CASO JULGADO
REQUISITOS
CONTRATOS DE EMPREGO-INSERÇÃO+
ACIDENTE DE TRABALHO
CONTRATO DE SEGURO
PROPOSITURA DA AÇÃO
TRANSAÇÃO
Sumário


I – A temática da violação do caso julgado material é de conhecimento oficioso por parte dos tribunais judiciais, mostrando-se, por outro lado, cumprido o princípio do contraditório, o que implica que este Supremo Tribunal de Justiça tenha de apreciar e julgara essa questão nova invocada pelo Réu neste recurso de Revista.

II – É manifesta a falta de identidade dos sujeitos processuais que tiveram efetiva intervenção em cada uma das duas ações, dado que, embora a demandante seja a autora em ambas – não obstante o faça, por referência ao mesmo evento lesivo, em qualidades jurídicas distintas-, já as partes demandadas em cada uma delas são diferentes.

III - Fora a descrição do evento lesivo em si e das circunstâncias relevantes em que ocorreu, existem factos essenciais – e não apenas acessórios ou complementares – e questões jurídicas dos mesmos decorrentes que determinam configurações do referido sinistro diferentes, como demandam, por força dos regimes legais aplicáveis, pretensões distintas, sendo que as previstas na LAT não se esgotam no presente e não estão limitadas pelo valor máximo segurado, podendo surgir ciclicamente, pelos mais variados fundamentos, durante toda a vida da Autora.

IV – Não ocorre nos autos uma situação de ofensa da autoridade do caso julgado [material] desde logo porque não se verifica uma identidade de sujeitos processuais nos dois processos, não se verificando, por outro lado, na primeira ação proposta um real e genuíno julgamento e decisão judicial da respetiva causa mas, tão somente, a celebração de um acordo judicial de teor indemnizatório global, que foi depois homologado por sentença, decisão homologatória esta que não pode ser invocada no quadro destes autos emergentes de acidente de trabalho, dado os direitos emergentes para os sinistrados da Lei de Acidente de Trabalho serem irrenunciáveis e indisponíveis [cf. artigos 12.º, 13.º, 51.º e 78.º desse diploma legal], o que torna juridicamente ineficaz qualquer acordo externo que pretenda condicionar, restringir ou extinguir os mesmos, à revelia e contra o referido regime legal contante da LAT.

V - O facto da aludida transação judicial, expressa em montante bastante inferior à soma dos pedidos deduzidos pela Autora na correspondente ação, não discriminar, como deveria, os efetivos prejuízos que são ali visados e as importâncias que, em concreto, são pagas pela Seguradora por referência a cada um deles, torna difícil, quando não impossível, o confronto ou a comparação entre os danos e respetivos valores atribuídos numa e noutra ação [sendo certo que o ónus de alegação e prova de tal correspondência compete por inteiro à recorrente] e, nessa medida, o funcionamento do efeito positivo externo do caso julgado material.

Texto Integral



Revista n.º 977/15.1T8BRR.L3.S1 (4.ª Secção)


Recorrente: CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL ...


Recorrida: AA


(Processo n.º 977/15.1T8BRR.L3 – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo do Trabalho ... - Juiz ...)


ACORDAM OS JUÍZES NA SECÇÃO SOCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I.RELATÓRIO


1. AA, com os elementos de identificação constantes dos autos e patrocinada pelo Ministério Público apresentou, no dia 09/01/2017, assim dando início à fase contenciosa de presente ação emergente de acidente de trabalho, sob a forma de processo especial, Petição Inicial contra CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL ... e SEGURADORAS UNIDAS, S.A. (anterior COMPANHIA DE SEGUROS TRANQUILIDADE, S.A.) [1], formulando os seguintes pedidos:


«Termos em que deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, reconhecendo-se no caso em apreço a relação jurídica entre a Autora e a 1.ª Ré como um contrato de trabalho subordinado, tal como é definido no citado art.º 11.º do Cód. Do Trabalho, com reporte ao período de 1 de Março a 8 de Maio de 2014, e o acidente dos autos como sendo de trabalho ou, se assim não se entender, a Autora Abrangida pelo regime jurídico consagrado na Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, reconhecendo-se o acidente dos autos como de trabalho (art.º 3.º da L.A.T.) e, em consequência:


Serem as Rés condenadas a pagar à Autora:


1. O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no valor de € 72,40 em função do grau de incapacidade, data da alta e retribuição total anual;


2. € 88,03 a título de indemnização por I.T.A. e I.T.P. nos períodos compreendidos, respetivamente, entre 27-03-2014 a 01-04-2014 e de 02-04-2014 a 15-04-2014;


3. Juros de mora à taxa legal sobre as peticionadas quantias;


4. As despesas suportadas por esta no valor global de € 153,50 por causa do acidente de trabalho em razão dos tratamentos dentários já efetuados;


5. As Rés condenadas a prestarem à Autora, em espécie, a assistência médica, hospitalar e de enfermagem especializadas em estomatologia/médico dentista necessárias à “extração € colocação imediata de implantes e coroas provisórias dos dentes centrais” danificados, devendo previamente proceder à realização “de uma regeneração óssea através de excerto ósseo com a colocação de membrana para posterior reabilitação oral” e de um “T.A.C. ao maxilar superior”».


*


2. O 1.º Ré CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL ... apresentou contestação, alegando, em síntese, não ter sido celebrado entre a 1.ª Ré e a Autora qualquer contrato de trabalho.


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3. A 2.ª Ré SEGURADORAS UNIDAS, S.A. apresentou contestação, alegando a exceção dilatória de incompetência material do Juízo do Trabalho e as exceções perentórias de inexistência de contrato de trabalho entre o 1.º Ré e a Autora e de inexistência de contrato de seguro de acidentes de trabalho.


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4. Em 3.04.2017, foi proferida, pelo tribunal da 1.ª instância, sentença, que julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência material e procedente a exceção perentória de inexistência de contrato de trabalho e, consequentemente, de um acidente de trabalho, absolvendo as Rés do pedido.


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5. A Autora interpôs recurso da decisão proferida no que tange à procedência da exceção perentória de inexistência de contrato de trabalho.


Por Decisão Sumária de 12.07.2017, o Tribunal da Relação julgou a Apelação procedente, revogou a decisão recorrida e ordenou o prosseguimento dos autos nos termos sobreditos.


Na sequência de convite, por requerimento de 15.01.2018, a Autora veio aperfeiçoar a petição inicial.


As Rés vieram responder a petição aperfeiçoada.


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6. Por sentença de 21.02.2018, foi considerada verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria dos tribunais do trabalho e a Ré Seguradora absolvida da instância, com fundamento no facto de o contrato de seguro celebrado entre as Rés não ser um contrato de seguro de acidentes de trabalho.


Por sentença de 15.05.2018, foi considerada verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria dos juízos do trabalho, por se ter entendido que que se tratava de um litígio a dirimir nos tribunais administrativos e fiscais.


Em consequência a Ré CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL ... foi absolvido da instância.


Das sentenças de 21.02.2018 e de 15.05.2018 não foi interposto recurso pelas partes.


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7. Por ofício de 12.07.2021, foi junto aos autos Acórdão de 7.07.2021, proferido pelo Tribunal dos Conflitos, no qual foi acordado atribuir competência aos tribunais comuns.


O conflito foi suscitado na sequência do Tribunal Administrativo e Fiscal se ter declarado incompetente em ação intentada pela Autora contra o Estado Português, no qual era peticionada a reparação dos danos decorrentes do mesmo acidente.


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8. Na sequência da junção do acórdão do Tribunal dos Conflitos, foi proferido despacho saneador/sentença, datado de 5.11.2021, que julgou o Juízo do Trabalho incompetente em razão da matéria e consequentemente, absolveu a Ré da instância.


A Autora interpôs recurso de Apelação.


Por acórdão de 9.02.2022, o Tribunal da Relação julgou procedente a Apelação, revogou a decisão recorrida e ordenou o normal prosseguimento dos autos.


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9. Por sentença de 18.10.2023, o tribunal julgou a ação improcedente porque não provada e, em consequência, absolveu a Ré CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL ... dos pedidos formulados.


A Autora interpôs novo recurso de Apelação.


Em 21.02.2024, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão com o seguinte dispositivo:


Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação em preço e, consequentemente:


I - Declarar a inexistência de violação de caso julgado formal;


II - Declarar que o sinistro em apreço configura um acidente de trabalho abrangido pela LAT;


III - Oficiosamente, aditar aos factos assentes o item Y, contendo a data de Nascimento da Autora;


IV - Condenar a Ré (CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL ...) a pagar à Autora (AA):


- Indemnização (pelas incapacidades temporárias) no valor de € 88,02;


- O capital de remição da pensão anual vitalícia de € 72,40, com início a 16/04/2014, no valor total de 833,90;


- A quantia de € 153,50 referente aos tratamentos médico dentários;


- Tudo acrescido de juros de mora , à taxa legal , desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento;


V - Também condenar a Ré a prestar à Autora:


Todas as prestações em espécie que sejam necessárias para fazer face às suas sequelas. ISTO é, acompanhamento regular por especialista de estomatologia/médico dentista, devendo realizar tratamentos que sejam necessários, para manutenção das peças dentárias danificadas e, quando for necessário, durar fazer a sua substituição por implantes dentários e coroas. e, também, tratamento médico dentário , consistente na extração com colocação imediata de implantes e coroas provisórias dos dentes centrais, danificados em consequência do acidente, devido à falta óssea acentuada no bloco anterior (1.º e 2.º Quadrante), Sendo necessária a realização de uma regeneração óssea através de enxerto ósseo, com a colocação de membrana para posterior reabilitação oral além de uma TAC ao maxilar superior.


- tudo isto, sem prejuízo de quaisquer outras prestações em espécie que se venham a mostrar necessárias para fazer face a tais sequelas. tais como, assistência médica, cirúrgica, incluindo elementos de diagnóstico e de tratamento, assistência farmacêutica, cuidados de enfermagem, dispositivos de compensação das suas limitações funcionais, bem como a respetiva renovação e reparação. E, preferencialmente, correspondam ao Estado mais avançado da ciência e da técnica, por forma a pressionar a sinistrada as melhores condições, independentemente do seu custo.


*


Fixa-se o valor da ação em € 1.075,42 – cfr. o art.º 120.º do CPT.


Custas da ação a cargo da Ré – cfr. art.º 527.º, n.º 2, do CPC “ex vi” do art.º 1.º, n.º 2, al. a), do CPT.


Custas do recurso a cargo de ambas as partes na proporção do respetivo decaimento, sendo de 20% para a autora e de 80% para a Ré, sem prejuízo da isenção daquela – cfr. art.º 527.º, nº 2, do CPC “ex vi” do art.º 1.º, n.º 2, al. a), do CPT.


Notifique.”.


10. A Ré CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL ... veio interpor recurso de revista ordinário, nos termos do artigo 671.º, número 1, 674.º, número 1 e 629.º, número 1 do Código de Processo Civil de 2013.


Este recurso de revista foi admitido por despacho de 4.04.2024.


A Ré apresentou alegações de recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:


« A) O Tribunal na sentença proferida em 1.ª instância apreciou e valorou a prova documental corretamente;


B) O contrato celebrado entre o Centro Social Paroquial ... e a Autora AA não é um contrato de trabalho, mais sim um contrato de emprego- inserção + promovido pelo IEFP;


C) Não poderá o acidente em causa ser considerado um acidente de trabalho e ser-lhe aplicada a Lei dos Acidentes de Trabalho (LAT), porquanto não é essa a relação jurídica que se estabeleceu no caso concreto.


D) A relação jurídica estabelecida entre as partes é regulada pela Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro, sendo o contrato objeto dos autos um "Contrato Emprego-Inserção" celebrado no âmbito da "Medida Contrato Emprego Inserção+" para desempregados beneficiários do rendimento social de inserção, promovido pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P. (IEFP);


E) A "Medida Contrato Emprego Inserção+" tem como escopo que os desempregados beneficiários de rendimento social de inserção desenvolvam trabalho socialmente necessário, considerando-se este "a realização de atividades por desempregados inscritos nos Centros de Emprego que satisfaçam necessidades sociais ou coletivas temporárias, prestadas em entidade pública ou privada sem fins lucrativos" – artigo 2.º da Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro.


F) Considerando, designadamente, o intuito da Portaria e os objetivos da realização do "trabalho socialmente necessário", não pode deixar de concluir-se que os beneficiários da medida, nomeadamente a Sinistrada são desempregados beneficiários do RSI;


G) Tal como menciona o Preâmbulo e estabelece o artigo 3.º da mencionada Portaria, este tipo de contrato tem por objetivo promover a empregabilidade de pessoas em situação de desemprego, preservando e melhorando as suas competências socioprofissionais, através da manutenção do contacto com o mercado de trabalho (alínea a);


H) Bem como fomentar o contacto dos desempregados com outros trabalhadores e atividades, evitando o risco do seu isolamento, desmotivação e marginalização [alínea b) da Portaria];


I) A própria Portaria distingue os beneficiários da medida dos restantes trabalhadores, ao referir que o trabalho socialmente necessário fomenta o contacto dos desempregados com outros trabalhadores.


J) Resulta assim à evidência que a finalidade não é o preenchimento de postos de trabalho mas sim uma medida de preparação para os preencher - vide alínea b) do número do artigo 5.º da mencionada Portaria.


K) Um desempregado beneficiário desta medida não se constitui trabalhador durante a execução desta, mantendo-se em situação de desemprego,


L) Razão pela qual o beneficiário desta medida continua a ter a obrigação legalmente prevista de procurar emprego,


M) Pelo que impende sobre a entidade promotora uma obrigação de colaborar através da disponibilização de tempo para esse efeito (vide número 2 do artigo 9º da Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro),


N) Norma que apenas faz sentido partindo do pressuposto que o beneficiário não é "trabalhador”.


O) Existem normas do Código do Trabalho que se aplicam às situações jurídicas criadas pela referida Portaria, o que não acontece com os acidentes de trabalho, sendo que da referência legal à aplicação de tais normas retira-se que as demais não são aplicáveis.


P) Ademais, o contrato celebrado nos termos da Portaria cessa quando o beneficiário consiga e obtenha emprego, pois deixam de se verificar os pressupostos para que seja beneficiário do mesmo, nomeadamente a situação de desemprego e consequente benefício do rendimento social de inserção [vide alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º da Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro].


Q) O beneficiário, nos termos da Lei, não tem direito a retribuição, mas sim a uma bolsa de ocupação mensal de montante correspondente ao valor do indexante dos apoios sociais – cfr. artigo 13.º da Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro,


R) Bolsa essa que é paga pela entidade promotora e comparticipada em 50% pelo Estado através do Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P. ( número 4 do artigo 13.º da Portaria).


S) Caso fosse pretensão do legislador qualificar o beneficiário como trabalhador bastar-lhe-ia dizer que tinha direito a retribuição, nos termos gerais,


T) Ademais, o valor recebido repete-se é pago por duas entidades – a entidade promotora e o IEFP -, ao contrário da relação laboral típica.


U) É assim, precisamente por estabelecer uma relação jurídica que não é laboral, que a Portaria estabelece, no n.º 2 do artigo 14.°:


"A entidade promotora deve efetuar um seguro que cubra os riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das atividades integradas num projeto de trabalho socialmente necessário", não prevendo a necessidade de ser efetuado um seguro de acidentes de trabalho.


V) Tal como é previsto no respetivo Código de Trabalho para as relações laborais por este tipificadas.


W) Não olvidando que do ponto de vista formal, a minuta do contrato celebrado entre a Autora e o Recorrente corresponde a um modelo contratual fornecido por este foi aprovada e assinada pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P.


X) Da análise do referido contrato e das suas cláusulas resulta que o mesmo foi elaborado e aplicado de acordo com todos os critérios, requisitos e exigências estabelecidos na Portaria que regula.


Y) O mencionado contrato estabelece, que a Ré ora Recorrente tinha a obrigação de contratar para a Autora um seguro de acidentes pessoais, como fez, e que em caso de acidente é este seguro de acidentes pessoais que deve ser acionado, conforme resulta do regulamento disponível e publicitado pelo IEFP em https://www.iefp.pt/documents/10181/190837/Regulamento+CEI+e+CEI++/45b39a8c-6834-4b2a-8eb3-438ba6d23962.


Z) Caso o legislador quisesse equiparar aquela relação jurídica à relação laboral, mais uma vez se repete, como faz no Código do Trabalho, que o seguro a efetuar seria um seguro de acidentes de trabalho.


AA) Pelo que facilmente se conclui que a relação jurídica estabelecida entre as partes não é, nem nunca foi, uma relação laboral.


BB) Nem terá de entender essa classificação pelo simples facto de a Autora se ter integrado no âmbito da organização do Recorrente o qual emitia as instruções que orientavam a sua atividade, pressupostos do contrato celebrado ao abrigo da “Medida Contrato Emprego Inserção+”, mas que, por esse facto, não tornam a relação constituída numa relação laboral.


CC) Não estando em causa uma relação laboral, como ficou supra demonstrado e provado que não está, não lhe é aplicável o regime de reparação dos acidentes de trabalho, nos termos dos artigos 284.° do Código do Trabalho e da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, o qual é apenas aplicável a trabalhador por conta de outrem por qualquer atividade.


DD) A situação em causa nos autos não preenche qualquer das normas que pressupõem a aplicação da LAT, razão pela qual não integra o conceito de acidente de trabalho, conforme estabelecido no artigo 9.º da LAT.


EE) Esta é, conforme já referido, uma questão que foi amplamente apreciada pela jurisprudência, pela inexistência de uma subordinação jurídica entre a Autora e o Recorrente;


FF) Ao contrário de qualquer entidade empregadora, não era, no caso concreto, a entidade promotora, aqui Recorrente que assumia todos os custos com a contrapartida da atividade prestada, pois o Estado comparticipava atendendo às finalidades de interesse público prosseguidas com o regime legal subjacente – a saber, a portaria n.º 128/2009 e as subsequentes alterações;


GG) A relação privatística que caracteriza o contrato de trabalho, encontrava-se igualmente afastada no que tange à organização da atividade por parte da entidade promotora, por ser o próprio diploma que estabelece o regime a que estão previstas as tarefas suscetíveis de serem desempenhadas no âmbito dos referidos contratos, no que tange às atividades a desenvolver por aquele e não a vontade das partes.


HH) Apenas no que respeita à duração e horário de trabalho, descansos diário e semanal, feriados, faltas e segurança no trabalho, o regime ínsito no Código do Trabalho é aplicável à generalidade dos trabalhadores da entidade promotora (cfr. artigo 9.º), embora também aqui é evidente a distinção que é feita estes prestadores/ beneficiários desta atividade e a menção eu é feita aos demais trabalhadores.


II) Trata-se de um contrato tripartido celebrado entre beneficiário (e não trabalhador), IEFP e entidade promotora (Ré e ora Recorrente);


JJ) E no que respeita à execução do contrato há a considerar as seguintes particularidades, conforme decorre da citada Portaria:


- Os beneficiários destes projetos só podem executá-los nos dias úteis;


- No exercício das funções devem ser sempre acompanhados por um trabalhador da entidade promotora;


- Ao contrário do trabalhador, a entidade promotora não exerce ação disciplinar sobre o beneficiário. Essa é da competência do IEFP.


KK) E em relação ao contrato de emprego e inserção+, previsto na Portaria n.º 128/2009, ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n-º 3 do referido diploma legal, o legislador refere-se a “riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das atividades integradas num projeto de trabalho socialmente necessário”.


LL) Distinguindo o legislador “acidentes de trabalho” de “riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das atividades integradas num projeto de trabalho socialmente necessário”.


MM) Não pode, por outro lado, deixar de se atender aos princípios consagrados no que reporta à interpretação das normas, remetendo a portaria para o disposto no artigo 9.º do Código Civil, facto que mais uma vez se alega.


NN) Pelo que o contrato de emprego-inserção + promovido pelo IEFP não pode ser equiparado a um contrato de trabalho


OO) O centro Recorrente transferiu a responsabilidade a responsabilidade para a seguradora, 2.ª Ré, conforme lhe impunha o artigo 14.º, n.º 3 da portaria n.º 128/2009, diploma aplicável a estes contratos, facto objetivo que o Tribunal da Relação de Lisboa omitiu no acórdão proferido.


PP) A jurisprudência seguida quanto a esta matéria é bem elucidativa e expressiva no que concerne à caracterização do que é um contrato de trabalho ou equiparado, fazendo depender sempre a demonstração e a prova dos indícios de subordinação jurídica.


QQ) O que importa reter, para o caso dos autos é que este tipo de contrato não pode ser considerado como de trabalho, afastando a lei, o próprio regime legal aplicável, como se viu essa hipótese.


RR) A autora desempenhava funções e tarefas na Ré porque este lhe estava a dar enquadramento das mesmas.


SS) Se o contrato é legalmente não considerado como de trabalho e se aqueles elementos se tornam necessários para um eficaz enquadramento das tarefas sociais a desempenhar, não pode tal situação caracterizar-se como um verdadeiro contrato de trabalho.


TT) O mero pagamento de uma bolsa, comparticipada em 50% pelo IEFP não chega para concluir pela existência de um contrato de trabalho e pela dependência económica e existência de um trabalho por conta de outrem como estabelece a LAT e nem se podem considerar como retribuição, nos termos da legislação de acidentes de trabalho.


UU) A Sinistrada nunca teve qualquer vínculo laboral ao Recorrente Centro Social Paroquial ..., logo o respetivo sinistro não pode ser enquadrado ou enquadrável na LAT.


VV) A interpretação das cláusulas contratuais e da intenção que presidiu às partes na elaboração dos contratos de emprego e inserção + não foi posta em causa em sede de recurso para o Tribunal da Relação e nem no acórdão sub judice e constitui matéria de facto da exclusiva competência da Instância.


WW) Assim sendo e atentos quer os pressupostos de facto, quer o direito aplicável, não se pode considerar em relação ao Recorrente a existência de um acidente de trabalho indemnizável como tal.


XX) O facto de se considerar que não há acidente de trabalho não deixa a Autora desprotegida pois esta foi abrangida por um seguro de acidentes pessoais, já fez valer os seus eventuais direitos em ação própria fundamentada naquele contrato.


YY) Caso assim se não entenda o que só por mera cautela de patrocínio se admite, e caso venha a ser considerado que existe uma relação laboral “sui generis” e que o sinistro ocorrido na execução desse contrato deve ser considerado como acidente de trabalho, uma vez que o Recorrente transferiu a responsabilidade emergente dos riscos de acidente para a 2.ª Ré, através de contrato de seguro de acidentes de pessoais, em cumprimento do regime jurídico aplicável, é esta Seguradora a responsável!


ZZ) O seguro celebrado entre o Recorrente e a companhia de seguros, dado como provado nos presentes autos, deverá entender-se como um seguro de acidente de trabalho obrigatório nos termos do artigo 79.º da lei n.º 98/2008, de 4 de setembro, pelo que a celebração deste exime a entidade promotora, aqui Recorrente o pagamento de qualquer indemnização, não havendo fundamento legal para a Autora receba em duplicado quantias peticionadas em relação à mesma causa de pedir, não devendo o Recorrente, Centro Social Paroquial ... ser condenado na reparação de todos os danos sofridos pela A., abrangidos ou cobertos pela apólice de seguros em relação ao contrato de seguro celebrado. (Neste sentido vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º RP 202109209696/19.9T8VNG, P1 em 20/9/2021.)


AAA) Aliás, face ao objeto da ação que correu termos sob o processo comum n.º 29962/17.0... e pedidos ali formulados pela Autora, AA, os mesmos dizem, respeito ao sinistro ocorrido em 26 de março de 2014 pelas 11h e 20m enquanto exercia funções no Centro aqui Recorrente, no âmbito de um contrato de Emprego-Inserção, celebrado no âmbito da Medida Contrato Emprego – Inserção , promovido e aceite pelo Instituto Emprego e Formação Profissional e ao abrigo da Portaria 128/2009 com redação Portaria 164/2011;


BBB) Tendo o Recorrente transferido a sua responsabilidade emergente dos riscos de acidente, sofridos pela aqui Autora à Ré/ seguradora, à data Tranquilidade, atual GENERALI SEGUROS, S.A., entidade responsável, através de um contrato de seguro de acidentes pessoais;


CCC) - O que a própria Autora acedeu e aceitou quer quanto requereu a alteração da finalidade do apoio judiciário de “instaurar ação – acidente de trabalho (f. conciliatória)” para “propositura de ação cível indemnizatória contra seguradora, nos termos de seguros de acidentes pessoais”, quer quando aceitou a transação em que com o recebimento da quantia transacionada declarou nada mais ser devido em consequência do sinistro ocorrido no dia 26 de março de 2014, seja a que título for.


DDD) Logo, a seguradora, que foi demandada naquele processo 20062/17.0... e enquanto entidade responsável, assumiu a responsabilidade pelo pagamento das quantias objeto de transação já homologada por sentença. e os termos em que foi transacionado e homologado constam referidos em sede da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância nos presentes autos, tendo a Autora ali dado imediata quitação


EEE) Assim, o pagamento pela Seguradora civil deverá exonerar o ora Recorrente na medida do que foi pago em relação ao mesmo sinistro e à mesma Autora, face à cobertura do seguro que consta documentado nos presentes autos, pois caso assim se não entenda, consubstancia um enriquecimento sem causa, não podendo persistir dúvidas da exceção de caso julgado (quer formal e quer material).


Termos em que e nos melhores e mais sábios de direito, cujo douto suprimento de V. Exas. sempre se espera, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, revogado o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa e confirmada a sentença prolatada pelo Tribunal de 1.ª Instância, com as demais consequências.


Assim decidindo, farão V. Exas., a costumada Justiça.»


*


11. - A Autora, patrocinada pelo Ministério Público, respondeu a tais alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:


« A – O prestador de atividade no âmbito de contrato de emprego inserção, tem direito a ser reparado por acidente de trabalho nos termos disciplinados pela LAT.


B – A transferência da respetiva responsabilidade infortunística, para ser válida, apenas se pode fazer por seguro de acidentes de trabalho.


C – Não sendo especificados os danos ressarcidos na transação cível, não se pode falar de duplicação indemnizatória ou de enriquecimento ilícito por que sem causa.


D – Os direitos indemnizatórios previstos na LAT são taxativos e irrenunciáveis.


E – Pelo acórdão recorrido não foram violadas quaisquer normas jurídicas.


Termos em que, na improcedência do recurso, deve ser confirmado o acórdão sob sindicância, também pelo seu mérito, assim se fazendo JUSTIÇA.»


*


12. Tendo os presentes autos de revista a este Supremo Tribunal de Justiça , foi ordenado pelo relator de tal recurso que as partes fossem ouvidas acerca da admissibilidade apenas parcial do mesmo [violação do caso julgado – artigo 629.º, número 2, alínea a), parte final, do NCPC], vindo a Autora a pronunciar-se nesse preciso sentido, ao passo que a Ré que não apresentou qualquer resposta dentro do prazo legal.


O relator deste recurso só admitiu a presente revista nessa parte [violação do caso julgado – artigo 629.º, número 2, alínea a), parte final, do NCPC]


13. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir.


II. - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


13. - O Tribunal da 1.ª Instância considerou PROVADOS os seguintes factos:


“Com relevância para a decisão da causa, resultam assentes os seguintes factos:


A. Entre Autora e Ré foi celebrado um contrato de emprego-inserção+.


B. A 26 de Março de 2014, a Autora executava tarefas para a Ré no âmbito do contrato de emprego-inserção+.


C. A Autora executava tais tarefas mediante o pagamento de uma quantia no âmbito da organização da Ré e sob a sua autoridade, o qual emitia ordens e instruções, dirigia e fiscalizava a atividade da Autora exercida de forma regular e com exclusividade para a Ré.


D. Tais tarefas consistiam, no exercício das suas funções e em disponibilidade diária, dar apoio a idosos, nomeadamente, transporte de doentes, higiene pessoal, apoio na refeição, acompanhamento em atividades, cuidados de conforto e, ainda, de limpeza das instalações.


E. Tarefas que exerceu nas instalações da sede da Ré, de forma ininterrupta, entre 1 de março de 2014 e 8 de maio de 2014.


F. A Autora cumpria um horário diário das 08h00m às 18h00m.


G. Utilizava materiais fornecidos pela Ré, nomeadamente, produtos de limpeza e batas.


H. A Autora auferia uma bolsa no valor 419,22 € x 14 meses e subsídio de alimentação mensal no valor de 93,94 € x 11 meses por ano.


I. A tais parcelas corresponde um pagamento anual de 6.902,42 € anuais.


J. A Autora foi vítima de um acidente ocorrido no dia 26/03/2014, no ....


K. O acidente ocorreu quando exercia atividade ocupacional (apoio a idosos) conforme contrato de emprego-inserção+.


L. E consistiu em, quando a sinistrada amparou um idoso, impedindo-o de cair, este bateu lhe com a mão na boca.


M. Tal causou à Autora traumatismo da boca com edema do lábio superior e luxação dos dentes incisivos centrais superiores.


N. Em consequência do acidente, a Autora ficou afetada pelas seguintes IT’s:


a. ITA de 27/03/2014 a 01/04/2014; e


b. ITP de 5% de 02/04/2014 a 15/04/2014.


O. A tais períodos de IT’s corresponde uma indemnização de €88,02.


P. Em virtude do acidente, a sinistrada esteve apenas 3 ou 4 dias sem trabalhar, mas recebeu sempre por parte do Centro Social e Paroquial todas as quantias a que tinha direito.


Q. Por causa do acidente, a Autora gastou 153,50 € em tratamentos médico-dentários.


R. A Autora, como consequência do acidente, ficou afetada com uma IPP de 1,4985%.


S. Necessita de realizar acompanhamento regular por especialista de estomatologia/médico dentista, devendo realizar tratamentos que sejam necessários, para a manutenção das peças dentárias danificadas e, quando for necessário, deverá fazer a sua substituição por implantes dentários e coroas.


T. Necessita de continuar a receber tratamento médico dentário consistente na extração com colocação imediata de implantes e coroas provisórias dos dentes centrais, danificados em consequência do acidente, devido à falta óssea acentuada no bloco anterior (1.º e 2.º Quadrante), é necessária a realização de uma regeneração óssea através de enxerto ósseo, com a colocação de membrana para posterior reabilitação oral além de uma TAC ao maxilar superior.


U. A 1.ª Ré celebrou com a 2.ª Ré um contrato de seguro de acidentes pessoais relativamente à Autora e no âmbito do contrato referido em A.


V. Correu termos no Juízo Local Cível da ... ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, proposta pela Autora contra a 2.ª Ré, sendo peticionada a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 18.448,44, acrescida de juros moratórios desde a data da ocorrência do sinistro até integral pagamento, no montante de € 4.518,00.


W. Nos termos da ação judicial referida em V., a Autora alega, para o efeito pretendido em V:


Como consequência direta do sinistro ocorrido, ocorreram na esfera patrimonial e não patrimonial da ora Autora os seguintes danos:


- Despesas médicas e medicamentosas, no valor de cerca de € 1158 (...)


- Despesas com tratamento médico inerente a “extração dos 4 dentes incisivos superiores e um excerto ósseo com membrana, cujo custo será aproximadamente de € 2500,00” e com indicação de que “no seguimento do tratamento, todas as peças dentárias que se encontrem com mobilidade deverão ser extraídas e todos os dentes substituídos por prótese removível ou implantes dentários com coroas unitárias aparafusadas em cerâmica, cujo custo é de € 4800,00, no valor global de € 7300,00 (...);


- Entre o dia do sinistro verificado a 26.03.2014 e o dia 15.04.2014, data da consolidação médico-legal, é devida pela Ré o pagamento de uma indemnização à Autora, pela incapacidade temporária, no valor global de € 88,02, bem como um valor em função do grau de invalidez atribuída, no valor de cerca de € 6.902,42, correspondente ao montante da retribuição anual devida à Autora.


A estas quantias acrescem os juros de mora à taxa legal em vigor de 7%.


Danos não patrimoniais inerentes a danos morais, designadamente no que concerne aos impactos que o sinistro e as consequências advenientes do mesmo, ao nível psicológico com a redução dos níveis de autoestima, tristeza profunda e sofrimento diário de que a Autora padece e que não têm preço, estimando-se os referidos danos em € 3000,00 (...).”


X. No âmbito dos mesmos autos, ambas as partes chegaram a acordo nos seguintes termos:


1. A Autora reduz o pedido para a quantia de € 2000,00;


2. A Ré procederá ao pagamento da referida quantia, no prazo de 30 dias, através de transferência bancária;


(...);


5. Com o recebimento da referida quantia, a Autora declara nada mais ser devido pela Ré em consequência do sinistro ocorrido no dia 26 de março de 2014, seja a que título for. (...)”.»


III. - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.


É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 639.º e 635.º, n.º 4, ambos do Novo Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608.º n.º 2 do NCPC).


**


A – REGIME ADJETIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEL


Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos presentes autos, atendendo à circunstância da presente ação (na sua fase conciliatória - cf. artigo 26.º, números 2 e 3 e 99.º do Código do Processo do Trabalho de 1999) ter dado entrada em tribunal em 10/13/2015 e a Petição Inicial que deu início à sua fase contenciosa ter sido apresentada em juízo em 09/01/2017, ou seja, antes das alterações introduzidas pela Lei n.º 107/2019, datada de 4/9/2019 e que começou a produzir efeitos em 9/10/2019.


Importa, no entanto, não obstante o que se deixou antes referido, atentar no disposto no artigo 5.º da referida Lei n.º 107/2019, de 4/9/2019, que constitui uma disposição legal reguladora do direito transitório e na circunstância do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que é objeto deste recurso de Revista ter sido prolatado no dia 21/2/2024 e a sentença do tribunal da 1.ª instância que deu origem ao recurso de Apelação que está na origem desse Aresto do tribunal da 2.ª instância ter sido proferida em 18/10/2023, a saber, depois da entrada em vigor das aludidas alterações, o que implica que as mesmas sejam já aplicáveis nesta fase de recurso.


Esta ação, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjetivo comum, foi instaurada muito depois da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, que ocorreu no dia 1/9/2013.


Será, portanto, e essencialmente, com os regimes legais decorrentes da atual redação do Código do Processo do Trabalho e do Novo Código de Processo Civil como pano de fundo adjetivo, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de Apelação.


Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplica a processos instaurados após essa data.


Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos terem todos ocorrido na vigência das normas constantes do Código do Trabalho de 2009 - que entrou em vigor em 17/02/2009 - relativas aos acidentes de trabalho (artigos 281.º e seguintes) e da legislação especial que veio a encontrar a luz do direito com a Lei n.º 98/2009, de 4/09 e que, segundo os seus artigos 185.º, 186.º e 187.º, revogou o regime anterior (Lei n.º 100/97 e Decreto-Lei n.º 143/99) e está em vigor desde 1/01/2010 e para eventos infortunísticos de carácter laboral ocorridos após essa data (como é o caso do sinistro desta ação).


B – OBJETO DA REVISTA


Está em causa neste recurso de revista saber se nos deparamos, efetivamente, por referência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa [TRL] de que recorre a Ré, com um cenário de violação do caso julgado material formado no âmbito do processo n.º 20062/17.0..., que correu termos no Juízo Local Cível da ... – Juiz ....


Importa frisar que a Ré não arguiu tal matéria, verdadeiramente e perante as duas instâncias, como uma situação de violação de caso julgado material mas talvez antes como um caso de litispendência [muito embora sem uma expressa concretização adjetiva, por a demandada se limitar a alegar a pendência daquela ação no Juízo Local Cível, o que explica que não haja qualquer referência nas correspondentes decisões judiciais a tal exceção dilatória] ou de duplicação da condenação e do correspondente pagamento das mesmas prestações nas duas ações [provocando um enriquecimento sem causa por parte da sinistrada – artigos 473.º e seguintes do Código Civil] ou finalmente de uma remissão abdicativa por parte da mesma, tendo estas duas últimas abordagens sido consideradas, pelo menos, em sede do Aresto do TRL.


Logo, não tendo tal exceção do caso julgado sido suscitada anteriormente pela recorrente, que, nessa medida, nunca foi objeto de pronúncia pelas partes e decisão por parte dos referidos tribunais, possui a mesma a natureza de problemática nova a ser apreciada e julgada por este Supremo Tribunal de Justiça, o que poderia constituir fundamento para que tal não acontecesse, por estarmos impedidos legalmente de o fazer.


Constata-se, no entanto, que tal temática da violação do caso julgado material é de conhecimento oficioso por parte dos tribunais judiciais, o que significa que, ainda que as partes ou o Ministério Público [MP] não a tenham invocado oportunamente nos seus articulados [Petição Inicial, Contestação e Resposta] ou nas alegações de recurso de Apelação ou em requerimento autónomo [MP], sempre teria este Supremo Tribunal de Justiça de a analisar e decidir, caso os autos reunissem, para tal efeito, os elementos de facto e de direito necessários e suficientes.


Mostra-se, por outro lado, cumprido o princípio do contraditório, dado a Autora e recorrida ter tido a possibilidade de, nas suas contra-alegações, se defender e contestar tal perspetiva trazida aos autos pela Ré.


Logo, não existe obstáculo a que esta questão da violação do caso julgado material seja decidida por este Supremo Tribunal de Justiça.


C - CASO JULGADO MATERIAL - EXCEÇÃO E FORÇA DO CASO JULGADO


Importa chamar, antes mais, à boca de cena deste Aresto, as normas que regulam a problemática do caso julgado, nas suas diversas vertentes ou aspetos [2], e que são as constantes dos artigos 677.º do Código de Processo Civil, com os efeitos decorrente dos artigos 671.º, 673.º e 675.º do mesmo diploma legal (força do caso julgado material) [3], definindo-se e caracterizando-se juridicamente a exceção dilatória do caso julgado nos termos dos artigos 493.º, 494.º, 495.º, 497.º e 498.º do mesmo diploma legal [4].


ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO E NORA, obra citada, páginas 293 a 296 e 680 e seguintes, sustentam o seguinte acerca da força do caso julgado material e da inerente exceção do caso julgado:


«A exceção de caso julgado, destacada na alínea a) do artigo 496.º [5], consiste na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário. (…)


O caso julgado material tem força obrigatória, não só dentro do processo em que a decisão é proferida (vide, a propósito, o disposto no artigo 813.º, al. h) [6], mas principalmente fora dele (artigo 671.º, n,º1; cfr., porém, o disposto nos artigos 673.º, 771.º e 778.º).


A força e a autoridade atribuídas à decisão transitada em julgado, quer ela se refira à relação processual, quer sobretudo quando respeita à relação material litigada, visam evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida mais tarde, em termos diferentes, por outro ou pelo mesmo tribunal (res judicata pro veritate habetur). Trata-se de acautelar uma necessidade vital de segurança jurídica e de certeza do direito, acima da intenção de defender o prestígio da administração da justiça.


A exceção de caso julgado, assente na força e autori­dade da decisão transitada, destina-se ainda a prevenir o risco de uma decisão inútil.


Desde que, havendo casos julgados contraditórios, se concede justificada prevalência à decisão que primeiro tran­sitou em julgado, quer a decisão respeite à relação material, quer se refira à relação processual (art.º 675.º, 1 e 2), a instauração do segundo processo, ou a nova arguição da questão processual, representaria um gasto inútil de tempo, de esforço e de dinheiro, além de constituir um perigo para o prestígio da administração da justiça, que cumpre naturalmente pre­venir. (…)


Os limites objetivos do caso julgado são dados, nos termos do n.º 1 do artigo 498.º, pela identidade, não só do pedido, mas também da causa de pedir.


Para haver caso julgado é necessário que haja repetição da causa. E a repetição da causa pressupõe, além da identidade dos sujeitos, a identidade do pedido e também da causa de pedir.


Não basta, por conseguinte, a identidade do pedido. (…)


A inclusão da causa de pedir entre os elementos identificadores da ação, para definir o caso julgado nas próprias ações reais, revela que a lei portuguesa seguiu, nesse ponto, a chamada teoria da substanciação (e não a denominada teoria da individualização).


A teoria da substanciação exige sempre a indicação do título (facto jurídico) em que se baseia o direito do autor. (…)


O caso julgado não cobre, entretanto, toda a causa de pedir, da qual podem decorrer muitos outros efeitos além do deduzido pelo autor na ação.


O caso julgado forma-se diretamente sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo autor (ou pelo réu, através da reconvenção). A ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido antes da identidade da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado.


É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado.


A força do caso julgado cobre apenas a resposta dada a essa pretensão e não o raciocínio lógico que a sentença percorreu, para chegar a essa resposta.» [7]


O acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 22 de maio de 2024, Processo n.º 1333/20.5T8LRA.C2.S1, Relator: Domingos José de Morais, discorre acerca do instituto do caso julgado nos seguintes termos, com múltiplas referências doutrinais:


«O caso julgado - regulado nos artigos 619.º a 625.º do CPC - visa, essencialmente, “obstar à contradição prática” entre duas decisões - “decisões contraditórias concretamente incompatíveis” -, ou seja, que o tribunal decida de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta, já definida por decisão anterior, isto é, desconheça de todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados.


Como decorre do Acórdão do STJ, de 12.04.2023, proc. n.º 2163/22.5T8PTM-B.E1.S1, in www.dgsi.pt, o caso julgado pode ser formal ou material. Verifica-se o caso julgado formal quando a sentença (acórdão) ou o despacho, incidir, apenas, sobre a relação processual, circunscrevendo-se a sua força obrigatória à questão processual concreta julgada no processo - artigo 620.º do CPC - e, verifica-se o caso julgado material quando a decisão respeita ao mérito da causa subjacente à relação material controvertida, passando a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, conforme preceitua o n.º 1 do artigo 619.º do CPC. A exceção de caso julgado tem por objetivo impedir, em nome da segurança e confiança, ou seja, em nome da paz jurídica e ainda por imperativos de economia processual, que uma causa se repita quando já existe uma sentença tornada firme sobre uma primeira causa, por já não ser admissível a interposição de recurso ordinário.


Trata-se de um corolário, do conhecido princípio dos praxistas, enunciado na fórmula latina tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat, taxativamente consagrado no artigo 621.º do CPC, nos termos do qual a sentença constitui caso julgado nos precisos termos e limites em que julga: e os limites dentro dos quais opera a força do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença, a saber, os sujeitos, o pedido e a causa de pedir.


Quanto ao seu fundamento, ele reside em imperativos de certeza e segurança jurídica e na necessidade de salvaguardar o prestígio dos tribunais, os quais se desenvolvem numa dupla vertente: uma vertente negativa (exceção do caso julgado) e uma vertente positiva (autoridade do caso julgado).


A função negativa do caso julgado é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artigo 580.º n.ºs 1 e 2 do CPC), implicando a tríplice identidade a que se reporta o artigo 581.º, n.º 1 do CPC, a saber, os sujeitos, o pedido e a causa de pedir.


Por via dela, o caso julgado material pode mesmo produzir efeitos num processo distinto daquele em que foi proferida a sentença transitada, aí valendo como exceção de caso julgado.


Já a autoridade do caso julgado, por via da qual é exercida a sua função positiva, pode funcionar independentemente da verificação da aludida tríplice identidade, pressupondo, todavia, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.


Como se refere no acórdão do Supremo tribunal de Justiça, de 2014.06.18, proc. n.º 209/09.1TBPTL.G1.S1, in www.dgsi.pt, «A autoridade de caso julgado é um conceito que tem sido usado para extrair efeitos de uma sentença em determinadas situações em que não se verifica a conjugação dos três elementos de identidade: sujeitos, pedido e causa de pedir.”.


Manuel de Andrade excluía da eficácia externa do caso julgado os terceiros interessados, isto é, os terceiros relativamente aos quais a sentença determina um “prejuízo jurídico, invalidando a própria existência ou reduzindo o conteúdo do seu direito”, exclusão ainda mais absoluta tratando-se de “terceiros que são sujeitos de uma relação ou posição jurídica independente e incompatível”.


[Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, págs. 311 e 312].


Noutros casos, a afirmação da “autoridade de caso julgado” é usada para atribuir relevo não apenas ao segmento decisório, mas também aos fundamentos da decisão ou aos pressupostos de que o Tribunal necessariamente partiu para a afirmação do resultado declarado.


Tal pode ocorrer, segundo Teixeira de Sousa, quando os “fundamentos de facto, considerados em si mesmos (e, portanto, desligados da respetiva decisão), adquirem valor de caso julgado”, o que sucede quando “haja que respeitar e observar certas conexões entre o objeto decidido e outro objeto”, mencionando uma diversidade de arestos que têm relevado para o efeito as questões que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença. Ainda assim, acrescenta o mesmo autor, “a extensão de caso julgado a relações de prejudicialidade ou sinalagmáticas apenas se pode verificar quando no processo em que a decisão foi proferida forem concedidas, pelo menos, as mesmas garantias às partes que lhe são concedidas no processo em que é invocado o valor vinculativo daqueles fundamentos”.


[cfr. Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., págs. 580 e 581].


O cuidado com que é tratada a eficácia externa do caso julgado também é bem visível em Antunes Varela que, depois de abordar a problemática dos efeitos da sentença relativamente a terceiros juridicamente indiferentes, acrescentou, relativamente aos terceiros titulares de uma relação jurídica incompatível com a litigada, que “nenhuma razão há, de acordo com o espírito da norma que prescreve a eficácia relativa do caso julgado, para impor a sentença ao terceiro, titular da posição incompatível com a declarada na sentença transitada”.


[cfr. Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed. pág. 727].


Nas demais situações cobertas pelas regras gerais, a invocação da “autoridade de caso julgado” formado num processo não pode conduzir a que se produzam na esfera de terceiros efeitos com que este não poderia contar, pelo facto de emergirem de um processo em que não teve qualquer intervenção.


[cf. o já citado Acórdão do STJ de 18.06.2014, proc. 209/09.1PTPTL.G1.S1, Abrantes Geraldes (relator), in www.dgsi.pt].


Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, págs. 578-580, afirma que “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão. (…) essa eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada.”. [8]


D - SITUAÇÃO VIVIDA NOS AUTOS


Chegados aqui e tendo como pano de fundo as normas legais antes referenciadas assim como a interpretação que delas fazem a nossa doutrina e jurisprudência, há que perguntar se, face ao estatuído nos artigos 576.º, números 1 e 2, 577.º, alínea i), 580.º e 581.º do Código de Processo Civil, nos deparamos nos autos com uma repetição da causa por referência aquela configurada no processo n.º 20062/17.0..., verificando-se assim uma exceção dilatória de caso julgado entre ambas as ações, por identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, nos moldes definidos nos números 2, 3 e 4 da última disposição legal acima identificada.


Importa visitar previamente as partes, os pedidos e a causa ou causas de pedir da presente ação emergente de acidente de trabalho e da referida ação comum cível com o número 24579/16.6T8PRT, assim como as decisões judiciais definitivas tomadas no quadro das mesmas, para, a final, confrontar as correspondentes peças processuais, de maneira a descortinar a efetiva existência de realidades coincidentes ou divergentes, quanto aqueles três elementos caracterizadores do instituto aqui em análise.


A Autora, AA, devidamente patrocinada pelo Ministério Público, apresentou, no dia 09/01/2017, assim dando início à fase contenciosa de presente ação emergente de acidente de trabalho, sob a forma de processo especial, Petição Inicial contra CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL ... e SEGURADORAS UNIDAS, S.A. (anterior COMPANHIA DE SEGUROS TRANQUILIDADE, S.A.) [9], formulando os seguintes pedidos:


«Termos em que deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, reconhecendo-se no caso em apreço a relação jurídica entre a Autora e a 1.ª Ré como um contrato de trabalho subordinado, tal como é definido no citado art.º 11.º do Cód. Do Trabalho, com reporte ao período de 1 de Março a 8 de Maio de 2014, e o acidente dos autos como sendo de trabalho ou, se assim não se entender, a Autora Abrangida pelo regime jurídico consagrado na Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, reconhecendo-se o acidente dos autos como de trabalho (art.º 3.º da L.A.T.) e, em consequência:


Serem as Rés condenadas a pagar à Autora:


1. O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no valor de € 72,40 em função do grau de incapacidade, data da alta e retribuição total anual;


2. € 88,03 a título de indemnização por I.T.A. e I.T.P. nos períodos compreendidos, respetivamente, entre 27-03-2014 a 01-04-2014 e de 02-04-2014 a 15-04-2014;


3. Juros de mora à taxa legal sobre as peticionadas quantias;


4. As despesas suportadas por esta no valor global de € 153,50 por causa do acidente de trabalho em razão dos tratamentos dentários já efetuados;


5. As Rés condenadas a prestarem à Autora, em espécie, a assistência médica, hospitalar e de enfermagem especializadas em estomatologia/médico dentista necessárias à “extração € colocação imediata de implantes e coroas provisórias dos dentes centrais” danificados, devendo previamente proceder à realização “de uma regeneração óssea através de excerto ósseo com a colocação de membrana para posterior reabilitação oral” e de um “T.A.C. ao maxilar superior”».


A Autora fundou os seus pedidos na seguinte alegação constante da sua Petição Inicial:


«I – DA ACÇÃO


1.º - A 1.ª Ré tem essencialmente como objeto o apoio a idosos.


2.º - No dia 06.03.2014 a Autora e a 1ª Ré celebraram e por impulso do I.E.F.P., um contrato denominado emprego-inserção +.


3.º - No entanto, a Autora já havia iniciado a sua prestação de trabalho para a 1.ª Ré no dia 01.03.2014,


4.º - sendo que o fez desde então,


5.º - Até ao dia 08.05.2014


6.º - E de forma ininterrupta,


7.º - E ainda que tenha estado totalmente incapacitada para o trabalho entre 27.03.2014 e 01.04.2014.


8.º - Como consequência do acidente ocorrido no dia 26.03.2014,


9.º - E que mais à frente se aludirá.


10.º Ao longo deste período temporal, a Autora executou sempre e, diariamente, as seguintes tarefas:


- dava banho aos idosos (o banho da manhã);


- mudava as fraldas aos idosos;


- dava o lanche aos idosos;


- levava as refeições às casa dos idosos (os almoços);


- acompanhava os idosos no regresso às respetivas residências,


11.º - Tendo ainda executado ao longo desse mesmo período e não raras vezes, outras tarefas, a saber:


- apoio na cozinha à preparação e confeção de refeições;


- limpeza de casas de banho.


12.º - A Autora executou sempre tais tarefas observando as informações e as instruções que a 1.ª Ré fazia constar dos chamados “mapas de tarefas”/”escalas de tarefas”,


13.º - Mapas/escalas estas que a 1.ª Ré previamente elaborava e afixava semanalmente nas suas instalações,


14.º - E de molde a que tais informações e instruções chegassem ao conhecimento da Autora em momento anterior ao da execução das tarefas,


15.º - À imagem aliás do que acontecia com todas as demais trabalhadoras da 1.ª Ré,


16.º - Que executavam tarefas idênticas às executadas pela Autora.


17.º - Além disso, quando se impunha a necessidade de cumprir tarefas distintas das que constavam dos ditos mapas ou, de aperfeiçoamento do cumprimento das tarefas delas constantes,


18.º - “Tais necessidades” eram sempre levadas ao conhecimento da Autora,


19.º - Assim como, das demais trabalhadoras da 1.ª Ré,


20.º - Pela diretora desta de nome BB.


21.º - Note-se, se necessário fosse que contrariamente ao que teria estado subjacente à celebração do referido contrato,


22.º - Nunca a Autora desempenhou quaisquer tarefas que pudessem ser consideradas como próprias de uma animadora cultural.


23.º - Nesse mesmo período temporal isto é, entre 01.03.2014 e, 08.05.2014 a Autora nunca cumpriu um horário inferior a 8 horas diárias de trabalho,


24.º - Uma vez que , iniciava a sua prestação de trabalho pelas 8:00 horas,


25.º - E nunca a findava (em regra) antes das 17:00 horas.


26.º - Horários estes que cumpria sempre entre 2.ª feira e domingo,


27.º - Observando assim e, de igual modo à imagem das outras trabalhadoras da Ré, os horários que a 1.ª Ré fazia constar dos respetivos mapas/escalas – os chamados mapas/escalas semanais de horário de trabalho,


28.º - Que também previamente afixava nas suas instalações.


29.º - Em cada semana – de 2.ª feira a domingo – a Autora folgou sempre um dia,


30.º - Ainda que não se tratasse de um dia fixo (folga fixa),


31.º - Sendo que apenas tinha conhecimento do seu dia de folga semanal quando consultava os mapas de horário de trabalho,


32.º - Entretanto afixados pela 1.ª Ré.


33.º - Em cada dia a Autora estava obrigada, assim como as demais trabalhadoras da 1.ª Ré, a registar em folha própria, tipo folha de ponto, a hora em que iniciava a sua prestação, a hora em que findava a sua prestação de trabalho,


34.º - O mesmo acontecendo no tocante à hora do início e à hora do termo do período de almoço.


35.º - Entre o dia 01.03.2014 – a data do início da prestação de trabalho – e, o dia 08.05.2014 – o do termo da prestação de trabalho, a 1.ª Ré pagou à Autora a quantia líquida global de € 1.006,13,


36.º - Sendo que lhe pagava mensalmente e como contrapartida direta do trabalho prestado uma quantia que denominava de Emprego Apoiado – CEI, no montante mensal de € 419,22.


37.º - No decurso desse mesmo período a 1.ª Ré pagou sempre à Autora a quantia diária de € 4,27 a título de subsídio de alimentação.


38.º - Sublinhe-se que no mês de Março de 2014, a 1.ª Ré pagou à Autora a quantia ilíquida de € 504,62, assim discriminada:


- € 85,40 – subsídio de alimentação (20 dias);


- € 419,22 – Emprego Apoiado – CEI,


Como aliás se alcança do respetivo recibo de vencimento que ora se junta como documento n.º 9


39.º - Sublinhe-se que embora a Autora não tenha em seu poder os dois outros recibos de vencimento: Abril e Maio de 2014,


40.º - Certo é que recebeu a final, da 1.ª Ré, a quantia já atrás referida sob o artigo 35.º


41.º - Mais se sublinhe que a quantia paga sob a rubrica Emprego – Apoiado CEI, não era totalmente participada pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional,


42.º - Dado que ao montante de € 419,22, correspondia uma participação no montante de € 377,20,


43.º - Sendo que a participação final do aludido Instituto ascendeu ao montante global de € 914,42.


44.º - Aquando do início da sua prestação de trabalho para a 1.ª Ré, a Autora tinha como única fonte de rendimento um subsídio social no montante mensal de € 170,00 (rendimento mínimo).


45.º - Durante a vigência do contrato não recebia quaisquer outras quantias, fosse a que título fosse, para além daquelas que a 1.ª Ré lhe pagava.


46.º - Após a cessação do contrato a Autora voltou a receber a quantia correspondente ao rendimento mínimo: a quantia de € 170,00,


47.º - Acrescida de uma outra quantia a título de bolsa no montante mensal de € 70,00,


48.º - Passando a ser estas as suas duas únicas fontes de rendimento.


49.º - A Autora utilizava materiais (v.g. produtos de limpeza) e equipamentos (v.g. batas) fornecidas pela 1.ª Ré.


50.º - Prevê o art.º 11.º do Código do Trabalho que «Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob autoridade destas». Negrito e sublinhado nossos


51.º - O art.º 12.º do mesmo diploma legal, por sua vez, dispõe sob a epígrafe “presunção de contrato de trabalho” que (n.º 1) se presume «a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:


a) A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;


b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade;


c) O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;


d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma;


e) O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.».


52.º - Da factualidade que acima se deixou articulada pode, pois, em suma e para além do mais, concluir-se que:


a) A Autora prestava a sua atividade em local pertencente à 1.ª Ré e/ou por ela determinado;


b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pela Autora pertenciam à 1.ª Ré;


c) A Autora observava as horas do início e do termo da prestação da sua atividade de forma programada e previamente determinada pela 1.ª Ré;


d) Como contrapartida da atividade prestada pela Autora, a 1.ª Ré pagava-lhe mensalmente uma quantia certa;


a) A atividade da Autora era heterodeterminada pela 1.ª Ré, a qual era, desse modo, realizada sob as ordens, direção, orientação, fiscalização e exercida de modo exclusivo para a Ré empregadora;


b) A Autora estava inserida na estrutura organizativa da 1.ª Ré que definia e orientava o seu tempo e modo de trabalho.


53.º - Verifica-se, pois que, in casu, estão presentes todas as características legalmente previstas para o funcionamento da presunção de laboralidade prevista no citado art.º 12.º do Cód. do Trabalho, beneficiando, assim, a Autora dessa mesma presunção com efeitos a partir de 1 de Março de 2014, com todas as consequências legais daí decorrentes.


54.º - Assim sendo, consubstanciando a relação jurídica estabelecida entre Autora e 1.ª Ré um contrato de trabalho subordinado, tal como é definido no citado art.º 11.º do Cód. do Trabalho, deve reconhecer-se, no caso em apreço, com reporte a essa mesma data a existência desse mesmo contrato.


55.º - Ademais, e se necessário fosse, cumpriria nunca esquecer o que dispõe o artigo 10.º do Código do Trabalho: “As normas legais respeitantes a direitos de personalidade, igualdade e não discriminação e segurança e saúde no trabalho são aplicáveis a situações em que ocorra prestação de trabalho por uma pessoa a outra sem subordinação jurídica sempre que o prestador de trabalho deva considerar na dependência económica do beneficiário da atividade”.


56.º - No dia 26 de Março de 2014, pelas 11H20 a Autora encontrava-se nas instalações da sede da 1.ª Ré, onde, por ordem e no interesse da sua entidade empregadora e ora Ré, amparava um idoso, utente desta, impedindo-o de cair, quando este, ao esbracejar, lhe bateu com a mão na boca.


57.º - Causando à Autora «traumatismo da boca com edema do lábio superior e luxação dos dentes incisivos centrais superiores.»;


58.º - Apresentando a Autora como sequelas «mobilidade dos dois dentes incisivos centrais superiores com dificuldade no corte e mastigação (d)e alimentos», conforme descrito no relatório de exame do processo de fls. 44 a 46 e que aqui se dá integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.


59.º - Tais lesões sofridas pela sinistrada ora Autora foram causa direta e necessária de:


- I.T.A. (incapacidade temporária absoluta) para o trabalho entre 27-03-2014 a 01-04-2014; e de


- I.T.P. (incapacidade temporária parcial) para o trabalho de 5% entre 02-04-2014 a 15-04-2014 – fls. 45.


60.º - Submetida a perícia médica, à Autora, em consequência do acidente atrás descrito, foi arbitrado pela perita médica do Tribunal uma I.P.P. (incapacidade permanente parcial) para o trabalho de 1,4985% com alta ocorrida a 15-04-2014, que mereceu a concordância da sinistrada – fls. 55.


61.º - O evento relatado ocorreu em local e no horário de trabalho decorrendo da disponibilização da força de trabalho da sinistrada AA.


62.º - Existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal observado.


63.º - Existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal observado.


64.º - O tipo de lesões observado é adequado a uma etiologia traumática.


65.º - O tipo de traumatismo participado é adequado a produzir o tipo de lesões observadas.


66.º - O montante de retribuição total anual devido à Autora é de €6.902,42 (seis mil, novecentos e dois euros e quarenta e dois cêntimos) - cfr. art.º 71.º, n.ºs 2 e 3 da L.A.T..


67.º - A empregadora e ora Ré havia transferido a sua responsabilidade emergente de acidentes pessoais para a Ré Seguradora, através da celebração de um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ........00, com efeitos a 01/03/2014 e termo a 03/06/2014 – fls. 13 a 18.


68.º - É devida à Autora uma pensão anual e vitalícia no valor total de €72,40 correspondente a 70% da sua retribuição anual, conjugado com o grau de desvalorização que lhe foi fixado, obrigatoriamente remível – art.º 75.º, n.º 1, da L.A.T..


69.º - A perita médica do Tribunal, no relatório de perícia de avaliação do dano corporal constante de fls. 45, extraiu, para além do mais, a seguinte conclusão médico-legal:


«(S) A sinistrada necessita realizar acompanhamento regular por especialista de estomatologia/médico dentista, devendo realizar tratamentos que sejam necessários para a manutenção das peças dentárias danificadas, e, quando for necessário deverá fazer a sua substituição por implantes dentários e coroas como é referido nos relatórios do médico da especialidade que se encontram no processo.» negrito nosso


70.º - Na tentativa de conciliação ocorrida em 04 de Dezembro de 2015 neste Tribunal a 1.ª Ré declinou qualquer responsabilidade pelo acidente declarando que «a sinistrada foi integrada ao abrigo do contrato de emprego e inserção, ao abrigo da legislação do Instituto do Emprego e Formação, estando prevista a realização de um seguro de acidentes pessoais e o pagamento de uma bolsa de ocupação e subsídio de alimentação, pelo que não se considera responsável pelo pagamento de qualquer indemnização, que a haver, será por (conta) da seguradora.» – fls. 55.


71.º - Por seu turno, a Ré Seguradora «não reconhece a natureza de contrato de trabalho à relação estabelecida entre a sinistrada e o Centro Social e Paroquial, motivo pelo qual não reconhece ao evento dos autos a natureza de acidente de trabalho.»;


72.º - Refere, no entanto, que «Reconhece a existência de um seguro de acidentes pessoais cujos termos e cláusulas, pela sua natureza não podem ser discutidos no âmbito de um processo de acidente de trabalho. Entende pois que, nesta sede nada deve à sinistrada, pelo que não aceita conciliar-se.» - fls. 55 e 56.


73.º - Entre o dia do acidente de trabalho verificado a 26 de Março de 2014 e o dia 15 de Abril de 2014, data da consolidação médico-legal, é devida pelas Rés o pagamento de indemnização à Autora pelas incapacidades temporárias indicadas em 20.º pelos indicados períodos no valor global de € 88,02.


74.º - Em consequência do acidente, ante a posição das Rés, a Autora teve de suportar do seu bolso a quantia de €153,50 a título de despesas com tratamentos dentários por causa do referido acidente de trabalho de que foi vítima – Docs. 1 a 11. (documentos inicialmente juntos)


75.º - A Autora continua a necessitar de tratamento dentário consistente na “extração com colocação imediata de implantes e coroas provisórias dos dentes centrais” danificados por causa do referido acidente e, previamente, “Devido à falta Óssea acentuada no Bloco anterior (1.º e 2.º Quadrante), é necessário a realização de uma regeneração óssea através de Enxerto Ósseo com a colocação de membrana para posterior reabilitação oral.”, além de um “T.A.C ao maxilar superior”, que às Rés incumbe suportar e/ou prestar – fls. 25 e Docs. 12, 13 e 15.( documentos inicialmente juntos)


76.º - Tais despesas pagas pela Autora mostraram-se indispensáveis para que a sinistrada possa viver de forma digna, mitigando, tanto quanto possível, as dificuldades subjacentes ao seu estado físico.


77.º - A unidade psicossomática da sinistrada ficou marcada de forma indelével por este trágico acidente e todas as disponibilidades técnicas e de adaptação que se possa utilizar para minimizar a dor e os constrangimentos da feitura das necessidades mais básicas do ser humano são não só uma necessidade como são elas próprias indispensáveis para a vida da sinistrada.


78.º - Todas as valências que a evolução da medicina, farmácia e dispositivos médicos tais como implantação ou reparação de próteses dentárias permitem são indispensáveis para a vida da sinistrada.


79.º - Todas as técnicas e tecnologia a que possa aceder são essenciais para que a sinistrada tenha uma vida mais merecedora de ser vivida e não um suplício a que a sua condição física a colocou.


80.º - É neste sentido que se torna indispensável que as Rés suportem as despesas já efetuadas e a realizar as prestações em espécie que a Autora necessita, a saber: a “extração com colocação imediata de implantes e coroas provisória dos dentes centrais” danificados (fls. 25 e 45), devendo previamente por motivo da “falta óssea acentuada no Bloco anterior (1.º e 2.º Quadrante), é necessário a realização de uma regeneração óssea através de Enxerto Ósseo com a colocação de membrana para posterior reabilitação oral.”, além de um “T.A.C. ao maxilar superior” (DOC. 15) (inicialmente junto ), conforme dispõem os art.ºs 23.º e 25.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.


81.º - Conforme decorre do art.º 23.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, a reparação do acidente compreende, não só prestações pecuniárias, mas também as prestações em espécie que as Rés, no vertente caso, não aceitam suportar.


82.º - Devem as Rés, porém, nos termos do referido normativo e em conformidade com o juízo pericial do Tribunal pagarem as despesas já suportadas pela Autora pelos tratamentos dentários já efetuados por causa do acidente de trabalho no valor global € 153,50.


83.º - Despesas já realizadas a que as Rés devem ser condenadas a pagarem à Autora, e bem assim a fornecer-lhe em espécie a assistência médica, hospitalar e de enfermagem de “extração com colocação imediata de implantes e coroas provisória dos dentes centrais” danificados, devendo previamente procederem à realização “de uma regeneração óssea através de Enxerto Ósseo com a colocação de membrana para posterior reabilitação oral.” e de um “T.A.C ao maxilar superior”.»


*


O Tribunal da Relação de Lisboa, através do Acórdão de 21/2/2024, revogou a sentença do Juízo do Trabalho ... [Juiz ...] do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e decidiu o seguinte:


“Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação em preço e, consequentemente:


I - Declarar a inexistência de violação de caso julgado formal;


II - Declarar que o sinistro em apreço configura um acidente de trabalho abrangido pela LAT;


III - Oficiosamente, aditar aos factos assentes o item Y, contendo a data de Nascimento da Autora;


IV - Condenar a Ré (CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL ...) a pagar à Autora (AA):


- Indemnização (pelas incapacidades temporárias) no valor de € 88,02;


- O capital de remição da pensão anual vitalícia de € 72,40, com início a 16/04/2014, no valor total de € 833,90;


- A quantia de € 153,50 referente aos tratamentos médico dentários;


- Tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento;


V - Também condenar a Ré a prestar à Autora:


Todas as prestações em espécie que sejam necessárias para fazer face às suas sequelas. isto é, acompanhamento regular por especialista de estomatologia/médico dentista, devendo realizar tratamentos que sejam necessários, para manutenção das peças dentárias danificadas e, quando for necessário, durar fazer a sua substituição por implantes dentários e coroas. e, também, tratamento médico dentário , consistente na extração com colocação imediata de implantes e coroas provisórias dos dentes centrais, danificados em consequência do acidente, devido à falta óssea acentuada no bloco anterior (1.º e 2.º Quadrante), Sendo necessária a realização de uma regeneração óssea através de enxerto ósseo, com a colocação de membrana para posterior reabilitação oral além de uma TAC ao maxilar superior.


- Tudo isto, sem prejuízo de quaisquer outras prestações em espécie que se venham a mostrar necessárias para fazer face a tais sequelas. tais como, assistência médica, cirúrgica, incluindo elementos de diagnóstico e de tratamento, assistência farmacêutica, cuidados de enfermagem, dispositivos de compensação das suas limitações funcionais, bem como a respetiva renovação e reparação. E, preferencialmente, correspondam ao Estado mais avançado da ciência e da técnica, por forma a pressionar a sinistrada as melhores condições, independentemente do seu custo”. [10]


A Autora, por seu turno, na ação de indemnização cível com base em seguro de acidentes pessoais, na forma de processo comum, com o número 20062/17.0..., que propôs, em 14/9/2017, no Juízo Local Cível da ... [Juiz ...], contra a COMPANHIA DE SEGUROS TRANQUILIDADE, S.A, deduziu os seguintes pedidos:


«Nestes termos e nos demais de direito deve a presente ação ser julgada procedente, sendo a Ré condenada a pagar à Autora o montante de 18.448,44 € (dezoito mil quatrocentos e quarenta e oito euros e quarenta e quatro cêntimos), acrescendo a este valor o montante de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a data da ocorrência do sinistro até integral pagamento, no montante de 4.518,00 € (calculados até à data da propositura da presente ação), perfazendo um valor global de 22.966,44€ ( vinte e dois mil novecentos e sessenta e seis euros e quarenta e quatro cêntimos).»


A Autora baseia tais pretensões na seguinte alegação constante da sua Petição Inicial:


1.º - A ora Autora ( sinistrada) é a pessoa segura, nos termos de um contrato de Seguro celebrado com a ora Ré, na modalidade de Acidentes Pessoais, no qual é tomador do Seguro, o Centro Paroquial ..., com o contribuinte n.º .......09, titulada pelo n.º de Apólice ........00, conforme se juntam cópias das Condições Particulares da referida Apólice, como Doc. 3 e Doc. 4, que se dão como integralmente como reproduzidas para todos os efeitos legais; tendo a Entidade Empregadora transferido a sua responsabilidade emergente de Acidentes Pessoais para a ora Ré.


2.º - Conforme participação do sinistro efetuado pela ora Autora/sinistrada, no dia 26 de Março de 2014, pelas 11h20 a visada, encontrava-se nas instalações da sede do Centro Social e Paroquial ..., local no qual executava a sua atividade profissional, onde por ordem e no interesse da referida entidade empregadora, amparava um idoso, utente desta entidade, impedindo-o de cair, quando este ao esbracejar, lhe bateu com a mão na boca, conforme se junta cópia do contrato de formação profissional celebrado entre a ora Autora e o Centro de Formação Profissional, Doc. 5, que se dá como integralmente reproduzida para todos os efeitos legais (auferindo a Autora de uma retribuição mensal denominada de «bolsa de ocupação mensal» de 419,22 €, paga 14 vezes por ano, a que acresce um subsídio de alimentação de 93,94 € mensais, perfazendo uma retribuição total anual de 6.902,42 €), bem como se junta cópia da participação do sinistro ocorrido no dia 26 de Março de 2014, como Doc. 6., que se dá como integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.


3.º - Neste sequência e como causa direta deste «embate» foi provocado um «traumatismo da boca com edema do lábio superior e luxação dos dentes incisivos centrais superiores», verificando-se a adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal apurado, verificando-se uma continuidade sintomatológica entre o traumatismo e o dano corporal observado.


4.º - Pelo que, a Autora/sinistrada ficou com sequelas dos dois dentes incisivos centrais superiores com dificuldade no corte e mastigação de alimentos, tendo sido as lesões sofridas pela Autora/sinistrada causa direta e necessária de ITA (incapacidade temporária absoluta) para o trabalho entre 27-03-2014 e 01-04-2014 e de ITP incapacidade temporária parcial), para o trabalho de 5% entre 02-04-2014 e 15-04-2014.


5.º - Submetida a perícia médica a sinistrada, em consequência do acidente atrás descrito, foi arbitrado pela perita médica do Tribunal do Trabalho, uma IPP (incapacidade permanente parcial) para o trabalho de 1,4985% com alta ocorrida em 15-04-2014, com a concordância da Autora/ sinistrada.


6.º - Inclusive a perita médica do Tribunal , no relatório de perícia de avaliação do dano corporal, extraiu para além do mais, a seguinte conclusão médico-legal: «A sinistrada necessita realizar acompanhamento regular por especialistas de estomatologia/médico dentista, devendo realizar tratamentos que sejam necessários para as peças dentárias danificadas, e, quando for necessário deverá fazer a sua substituição por implantes dentários e coroas como é referido nos relatórios médicos de especialidade que se encontram no processo», conforme relatório de exame médico legal Docs. 7, 8, 9 que se juntam em anexo, cujas cópias se dão como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, bem como relatórios do médico que acompanhou a ora Autora, a identificarem a patologia clinica resultante do sinistro em análise, que se juntam como Docs. 10 a 14, cujas cópias se dão como integralmente como reproduzidas para todos os efeitos legais. Para além de que,


7.º - Para além da incapacidade temporária de que foi alvo, a ora Autora, em consequência deste sinistro teve de suportar por si, uma quantia superior a 236,50 € em tratamentos médico-dentários, bem como despesas mensais em medicamentos, num valor mensal de cerca de 24,25 €, o que perfaz um encargo suportado a este título, desde a data do sinistro até à data presente ( data da propositura da ação) um valor de cerca de 921,50 €, conforme se junta cópia dos documentos comprovativos dessas despesas, como Docs. 15 a 30, que se dão como integralmente como reproduzidos para todos os efeitos legais. Acresce ainda que,


8.º - Computam-se todas as despesas suportadas pela ora Autora/ sinistrada, a título de consultas dentárias e medicação, num valor superior a 1.158,00€ (mil cento e cinquenta e oito Euros), calculado com base nas faturas anexas, reforçando que com base nos Docs. 31 e 32, cuja cópia se dá como integralmente como reproduzida para todos os efeitos legais, a ora Autora/sinistrada tem de utilizar mensalmente os medicamentos: BEXIDENT GENGIVAS COLUT CHX ML e BEXIDENT GENGIVAS GEL DENT CHX 75 ML. Mais grave ainda,


9.º - O estado atual de saúde da Autora/sinistrada agravou-se, pelo que junto se anexa um relatório médico atual datado de 04 de Maio de 2017, como Doc. 33, cuja cópia se dá como integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, com a informação de que com base na observação clinica e na ortopantomografia é considerado ser «necessária a extração dos 4 dentes incisivos superiores e um enxerto ósseo com membrana, cujo custo será aproximadamente de 2.500,00 €» e com indicação de que «no seguimento do tratamento, todas as peças dentárias que se encontram com mobilidade deverão ser extraídas e todos os dentes substituídos por prótese removível ou implantes dentários com coroas unitárias aparafusadas em cerâmica, cujo custo é de 4.800,00 €.», perfazendo um valor total de 7.300€ ( Sete Mil e Trezentos Euros).


10.º - Volvido todo este tempo, desde a data de participação do sinistro em análise, a sinistrada continua a necessitar de tratamentos médicos dentários consistentes na «extração com colocação imediata de implantes e coroas provisórias dos dentes centrais, danificados por causa do referido acidente», em conformidade com os relatórios médicos que se anexam.


11.º - Ainda hoje a sinistrada continua a ter despesas e encargos com medicação que advém do estado em que se encontra a sua saúde oral, conforme documentos que junto se anexa.


12.º - Cumpre ainda à ora Autora, esclarecer o digníssimo Tribunal, que para além dos danos patrimoniais que para si advieram, como consequência direta do sinistro ocorrido, a mesma continua sem viver de uma forma digna, dadas as dificuldades subjacentes ao seu estado físico, o que tem tido uma enorme repercussão no seu estado psicológico.


13.º - Atente-se que ficaram colocadas em causa as necessidades mais básicas do ser humano e indispensáveis à vida da sinistrada, tendo inclusivamente a mesma de readaptar toda a sua alimentação e vivendo em constante medo e receio de perder definitivamente a dentição afetada.


14.º - Inclusive não consegue sorrir, nem tão pouco brincar com a sua neta, situações que têm influenciado diretamente e constantemente o seu estado psicológico, conforme a mesma consegue comprovar.


15.º - Na medida em que, a ora Autora/sinistrada é reformada por invalidez com uma reforma mínima, não consegue suportar as despesas relativas ao necessário tratamento, para que lhe seja possível uma vida condigna.


16.º - Bem sabe o homem médio normal, que a saúde dentária é essencial ao equilíbrio e bem estar do ser humano, bem como da falta de saúde dentária poderão advir outro tipo de problemas de saúde, até ao nível psicológico com a redução dos níveis de autoestima, tristeza profunda e sofrimento diário de que padece a Autora, conforme se anexa relatório da psicóloga clínica, Exma. Sra. Dra., CC, como Doc. 34 (surgindo como Doc. anexo também com a numeração 33, quando o que se pretende é numerar com o n.º 34), que se dá como integralmente como reproduzido para todos os efeitos legais. Face ao exposto:


17.º - Como consequência direta do sinistro ocorrido, ocorreram na esfera patrimonial e não patrimonial da ora Autora os seguintes danos:


– Despesas médicas e medicamentosas, no valor de cerca de 1.158,00 € (mil cento e cinquenta e oito Euros).


– Despesas com tratamento médico inerente a: «extração dos 4 dentes incisivos superiores e um enxerto ósseo com membrana, cujo custo será aproximadamente de 2.500,00 €» e com indicação de que no «seguimento do tratamento, todas as peças dentárias que se encontram com mobilidade deverão ser extraídas e todos os dentes substituídos por prótese removível ou implantes dentários com coroas unitárias aparafusadas em cerâmica, cujo custo é de 4.800 €», no valor global de 7.300,00 € (Sete Mil e Trezentos Euros).


– Entre o dia do sinistro verificado a 26 de Março de 2014 e o dia 15 de Abril de 2014, data da consolidação médico-legal é devida pela Ré o pagamento de indemnização à Autora, pela incapacidade temporária, no valor global de 88,02 €, bem como um valor em função do grau de invalidez atribuída, no valor de cerca de 6.902,42 € (Seis Mil Novecentos e Dois Euros e Quarenta e Dois Cêntimos), correspondente ao montante da retribuição anual devida à Autora.


A estas quantias acrescem os juros de mora à taxa legal em vigor de 7%.


Danos não patrimoniais inerentes a danos morais, designadamente no que concerne aos impactos que o sinistro e as consequências advenientes do mesmo, ao nível psicológico com a redução dos níveis de autoestima, tristeza profunda e sofrimento diário de que a Autora padece e que não têm preço, estimando-se os referidos danos em 3.000,00 € (Três Mil Euros).


Do Direito:


18.º - Nos termos do artigo 210.º do D.L n.º 72/2008 de 16 de Abril, é estipulado que no Seguro de Acidentes Pessoais o segurador cobre o risco de verificação da lesão corporal, invalidez temporária ou permanente, bem como estipula o artigo 128.º do referido D.L. que a prestação devida pelo Segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.»


Tais autos que correram os seus termos no referido Juízo Cível vieram a conhecer o seu termo por via da transação judicial firmada entre as partes em sede da Audiência Final realizada no dia 8/1/2020, conforme o que ressalta da correspondente Ata e que é o seguinte:


«Tentada a conciliação das partes, a mesma foi alcançada nos termos seguintes:


1 - A Autora reduz o pedido para a quantia de 2.000,00 € (dois mil euros);


2 - A Ré procederá ao pagamento da referida quantia, no prazo de 30 dias, através de transferência bancária.


3 - Para o efeito, a Autora, através da sua Ilustre Patrona, compromete-se a remeter ao Ilustre Mandatário da Ré, no prazo de 10 dias, o IBAN da conta bancária para a qual deve ser efetuada a transferência e documento comprovativo da titularidade da respetiva conta bancária.


4 - A Ré remeterá para a morada da Autora, o recibo relativo ao pagamento da quantia acordada, comprometendo-se a Autora a devolver tal documento devidamente assinado.


5 - Com o recebimento da referida quantia, a Autora declara nada mais ser devido pela Ré em consequência do sinistro ocorrido no dia 26 de março de 2014, seja a que título for.


6 - As custas serão suportadas em partes iguais, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza a Autora, prescindindo mutuamente de custas de parte.


*


Seguidamente, pela Mm.ª Juíza de Direito foi proferida a seguinte:


SENTENÇA


Tendo em conta a livre disponibilidade do objeto sobre que incide a presente relação jurídica controvertida, bem como a qualidade das partes outorgantes, nos termos do disposto nos artigos 283.º, n.º 2, 284.º e 290.º, n.º 1 e n.º 3 todos do CPC, homologo o acordo ora firmado, condenando as partes no seu estrito cumprimento.


Consequentemente, nos termos do art.º 277.º, alínea d) do CPC, declara-se extinta a instância.


Custas conforme acordado, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à Autora».


Ora, chegados aqui, parece-nos, desde logo, manifesta a falta de identidade dos sujeitos processuais que tiveram efetiva intervenção em cada uma das duas ações, dado que, embora a demandante seja a autora em ambas – não obstante o faça, por referência ao mesmo evento lesivo, em qualidades jurídicas distintas, dado que ao passo que na primeira age como beneficiária de um seguro de acidentes pessoais que foi efetuado a seu favor pelo Centro Réu, já na segunda se apresenta como sinistrada de um acidente de trabalho, por força da aplicação da LAT, apesar do seu “contrato de emprego-inserção +” não poder ser qualificado juridicamente como contrato de trabalho -, já as partes demandadas em cada uma delas são diferentes, pois enquanto que aqui é a entidade com quem aquela firmou tal “contrato de emprego-inserção +, ali é a Companhia de Seguros que celebrou com o CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL ... o mencionado contrato de seguro de acidentes pessoais.


Não será despiciendo recordar que tal Seguradora foi acionada no quadro destes autos mas, por decisão judicial já transitada em julgado, o tribunal da 2.ª instância - confirmando despacho proferido nesse mesmo sentido pelo tribunal da 1.ª instância - considerou incompetente os tribunais de trabalho em razão da matéria para apreciar a problemática derivada da existência daquele contrato de seguro de acidentes pessoais, o que implicou a exclusão da Companhia de Seguros, via absolvição da instância, do pleito suscitado nesta ação [11].


Poder-se-ia tentar perspetivar a posição jurídico-processual de cada uma das Rés em cada um dos processos como sucedâneas ou equiparadas, atenta a circunstância de o sinistro que está na sua base ser o mesmo e de o dito contrato de seguro de acidentes pessoas ter sido assinado por ambas com vista a garantir o ressarcimento de eventuais prejuízos sofridos pela pessoa admitida ao abrigo do referido “contrato de emprego-inserção +” e que é a Autora nas duas, mas afigura-se-nos manifesta a inexistência de tal identidade de estatutos jurídico-processuais das duas demandadas, desde logo pela circunstância de nos movermos em cenários de facto e de direito que são diversos e demandam julgamentos e consequências legais distantes uns dos outros, não se podendo confundir uma situação de acidente de trabalho e do seu multiforme, complexo e vitalício universo que emerge da LAT - e que reconduz a uma plêiade de direitos e deveres da sinistrada e da entidade responsável pela reparação dos inerentes danos -, com aqueles bastante mais limitados, no tempo, modo e espaço, que derivam do regime jurídico do contrato de seguro de acidentes pessoais.


Tal constatação permite-nos entrar, desde logo, na abordagem dos restantes elementos que caracterizam a figura da exceção de caso julgado, dado que, fora a descrição do evento lesivo em si e das circunstâncias relevantes em que ocorreu, existem factos essenciais – e não apenas acessórios ou complementares – e questões jurídicas dos mesmos decorrentes que determinam configurações do referido sinistro diferentes, como demandam, por força dos regimes legais aplicáveis, pretensões distintas, sendo que as previstas na LAT não se esgotam no presente e não estão limitadas pelo valor máximo segurado, podendo surgir ciclicamente, pelos mais variados fundamentos, durante toda a vida da Autora.


Logo, não se pode reconhecer aqui a ocorrência de uma exceção dilatória de caso julgado, conforme anteriormente delineada e analisada.


Interessa ainda dizer nesta sede que nem sequer uma situação de ofensa da autoridade do caso julgado [material] pode ser arguida pela recorrente, desde logo porque não se verifica uma identidade de sujeitos processuais nas duas ações, como já antes referimos.


Mais importante ainda para esta problemática é a de que, verdadeiramente, na ação de natureza cível não se verificou um real e genuíno julgamento e decisão judicial da respetiva causa mas, tão somente, a celebração de um acordo judicial de teor indemnizatório global, que foi depois homologado por sentença, decisão homologatória esta que não pode ser invocada no quadro destes autos emergentes de acidente de trabalho.


Recorde-se, desde logo, que os direitos emergentes para os sinistrados da Lei de Acidente de Trabalho são irrenunciáveis e indisponíveis [cf. artigos 12.º, 13.º, 51.º e 78.º desse diploma legal], o que torna juridicamente ineficaz qualquer acordo externo que pretenda condicionar, restringir ou extinguir os mesmos, à revelia e contra o referido regime legal contante da LAT.


Realce-se, finalmente, o facto da aludida transação judicial, expressa em montante bastante inferior à soma dos pedidos deduzidos pela Autora na correspondente ação, não discriminar, como deveria, os efetivos prejuízos que são ali visados e as importâncias que, em concreto, são pagas pela Seguradora por referência a cada um deles, o que torna difícil, quando não impossível, o confronto ou a comparação entre os danos e respetivos valores atribuídos numa e noutra ação [sendo certo que, sem prejuízo do que adiante ainda diremos, o ónus de alegação e prova de tal correspondência compete por inteiro à recorrente] e, nessa medida, o funcionamento do efeito positivo externo do caso julgado material.


Chegados aqui, já não nos movemos apenas no seio de tal instituto jurídico mas já convivemos paredes-meias com outras exceções, de cariz perentório, configuradoras de factos impeditivos, modificativos ou extintivos, que, naturalmente, não se confundem com o primeiro, pois ao passo que aquele obsta à propositura de uma nova ação ou pedido reconvencional com objeto idêntico a ação ou reconvenção anteriores ou condiciona, parcial ou totalmente, o conteúdo, sentido e alcance de uma segunda decisão judicial, aquelas outras exceções possuem uma causa distinta – que, usualmente, se reconduz à verificação de um sinistro que é, simultânea e juridicamente, um acidente de viação e um acidente de trabalho, com danos e indemnizações apenas em parte coincidentes [cf. artigo 17.º da LAT] - e possuem mesmo um processo incidental próprio para serem suscitadas [artigos 151.º a 153.º do CPT], com vista a provocarem uma sentença judicial de suspensão ou extinção do direito ao recebimento das prestações consagradas na LAT.


No sentido sustentado no texto deste Aresto, poderão consultar-se os seguintes dois Arestos desta mesma Secção Social:


- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/3/2023, Processo n.º 4256/06.7TTLSB.L1.S1, relator: Júlio Gomes, publicado em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4043a0219293b30e8025898200373e5e?OpenDocument, com o seguinte Sumário:


«1. Não existe violação do caso julgado quando o acordo de transação, em um acidente de trabalho que se ficou a dever a culpa do empregador, nem sequer se refere às despesas que venham a ser realizadas pelo sinistrado para reparar o dano.


2. Com efeito, e além da natureza indisponível destes direitos do sinistrado, o acordo não pode ser interpretado como excluindo a responsabilidade do empregador pela evolução futura, posterior, da situação de saúde da trabalhadora sinistrada, independentemente da existência, ou não de agravamento da incapacidade.»


- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/5/2023, Proc. n.º 617/20.7T8PNF-B.P1.S1, Relator: Azevedo Mendes, publicado em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2023:617.20.7T8PNF.B.P1.S1.18/, com o seguinte Sumário


«I. O art.º 71.º da LAT estabelece um conceito de retribuição para efeitos de reparação de acidente de trabalho mais abrangente e amplo do que o contemplado no Código do Trabalho.


II. Por conseguinte, os efeitos jurídicos pretendidos com a discussão do valor da retribuição tendem a divergir no processo especial emergente de acidente de trabalho e no processo comum em que se discutem diferendos contratuais laborais.


III. Quando o trabalhador demanda o empregador, em processo comum, para reclamar créditos salariais e desiste do pedido nessa ação, ainda que nela discutisse o valor da retribuição auferida, não ocorre repetição da causa, limitação de caso julgado ou de autoridade de caso julgado, no caso em que como sinistrado laboral vem, mais tarde, discutir o valor da retribuição auferida à luz da LAT em processo especial de acidente de trabalho e com vista à reparação do sinistro.»


Logo, pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente o presente recurso de revista, com o restrito âmbito com que foi admitido por este Supremo Tribunal de Justiça [caso julgado].


IV. - DECISÃO


Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o presente recurso de revista.


Custas a cargo da Ré – artigo 527.º, número 1 do Código de Processo Cível de 2013, sem prejuízo da isenção de que beneficia.


Notifique e registe.


Lisboa, 19 de junho de 2024





José Eduardo Sapateiro [Juiz-Conselheiro Relator]


Júlio Gomes [Juiz-Conselheiro Adjunto]


Mário Belo Morgado [Juiz-Conselheiro Adjunto]








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1. Em sede do relatório da sentença proferida pelo tribunal da 1.ª instância pode ler-se o seguinte:

«Consigna-se, antes de mais, ter transitado em julgado a sentença que julgou verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria dos tribunais do trabalho relativamente à 2.ª Ré.»↩︎

2. ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA no seu “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1984, págs. 294 e 295, acerca da exceção de caso julgado afirmam que a mesma, «como meio de defesa facultado ao réu, constitui apenas um dos aspetos em que se revela a força e autoridade do caso julgado, ou seja, da decisão transitada em julgado (artigo 677.º)».↩︎

3. Artigo 677.º

Noção de trânsito em julgado

A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação, nos termos dos artigos 668.º e 669.º

Artigo 671.º

Valor da sentença transitada em julgado

1 - Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497.º e 498.º, sem prejuízo do que vai disposto sobre os recurso de revisão e de oposição de terceiro. Têm o mesmo valor que esta decisão os despachos que recaiam sobre o mérito da causa.

2. Mas se o réu tiver sido condenado a prestar alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração, pode a sentença ser alterada desde que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação.

Artigo 673.º

Alcance do caso julgado

A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.

Artigo 675.º

Casos julgados contraditórios

1. Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar.

2. É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.↩︎

4. Artigo 493.º

Exceções dilatórias e perentórias - Noção

1. As exceções são dilatórias ou perentórias.

2. As exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal.

3. (…)

Artigo 494.º

Exceções dilatórias

São dilatórias, entre outras, as exceções seguintes:

a) (…)

i) A litispendência ou o caso julgado;

j) (…)

Artigo 495.º

Conhecimento das exceções dilatórias

O tribunal deve conhecer oficiosamente de todas as exceções dilatórias, salvo da incompetência relativa nos casos não abrangidos pelo disposto no artigo 110º, bem como da preterição do tribunal arbitral voluntário.

Artigo 497.º

Conceitos de litispendência e caso julgado

1. As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.

2. Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

3. É irrelevante a pendência da causa perante jurisdição estrangeira, salvo se outra for a solução estabelecida em convenções internacionais.

Artigo 498.º

Requisitos da litispendência e do caso julgado

1. Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.↩︎

5. Prevista depois, com a reforma processual de 1995/1995, na alínea i) do artigo 494.º do Código de Processo Civil como exceção dilatória de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 495.º do mesmo diploma legal.↩︎

6. Corresponde, depois, à alínea g) do artigo 814.º do Código de Processo Civil.↩︎

7. Cf. também, a seguinte doutrina:

- LUÍS CORREIA DE MENDONÇA e HENRIQUE ANTUNES, em “Dos Recursos – regime do Decreto-Lei n.º 303/2007”, QUID JURIS, 2009, páginas 333 e seguintes;

- RUI PINTO, no seu texto intitulado “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias” publicado na REVISTA JULGAR ON LINE, Novembro de 2018, páginas 1 a 46;

- ARTUR DA SILVA CARVALHO no seu estudo “O CASO JULGADO - Na Jurisdição Contenciosa (como exceção e como autoridade – limites objetivos) e na Jurisdição Voluntária (haverá caso julgado?)”, que pode ser encontrado na Internet).↩︎

8. Em termos jurisprudenciais e com relevância para a decisão do objeto do presente recurso, chame-se a atenção para os seguintes Arestos dos nosso tribunais superiores:

- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07/02/2013, publicado em www.dgsi.pt e proferido no Processo n.º 71/12.7TTABT.E1, em que foi relator o Juiz-Desembargador João Luís Nunes (Sumário):

“i) A exceção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, evitando assim que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão já proferida;

(ii) Repete-se uma causa quando se verifique, cumulativamente, a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as ações;

(iii) Em relação à força de caso julgado, vigora no ordenamento jurídico, por regra, a teoria da substanciação: aquela cobre a pretensão do autor delimitada em função da causa de pedir, e já não o raciocínio lógico que a sentença seguir para dirimir o litígio;

(iv) Porém, o caso julgado estende-se à decisão das questões preliminares que constituíram um antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, desde que se verifiquem os requisitos do caso julgado material;

(v) É o que se verifica se numa anterior ação o Autor pede a condenação da Ré a ver-lhe reconhecida determinada categoria profissional, o pagamento das correspondentes retribuições vencidas e vincendas e uma sanção pecuniária compulsória de € 100,00 por cada dia, tendo o tribunal julgado improcedente a ação, considerando, para tanto, e entre o mais, que a área onde o Autor labora não é uma “área de especialidade industrial reconhecida”, pelo que não pode afirmar-se a existência de vaga para a categoria pretendida pelo Autor, e na presente ação formula aqueles pedidos (embora quanto à sanção pecuniária compulsória seja agora de € 200,00 por dia) e ainda que a Ré seja condenada a reconhecer que a área onde labora, e onde já existiu um trabalhador com a categoria profissional por ele (Autor) pretendida, se trata de uma área industrial de especialidade reconhecida;

(v) Este último pedido, para além de já se encontrar, ainda que de modo implícito, na anterior ação, não assume autonomia em relação aos anteriores pedidos, mais não constituindo que uma questão preliminar, um antecedente lógico indispensável, um pressuposto ou condição necessária para a procedência dos restantes pedidos.”

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-2021, Processo n.º 2381/19.3T8CBR.C1.S1, Relator: Tibério Nunes da Silva, publicado em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/944504eec57f0872802586ed00360054?OpenDocument:

«I - A questão da alegada ofensa do caso julgado configura uma das situações em que, nos termos do art.º 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, o recurso é sempre admissível, independentemente do valor da causa e da sucumbência, centrado na apreciação dessa questão e das nulidades do acórdão recorrido que com ela se conexionem.

II - Uma decisão «constitui caso julgado nos precisos termos em que julga» (art.º 621.º do CPC). Daí que não seja de concluir pela existência de caso julgado, relativamente à obrigatoriedade (ou não) da devolução de quantias penhoradas numa ação executiva, se o despacho proferido considerou que o meio indicado para dirimir o litígio entre as partes seria uma ação declarativa.

III - Uma sentença homologatória de uma transação, condenando ou absolvendo as partes nos termos acordados, é suscetível de constituir caso julgado material. Sendo interposto um recurso com invocação da ofensa do caso julgado relativamente a uma tal sentença, não pode o tribunal da Relação deixar de interpretar, à luz do disposto nos arts. 236.º e 238.º do CC, os termos da transação homologada, de modo a aferir da procedência de um pedido assente nos efeitos dessa transação.

IV - No que tange à autoridade do caso julgado (vertente positiva, baseada numa relação de prejudicialidade entre o objeto da segunda ação e o objeto da primeira, surgindo esta como pressuposto daquela), não é exigível a tríplice identidade prevista no art.º 581.º do CPC, diversamente do que sucede com a exceção (vertente negativa do caso julgado).

V - Prevendo o art.º 291.º do CPC meios (ação ou recurso de revisão) para obter a declaração de nulidade ou anulação de uma transação, não podem eles ser substituídos por uma mera alegação, ex novo, no âmbito de um recurso de revista, invocando a existência de erro enquadrável no art.º 247.º do CC.»↩︎

9. Em sede do relatório da sentença proferida pelo tribunal da 1.ª instância pode ler-se o seguinte:

«Consigna-se, antes de mais, ter transitado em julgado a sentença que julgou verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria dos tribunais do trabalho relativamente à 2.ª Ré.»↩︎

10. Com base na Fundamentação de Facto transcrita noutra parte deste Aresto.↩︎

11. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/02/2024, que é objeto deste recurso de revista, apenas quanto à questão da verificação do caso julgado, possui o seguinte Sumário:

«I – A decisão proferida sobre a competência material do Tribunal do Trabalho para conhecer ação emergente de alegado acidente de trabalho (configurado pela autora/trabalhadora no âmbito de um alegado “contrato emprego-inserção +”) só faz caso julgado formal relativamente àquela questão de direito adjetivo apreciada (apenas) sob aquele ponto de vista genérico e para aquele efeito genérico.

Nada impedindo que, na mesma ação emergente de alegado acidente de trabalho, venha a ser proferida decisão sobre a incompetência material do Tribunal do Trabalho, absolvendo da instância uma das rés, em face da natureza do contrato de seguro de acidentes pessoais (e não seguro de acidentes de trabalho).

II – Um acidente ocorrido aquando da execução do (atípico) “contrato de emprego-inserção +” está abrangido pela Lei dos Acidentes de Trabalho e merece reparação, desde que, esse acidente preencha os seguintes requisitos cumulativos (na parte com interesse para o caso):

- No local e no tempo de trabalho;

- Haja um acontecimento ou evento em sentido naturalístico, súbito, imprevisto, exterior ao sinistrado e não intencionalmente provocado pelo mesmo;

- Causador de uma lesão corporal e/ou perturbação funcional;

- E consequente redução da sua capacidade de trabalho ou de ganho só temporária ou, também, permanente.

III – Se no âmbito de ação cível intentada pela mesma autora contra a seguradora, relativamente ao mesmo sinistro, ao respetivo seguro de acidentes pessoais (que lhe fizera a entidade promotora) e peticionando algumas das prestações infortunística laborais e outras mais, caso seja efetuada uma transação (homologada com trânsito em julgado) que contenha apenas um valor pecuniário único, sem qualquer outra menção ou discriminação e que contenha uma remissão abdicativa por parte da autora, será inatendível/irrelevante/ineficaz na presente lide infortunística laboral.

Pois, por um lado, não é possível imputar tal valor a um dano concreto ressarcido nessa lide e que esteja em vias de ser ressarcido na presente lide e, por outro lado, não é possível renunciar a créditos que provenham do direito à reparação estabelecido na LAT.↩︎