RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
EXAME PRELIMINAR
JUIZ RELATOR
CONFERÊNCIA
IMPEDIMENTOS
NULIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
PRESSUPOSTOS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I- Compete ao Relator a quem o Recurso para Uniformização de Jurisprudência é distribuído para exame liminar e, em caso de rejeição e reclamação, à conferência, analisar os pressupostos de admissibilidade do recurso.

II- A oposição de acórdãos que é suscetível de justificar um recurso para uniformização de jurisprudência é uma contradição entre o núcleo essencial do acórdão recorrido e o acórdão fundamento, oposição que para além disso deve ser frontal e não apenas implícita ou pressuposta.

Texto Integral




Processo n.º 2529/21.8T8MTS.P1.S1-A


MBM/DM/RP


Acordam, em conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I.


1. AA instaurou ação emergente de contrato individual de trabalho contra Tecnomate, Reparações Industriais, Lda., pedindo, na parte que ora releva: o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre o A. e a R., entre 01.02.1988 e 08.02.2021, data em que lhe foi comunicado que já não era trabalhador desta; a declaração da ilicitude do despedimento assim efetivado e consequente condenação da R. a pagar-lhe as quantias correspondentes aos créditos daí decorrentes.


Para tanto, alegou, em síntese:


– Tendo sido admitido ao serviço da R. em 01.02.1988, adquiriu em 12.12.2003 uma quota no capital social da R.


– Por deliberação da respetiva assembleia, tomada na mesma data, foi nomeado gerente da R., tendo também sido deliberado que seria remunerado pelo exercício da gerência.


– Dada a incompatibilidade das funções de gerente com a qualidade de trabalhador subordinado, não mais prestou as suas funções de empregado de escritório, tendo-se suspendido o contrato de trabalho.


– Em 13.11.2019, renunciou ao exercício da gerência e, em 20.11.2019, cedeu a totalidade da sua quota.


– Manteve a qualidade de trabalhador da R., embora o seu contrato de trabalho tenha estado suspenso até ao momento em que renunciou à gerência e cedeu as quotas, nos termos do art. 398.º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, analogicamente aplicável às sociedades por quotas.


– Retomada a normal execução do contrato de trabalho, ficou novamente suspenso em consequência da sua incapacidade para o trabalho, decorrente de enfarte de miocárdio sofrido em setembro de 2019, nos termos do art. 296.º, nº 1, do CT.


2. A ação foi julgada improcedente na 1ª Instância.


3. Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação do Porto (TRP) confirmou a sentença recorrida, com base, essencialmente, nos seguintes fundamentos:


– Não há lugar à aplicação analógica do disposto no art. 398º, do C.S.C., às sociedades por quotas.


– Provado que o autor passou de facto, enquanto sócio-gerente, a exercer em toda a plenitude funções tipicamente de gerência, tornou-se praticamente incompatível a manutenção, em coexistência, do contrato de trabalho subordinado que até então existia entre si e a Ré, levando à caducidade desse vínculo laboral, por confusão (em 12.12.2003), nos termos do art. 868.º, do Código Civil.


4. Inconformado, o A. veio interpor recurso de revista excecional, ao abrigo do art. 672º, nº 1, a), do CPC1, que foi admitida pela formação dos três Juízes desta Secção Social a que se refere o n.º 3 do mesmo artigo.


5. A final, concedendo a revista, foi decidido revogar o acórdão recorrido e remeter os autos à Relação, para apreciação das consequências do despedimento ilícito do A.


6. A Ré/recorrente interpôs recurso para uniformização de jurisprudência, alegando, essencialmente, nas suas conclusões:


– A decisão recorrida está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Secção Social) de 29.09.1999, Processo n.º 98S364 (doravante designado apenas por Acórdão fundamento).


– Deve ser uniformizada jurisprudência no sentido de que “não há lugar à aplicação analógica do disposto no artigo 398.°, n.° 2, do CSC, às sociedades por quotas” .


7. Foi proferida decisão singular de indeferimento do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, nos termos do art. 692º, nº 1.


8. Inconformada, a recorrente reclamou para a conferência, alegando, essencialmente:


– “Da análise do exame preliminar que determinou a rejeição do recurso, concluiu-se que o Senhor Relator que o apresenta integrou igualmente o coletivo de juízes que proferiram o acórdão recorrido, sendo um dos Senhores Juízes Conselheiros que o subscrevem.”.


– O despacho reclamado nulo, por violação do artigo 115.º, n.º 1, e), do CPC, e do art. 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (direito a um processo equitativo).


– Ao contrário do decidido no despacho liminar, verifica-se a invocada oposição de julgados.


9. A parte contrária não respondeu.


Cumpre decidir.


II.


10. Em primeiro lugar, refira-se que improcede a arguida nulidade, uma vez que é a própria lei que determina a competência do relator (e da conferência) para os efeitos em análise, sendo que, como se sabe, só é suscetível de configurar nulidade “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva” (cfr. art. 195º, nº 1, do CPC).


Pela mesma razão, é destituído de sentido invocar o impedimento previsto no art. 115.º, n.º 1, e), do mesmo diploma, norma que, aliás, consagra o impedimento do juiz relativamente a recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção como juiz de outro tribunal, ao contrário do que ocorre no caso vertente, em que a intervenção tem/teve lugar no âmbito do mesmo processo.


Por outro lado, como tem julgado o Tribunal Constitucional, não enferma de inconstitucionalidade a norma do artigo 692.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Civil, “segundo a qual, interposto recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do n.º 1 do artigo 688.º do Código de Processo Civil, a apreciação dos respetivos pressupostos e requisitos, incluindo a existência ou não da contradição de julgados prevista em tal preceito, cabe ao relator do acórdão recorrido, através de decisão reclamável para a conferência, composta pelos mesmos juízes que proferiram o acórdão recorrido” (V.g. Ac. nº 386/2019, de 26.06.2019, Proc. n.º 620/2016, 1.ª Secção, e Ac. n.º 162/2018, de 05.04.2018, Proc. n.º 1285/2017, 3.ª Secção).


No mesmo sentido, quanto às duas dimensões da questão, v.g. os Acs. deste STJ de 08.02.2024, Proc. nº 1901/21.8TSSRE-AC1-A.S1-B (7.ª Secção), de 19.12.2018, Proc. nº 10864/15.8T8LSB.L1.S1-A (1.ª Secção), e de 12.10.2017, Proc. nº 374/13.3TBSTS.P1.S1-A (2.ª Secção).


11. Quanto à questão de fundo, é o seguinte o teor da decisão singular de indeferimento do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência:


«8. A contradição de acórdãos que é suscetível de justificar um recurso para uniformização de jurisprudência (art. 688º, nº 1) é uma contradição entre o núcleo essencial do acórdão recorrido e o acórdão fundamento, oposição que para além disso deve ser frontal e não apenas implícita ou pressuposta – cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no NCPC, 5ª edição, 2018, pp. 471 – 473.


9. A questão em causa no acórdão fundamento residia, fundamentalmente, como aí se afirma, em “saber se a qualidade de sócio-gerente de uma sociedade por quotas é compatível com a de trabalhador subordinado dessa mesma sociedade”, ou seja, “saber se é possível a cumulação das duas situações e das duas qualidades – sócia gerente e trabalhadora subordinada”.


Nesse processo, as instâncias deram-lhe solução coincidente e afirmativa, tal como o Supremo, que, em linha com o essencialmente decidido nos presentes autos, considerando que “as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções de gerente, melhor, de sócio gerente e de trabalhador subordinado”, concluiu que o contrato de trabalho não cessou com a nomeação do trabalhador como sócio gerente. E, consonantemente com o acórdão recorrido, concluiu ter ocorrido um despedimento ilícito.


10. É certo que no acórdão fundamento se afirma, a dado passo, que “parece […] dever concluir-se pela não aplicação analógica do disposto no artigo 398º do C.S.C. às sociedades por quotas”, diferentemente da posição assumida pelo acórdão recorrido quanto a este aspeto.


Todavia, quanto ao fundamental, ou seja, no tocante aos fundamentos determinantes da decisão, nenhuma oposição se evidencia entre os dois arestos, sendo certo que a contradição exigida pelo art. 688º, nº 1, tem de manifestar-se no núcleo essencial ou determinante de cada um dos acórdãos em confronto, quanto a questões que tenham contribuído relevantemente para a decisão do caso concreto, não bastando que a mesma se verifique relativamente a considerandos ou argumentos laterais com mera função de obiter dicta.


Como é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, “a parte preceptiva da decisão judicial é apenas a ratio decidendi, ou seja, a razão de decidir, a regra de direito considerada necessária pelo juiz para chegar à sua conclusão, o que significa que os obiter dicta (regras de direito que não são fundamentais para decidir, aquilo que é dito sem necessidade absoluta para tomar a decisão) não vinculam” (nas palavras do Ac. de 28.09.2022, Proc. nº 18591/16.2T8LSB-H.S1, 6ª Secção).


In casu, o essencial reside no facto de ambos os acórdãos terem entendido que o contrato de trabalho não cessou com a nomeação do trabalhador como sócio gerente, sendo indiferente o percurso jurídico levado a cabo para atingir tal conclusão.


O acórdão fundamento, argumentou que é “a realidade, o terreno da vida, as circunstâncias concretas do caso, que hão-de dizer-nos da coexistência, ou não, das duas qualidades, de sócio gerente e de trabalhador subordinado”. O acórdão recorrido centrou a sua argumentação na aplicabilidade às sociedades por quotas do disposto no art. 398º, nº 2, do CSC, em matéria de suspensão do contrato de trabalho (e, consequentemente, na circunstância de a renúncia à gerência ter determinado o termo da suspensão do contrato de trabalho).


Mas diferença argumentativa em nada colide (nem interferiu relevantemente) com a coincidência que se verifica no plano do julgamento da questão fundamental em causa nos dois processos.


Sem necessidade de considerações complementares, uma vez que no caso vertente não se verifica a invocada oposição de julgados, impõe-se rejeitar o recurso, ao abrigo do preceituado no art. 692º, n.º 2, do CPC.»


12. Em suma, é manifesto que no caso vertente não se verifica, minimamente, a invocada oposição de julgados.


Sem necessidade de desenvolvimentos complementares, improcede, pois, a pretensão da reclamante.


III.


13. Nestes termos, indeferindo a presente reclamação para a conferência, acorda-se em confirmar a decisão singular de indeferimento do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.


Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.


Lisboa, 19 de junho de 2024


Mário Belo Morgado (Relator)


Domingos Morais


Ramalho Pinto





_______________________________________________

1. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎