LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário


I- A condenação da Parte como litigante de má fé não requer hoje um comportamento doloso, bastando-se com a negligência grave.

II- Age de má fé a Parte que invoca factos que sabia ou tinha a obrigação de saber que eram falsos e que eram relevantes para a boa decisão da causa.

Texto Integral



Processo n.º 1849/21.6T8PTM.E1.S1.S1


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,





Ábabuja - Empreendimentos Turísticos, Lda., Ré nos autos acima identificados, em que é Autora AA, não se conformando com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 24.11.2022, que a condenou como litigante de má fé ao pagamento de 10 UC veio interpor, para a Secção Social deste Supremo Tribunal de Justiça, recurso de revista nos termos gerais, nos termos do previsto no artigo 671.º, n.º 1, do CPC.


O Ministério Público, em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.


A Recorrente respondeu ao Parecer.


Na fundamentação do Acórdão recorrido pode ler-se:


“O DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, que introduziu a redação do art. 456.º do anterior Código de Processo Civil que transitou para o atual art. 542.°, afirmava quanto ao elemento subjetivo da litigância de má fé: «Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagra-se expressamente o dever de boa-fé processual, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por ação ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjetivos.»


Em consequência da Reforma Processual de 1995/96, passaram a ser punidas não só as condutas processuais dolosas, mas também as gravemente negligentes ou fundadas em erro grosseiro. Comentando o art. 456.° do anterior Código de Processo Civil, Lopes do Rego escreveu o seguinte: "o regime instituído traduz substancial ampliação do dever de boa-fé processual, alargando o tipo de comportamentos que podem integrar a má-fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjetiva, como na objetiva.'"


No que concerne à alínea a) do n.° 2 do art. 542.°, não basta uma simples desconformidade da versão da parte com a realidade, tornando-se necessário que litigue sabendo e querendo prevalecer-se de algo que sabe ser falso, a que não tem direito.


Mas esse comportamento não se confunde com uma mera ausência de prova, nem com a uma lide temerária; vai para além disto em gravidade e censurabilidade. A defesa convicta de uma perspetiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância de má fé, tornando-se necessário que se demonstre que a parte não observou os deveres processuais de probidade, de cooperação e de boa fé.


A exigência legal de demonstração de litigância com dolo ou negligência grave, pressupõe a consciência de que se não tem razão, sendo necessário que a parte tenha agido com intenção maliciosa, e não apenas com leviandade ou imprudência. Exige-se, pois, que a parte tenha agido sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento.


Daí que se possa afirmar que litiga com má fé a parte que alega uma realidade que se provou inexistir e cuja inexistência forçosamente conhecia, o que significa ter alterado a verdade dos factos a fim de deduzir intencionalmente pretensão ou oposição, cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer.


Expostos os princípios gerais, nas suas alegações de recurso a Recorrente veio alegar que a retribuição mensal era apenas de € 900,00, o que contrasta flagrantemente não só com documentos por si emitidos e não impugnados, mas também com o reconhecimento de uma realidade adversa, expressa nos seus próprios articulados”.


Este comportamento afronta os deveres processuais de probidade, de cooperação e de boa fé, porquanto a Recorrente alega uma realidade oposta àquela que já havia reconhecido nos autos, o que significa ter pretendido alterar a verdade dos factos, a fim de deduzir intencionalmente pretensão cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer.


E não se argumente com a tese do esquecimento ou da "erosão da memória": litiga num processo e tal implica deveres de cuidado, probidade, verdade e cooperação.


Acresce que o direito de acesso ao direito não é incompatível com a imposição de tais deveres às partes, porquanto são também condição de eficaz cumprimento do Direito.


Enfim, tendo a Recorrente alegado uma realidade que contrasta flagrantemente não só com documentos por si emitidos e não impugnados, mas também com o reconhecimento de uma realidade adversa, expressa nos seus próprios articulados, violou o disposto no art. 542.º n.ºs 1 e 2 als. a) e b) do Código de Processo Civil, peio que será condenada como litigante de má fé.


A multa prevista naquela norma tem carácter sancionatório e deve constituir um sacrifício suficiente para o seu autor, como forma de prevenção geral e especial.


E visto o acentuado grau de culpa revelado pela Recorrente, ainda por cima em sede de recurso para Tribunal Superior, entendemos fixar a multa em 10 UC.


Quanto à indemnização à parte contrária, não foi pedida e assim não será atribuída”


No seu recurso de revista a Recorrente vem agora aduzir o seguinte:


«VIII– A Autora não nega a sua responsabilidade no "erro fortuito ou por menor cuidado", ao não ter utilizado o critério do ordenado líquido e, outrossim, do líquido, mas, contudo, nega, frontalmente, que tenha pretendido ludibriar a instância, com a apresentação dos factos menos aproximada da verdade histórica, até porque juntou prova documental, por sua exclusiva iniciativa.





X– Não existiu qualquer alteração da verdade dos factos e existe a possibilidade de haver um lapso, havendo uma remuneração de 900,00 EUR (Novecentos Euros) e proporcionais dos subsídios. Houve lapso ao aludir-se ao valor líquido em vez de valor ilíquido.





XII– Assim, não estando perante uma conduta dolosa ou negligente grave da RECORRENTE bem como os factos em causa não terem sido relevantes para a boa decisão da causa, deverá considerar-se que não estamos perante uma conduta tipificada como litigância de má-fé.





XIV– Em termos constitucionais e legal, face ao vertido nos artigos 613.°, n.os 1 e 3, e 614.°, do NCPC, c artigos 13.° e 20.°, n.os 1 e, 3, 4 e 5, da CRP 1976, afigura-se questionável se é possível e admissível que, em sede de recurso, sem tal nunca ter sido afirmado ao nível da 1." instância, o TR, após esgotar o seu poder decisório (prolação de acórdão), rc-abrir o acórdão e «adoptar novo acórdão», contra a recorrente, para formular uma nova e autónoma condenação patrimonial sancionatória.


XV– Sendo os factos os mesmos e não tendo sido suscitado, na 1." instância, a problemática da litigância de má fé e, note-se, nem sequer pela contra-parte (!), então, naturalmente, formou-se um "caso julgado", sobre tal aspeto do litígio, não passível de ser, agora, decidido.


XVI– A condenação como litigante de má fé, ao ser uma sanção processual civil, impõe uma restrição no direito de propriedade do visado, não permitida por qualquer autorização constituinte, ao nível do artigo 62.º, n.º 1, da CRP 1976.


XVII– A condenação por litigância de má fé não é possível, quer por não ter existido c, ainda que o tivesse, sempre estaria proibido o TRE, após esgotar o seu poder, de invadir uma esfera de competência disciplinar, exclusiva da Ordem dos Advogados, dentro do princípio constitucional da reserva de governo interno democrático das Associações Públicas Profissionais, a que se dá expressão no artigo 267.°, n.° 4, da CRP 1976.


XVIII– O Acórdão autónomo de condenação em 10 UC por litigância de má fé, do TRE, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 607.º, n.os3, 4 e 5, 615.º, n.º 1, alíneas c), d) e e), 639.º e 640.°, afigura-se NULO.».


Analisemos, então, a argumentação da Autora. Esta invoca que:


- A existir culpa da sua parte ter-se-á tratado de culpa leve, correspondente a um mero lapso;


- A contraparte não invocou qualquer litigância de má fé e não tendo a questão sido suscitada na 1.ª instância haveria caso julgado na matéria;


- Os factos em causa não seriam relevantes para a boa decisão da causa.


- O poder jurisdicional do Tribunal da Relação ter-se-ia já esgotado com a decisão sobre a questão de fundo, sendo o Acórdão condenatório da Autora como litigante de má fé nulo;


- Haveria uma sanção pecuniária ilícita à luz da Constituição;


- A competência para declarar a litigância de má fé seria da Ordem dos Advogados.


Começando pelo primeiro argumento dir-se-á, como o Ministério Público sublinha, no seu bem fundamentado Parecer, que a tese do mero erro ou lapso fortuito não é compatível com o modo como a Recorrente se exprimiu no seu recurso de apelação. Aí pode ler-se, com efeito, que:


“9- O Tribunal incorreu em ERRO na apreciação e fixação dos factos, bem como na sua qualificação, tendo incorrido, inclusive, nas seguintes contradições:





3.ª Contradição: reconhecimento de que, a partir de 2009 (por permissão legislativa) o valor mensal da retribuição inclui duodécimos (900x2 = 1800: 12 = 150; daí 900 + 150 = 1050, valor aproximativo dos € 1034,54, reportados à variação dos dias dos meses, os que têm 31, 30 ou 28) e não corresponde a novo salário, estando em contradição os pontos 1.6. e 1.7. (factos provados) com a alínea a), dos factos não provados, havendo grosseiro ERRO DE JULGAMENTO da matéria de FACTO e da fixação dos factos PROVADOS e NÃO PROVADOS;





14- Só que inexiste qualquer documento onde, expressamente, se refira que existia uma remuneração de € 1034,54, como se refere no facto 1.7., já que isso está em contradição com o teor da prova documental, as regras da experiência, bem como as regras contabilísticas e matemáticas, visto que, outrossim, pelo que foi dado como provado no ponto 1.6., ao salário de € 900,00, aquilo que foi feito foi somar € 150,00 que são o resultante da equação da soma do subsídio de férias e de natal, a sua divisão por 12 meses e a sua integração, para efeitos de comodidade contabilística, no salário de cada mês, sendo a variação de € 15,56 reportada, naturalmente, ao facto de alguns meses terem 31 dias, outros 30 e um deles 28 ou 29 (mês de Fevereiro), sendo um gravoso erro do Tribunal. Aliás, nem se compreenderia tal avultado pagamento, em atenção ao contexto dos salários a nível nacional, muito mais ainda em contexto de Pandemia e gravoso declínio e fecho deste ramo de negócio, durante os anos de 2020/21/22 (parcialmente), reportados à Pandemia COVID-19, a que o Tribunal nem sequer alude, embora tal justificasse as soluções de higienização, a cargo de todos os trabalhadores. E, portanto,


15- O facto 1.7. deveria passar a FACTO NÃO PROVADO: …


23-0 Tribunal, relativamente ao FACTO não provado a), que entendemos que deveria ter sido provado, por mor da contradição e confusão, lançada nos pontos 1.6. e 1.7., do factos provados, motivada pela integração dos «duodécimos» dos subsídios de férias e de natal, na massa salarial mensal, como, aliás, facilmente o comprovam as contas, isto é, a matemática, já que, mensalmente, integrava-se uma quantia de € 150,00 que, a somar aos € 900,00, leva a um valor de € 1050,00 que só não é idêntico ao indicado de € 1034.54, por mor do acerto do número de dias em cada mês, já que alguns meses possuem 31 dias, outros 30 ou 28/29, como resulta da experiência e é do conhecimento geral.”


No julgamento da matéria de facto o Tribunal da Relação de Évora fundamentou assim a sua decisão a este respeito:


“No ponto 1.7 da matéria de facto provada, a sentença declarou provado que a retribuição base mensal, em 2020, era de € 1.034,54. Por seu turno, na al. a) do elenco de factos não provados, declarou não provado que o vencimento se manteve em € 900,00 até à data da resolução.


Argumenta a Recorrente inexistir qualquer documento comprovando a remuneração mensal de € 1.034,54, pois o recibo limitou-se a integrar os duodécimos dos subsídios de férias e de Natal.


A trabalhadora apresentou, com a sua petição inicial da ação apensada, o seu recibo de vencimento relativo ao mês de outubro de 2020, elaborado pela empregadora, no qual consta o vencimento base de € 1.034,54, acrescendo € 86,21 a título de subsídio de Natal, e mais € 86,21 a título de subsídio de férias. Dividindo € 1.034,54 por doze, logo se alcança que € 86,21 corresponde ao duodécimo do vencimento base, fixado naquele valor de € 1.034,54.


De igual modo, a Recorrente empregadora juntou com a contestação oferecida na ação apensada, o recibo de vencimento relativo ao mês de junho de 2021, onde o vencimento base declarado é de € 1.034,54, acrescendo os valores relativos aos subsídios de férias e de Natal.


Ademais, nos seus articulados, a Recorrente afirma expressamente que o vencimento base era de € 1.034,54. Di-lo no art. 44.º da contestação oferecida na ação apensada, e repete-o no art. 31.º da resposta oferecida na ação principal.


Assim, a fixação da retribuição base em € 1.034,54 resulta não apenas dos recibos de vencimentos juntos – por ambas as partes – ao processo e não impugnados, resulta da própria confissão da Recorrente, expressa nos seus articulados.


Enfim o que temos é a alegação pela Ré de uma realidade que contrasta flagrantemente não só com documentos por si emitidos e não impugnados, mas também com o reconhecimento de uma realidade adversa, expressa nos seus próprios articulados.


E fá-lo trilhando o caminho da má-fé, ao alterar a verdade dos factos e ao deduzir pretensão cuja falta de fundamento não ignorava, motivo pelo qual, a final, as partes serão notificadas para exercício do seu direito de contraditório quanto a esta matéria e pronúncia quanto ao valor da indemnização, para os fins do art. 543.º n.º 3 do Código de Processo Civil.


Improcede, pois, a impugnação fáctica dirigida ao ponto 1.7 da matéria de facto provada e à al. a) do elenco de factos não provados” (sublinhado nosso).


Face ao exposto há que concluir que estão efetivamente preenchidas as alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC, tendo a Autora e Recorrente invocado factos que sabia ou tinha a obrigação de saber que eram falsos e tendo-o feito quando não com dolo, ao menos com negligência grave.


E tais factos, ao contrário do que pretende, eram importantes para a boa decisão da causa. Como destaca o Parecer do Ministério Público, “o valor do salário-base constitui um facto relevante para a boa decisão da causa, pois serve de base para o cálculo de diversas retribuições, bem como à indemnização, peticionadas pela trabalhadora”.


Como se pode ler no Acórdão deste Supremo Tribunal de 04-02-2021, processo n.º 3340/16.3T8VIS-A.C1.S2, “[t]al como está hoje configurado, o instituto da litigância de má-fé visa permitir ao juiz, quando necessário, proceder a uma disciplina imediata do processo, oferecendo resposta pronta, ainda que necessariamente limitada, para atitudes aberrantes, iniquidades óbvias, erros grosseiros ou entorpecimento evidente da justiça”.


A apreciação da litigância de má fé é do conhecimento oficioso do Tribunal com a ressalva apenas da indemnização à outra parte que aqui não foi pedida e, por isso mesmo, não houve condenação no pagamento da mesma.


Isso mesmo é afirmado com toda a clareza pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-02-2022, proferido no processo n.º 4964/20.0T8GMR.G1.S1: “Nos termos do art. 542.º do CPC, a apreciação da má-fé de qualquer das partes pode/deve ter lugar oficiosamente, uma vez cumprido o indispensável contraditório, encontrando-se apenas a condenação em indemnização à parte contrária dependente do pedido deduzido pelo interessado com legitimidade para o efeito, não fazendo sentido invocar a existência de caso julgado pelo facto de a 1.ª instância não haver condenado as partes em litigância de má-fé e inexistir recurso destas sobre tal matéria”.


Acresce que, como destaca o Parecer do Ministério Público, a conduta da Recorrente que justifica a sanção – a invocação de factos que sabia ou não podia desconhecer que eram falsos – ocorreu no recurso de apelação, pelo que nunca haveria aqui qualquer caso julgado.


Precisamente porque a conduta contrária à boa fé processual ocorreu na fase da apelação, mais propriamente na impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação teve, em primeiro lugar, que proceder ao julgamento da matéria de facto para só depois, constatando a falsidade e a argumentação violadora da boa fé da ora Recorrente, garantir-lhe o contraditório para só depois decidir da existência de litigância de má fé e aplicar-lhe a respetiva sanção. Não pode, pois, afirmar-se que o fez quando já estava esgotado o seu poder jurisdicional tanto mais que tinha obviamente o poder/dever de conhecer desta questão. Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.05.2022, proferido no processo n.º 1665/14.1T8BRG-I.G1, igualmente referido no Parecer do Ministério Público, “[s]e durante o processo alguma das partes suscitar a questão da litigância de má-fé da contraparte, em princípio, o juiz tem de a conhecer na sentença, sob pena de nulidade desta por omissão de pronúncia. Mas, se tal questão não tiver sido colocada no decorrer da lide e se para o conhecimento da mesma for necessário já haver decisão sobre a matéria de facto, uma vez que esta só tem lugar na sentença, por respeito ao princípio do contraditório, o tribunal só se poderá pronunciar quanto a ela depois de conceder à parte visada uma oportunidade para esta expressar o seu ponto de vista sobre essa matéria; o mesmo é dizer que apenas lhe é permitido decidi-la em momento posterior ao da sentença, o que implica, necessariamente, que não há aí qualquer vício processual.”.


Finalmente diga-se que a Constituição da República Portuguesa não contém qualquer proibição absoluta de sanções pecuniárias e que a sanção aplicada foi-o na sequência da condenação da Autora como litigante de má fé e não da sua Mandatária pelo que não se vislumbra qualquer violação da competência da Ordem dos Advogados.





Decisão: Negada a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.


Custas pela Recorrente.





Lisboa, 19 de junho de 2024





Júlio Gomes (Relator)


Ramalho Pinto


Domingos José de Morais