera audição dos registos áudio da sua prestação e, sem a necessidade, portanto, de se recorrer a uma minuciosidade de análise da credibilidade da prestação das respetivas declarações, que fosse também baseada ou pudesse depender dos gestos, interjeições, ou signos comportamentais dos respetivos intervenientes, só perscrutáveis na audiência de julgamento realizada em primeira instância, por quem lá esteve, num processo de relação de imediação com a prova que só o Tribunal de primeira instância tem, sendo certo que o Tribunal a quo não invocou tal linguagem gestual ou comportamental na motivação da decisão de facto recorrida, enquanto elemento que pudesse servir para a formação da sua convicção, mas tão somente a contradição insanável que considerou existir entre aquelas primeiras declarações e as declarações do arguido e os depoimentos das restantes testemunhas, circunstâncias que levaram este Tribunal de recurso, ao abrigo do disposto no art.º 412º, nºs 4 e 6, do CPP, a ouvir os demais depoimentos prestados, e assim, da análise do respetivo conteúdo e da razão de ciência que dos mesmos se pode extrair, proceder à descoberta da verdade material e desde logo à possibilidade de se concluir ou não pela existência de uma dúvida insanável, que sustente a aplicação do princípio in dubio pro reo, relativamente à concreta factualidade dada como não provada, como entendeu o Tribunal a quo, ou se, nos termos pretendidos pelo Ministério Público, o que resulta é a afirmação da robustez probatória das declarações do assistente BB e do depoimento da ofendida e testemunha CC, que no cotejo com os demais meios de prova, essenciais ao apuramento dessa dúvida insanável referida na fundamentação da decisão de facto, a ponham em causa, e de tal modo que, ao mesmo passo, impliquem a prolação de uma decisão diversa da recorrida, nos termos do art.ºs 412º, nºs 3, al. a) e b), do CPP.

Ouvidas as declarações do arguido e do assistente, assim como os depoimentos das demais testemunhas, e cotejado o seu conteúdo, entre si, e com os demais meios de prova produzidos, a conclusão que se pode objetivamente extrair é a de que a dúvida invocada pelo Tribunal a quo, não tem, a nosso ver, fundamento bastante, só se vislumbrando possível que a mesma pudesse assentar na evidenciação subjetiva de uma mera contradição formal de declarações e depoimentos, entre, por um lado, as declarações do assistente e depoimento da ofendida (e testemunha) CC, declarações e depoimentos estes que são ademais corroborados pelos depoimentos das testemunhas DD e EE, e os demais depoimentos prestados, por outro, sem que, todavia, atendesse o Tribunal a quo ao respetivo conteúdo e ao seu concreto e específico valor, partindo de uma análise tão linear quanto, a nosso ver, lacunosa, produzindo ademais ilações sobre eles que não têm cobertura numa avaliação mais global dos meios de prova produzidos, mesmo quando essa avaliação se centre numa perspetiva puramente analítica, e muito menos quando neles se descortina a concreta razão de ciência que revelam alguns do intervenientes ou mesmo o interesse, ora velado, ora ostensivo, em protegerem o arguido, de quem são colegas de trabalho ou mesmo declaradamente amigos. Neste ponto, sublinhe-se que na decisão recorrida se afirma que o arguido negou perentoriamente os factos, “assegurando que não esteve sequer presente aquando da eclosão dos desentendimentos e nenhum envolvimento teve no desfecho da contenda, que terá cessado por intervenção dos dois seguranças em exercício de funções naquela noite”, e que tal versão “é plausível em abstrato”, quando o que importava apurar é se era plausível em concreto, face aos meios de prova produzidos, acrescentando-se em tal decisão que tal versão, “plausível em abstrato”, foi corroborada pelas testemunhas GG e BB, seguranças do espaço noturno de diversão, e que terão tido intervenção direta nos acontecimentos, o que nos leva também a crer que uma tal intervenção e corroboração dos depoimentos só poderá igualmente ocorrer em abstrato, porquanto, em concreto não vislumbramos como o possa ser.

Em verdade, a testemunha GG, que veio fardada, não se sabendo exatamente porquê, ou a verdadeira razão que esteve por detrás do uso de uma tal indumentária em plena audiência de julgamento, sendo que, quanto a isso, o que a própria testemunha disse foi que tal farda só a usava quando estava em serviço, à noite, no mesmo bar onde é segurança e onde trabalha o arguido, justificando usá-la naquele momento para saberem que é segurança e que usa tal farda quando está em serviço, faltando no entanto saber se a trouxe vestida por iniciativa própria ou por alguém interessadamente lho ter pedido ou ordenado, sendo certo que a testemunha trabalha com o arguido desde há 5 ou 6 anos. Ora, a vaguidade e a generalidade com que depôs sobre os factos é tão grande que contrasta com o rigor, o detalhe e a clareza sobre a forma, o lugar, o tempo e as causas que determinaram a ocorrência dos factos, que se retiram das declarações do assistente e das testemunhas CC, DD e EE, e são próprios de quem viveu os factos ou diretamente os presenciou. Mesmo se passarmos por cima da necessidade que a testemunha GG evidenciou, sem ninguém lho pedir ou perguntar, de falar sobre a razão por que anteriormente havia dito que conhecia o casal que estava na audiência (deduzindo-se claramente que quem o interrogava se referia ao assistente e à ofendida/testemunha CC), dizendo em tom de justificação que se lembrava do casal, não referindo, como seria normal, que os conhecia por ter assistido aos acontecimentos, mas com o facto de ter estado doente, por uma semana antes ter tido pneumonia, e ter voltado ao trabalho naquele preciso dia da ocorrência dos factos (depoimento da testemunha a partir do minuto 2:40), o pior é que quando fala sobre o que aconteceu, dizendo que estava cá fora, no exterior, portanto, e que também cá fora estava um grupo de ingleses, “assim, mais ou menos uns dez, tou a falar mais ou menos” (a partir do minuto 4:14) “e este grupo aqui”, apontando para os ofendidos (sendo por iniciativa de quem interroga que tal facto fica registado na gravação do depoimento), “mais dois, mais ou menos”, “e esse grupo quis passar pelos ingleses. Conclusão da história: os ingleses levaram a mal. Só que os dois… como eles falavam inglês” (referindo-se novamente aos ofendidos) … os ingleses começaram a discutir com eles, eles começaram a falar inglês, eu não sei falar inglês”. De seguida, diz a testemunha que se colocou no meio para os acalmar e que “voltou para dentro” porque não sabia falar inglês (a expressão “voltou para dentro”, não parece ser muito exata, porquanto inculca a ideia que tinha saído do interior do bar antes dos factos acontecerem, quando na verdade havia afirmado que estava cá fora) e chamou o AA, o ora aqui arguido, porque ele sabe falar inglês, e quando voltou para fora viu que estavam todos na confusão. Mas o arguido não chegou a vir cá fora, diz a testemunha (a partir do minuto 5:47). Acrescentando que quando chegou cá fora estava “tudo à porrada”.

Não se percebe porque é que, estando “tudo à porrada”, ainda por cima contra um grupo de ingleses zangados, só o assistente tenha apresentado lesões, e nenhuma outra das pessoas que o acompanhavam apresentasse qualquer ferimento, lesão ou queixa. E quando a Exma. Senhora Magistrada do Ministério Público pede à testemunha que esclareça como era a confusão, eloquentemente, responde a testemunha, a partir do minuto 6:25:

“- Tavam todos numa confusão enorme, empurraram…”

“- Fico na mesma. Tavam todos numa confusão…” questiona quem interroga.

“- Tavam todos à porrada.”

“- Que é a confusão?”

- É entre os ingleses e eles.”

E acrescenta a testemunha, a partir do minuto 6:38:

“- E eu cheguei lá como minha posição e como cidadão fui lá separar (…) fui eu primeiro (…) e depois veio o meu segundo colega, que é o BB” (BB, também testemunha no processo). A mesma testemunha refere ainda que ninguém ficou magoado, apenas o assistente, denotando ainda não saber se veio ou não a ambulância. E mais adiante, a partir do minuto 10:15, depois de lhe ter sido perguntado sobre o que tinha acontecido aos ingleses, responde: “Os ingleses foram-se embora. Aquilo foi uma confusão, nós começámos a separar… claro… empurra um, empurra outro, empurra um, empurra outro, empurra um e eles foram-se embora. Simplesmente foram-se embora.”

Ou seja, a “porrada” em que todos andavam, afinal foi apenas um “empurra-empurra” ou um “empurra um, empurra outro”, com a testemunha pelo meio a tentar separar, mas sem que refira quem agrediu quem, ou se alguém agrediu alguém e se os ingleses se foram assim embora, sem mais, e sobretudo quem então terá agredido o assistente, já que a testemunha afirmou tê-lo visto com lesões, a única pessoa aliás a ter sido verdadeiramente ofendida, o que se estranha, quando afinal, contraditoriamente, disse a mesma testemunha que andaram todos “à porrada”, o que é bem diferente de um “empurra-empurra”. E tendo andado à porrada, ainda para mais dois grupos de indivíduos, em que um deles aparece fortemente agredido no rosto, não se percebe como as coisas possam ter ficado e acabado apenas assim, como diz a testemunha. Testemunha que ao longo do seu depoimento, reitera que o arguido AA não compareceu no exterior enquanto durou toda aquela contenda. Estranhando-se, aliás, que a testemunha tivesse ido chamar o AA, que lhe terá dito que iria já, mas nunca apareceu, para um assunto que apenas a si e ao seu colega BB diria respeito, por serem os agentes privados de segurança, e não àquele que era relações públicas e apenas trabalhava no interior do bar e se veste de um modo formal, como disse a testemunha HH, sócio-gerente do estabelecimento onde ocorreram os factos (os quais esta testemunha não presenciou, por não se encontrar no local), mas bem vestido, de forma “elegante”, sendo que arguido mede, mais ou menos, segundo a testemunha GG, 1,70m, enquanto esta última mede 1,85m e o outro colega, o BB, 1,86m ou 1,87 (a partir do minuto 2:20).

É também representativo o depoimento da mesma testemunha GG, quando ao minuto 16:15 lhe é perguntado se em algum momento viu ou se apercebeu que o Senhor AA tivesse atingido algum dos elementos do casal e muito concretamente o Sr. BB, e responde, em clara fuga à pergunta assim feita: “Eu ainda o II é que… quando fui buscar o BB, o BB estava debaixo de três ou quatro ingleses”. Acrescentando, em confirmação do que acabara de afirmar quem o interroga: “Cá fora”. Não respondendo, portanto, à pergunta sobre se afinal o arguido AA tinha ou não atingido a vítima.

Ou seja, tivemos a versão espontânea da porrada, depois do empurra/empurra, e de os ingleses se irem embora depois do empurra/empurra e das tentativas de separação dos contendores pela própria testemunha, e o chamamento do arguido, por falar inglês para vir tentar apaziguar a contenda, com os sinais de evidente inverosimilhança já acima referidos, e, agora, uma novidade, afinal, e depois de 17 minutos de prestação de depoimento, evitando claramente a resposta a uma pergunta que lhe foi feita (se o Senhor AA, ora arguido, tinha atingido algum dos elementos do casal), o facto mais importante, que foi a testemunha ter tirado o assistente de debaixo de três ou quatro ingleses.

O depoimento da testemunha JJ, cliente do estabelecimento, é ainda mais sintomático da alienação da concreta realidade que está em causa nos presentes autos, pois, mais do que a sua própria inocuidade, revela, ainda que porventura ingenuamente, a intenção de produzir declarações favoráveis ao arguido, pois não conhece o casal, ou seja o assistente e a ofendida, e aos factos limitou-se a dizer que estava à porta do M..., Lda quando “isto” aconteceu, à sua frente, uma confusão, com estrangeiros, a empurrarem-se e os seguranças a separarem, não sabendo a data em que tais factos aconteceram, mas nunca viu o AA cá fora ou o seu envolvimento cá fora. E não percebeu porque é que se deu a confusão, pois não percebe inglês (a partir do minuto 5:30). Nem se apercebeu que estivessem lá pessoas de nacionalidade brasileira, nem sabia se eram grupos distintos ou não, ou se houve agressões ou não. Sendo evidente a insegurança e o desconforto da testemunha quando responde ao interrogatório que lhe é feito na parte final do seu depoimento, protegendo-se e não saindo do limiar do relato muito vago e genérico que produz sobre os factos que diz ter percecionado e que tornam incompatível a história que os mesmos revelam com a história contada pela anterior testemunha. Não é possível, ou melhor, verosímil, que se refiram à mesma realidade.

O mesmo se pode dizer do depoimento da testemunha KK (por lapso identificado no Citius Media Studio como JJ), declaradamente amigo do arguido, desde os 14 anos de idade, afirmando que também frequenta o bar M..., Lda e que estava na fila, no exterior do bar, no dia em que “esta confusão” aconteceu, como se a testemunha já soubesse de que “confusão” se tratava, da sua data, das pessoas envolvidas, pois nada lhe é referido ou perguntado sobre isso, concretamente, circunstâncias que são assim tidas como um dado adquirido ou pré-adquirido, um pressuposto, que a testemunha, apesar dos anos que entretanto passaram, desde a ocorrência dos factos, teria absolutamente presente e que quem interroga, para o Tribunal ouvir, também o dá como adquirido, e explica a testemunha, como quem sabe ao que vem: “vi pessoas a falar e a ralhar uns com os outros… heee… depois vi o LL a vir, a separar e depois… eu também… eu também… eu também quando abriu a confusão eu também … saí da fila e afastei um bocadinho e depois …içou-se” (impercetível). E quando perguntado ao minuto 2:20 se viu alguma agressão, responde: “Não, não vi.” Quando lhe é pedido para olhar para trás e perguntado se se lembra “daqueles senhores”, depreendendo-se que quem interroga se referia aos ofendidos, responde a testemunha: “Não.” (a partir do minuto 2:30). Afirmando também que, enquanto esteve no exterior do bar, nunca viu o AA cá fora (minuto 2:55). E que depois de entrar viu lá dentro o AA, mas que não falaram sobre a confusão, só levantou o braço: “fiz assim e está feito”. E ao minuto 3:20, afirma que, quando entrou, a confusão já estava acabada. E mais adiante, a partir do minuto 4:13, quando lhe é perguntado sobre a razão por que se terá dado o desentendimento, responde: “Não faço ideia.”

Ou seja, desde que viu a “confusão” até entrar no bar, momento em que diz que a confusão já tinha acabado, a testemunha só viu pessoas a ralhar umas com as outras, não viu quaisquer agressões ou concretos insultos, nem percebeu a razão pela qual as pessoas se ralhavam ou discutiam.

Finalmente, o depoimento da testemunha BB, que foi agente de segurança do estabelecimento onde ocorreram os factos, num depoimento claramente defensivo, na linha dos últimos referidos, refere com a mesma vaguidade que estava perto da porta da entrada, no interior do edifício onde fica a discoteca, ouviu um barulho na porta (minuto 3:57) e quando olhou na direção da porta, que dá acesso à entrada da discoteca já não viu o GG (a testemunha acima referida), viu o colega a tentar puxar um miúdo debaixo e muita gente à volta dele, o GG a arrastá-lo para um canto, com sangue na cara, tinha gente em cima dele, mas não consegue a testemunha afirmar que tenha sido o assistente a vítima ou que lá estivesse a ofendida e, claro, também afirma que o arguido não estava lá na “confusão”. Ou seja, 27 dias depois da prestação do depoimento em audiência de julgamento da testemunha GG, que era seu colega no M..., Lda, vem esta testemunha, com generalidades e superficialidades que perpassam todo o seu depoimento, apresentar uma versão próxima daquela que na ponta final do seu depoimento a testemunha GG, seu anterior Colega, quis dar sobre o ter tirado o assistente debaixo de outras pessoas, referindo que seriam “três, quatro ou cinco, não sei” (a partir do minuto 4:24), referindo-o assim com esta determinabilidade, veja-se bem, apesar das vaguidades que denota quanto a tudo o mais, num detalhe que comparado com o excerto do depoimento da testemunha GG, não poderá deixar de nos merecer outra consideração que não seja a de tratar-se de uma duvidosa coincidência. E com a certeza também de que não viu o arguido cá fora. Colocando assim o arguido bem longe dos factos que dizem ter acontecido no exterior. Sendo certo que é o próprio arguido que nas declarações que prestou no dia 09/02/2023, a afirmar que esteve cá fora. Nessa noite não viu o que aconteceu, repete-o ao minuto 5:35, mas depois diz que ouviu o colega dizer para ir à porta porque estava uma confusão na entrada, na fila, entre estrangeiros e “meu colega não fala inglês” (a partir do minuto 6:14), prosseguindo:

“Quando eu tou a vir…”

“- Isso foi o segurança?” – é-lhe perguntado.

Responde o arguido:

“- Isso foi o segurança que me chamou a mim. Quando eu tou a vir já está uma confusão, estão os dois seguranças, porque, entretanto, chegou o outro também, também tava dentro da pista e foram separar. A única coisa que eu ouvi foi, estes dois indivíduos a chamar ‘filhos da puta, vão tomar no seu cú’ e tavam os seguranças a separar, a mandar parar e foi a única coisa que eu vi. Depois disso como já estavam lá os seguranças eu não fiz nada, não tinha que intervir, não tinha que fazer nada, voltei a fazer a VIP…” E mais adiante, a partir do minuto 9:20, acrescenta que não sabe se as afirmações ofensivas que os ofendidos expressaram, que repete, eram em direção só aos seus colegas “se era também aos outros…”, e interrompe quem interroga, antecipando-se: “aos clientes, que estavam preteri…, que tinham sido preteridos por…”, interrompendo agora o arguido quem o interroga: “Exatamente!”, continuando quem interroga, visando completar o que o arguido estava a dizer: “por estarem na fila, à frente, supostamente!”.

À pergunta sobre a razão por que os ofendidos se teriam ido queixar contra ele sobre estes factos, responde: “É assim: eu estou sempre na discoteca ou tou cá fora ou sou eu que dou os tikets à porta muitas vezes, então é normal ser mais conhecido e facilmente identi…”, sendo aqui interrompido para lhe perguntarem porque é que o identificaram a ele e não aos seguranças, respondendo o arguido: “mas é mais fácil de me identificar a mim do que os seguranças”. Os seguranças que, afinal, até “andam fardados”, como bem encenou na sua presença em Tribunal a testemunha GG, enquanto o arguido se veste de forma mais comum, embora bem vestido, sendo que aqueles dois seguranças, segundo a versão do arguido e das últimas testemunhas referidas até teriam estado no exterior onde se deu a alegada contenda e um deles terá tirado a vítima debaixo de um grupo de agressores. E, mesmo assim, as vítimas e as pessoas que as acompanhavam não viram aquelas fardas? Ou será que não os quiseram identificar porque afinal foram eles as pessoas que os salvaram das agressões daquele aventado grupo de ingleses? Não vale a pena continuar. Trata-se, afinal, a nosso ver, de uma narrativa infundada, sem suporte probatório, que além do mais levaria a uma absurda hipótese de autoria de um crime de denúncia caluniosa, por parte das vítimas e das testemunhas que corroboraram as suas declarações, sendo que a falta de suporte probatório resulta ademais reforçada pela prova da realidade dos factos, tal como vêm descritos na acusação, assente nas declarações do assistente e nos depoimentos da ofendida CC, DD e EE e ainda na prova pericial, declarações e depoimentos que possuem uma coerência, uma clareza, espontaneidade e rigor sobre as circunstâncias de lugar, modo e tempo em que se deram os factos e das razões que estiveram por detrás da sua ocorrência, a respetiva motivação, que impõem decisão diversa da recorrida.

O terem ido à Galeria ... (Rua da ..., no Porto, onde é sabido que há vários bares e discotecas) na celebração do aniversário do assistente (declarações deste a partir do minuto 2:35) e depois de chegarem ao local do M..., Lda pensaram ir a uma outra festa, “só que quando entrámos lá, a gente percebeu, na verdade a CC percebeu, que não era o local que a gente queria e nessa M..., Lda, não sei como funciona desde então, mas eles tinham um benefício para quem tinha cartão de Erasmus, que não pagava, que era o meu caso e o da CC e como eles estavam na frente e eu estava seguido dela, quando ela percebeu que não era esse o lugar, ela me avisou que não era ali, e então eu virei para trás para falar com os meus amigos alemães em inglês, e que não era esse o lugar, eles já estavam quase para pagar… 5 ou 10 euros... heee… e então a gente falou que não era esse o lugar, que não precisavam pagar que a gente ia sair. Estávamos todos saindo, em quando isso, o responsável que está aqui atrás, ele começou a nos xingar e a gente já estava saindo e nos xingou, ele empurrou a CC até mim com muita força, ela caiu sobre os meus pés, na mesma hora o meu instinto foi empurrar ele de volta e aí quando aconteceu isso ele vem em direção a mim e nesse mesmo momento um segu, um outro segurança, um outro funcionário do estabelecimento me empurrou e eles me puxaram ali pra dentro pra (impercetível) e depois socos, pontapés e até um momento que a CC, tentando me ajudar a me tirar dali e os outros dois amigos alemães também, os outros dois brasileiros e foi toda essa confusão até que eu consegui realmente sair ou eles me tiraram”. E a partir do minuto 14:00 esclarece a forma como ocorreram os socos e pontapés, “por parte dele”, o arguido, e também de “outros seguranças”, que não consegue identificar. Sendo que conheciam o arguido por várias vezes o verem lá, por já terem entrado nesse bar uma ou outra ocasião e “já tinha visto ele no bar”. Acrescentando: “Em relação a ser segurança ou a ser porteiro, pra mim eu não fico reparando nisso, se alguém é porteiro, se alguém é segurança”.

Estas declarações, cristalinas, e que assim se mantêm mesmo após certos momentos do interrogatório que lhe foram impostos, são corroboradas pelo depoimento da ofendida CC, e pelas testemunhas DD (depoimento a partir do minuto 2:00) e EE (depoimento a partir do minuto 1:52), e desde logo o motivo porque tudo aconteceu, que foi o assistente se ter dirigido aos amigos para irem embora sem efetuarem o pagamento que se preparavam para realizar, por desejar ir a outro sítio.

E a partir do minuto 16:35, depois de esclarecer que não tinham a certeza sobre quem eram os funcionários ou os seguranças que o agrediram, que eram mais dois, além do arguido, diz o assistente: “dessas duas pessoas … como a gente, não tem… não deixaram a gente ir lá dentro, reconhecer os seguranças (referindo-se aos agente da PSP que entretanto compareceram no local e os demoveram de se deslocarem ao interior do estabelecimento para não haver confusão), nós não tínhamos certeza se essas pessoas eram de facto funcionários, seguranças lá do local, mas tinha pessoa que nós tínhamos absoluta certeza, que foi até que causou tudo isso” e “não estava lá”, referindo-se às fotografias que lhe foram mostradas no posto policial, e mais adiante explicando como é que chegaram ao nome do arguido, através de pesquisa nas redes sociais, a partir do minuto 17:27: “pra ver se achávamos qualquer foto do local em estivessem pessoas” “e na hora em que a gente viu a foto, não tínhamos dúvidas de que era ele”.

A verdade é que tendo os agentes de autoridade sido chamados ao local, apesar da insistência das vítimas, os mesmos demoveram-nas de entrar no Bar com eles, para que aí pudessem indicar quem foram os agressores, nomeadamente os ditos “seguranças” ou funcionários, que a testemunha DD refere como sendo os funcionários que “trabalham aí na porta”, com os quais também estava o arguido, e que considerou que eram seguranças porque “são maiores” (minuto 3:28). Este “são maiores”, encontra razão de ser no que disse a testemunha GG, nos termos já acima referidos, que o arguido teria 1,70m de altura, enquanto ela media 1,85m e o outro colega, 1,86m ou 1,87m. Sendo certo que a testemunha DD e sobretudo os ofendidos foram cabais na identificação que fizeram do arguido, como a pessoa que esteve envolvida nas agressões, nos termos acabados de referir, porquanto a conheciam do local, a tinham visto várias vezes antes, só não sabiam o nome dele, tendo para tal recorrido às redes sociais.

Postos perante os excertos das declarações e depoimentos acabados de referir, sob a luz de um padrão objetivo de racionalidade tido como comum para um normal cidadão, de inteligência mediana, medianamente sagaz e inteligente, somos levados a concluir que os factos só poderão ter ocorrido nas circunstâncias em que os mesmos resultam relatados pelas vítimas das agressões e pelas testemunhas que corroboram as declarações daquelas e não como os mesmos foram contados pelas demais testemunhas, em cujos depoimentos o Tribunal a quo se baseou para considerar que existia uma dúvida sobre a realidade dos factos dados como não provados, dúvida que não vislumbramos existir, e muito menos uma dúvida insuperável sobre a realidade dos factos, que impusesse a aplicação do princípio in dubio pro reo, isto é, a persistência de uma dúvida razoável e insanável que determinasse ao julgador uma pronúncia favorável ao arguido, no sentido de serem dados os factos controvertidos como não provados, porquanto sendo aquele princípio corolário lógico do princípio da presunção de inocência consagrado no art.º 32º, nº 2, da CRP, e enquanto princípio probatório que é, porque “referente à decisão sobre a prova dos ‘factos’, e não à interpretação e aplicação do direito criminal”, traduz antes de mais uma exigência probatória, na medida da imposição “sempre e apenas da solução exata (ou tida por exata)”, isto é, “a prova da infração, ou, inversamente, a inadmissibilidade de uma condenação por uma infração não provada.”4 E no caso dos autos o que resulta da prova produzida, e desde logo dos excertos das declarações do assistente e das testemunhas acima referidas é a demonstração da realidade dos principais factos que o Tribunal a quo deu como não provados.

Razão por que se impõe a prolação de decisão diversa da recorrida, nos termos invocados pelo recorrente, de harmonia com o disposto no art.º 412º, nºs 3, al. a) e b), 4 e 6, do CPP, dando-se como provados os factos constantes das al. A) a E), os três últimos, por presunção judicial, isto é, como decorrência lógica da ocorrência dos primeiros, segundo as regras da experiência comum, mas não já a factualidade constante dos pontos F) a I), no que neles resulta descrito como danos sofridos pela vítima, para além dos que ficaram demonstrados nas alíneas anteriores, já que dos excertos das declarações e depoimento especificadamente indicados pelo Ministério Público, assim como dos demais meios de prova concretamente indicados para fundamentar a impugnação da decisão de facto, nenhuma ilação probatória se pode extrair que permita dar aqueles factos como provados, sendo certo ademais que este Tribunal não faz um segundo ou novo julgamento da matéria de facto, mas apenas averigua, com base nos concretos meios de prova especificadamente indicados pelo recorrente, nos moldes exigidos no art.º 412º, nºs 3, al. a) e b), 4, 5 e 6 do CPP, a existência de concretos e identificados erros que imponham decisão diversa da recorrida.

Assim sendo, a consequência será a alteração da decisão de facto recorrida, nos termos do artigo 431º, alínea b), do Código de Processo Penal, relativamente ao ponto 2. dos factos provados, de molde também a compatibilizá-lo com os agora considerados provados, nomeadamente os descritos nas al. A) a E) da decisão recorrida, fazendo-se constar estes da factualidade dada como provada, nos termos peticionados pelo Ministério Público, eliminando ademais incongruências e contradições que a decisão recorrida pudesse conter.

5. Apreciando.

5.1 O recorrente, ao longo da motivação e também nas conclusões (h) a bb)), vem colocar em crise a valoração da prova efectuada no douto acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, defendendo que os factos não deviam ter sido dados como provados tal como tinha decidido a 1ª instância, chamando à colação o vício do erro notório na apreciação da prova.

Importa esclarecer, antes de mais, que este Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito, sem prejuízo do conhecimento da verificação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal e dos demais vícios de direito (artigo 434º do Código de Processo Penal).5

Está, pois, este Tribunal Supremo impedido de apreciar ou sindicar a valoração da prova efectuada pelas instâncias, fora do referido enquadramento legal.

5.2 O recorrente suscita expressamente a verificação do vício de “erro notório na apreciação da prova” associando ao mesmo a “violação dos princípios do in dúbio pro reo e da livre apreciação da prova.

No que respeita à apreciação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recurso não é admissível, por força da conjugação dos artigos 432º e 434º, ambos do mesmo código, no qual se exepciona a alínea b), por referência ao artigo 400º, nº 1 alínea e), ao abrigo da qual foi interposto o presente recurso.

Contudo, porque os referidos vícios podem ser e são de conhecimento oficioso,6 procederemos à apreciação do mesmo.

Os vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum, sem recurso a outros elementos estranhos ao texto da decisão, pois trata-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.7

Estamos em presença de erro notório na apreciação da prova sempre que do texto da decisão recorrida resulta, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. Ou seja, que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum8.

Neste mesmo sentido, escreve-se no sumário de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, «O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum»9.

Para se verificar este vício tem, pois, de existir uma «(…) incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também, quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum»10.

Este entendimento da jurisprudência é também seguido pela doutrina, pois, como refere Paulo Saragoça da Matta, ao tribunal de recurso cabe apenas “(…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração11.

Tendo em conta estes ensinamentos e a leitura da decisão recorrida, particularmente a fundamentação da alteração da matéria de facto, anteriormente transcrita, facilmente se concluiu não existir o vício invocado pelo recorrente.

O que o recorrente pretende com a invocação do referido vício, é colocar em crise a convicção que o Tribunal da Relação do Porto formou perante as provas produzidas em audiência, a cuja audição procedeu na íntegra, e substituir essa convicção pela sua própria convicção.

Porém, a divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou, não se confunde com o vício de erro notório de apreciação de prova, nem qualquer outro do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal.

A divergência de convicção entre e o recorrente e o tribunal recorrido é, salvaguardadas as questões dos vícios do nº 2 do artigo 410º e vícios de direito, uma não questão, porquanto é a este último que cabe decidir sobre a prova produzida e a factualidade provada ou não provada.

Inexiste, assim, na decisão recorrida o vício invocado pelo recorrente ou qualquer outro que este Supremo Tribunal de Justiça tenha de apreciar.

Como ficou referido quando foram elencadas as questões a decidir, o recorrente associa o alegado vício à violação do princípio de presunção de inocência.

O princípio de presunção de inocência condensado na fórmula latina in dubio, impõe que, em caso de dúvida na valoração da prova, a decisão seja pro reo, isto é, decidida a favor do réu. Pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. Trata-se de um princípio de prova de aplicação geral.12

Este princípio decorre, desde logo, do princípio da presunção de inocência estabelecido no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, bem como da inexistência de um ónus probatório pelo arguido em processo penal, no sentido de que o arguido não tem de provar a sua inocência para ser absolvido.

Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Maio de 2009, “A violação do princípio in dubio pro reo pressupõe um estado de dúvida insanável no espírito do julgador, só podendo ser afirmada quando do texto da decisão recorrida decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido. Saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito a matéria de direito, mesmo que de revista alargada.13

Como se vê dos pressupostos e da natureza do princípio, o mesmo, para ter aplicação, pressupõe que o Tribunal do julgamento do facto tenha ficado com dúvidas sobre determinado facto e que, na dúvida, tenha decidido contra o arguido.14

Ora, lida a fundamentação sobre a matéria de facto, resulta inequívoco que o Tribunal da Relação do Porto, não ficou com dúvidas em relação aos factos provados e, por isso, não faz qualquer sentido lançar mão do princípio in dubio pro reo.

O recorrente entende que existem dúvidas quanto à totalidade dos factos dados por provados, pois negou os mesmos, o que não foi valorado positivamente pelo Tribunal.

Ora, onde Tribunal teve dúvidas aplicou correctamente o princípio, como se verificou em relação aos factos dados como não provados e resulta da respectiva fundamentação do facto.

As dúvidas alegadas pelo recorrente, inexistiram na valoração efectuada pelo Tribunal a quo a qual, naquilo que é passível de controlo por este Supremo Tribunal, como deixámos dito, nenhuma censura nos merece.

O Tribunal da Relação, na fundamentação da matéria de facto do seu douto acórdão, explica de forma cabal, coerente, lógica e consentânea com as regras de experiência, os factos provados e não provados, não existindo, em tal fundamentação, qualquer dúvida razoável sobre a autoria por parte do arguido na prática dos factos.

O recorrente alega ainda, a violação do princípio da livre apreciação da prova.

O referido princípio está expressamente consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, o qual impõe, salvo quando a lei dispuser diferentemente, que a prova “(…) é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”

O princípio da livre apreciação da prova, fora do contexto do erro de julgamento ou dos vícios legalmente previstos, afasta todas as situações de valoração diferente de prova, como fundamento para se concluir pela errada apreciação da mesma.

Como referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e S. Nora, “(…) existem no julgamento da matéria de facto operações de carácter racional e psicológico, em que se baseia a convicção do julgador, que são, pela sua própria natureza, insindicáveis pelo tribunal de recurso.

E o dito princípio da livre apreciação da prova, que, por isso mesmo, não pode ser, pelo menos na totalidade, posto em crise, pela possibilidade de sindicância do julgamento da matéria de facto, através da gravação dos depoimentos, implica que as provas sejam valoradas livremente pelo julgador (quer sejam testemunhais, periciais, depoimentos de parte, etc.), sem que exista qualquer hierarquização entre elas”.15

No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, “(…) implica a imediação da produção da prova e a decisão pelos próprios juízes que constituíram o tribunal na audiência e essa componente não é, pelo menos em grande parte, sindicável pelo recurso, onde falta a imediação”.16

O princípio da livre apreciação da prova, apenas será violado nas situações de prova legal não considerada, situações de arbitrariedade, juízos subjectivos, imotivados e nas situações em que, segundo as regras de experiência de um homem médio, da prova produzida não seja possível extrair a prova do facto dado por assente.

Tendo em conta estes ensinamentos e olhando para a decisão, em nenhum momento ou passagem se pode concluir estarmos em presença de alguma das situações elencadas.

O que a recorrente não concorda e está no seu direito, como, aliás, acontece em relação à violação do princípio da presunção da inocência, é com a valoração da prova efectuada pelo Tribunal recorrido e pretende substituir essa valoração pela sua própria ou pela deste Tribunal de recurso.

Assim, improcedem estas conclusões.

5.3 O recorrente alega ainda o excesso das penas parcelares e pena única, pugnando pela sua condenação em pena de multa.

O legislador estatui como parâmetros de determinação da pena, que a mesma deve ser fixada - “(…) dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” visando a aplicação das penas “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” e levando ainda em conta “(…) todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)” considerando, nomeadamente, os factores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (artigos 71º, nº1 e nº2 e 40º, nº1 e nº2, ambos do Código Penal.

A densificação jurisprudencial destes critérios tem sido feita, pelos tribunais superiores, de modo a considerar e ponderar o equilíbrio entre “exigências de prevenção geral”, a “tutela dos respectivos bens jurídicos” e a “socialização do agente”.

Como refere o Supremo Tribunal de Justiça, ponderando os referidos equilíbrios, “(...) Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente”,17 ou “(...) a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todo exigível”18.

A medida da pena "(...) há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto (...) a protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida".19

Elencados os princípios sobre a medida da pena e a sua determinação, vejamos o que o Tribunal recorrido, no seu douto acórdão, ponderou sobre a medida da pena.

Escreveu-se na decisão recorrida: (transcrição)

Como vimos supra, o crime de ofensa à integridade física simples é punível com uma pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, ou seja, com pena de prisão entre o mínimo de 1 mês e o máximo de 3 anos e uma pena de multa entre o mínimo de 10 dias e o máximo de 360 dias (art.ºs 41º, nº 1, e 47º, nº 1, do CP).

As molduras penais referidas traduzem a gravidade mínima e a gravidade máxima de que um determinado ilícito, em regra, se pode revestir, tendo em conta os critérios legalmente estabelecidos para em concreto determinar uma tal gravidade. Ínsita a uma tal possibilidade de variação da pena está a justiça da decisão do caso concreto, não só em si mesmo considerado, mas também em comparação com os casos que possam ser mais ou menos graves que ele, de molde a que a pena fixada corresponda a essa avaliação de uma forma considerada minimamente adequada e proporcionada, de molde a poder concluir-se, pelo menos, que a pena encontrada se encontra próxima da que foi achada para casos similares, assim como acima, e proporcionalmente acima, ou abaixo, dos mais ou menos graves, subsumíveis ao mesmo tipo-de-ilícito. A isso impõem os princípios da necessidade e da proporcionalidade, desde logo consagrados no art.º 18º da CRP, bem como o princípio da igualdade na aplicação da lei penal.

Diz por sua vez o art.º 70º do CP que se ao crime forem plicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Ou seja, também no âmbito da escolha da pena, que não só na determinação do seu quantum concreto, e quer na pena alternativa, quer na de substituição, tem de ser ponderada a sua aptidão para satisfazer as necessidades de prevenção. Sendo que as necessidades de prevenção geral se mostram alcançadas sempre que o efeito da ameaça penal, por referência ao momento da aplicação da pena, permita alcançar a “tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida” (aspeto positivo), mais do que uma intimidação dos potenciais delinquentes (aspeto negativo), e quanto às necessidades de prevenção especial, estas serão alcançadas, fundamentalmente na sua dimensão positiva, pelo efeito de socialização que a pena permitirá produzir em relação ao agente, mais do que a intimidação que a mesma lhe possa causar – dimensão negativa . E segundo o Professor Jorge de Figueiredo Dias, a pena de multa só não será de aplicar “se a aplicação da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.”

Ora, no caso dos autos, as circunstâncias em que os factos foram praticados, com uma intensidade e perigosidade especialmente elevada, relativamente ao ofendido BB, porquanto com o concurso de vários outros indivíduos que não foi possível identificar, e depois de provocarem a queda do ofendido no chão, o arguido desferiu neste diversos pontapés, daí resultando, como consequência direta e necessária de tais agressões, dores para a ofendida CC, na sequência do empurrão que lhe provocou, tendo o ofendido BB sofrido escoriação no lábio e na perna direita, que lhe determinou 10 dias de doença, sem afetação para o trabalho geral e para o trabalho profissional.

A gravidade dos factos assim praticados, no interior de um estabelecimento de diversão noturna, no qual o arguido desempenhava a função de relações públicas, e a ofensividade que os mesmos representaram para o bem jurídico violado, face a tal cenário de gravidade, e tendo em mente a salvaguarda da confiança que deve existir no ordenamento jurídico, tornariam comunitariamente incompreensível a aplicação ao arguido de uma simples pena de multa. Sendo por isso, desde logo ao nível da satisfação das necessidades de prevenção geral, muito elevadas no presente caso, que se impõe a aplicação da pena de prisão, em detrimento da pena de multa alternativamente prevista no art.º 143º, nº 1, do CP, funcionando assim a prevenção geral, no caso concreto dos autos, na sua afirmação de conteúdo mínimo indispensável à defesa do ordenamento jurídico.

Procedendo agora à determinação da medida concreta da pena, a mesma obedece aos critérios previstos no art.º 71º do Código Penal. Ou seja, não só em função da culpa do agente, relevando esta como limite máximo da punição (art.º 40º, nº 2, do CP), mas também das finalidades de prevenção geral e especial, assente que com a aplicação de tal pena se visa não só a proteção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora, mas também a reintegração do agente na sociedade – art.º 40º do CP.

Estabelece o art.º 71º, nº 1, do CP, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, impondo-se no nº 2 do mesmo artigo que numa tal determinação se atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente as que aí resultam especificadas nas al. a) a f), ou seja: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”

Ora, da factualidade provada resulta que o arguido tinha uma posição de domínio sobre as circunstâncias em que os factos ocorreram, porquanto num espaço em que exercia as funções de relações publicas, auxiliado por funcionários e elementos da segurança, competindo-lhe assim estabelecer uma relação com os clientes que deveria ser marcada pelos deveres de contratualidade, e pela boa-fé e lealdade a ela inerentes, deveres esses que o arguido ostensivamente violou, sendo que nada resulta dos autos que pudesse ser imputado aos ofendidos e assim também justificasse ou atenuasse a ilicitude e culpa inerentes à agressão concretamente efetuada, fazendo ademais com que o grau de ilicitude da conduta registada seja elevado, assim como elevada é a censurabilidade ético-jurídica da respetiva conduta, ademais porque assente no dolo direto, que se pode considerar intenso. As consequências nos ofendidos não foram homogéneas, porquanto menores na ofendida CC e mais graves no assistente, porém, ambas em circunstâncias e ambiência de elevada ofensividade, receio e medo.

Os motivos que estão na génese da prática do crime são espúrios, ou gratuitos, porquanto assentes no facto de as vítimas, juntamente com as pessoas que as acompanhavam, terem decidido ir para outro lugar, logo à entrada naquele estabelecimento comercial, e por se terem apercebido que não era o bar em que pretendiam estar, e assim também justificando a intenção de não pagarem o valor da entrada no bar, entrada esta que não se chegou verdadeiramente a efetivar. Pesam positivamente a favor do arguido as condições pessoais, a sua situação económica e a circunstância de não ter antecedentes criminais, circunstâncias que relevam fundamentalmente ao nível das necessidades de prevenção especial, que, não fora a gravidade dos factos praticados, se poderiam afirmar como muito favoráveis ao arguido.

As exigências de prevenção geral positiva, tendo em conta os factos no seu conjunto são bastante elevadas.

Atenta a essencialidade dos valores jurídicos em causa, de cariz pessoal, e o impacto negativo no seio comunitário e na paz social, que este tipo de crime tem, nas circunstâncias em que foi cometido, fazem com que na determinação do quantum da pena as exigências de prevenção geral sobrelevem as exigências de prevenção especial.

Tudo ponderado, e tendo em conta a satisfação das necessidades de prevenção geral e especial, supra referidas, e sem prejuízo do concreto juízo de culpa operado sobre a conduta registada, que se situa num patamar elevado, considera-se necessário e adequado aplicar ao arguido as penas de 2 meses de prisão, pelo crime cometido sobre a ofendia CC e 8 meses de prisão, pelo crime cometido sobre o assistente BB.

Fixadas que estão as penas parcelares e dado o disposto no art.º 77º, nº 1, do CP, importa agora condenar o arguido numa pena única, considerando-se na medida da pena, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido.

A pena a aplicar terá de ser entre um limite máximo, obtido pela soma das penas concretamente aplicadas, e um limite mínimo, correspondente à mais elevada das penas concretamente determinadas – art.º 76º, nº 2 do CP -, ou seja, entre um mínimo de 8 e um máximo de 10 meses de prisão.

Além do que se deixou já referido, há que ter em conta que os crimes praticados violam bens jurídicos de natureza pessoal, e foram cometidos nas mesmas circunstâncias de lugar e tempo, o que, associado ao facto de se não vislumbrarem especiais necessidades de prevenção especial, podendo afirmar-se que a conduta em causa se traduz numa atuação ilícita criminal meramente ocasional, considera-se adequada à punição dos crimes em concurso a pena única de 8 meses e 15 dias de prisão, fixando-se assim a mesma num quantum muito próximo do limite mínimo legal.

Por outro lado, considerando-se a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais e encontrar-se socialmente integrado, determina-se a suspensão da execução da pena de prisão, ora aplicada, pelo período de 1 ano, nos termos previstos no art.º 50º, nºs 1 e 5, do CP, por se considerar que a mera censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sujeitando-se, porém, tal suspensão, ademais como reforço necessário da “censura do facto e da ameaça da prisão” acima referidas, ao dever de o arguido pagar as quantias de 250,00€ e de 1.500€, respetivamente, à ofendida CC e ao assistente BB, indemnização que se fixa a título de reparação do mal do crime, nos termos previstos no art.º 51º, nºs 1, al. a), e 2, do CP, quantias essas que, na sua totalidade, deverão ser pagas em quatro prestações iguais, no valor de 437,50 € cada uma, de três em três meses, durante o período de suspensão da execução da pena de prisão, vencendo-se a primeira prestação no prazo de três meses a contar da data do trânsito em julgado do presente acórdão, devendo o respetivo pagamento ser efetuado à ordem dos presentes autos, no âmbito dos quais deverão ir sendo entregues pelo valor devido a cada uma das vítimas. (fim de transcrição parcial)

Tendo em conta o que fica transcrito, não logramos descortinar, como reclama o recorrente, qual o excesso ou a desproporcionalidade das penas parcelares ou da pena única.

O recorrente reclama a condenação em pena de multa, alegando uma “clara violação” do artigo 70º do Código Penal.

O artigo 70º do Código Penal, sobre o critério da escolha da pena, estatui que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

A opção pela pena não privativa da liberdade tem, pois, como pressuposto, a realização de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, tal como se encontram definidas no artigo 40º do Código Penal, isto é, “protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, tendo a pena como limite a culpa do agente.

A este propósito, Figueiredo Dias, considera que no critério geral de escolha, entre pena privativa e não privativa da liberdade, estão sempre em causa “ (…) finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação” (…)sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena”.20

No caso dos autos, razões de prevenção geral e também especial justificam a não opção pela pena de multa, a qual não satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Na verdade, importa recordar que as agressões ocorreram num espaço de diversão nocturna, sujeito a regime de licenciamento para o exercício da actividade e ainda de implementação de um conjunto de medidas de segurança, conforme resulta do Decreto-lei nº 135/2014 de 8 de Setembro, tendo, por isso, as pessoas que naquele trabalham, como era o caso do recorrente como relações-públicas, um especial dever de assegurar a segurança e tranquilidade dos clientes. Os espaços de diversão nocturna ou estabelecimentos sujeitos a licenciamento, devem ser espaços de segurança, atenta a circunstância de serem espaços de grande concentração de pessoas, de consumo de álcool e, por força disso, também de relaxamento das medidas pessoais de segurança pelos frequentadores.

A chamada “segurança da noite” tem sido, infelizmente, várias vezes colocada em causa, como se alcança das várias notícias públicas sobre a mesma, apesar dos esforços das autoridades policiais, para proporcionar um clima de segurança. Importa, pois, que os Tribunais tenham, na aplicação da lei aos casos concretos, uma intervenção dissuasora de comportamentos que contribuam para aumentar a insegurança pública.

Neste contexto, a opção por uma pena de multa, não satisfaz as exigências de prevenção geral e mesmo especial, tendo em conta que o arguido/recorrente, continua a trabalhar nessa actividade.

Justificando-se a opção pela pena privativa da liberdade por razões de prevenção, as penas parcelares e pena única fixadas, nenhuma censura merecem a este Tribunal.

O arguido agiu com dolo directo, o grau de ilicitude é médio/elevado, (apesar dos ofendidos apenas terem sofrido dores e escoriação no lábio e na perna direita, que lhe determinou 10 dias de doença, sem afetação para o trabalho), o arguido actuou em conjunto com outros indivíduos; agrediu uma das vítimas com pontapés quando esta já se encontrava no chão, o motivo das agressões é gratuito (decisão dos ofendidos sair do bar por se terem apercebido que não era o bar em que pretendiam estar) e o arguido agiu numa posição de domínio. Militam a favor do arguido a sua boa inserção social e a ausência de antecedentes criminais.

Atentas todas estas circunstâncias, as fortes exigências de prevenção geral, e ainda o facto de as penas parcelares e única terem sido fixadas, muito abaixo da média da pena abstractamente estabelecida, entendemos que as mesmas foram fixadas em respeito pelos critérios legais estabelecidos e são adequadas e proporcionais à culpa do arguido e, por isso, são de manter, nos seus precisos termos.

Assim, improcede também esta conclusão do recorrente.

5.4 O recorrente peticiona ainda a aplicação por este Supremo Tribunal de Justiça do perdão previsto na Lei 38-A/2023, de 02 de Agosto.

Não tem razão o recorrente.

O artigo 14º da referida lei, sob a epígrafe “Aplicação”, estatui que “Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.

Tendo em conta esta norma legal, não compete a este Supremo Tribunal apreciar e decidir sobre a questão ora suscitada, a qual deverá ser ponderada e julgada pela 1.ª instância.21

Assim, não compete a este Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre a aplicação da Lei 38-A/2023, de 02 de Agosto.

Assim, improcede a alegação do recorrente e, por consequência, o recurso.

III. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 6 UC (artigo 513.º, n.º 1, aplicável ex vi artigo 34.º da Lei n.º 65/2003 e artigo 8.º, n.º 9 e Tabela anexa III do Regulamento das Custas Processuais).

Lisboa, 02 de Maio de 2024.

Antero Luís (Relator)

Lopes da Mota (1º Adjunto)

Teresa Féria (2ª Adjunta)

________


1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.

2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.

3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.

4. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, datilografado por João Abrantes, Coimbra, 1968, p. 57.

5. Neste sentido e por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/01/2011, Proc. Nº 355/09.1JAAVR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt

6. Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 12/28/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP.

7. Neste sentido, vejam-se Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339, e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.) e ao nível jurisprudencial, por todos, sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça In Proc nº 4375 in www.dgsi.pt

8. Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, 200

9. Proc. 308/08, em que foi relator o Conselheiro Simas Santos

10. Ac. STJ 19/07/2006 Proc. 1932/06 ambos in www.dgsi.pt

11. In “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253

12. Acórdão do STJ de 10/05/1995, Proc. nº 47764, cit. no CPP Anotado por Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, I Vol., 1996, pág. 550.

13. Proc. 05P0145, sumário disponível em www.dgsi.pt

14. Neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2012, Proc. 233/08.1PBGDM.P3.S1, em cujo sumário se refere que “O STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.”, disponível em www.dgsi.pt

15. Manual do Processo Civil, 2ª ed., pág. 471

16. Registo da Prova em Processo Penal – Estudos de Homenagem a Cunha Rodrigues”, pág. 817.

17. In sumário do acórdão de 31-01-2012, Proc. Nº 8/11.0PBRGR.L1.S

18. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2004, Proc. n.º 1636/04 - 3.ª ambos in www.dgsi.pt

  No mesmo sentido Prof. Figueiredo Dias (“O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187).

19. Professor Figueiredo Dias "Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime" - Noticias Editorial, pág. 227).

20. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 497, pág. 331,

21. Neste sentido e por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Dezembro de 2023, Proc. Nº 429/21.0SYLSB.L1.S, disponível em www.dgsi.pt