REVISTA EXCECIONAL
Sumário


Devendo a densificação do conceito de justa causa de despedimento atender ao circunstancialismo do caso concreto, carece de sentido questionar-se em abstrato se um conflito de interesses é equiparável à violação de um dever de não concorrência, designadamente num caso em que dada a culpa leve do trabalhador, sempre faltaria a componente subjetiva indispensável para a existência de justa causa de despedimento disciplinar.

Texto Integral



Processo n.º 3119/22.3T8LRA.C1.S2





Acordam na Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do CPC junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,





BA GLASS Portugal, S.A., Ré na presente ação de impugnação da regularidade e licitude do despedimento intentada por AA, veio interpor:


- Recurso de revista nos termos gerais quanto à parte do Acórdão que decidiu a impugnação da matéria de facto;


- Recurso de revista e, subsidiariamente, excecional quanto à parte em que o Acórdão recorrido manteve a decisão de 1ª instância de considerar ilícito o despedimento, com fundamento nas alíneas a) e c)1 do artigo 672º, nº1 do C.P.C.;


- Recurso de revista nos termos gerais na parte em que o Acórdão a condenou a pagar ao trabalhador uma indemnização correspondente a 30 dias de retribuição base por cada ano ou fração de antiguidade.





Por despacho do Relator foi admitido o recurso com efeito meramente devolutivo.


Em despacho de 05-03-2024 decidiu-se igualmente que:


“Só depois da decisão do recurso no segmento respeitante à matéria de facto é que será possível aquilatar se existe ou não dupla conformidade decisória quanto à questão da ilicitude do despedimento. Caso tal dupla conformidade exista terá o recurso que ser enviado à Formação prevista no artigo 672.º n.º 2 do CPC, junto desta Secção Social, única com competência para apreciar os pressupostos específicos da revista excecional, interposta subsidiariamente pelo Recorrente”.





O Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 87.º n.º 3 do Código do Processo de Trabalho emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso de revista.





O Recorrente respondeu ao Parecer.





Por Acórdão desta Secção de 8 de maio de 2024, foi decidido negar a revista, “devendo remeter-se o recurso à Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do CPC junto desta Secção Social para conhecer da admissibilidade da revista excecional intentada a título subsidiário”





No seu recurso de revista excecional, interposto a título subsidiário, o Recorrente invoca as alíneas a) e c) do artigo 672.º n.º 1 do CPC.


A propósito da alínea a) afirma-se o seguinte nas alegações:


“[O]Tribunal da Relação não se bastou com a constatada e declarada infração ao dever de lealdade, reputando tal constatação de insuficiente para alcandorar a justa causa de despedimento, mormente por não se ter demonstrado ter a conduta causado danos ou prejuízos à empregadora.


Pois bem:


Este entendimento bule com a casuística laboral firmada entre nós, em especial deste STJ,


segundo a qual, estando em apreço a violação do dever de lealdade (como quer a 1.ª, quer a 2.ª instância concluíram em uníssono), de todo releva identificar e apurar danos – sendo que, para concretizar justa causa de despedimento, bastará provar a verificação de factos objetivamente desleais, comprometedores da confiança recíproca, para que – assim e sem mais – se mostre reunida causa bastante para extinguir o contrato de trabalho.


(…)


Neste enquadramento, ressuma à saciedade a necessidade de afeiçoar a jurisprudência em matéria de violação do dever de lealdade à casuística tradicional ou, no limite, sem ceder, adaptá-la em sentido que exija algo mais (o quê e em que medida) para que se tenha essa infração como integradora de justa causa subjetiva.


Acrescente-se que a situação em apreço, pese embora não corresponda ponto-por-ponto a uma situação de concorrência desleal (exemplificada pelo legislador no artigo 128.º, n.º


1, al. f) CT), ainda assim figura violação do dever de lealdade, cumprindo, portanto, aferir se, enquanto situação paralela à concorrência desleal, pode configurar justa causa. Vale por dizer que se justifica a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para que detalhe


e aprofundese a intervençãodo trabalhador no processo produtivo do empregador(sendo,


a um tempo, funcionário do empregador e do respetivo fornecedor, quinhoando no âmbito desta relação comercial), em conflito de interesses, igualmente se equipara, em termos de


gravidade e seriedade fundadora de justa causa, à violação do dever de não concorrência.





Termosemque,salvomelhorentendimento,sejustificaaintervençãodestaSecçãoSocial ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alínea a), CPC.”





Nas conclusões do recurso, a este propósito, pode ler-se:





7. O Tribunal da Relação constatou e declarou ter havido infração ao dever de lealdade mas reputou-a insuficiente para fundear justa causa de despedimento, mormente por não se ter demonstrado os danos sofridos pela empregadora.


8. Este entendimento bule com a casuística laboral firmada entre nós, em especial deste STJ, segundo a qual, estando em apreço a violação do dever de lealdade (como quer a 1.ª, quer a 2.ª instância concluíram em uníssono), de todo releva identificar e apurar danos, sendo eloquente a verificação de factos desleais, comprometedores da confiança.


9. A lealdade vem sendo afirmada pela doutrina e jurisprudência nacionais como valorabsoluto,insuscetíveldegraduaçãooumatização.


Arespetivaviolaçãocomporta, pois, quebra irremediável da boa-fé que permeia o contrato de trabalho, intuitus personae.


10. Neste enquadramento, ressuma à saciedade a necessidade de afeiçoar a jurisprudência em matéria de violação do dever de lealdade à casuística tradicional ou, no limite (sem conceder), adaptá-la num sentido que exija algo mais (o quê e em que medida) para que se tenha essa infração como integradora de justa causa subjetiva.


11. Acrescente-se que a situação em apreço, pese embora não corresponda ponto-por-ponto a uma situação de concorrência desleal (exemplificada pelo legislador no artigo 128.º, n.º 1, al. f) do CT), ainda assim constitui violação do dever de lealdade, cumprindo, portanto, aferir se, enquanto situação paralela à concorrência desleal, de conflito de interesses e interferência no processo produtivo do empregador, pode configurar justa causa.


12. Termos em que se justifica a intervenção desta Secção Social em prol da melhoria na aplicação do Direito, mormente na fixação do conceito indeterminado de justa causa (cfr. artigo 672.º, n.º 1, al. a) CPC).”





Da leitura das alegações e das respetivas conclusões não resulta com clareza qual é, a final, a questão jurídica sobre a qual o Recorrente pretende que este Tribunal de pronuncie. Será sobre a tese que parece sustentar de que qualquer violação do dever de lealdade seria automaticamente justa causa de despedimento porque tal valor seria um valor absoluto? Seria antes questionar se pode haver, em geral, justa causa de despedimento, ainda que não se prove qualquer consequência negativa da conduta do trabalhador? Ou será que a questão seria a da equiparação dos casos de conflitos de interesse aos casos de concorrência desleal?


Quanto à primeira questão, se porventura é essa uma das que foram colocadas a este Tribunal, é evidente que não há justa causa automática de despedimento mesmo perante uma violação do dever de lealdade, tanto mais que a lei manda atender à gravidade do comportamento também na sua componente subjetiva e o grau de culpa do trabalhador pode ser diminuto, não se justificando então a aplicação da última das sanções, o despedimento. Quanto às outras questões dir-se-á que a justa causa é definida por lei como sendo em princípio “o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho” (n.º 1 do artigo 351.º do CT), sendo que apenas na alínea g), parte final do n.º 2 prescinde de qualquer prejuízo ou risco. A jurisprudência tem, entretanto, densificado esta cláusula geral atendendo às circunstâncias do caso concreto – assim, por exemplo, no caso de furto praticado pelo trabalhador o que releva não é apenas o valor patrimonial (veja-se por exemplo o Acórdão do STJ de 02-02-2013, processo n.º 1445/08.3T1PRT.P2.S2, sobre o furto de duas garrafas) e no caso de violação do dever de não concorrência com a participação do trabalhador como sócio de uma sociedade concorrente pode bastar a potencialidade de um prejuízo (Acórdão do STJ de 09-09-2015, processo n.º 477/11.9TTVRL.G1.S1). Trata-se, contudo, de uma densificação que só pode ser levada a cabo no caso concreto, não fazendo sentido discutir em abstrato se um conflito de interesses é ou não equiparável a uma violação do dever de não concorrência. Diga-se, ademais, que também uma revista excecional é uma revista e que, por conseguinte, o Tribunal, mesmo na situação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º, não é chamado a resolver uma questão só por ela ter interesse dogmático, mas sim porque a mesma tem, desde logo, interesse direto para o desfecho da causa. Ora, e como o Recorrente implicitamente reconhece quando afirma na parte final da Conclusão 7 que o Tribunal da Relação considerou não existir justa causa “mormente por não se ter demonstrado os danos sofridos pela empregadora”. Com efeito, como decorre da fundamentação da sentença, a que o Tribunal da Relação expressamente aderiu, “[s]endo censurável a sua conduta [do trabalhador], a mesma é, no entanto, insuficiente para justificar uma reação disciplinar desta dimensão, por parte da Entidade Empregadora, e apenas se compreenderia a aplicação desta medida se, para além da factualidade provada, outros factos «agravantes» pudessem determinar a sua aplicação”. Ou seja, atendeu-se à dimensão reduzida da culpa do trabalhador e a outros fatores, como o facto de que a situação era do conhecimento da direção da fábrica desde 2012 (facto 39) e não se provou que o trabalhador conhecesse o código ético da empresa, para excluir a justa causa de despedimento. Fundamentação que se manteria independentemente da resposta à questão de saber se poderia haver justa causa sem prova de quaisquer danos, o que mostra que a mesma carece de relevância para a decisão do caso concreto.





O Recorrente invoca, igualmente, a alínea c) do n.º 1 do artigo 671.º, n.º 1 do CPC.


No Acórdão fundamento, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora a 15 de junho de 2023, no processo n.º 512/22.5T8TMR.E1, pode ler-se:





“Na realidade, e como bem refere a recorrente, o que está em causa não é a possibilidade de o recorrido poder devolver os produtos que pagou em 20-12-2021, visto que tal não lhe estava vedado. O que está em causa é o recorrido utilizar um talão de compra que já não é válido (atente-se que o recorrido não apresentou o vale, esse sim, válido), exatamente porque devolveu os bens que nele constavam como tendo sido por si adquiridos, para ser reembolsado de um valor que, apesar de ter despendido tal montante ainda em 2021, não o despendeu numa compra efetuada naquele exato ano em produtos da marca “Timberland” para seu uso próprio em atividades profissionais. E isto porque o valor despendido, ao ter devolvido as t-shirts, já não se reportava à aquisição das t-shirts, mas sim, a um vale que representava tal valor e que poderia ser utilizado no ano seguinte numa qualquer compra, que seria, posteriormente, titulada pelo seu respetivo talão de compra. Com este estratagema o recorrido podia, assim, receber um valor como se se tratando de uma despesa de representação na aquisição de produtos da marca “Timberland”, para seu uso pessoal, naquele específico ano, quando na realidade nada tinha adquirido nesse valor para si nesse ano, além de um vale no montante despendido, contornando, deste modo, a política implementada na empresa recorrente e que o recorrido bem conhecia. Ora, tal comportamento é objetivamente desonesto e isto independentemente do valor de que o recorrido se tentou apropriar indevidamente. Acresce que tal comportamento é ainda mais gravoso por nele ter pedido a colaboração de um trabalhador da recorrente, que era subordinado do recorrido, a quem transmitiu um péssimo exemplo de deslealdade para com a entidade empregadora de ambos, competindo ao recorrido, pelo alto cargo que desempenhava na recorrente, ser efetivamente um modelo de lealdade e honestidade, o que manifestamente não foi”.





Ou seja, o Acórdão fundamento versou sobre um caso em que o trabalhador recorreu a um artifício para se locupletar com um valor que não lhe era devido, havendo uma clara violação do dever de probidade ou honestidade. Neste caso o Tribunal sublinhou que as consequências da conduta não se restringiam ao valor patrimonial de que o trabalhador tentara apropriar-se ilegitimamente. Tal situação é radicalmente distinta da dos presentes autos em que o trabalhador apenas foi acusado de se encontrar numa situação de conflito de interesses, sendo certo que a situação já era conhecida desde 2012, e não de qualquer violação do dever de probidade ou de se tentar apropriar fosse do que fosse. Há, pois, que concluir que não existe qualquer oposição de Acórdãos.





Decisão: Não se admite a presente revista excecional.


Custas pelo Recorrente.





Lisboa, 19 de junho de 2024








Júlio Gomes (Relator)


Ramalho Pinto


Mário Belo Morgado