RECLAMAÇÃO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
RECURSO
Sumário


Constituindo o despacho objeto de recurso um verdadeiro despacho de aperfeiçoamento, atento o disposto no artigo 590º n.º 7 do CPC, tem de ser considerado irrecorrível.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Processo 1773/22.5T8ENT-B.E1 Reclamação
Tribunal Recorrido: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA ... - JUÍZO DE EXECUÇÃO ... – JUIZ ...
Reclamante: SOCIEDADE A..., LDA.
Reclamado: AA
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Acordam, em conferência, na 1ªa Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora,
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I. Relatório.
Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa que AA moveu contra Sociedade A..., Lda., para haver dela a quantia de 40 430,86 €, veio a Executada deduzir oposição por embargos de executado.

No âmbito destes autos de oposição foi proferido o seguinte despacho:
“Atento o teor dos requerimentos que antecedem, para descoberta da verdade e boa decisão da
causa, notifique as partes, sobretudo o exequente para, em 10 dias, se pronunciarem sobre as seguintes
questões, esclarecendo o que tiverem por conveniente:
- de quantos mútuos (empréstimos) se trata;
- se entregou as quantias em dinheiro;
- em que datas, ainda que aproximadas, as entregou;
- se eram onerosos ou gratuitos;
- datas de vencimento ou prazos;
- se a embargante estava ou não obrigada à restituição, em que prazos e termos;
- se os alegados empréstimos estavam ou não vencidos aquando da propositura da execução.
E., d.s.”
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Inconformada com tal despacho, veio a Embargante do mesmo interpor
recurso, concluindo, após alegações, da seguinte forma:
a) Após audiência prévia do passado dia 23/06/2023, a fls. ..., com a Ref.ª 93729859, resultou o seguinte despacho:
“Notifique as partes para, no requerido prazo de 15 (quinze) dias, querendo, alegarem integralmente por escrito de facto e de Direito, nos termos previstos no art. 591.º, n.º 1, al. b), do NCPC, bem como para se pronunciarem quanto à possibilidade de ser proferida decisão sem realização de audiência de julgamento.”;
b) Recorrente e recorrido apresentaram as suas alegações, sem que de nenhuma delas resultasse qualquer oposição à prolação de sentença “sem realização de audiência de julgamento”.;
c) Após o que foi proferido o douto despacho recorrido, a fls. ..., com a Ref.ª 94476407, convidando as partes, “sobretudo o exequente” para, em 10 dias, se pronunciarem dobre as seguintes questões:
“- de quantos mútuos (empréstimos) se trata; - se entregou as quantias em dinheiro;
- em que datas, ainda que aproximadas, as entregou;
- se eram onerosos ou gratuitos;

- datas de vencimento ou prazos;
- se a embargante estava ou não obrigada à restituição, em que prazos e termos;
- se os alegados empréstimos estavam ou não vencidos aquando da propositura da execução.”;
d) O embargado aproveitou para vir alegar factos essenciais que, embora vagos e falsos, não havia alegado em sede de req1uerimento executivo;
e) Entende a recorrente que o despacho de que ora se recorre violo o principio do dispositivo consagrado no art.º 5º nº 1 do Cód. Proc. Civil já que, tratando-se os documentos que suportam a presente execução de meros documentos quirógrafos utilizados para prova de negócios nulos por falta de forma, conforme o embargado reconhece, e não tendo sido alegados no requerimento executivo os factos essenciais, constitutivos da relação causal subjacente à emissão dos alegados títulos, não pode também agora vir o douto Tribunal a quo vir facultar à parte um direito que já não detinha em sede de contestação de embargos;
f) Na verdade os factos sobre os quais o douto Tribunal a quo determinou que as partes se pronunciassem são factos essenciais – porque estruturadores de exequibilidade dos documentos dados à execução – e não instrumentais ou complementares ou concretizadores resultantes da instrução da causa e decorrentes dos anterior e oportunamente alegados;
g) Verificando-se, assim, uma violação do princípio do dispositivo consagrado no art.º 5.º n.º 1 do Cód. Proc. Penal;
h) A proibição de correção, retificação, alteração ou complemento do requerimento executivo é unanimemente acolhida pela jurisprudência conforme Acordão citados e que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais;
i) Sendo também a doutrina unânime quanto à mesma questão;
j) O embargado não alegou, no seu requerimento executivo, os factos essenciais, constitutivos da relação causal limitando-se a referir que “Tais cheques destinavam-se a devolver ao exequente o valor de diversos empréstimos que em 2019 em numerário o exequente havia feito à executada, ...”.
l) Tal alegação, vaga e imprecisa, não contém em si qualquer um dos elementos essenciais da relação causal, revelando absoluta falta de causa de pedir;
m) Tal como a recorrente alegou na sua petição de embargos.
n) No aludido contexto, entende a recorrente, não pode agora o douto Tribunal a quo facultar ao embargado a possibilidade de vir a completar e rectificar o seu requerimento executivo alegando os factos essenciais e elementos constitutivos da alegada relação causal subjacente à emissão dos títulos, quando não o havia alegado no competente requerimento executivo;
o) Consequentemente, revogando-se o despacho em apreço com a Ref.ª CITIUS 94476407 e, bem assim, ordenando-se o desentranhamento e entrega ao embargado do seu requerimento de 23/10/2023 com a Ref.ª CITIUS 10097441, se fará a costumada JUSTIÇA.
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O Exequente contra-alegou pugnando pela inadmissibilidade do recurso e, para o caso de assim não se entender, pela improcedência do mesmo.
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Acerca de tal requerimento de interposição de recurso foi proferido o seguinte despacho:
“O despacho de 13/10/2023:
foi proferido ao abrigo dos princípios do contraditório (art. 3.º, n.º 3, NCPC), da colaboração (arts. 7.º, esp. n.º 2, e 417.º, esp. n.º 1, NCPC), e aperfeiçoamento (art. 590.º, esp. n.os 2, al. b), 3 a 7, NCPC), como claramente, sem dificuldade, do mesmo e respetivo enquadramento pressuponente resulta.
O que é por demais evidente (tanto que o exequente também refere a inadmissibilidade do recurso).
E o Tribunal certifica/consigna.
Consequentemente, a decisão foi proferida no âmbito do uso legal de poder discricionário art. 679.º CPC anterior, art. 630.º, n.º 1, NCPC, o que é manifesto (arts. 7.º, esp. n.º 2, e 417.º, esp. n.º 1, NCPC, e 590.º, esp. n.º 7, sendo irrecorrível).
E constitui despacho de mero expediente, convidando à colaboração das partes, e “notificando as partes, sobretudo o exequente para, em 10 dias, se pronunciarem sobre as seguintes questões, esclarecendo o que tiverem por conveniente” (contraditório), não tendo havido decisão sobre o litígio, nem que afete a esfera jurídica de nenhuma das partes art. 630.º, n.º 1, NCPC.
Acresce que se verifica a inutilidade do recurso, porquanto não foi proferida decisão sobre o litígio, e desta poderão as partes afetadas eventualmente recorrerem.
Pelo que o recurso é inadmissível.
Razões pelas quais se decide rejeitar o recurso interposto, extinguindo a instância do mesmo, ao abrigo do disposto no art. 641.º, n.º 2, al. a), do NCPC.
Custas do recurso interposto a cargo dos recorrentes, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
E., d.s. Req. 05.07.2022”
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Inconformada com esse despacho, veio a Embargante reclamar do mesmo, alegando que:
“Atento o despacho de que ora se reclama, o despacho recorrido trata-se de despacho de mero expediente “proferido ao abrigo dos princípios do contraditório (artº, nº 3, NCPC), da colaboração (artºs 7º, esp. nº2, e 417º, esp. nº 1, NCPC), e aperfeiçoamento (artº 590º, esp. nºs 2, al. b), 3 a 7 NCPC)”.
É com tal entendimento que a reclamante não pode concordar ou conformar-se.
Pois é unânime a jurisprudência ao considerar que “Constituem despachos de mero expediente aqueles que apenas têm por finalidade regular ou disciplinar o andamento ou a tramitação processual e que não importam decisão ou julgamento, denegação, reconhecimento ou aceitação de qualquer direito” conforme Ac. do TRC de 06/06/2018, no Proc. nº 517/16.5GCLRA.C1.

No caso em apreço o despacho recorrido denega, manifestamente direitos da embargante/recorrente.
Ou seja, a embargante/recorrente tem o direito de ver a questão dirimida dentro do perímetro fixado pelas próprias partes e em respeito pelo princípio do dispositivo.
O despacho recorrido, não só veio permitir a introdução nos autos de factos a eles estranhos, como poderá vir a constituir uma verdadeira decisão surpresa já que, atento o douto despacho proferido em sede de audiência prévia – com o qual as partes concordaram – de proferir decisão sem a realização de julgamento, e, em cumprimento desse mesmo despacho, após apresentação pelas partes de alegações de fato e de direito, a apresentação de nova matéria de fato, impediria o cumprimento de tal determinação.
De assinalar que o despacho recorrido foi proferido após a apresentação de alegações, de fato e de direito, conforme determinou o douto Tribunal.
Ainda atento o douto Acórdão do TRP de 21/01/2014, proferido no Proc. nº 12/12.1TXPRT-J.P1 “O despacho de mero expediente tem uma finalidade - prover ao andamento regular do processo - e um pressuposto - sem interferir no conflito de interesses entre as partes.”
No caso, o despacho recorrido não cumpre qualquer dos apontados requisitos e pressupostos.
Pois, não só vem contrariar o despacho proferido na audiência prévia, já que impede a “possibilidade de ser proferida decisão sem realização da audiência de julgamento”, perturbando, por isso, o regular e expectável andamento do processo, como vem também “interferir no conflito de interesses das partes”, pois permite/convida a alegação de fatos não alegados em sede própria – o requerimento executivo - e, dessa forma, desrespeitar o princípio dispositivo, pois tais factos, podem constituir “a causa da obrigação subjacente ao documento de reconhecimento de divida” não podendo ser alegados “em momento posterior, sem o acordo do executado…” tudo conforme Acórdão desse Venerando Tribunal de 11/05/2017, no Proc. nº1047/15.5TBABF-A.E1.
Acresce ainda que, a manter-se o despacho recorrido, o processo retrocederia a momento processual anterior à audiência prévia, o que, só por si, impede que o mesmo seja qualificado como de mero expediente.

Por outro lado, não se vislumbra igualmente que o despacho recorrido tenha sido proferido ao abrigo do princípio da cooperação.
Conforme entendeu o Venerando Supremo Tribunal de Justiça em Ac de 11/07/2017, no Proc. nº 6961/08.4TBALM-B.L.S1 “Os princípios da cooperação e da boa fé processual, não se podem sobrepor, neste caso, ao principio da auto responsabilização das partes o qual impõe que os interessados conduzam o processo assumindo eles próprios os riscos daí advenientes, devendo deduzir os competentes meios para fazer valer os seus direitos na altura própria, sob pena de serem eles a sofrer as consequências da sua inactividade e ao princípio da preclusão, do qual resulta que os actos a praticar pelas partes o tenham de ser na altura própria, isto é nas fases processuais legalmente definidas.”
Por outras palavras, o tribunal não pode substituir-se às partes na prática de atos que lhes incuba.
Principalmente em processo executivo – como é o caso em apreço – que tem natureza diversa do processo declarativo.
A parte – exequente – tinha a obrigação de, no seu requerimento executivo, ter alegado os fatos que, caso se provassem, permitisse ao Tribunal considerar o documento dado à execução, como título executivo.
O exequente não o fez.
A discussão recai, por isso, na aptidão ou inaptidão como título executivo do documento dado à execução enquadrado na factualidade naquele relatada.
Conforme jurisprudência já bastamente citada nos articulados que integram o apenso dos embargos, o requerimento executivo não é suscetível de aperfeiçoamento nos moldes que o despacho recorrido visa permitir.
A este respeito, pronunciou-se o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa em Ac. de 09/03/2021, no Proc. nº 23528/04.9YYLSB – A.L1-7, nos seguintes termos: “Porém, não pode o tribunal, a coberto daquele princípio, neutralizar normas processuais de natureza especial e imperativa.”.
Ou seja, a coberto do princípio da cooperação não pode o Tribunal “esmagar” o princípio do dispositivo que impões às partes a obrigação de alegação dos fatos essenciais “que constituem causa de pedir”.
Pois conforme entendeu o Supremo Tribunal de Justiça em Ac. de 19/01/2017, no Proc. nº 873/10.9T2AVR.P1 “A realização da justiça (tratando-se, nesse caso, de acção declarativa e não executiva) no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves- mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República.
A decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.”
No caso o que o despacho recorrido pretende é que o exequente/embargado venha ampliar, relevantemente os fatos alegados no seu requerimento executivo.
Não pode, por isso, considerar-se um despacho de mero expediente.
No que respeita ao artº 417º a que se alude no despacho reclamado, o mesmo trata tão só do dever “instrumental” de cooperação dos intervenientes processuais.
Assim como é destituído de aplicabilidade, no caso, o citado artº 590º, nº 7, já que a reclamante não recorreu do despacho saneador ou de qualquer despacho de “de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados.”, aliás inadmissível na presente fase.
Bem pelo contrário, pois, quer a reclamante/embargante, quer o embargado, conformaram-se e concordam com o douto despacho proferido em audiência prévia, tendo apresentado, no prazo concedido, as suas alegações de fato e de direito.
Dir-se-á ainda que o despacho recorrido não pode ser qualificado como de mero expediente, para além das razões expostas, pois ao convidar, principalmente, uma das partes a carrear para os autos fatos que não alegou no requerimento executivo, potencia a alteração da situação jurídica das partes, tanto mais que se esses fatos não alterassem a situação jurídica das partes, nada justificava que o tribunal proferisse despacho com tamanha direção e precisão, convidando a parte a indicar: número de mútuos; suas datas; sua onerosidade ou sua gratuitidade; suas datas de vencimento e demais condições.
Por último, cumpre referir que o despacho recorrido não foi também proferido “…no uso legal de um poder discricionário.” (Artº 630º, nº 1) pois ofende o princípio do dispositivo e é destituído de fundamento legal.

Nestes termos, e nos mais de direito, deve a presente reclamação ser atendida e, em consequência, revogado o despacho de rejeição do recurso apresentado, proferindo-se decisão que o aceite e receba, seguindo-se os ulteriores termos.”
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Foi proferida decisão singular pela relatora, nos termos do disposto no artigo 643º, n.º 4 do Código de Processo Civil, que manteve o despacho reclamado.
De novo inconformado, veio o Reclamante requerer que sobre tal decisão recaia um Acórdão, tudo nos termos do disposto nos artigos 643º, n.º 4 e 652º, n.º 3 do Código de Processo Civil, reiterando, no essencial, o alegado no requerimento de reclamação.
Cumpre, pois, em conferência, apreciar os fundamentos da reclamação.
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II. Fundamentação.
II.1. Fundamentação de facto.
Com interesse para a decisão da reclamação relevam os factos relativos ao processamento dos autos constantes do Relatório supra.
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II.2. Fundamentação jurídica.
Importa fundamentalmente apreciar e decidir se a decisão recorrida é suscetível de recurso, sabendo-se que a decisão do Tribunal a quo nesta matéria não vincula este Tribunal da Relação.

É sabido que o recurso é um instrumento de impugnação de decisões judiciais, colocado à disposição dos vários sujeitos processuais, através do qual lhes é dada a oportunidade de submeterem uma decisão judicial à apreciação de uma instância judicial superior, em ordem à sua correção.
A Constituição consagra, como princípio estruturante do Estado de Direito Democrático e corolário lógico do monopólio tendencial da resolução de onflitos por órgãos estaduais ou, ao menos, dotados de legitimação pública, um fundamental direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
O direito de acesso aos tribunais pode ser concebido como um direito de proteção do particular, através dos tribunais do Estado, no sentido de este o proteger da violação dos seus direitos por terceiros, portanto, como um dever de proteção do Estado e um direito do particular a exigir essa proteção.
Na medida em que qualquer decisão judicial comporta uma margem inescapável de erro, a reapreciação da decisão por um órgão jurisdicional hierarquicamente superior confere, em princípio, maiores garantias de acerto quanto à solução do conflito ou à regulação dos interesses em causa, porquanto a experiência acrescida e a maior maturidade dos juízes que compõem o tribunal superior e a estrutura coletiva deste, aliadas à concentração dos seus esforços em aspetos específicos da causa, coloca-os tendencialmente em melhores condições para declarar o direito do caso.

O direito à impugnação surge assim como uma dimensão, um reflexo ou uma concretização do direito de acesso ao direito e à tutela judicial efetiva.
O conteúdo do direito ao recurso como garantia de defesa é, de há muito, identificado pelo Tribunal Constitucional como a garantia do duplo grau de jurisdição quanto a decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões respeitantes à situação do arguido face à privação da liberdade ou outros direitos fundamentais, como, de resto, se encontra expressamente consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, quer no respetivo protocolo nº 7, quer no artigo 2º, nº 1.
Fora do Direito Penal, apenas como emanação do direito ao acesso ao direito e à tutela judicial efetiva, o mesmo encontra consagração constitucional, constituindo um direito fundamental de configuração legal, na medida em que deixa para as leis processuais o desenho do regime de recursos.
Nesta matéria, o Tribunal Constitucional tem vindo a decidir no sentido de o legislador não pode suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer, bem como de não poder restringir o direito ao recurso quando isso representar uma vulnerabilidade ostensiva desse direito, por corresponder a uma violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva.[1]
Por outro lado, na justa medida em que impede que a decisão impugnada transite em julgado, o recurso protela inevitavelmente a obtenção de uma decisão definitiva, nessa medida conflituando com o direito a uma decisão
definitiva temporalmente adequada, consagrado no artigo 20º, n.º 4 da Constituição.
A configuração concreta do sistema de impugnação das decisões judiciais deve, assim, refletir a preocupação de obtenção de uma decisão definitiva sem dilações indevidas ou desproporcionadas, tendo sempre em consideração que tal não deve ser assegurado através da restrição, pura e simples, do direito à impugnação.
Nos termos do artigo 18º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Dispõe o artigo 335º do Código Civil, que havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes. Se os direitos foram desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.
A supressão de qualquer instância ou a exigência de pressupostos específicos do recurso, devem ser cuidadosamente ponderadas dado que, sempre que comprometam o direito à tutela constitucional efetiva, por desnecessárias, não adequadas ou desproporcionadas, se devem ter por constitucionalmente desapropriadas.
Tendo presentes tais princípios, confrontado com a impossibilidade de sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes Tribunais, o legislador processual civil, em ordem a racionalizar o acesso aos Tribunais Superiores estabeleceu desde logo no artigo 629º do Código de Processo Civil, os pressupostos de recorribilidade e, em determinadas situações, a irrecorribilidade das decisões.
Assim sucede nos casos previstos nos artigos 630º (despachos de mero expediente e proferidos no uso legal de um poder discricionário) e 590º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
O despacho objeto de reclamação consubstancia um despacho de convite ao aperfeiçoamento dos articulados e, nessa medida não envolve uma decisão definitiva “sobre a valoração jurídica de tais factos”, - encerrando um convite ao aperfeiçoamento não reveste nem pode revestir esta natureza.
Na verdade, um despacho de aperfeiçoamento de um articulado que se considere deficiente quanto à matéria de facto, independentemente do momento processual em que seja proferido, mas desde que o seja anteriormente à decisão que estabilize a matéria de facto, apenas pode ter em vista suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (art. 590/4 do CPC). As alterações à matéria de facto alegada na petição inicial devem conformar-se com os limites estabelecidos no art. 265 do CPC (art. 590/6 do CPC) e os factos objecto de esclarecimento, aditamento ou correcção ficam sujeitos às regras da contraditoriedade e prova (art. 590/5 do CPC).
O poder/dever de mandar aperfeiçoar os articulados para serem supridas insuficiências ou imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada (art. 590º, nº4 do NCPC) tem de ser entendido em rigorosos limites, e isto porque este convite se realiza apenas quando existam as apontadas insuficiências ou imprecisões que possam ser resolvidas com esclarecimentos, aditamentos ou correções, ou seja, anomalias que não ponham em causa, em absoluto, o conhecimento da questão jurídica e a decisão do seu mérito mas que possam facilitar que este conhecimento e decisão sejam realizados de forma mais eficaz.
Por decorrência, não é de convidar à correção da petição inicial (nos termos do art. 590 nºs 2 al. b), 3 e 4 do CPC) quando a petição seja inepta nos termos do art. 186 do mesmo diploma uma vez que só um articulado que não padeça dos vícios mencionados neste último preceito pode ser objeto desse convite à correção e isto porque se a parte declinar tal convite tal comportamento de inércia não obsta a que a ação prossiga os seus termos, contrariamente à consequência para a ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo.
No caso a petição executiva não é inepta, pois na mesma, independentemente da respetiva apreciação jurídica encontra-se a alegação dos títulos dados à execução e da relação subjacente aos mesmos, da seguinte forma:
“O exequente é o dono e legitimo titular de quatro cheques que se discriminam conforme segue.
1º. Cheque n.º 1172538970 - Valor 10.000 euros com a data de emissão 24/01/2019.
2º. Cheque n.º 3872538967 - Valor 10.000 euros com a data de emissão 24/01/2022.
3º. Cheque n.º 2072538969 - valor 10.000 euros com a data de emissão 24/01/2022.
4º. Cheque n.º 4772538966 - valor 10.000 euros com a data de emissão 24/01/2022.
Tais cheques foram apresentados a pagamento em 25 de janeiro de 2022 e não foram pagos pelo banco tendo sido devolvidos com a menção de "Cheque Revogado, extravio.
O que significa que o banco não os pagou, aquando da sua apresentação a pagamento.
Tais cheques foram entregues ao exequente pela executada, devidamente assinados por esta mas sem que neles constasse a data de emissão, ficando esta aposição ao dispor do exequente, que os devia preencher quando entendesse cobrar e ou exigir o valor que lhe era devido e que se encontrava refletido nos cheques.
Tais cheques destinavam-se a devolver ao exequente o valor de diversos empréstimos que em 2019 em numerário o exequente havia feito à executada, mas que não haviam sido transcritos em qualquer documento escrito.
Tais empréstimos baseavam-se numa relação de confiança e amizade que durou vários anos entre o exequente e os legais representantes da executada que possibilitou que sempre que estes precisavam de dinheiro, para si ou para a sua sociedade ora executada o solicitavam ao exequente.
Tais empréstimos representam, pois, contratos nulos. O que não significa, porém, que a executada na qualidade de devedora não tenha a obrigação de devolver os valores que recebeu nem que o exequente perca o direito aos referidos montantes, e ou que, o exequente não possa exigir os aludidos valores em sede de execução, utilizando os cheques como títulos executivos.

A executada bem sabe que deve o valor dos cheques, tanto que efetuou o pagamento de um outro que havia sido entregue na mesma data, ou seja o cheque a que corresponde o número 2972538968 no valor de 10.000 euros e pago em 29 de Novembro de 2021, cujo numero se situa precisamente entre o numero dos cheques agora dados à execução.
O cheque supra referido com o numero 1172538970 encontra-se prescrito dado que foi apresentado para lá dos oito dias da sua data de emissão e reclamado em juízo depois do prazo de seis meses, mas nem por isso, deixa de constituir titulo executivo, dado que é utilizado no presente processo como quirografo, sendo a causa da sua da sua emissão, entrega ao exequente e valor devido, fundada na obrigação de devolução dos valores que a executada recebeu do exequente no âmbito dos empréstimos que são nulos por não terem sido vertidos em qualquer documento escrito. Desses empréstimos nulos resulta pois a obrigação de devolução dos valores emprestados, pela executada ao exequente, e dai que o executada tivesse emitido e entregue ao exequente os referidos cheques. Este cheque com o n.º 1172538970 é pois apresentados no âmbito da presente execução como quirógrafo, e todos eles constituem títulos executivo nos termos da al. c) do n.º 1 do artigo 703º do Cod Processo Civil. O valor inscrito nos cheques é pois devido ao exequente pela executada. É devido o valor do capital e dos juros de mora, que em relação ao cheque com o número 1172538970 é calculado apenas a partir da entrada desta execução e dai em diante até pagamento integral e em relação aos restantes cheques é devido desde a data da sua emissão 24 de Janeiro de 2021 em diante até pagamento integral.”
E foi na sequência da apresentação da oposição por embargos, e mais precisamente, das alegações apresentadas pelas partes na sequência do despacho que determinou a respetiva apresentação, que, no momento de proferir decisão, se entendeu que era necessário concretizar a matéria de facto alegada.

Todavia, tal despacho nada mais encerra que isso mesmo - um convite concretizar factos que haviam sido alegados e se consideram como fundamento da pretensão deduzida.
Basta pensar que caso não tivesse sido aceite o convite, os autos prosseguiriam os seus ulteriores termos com a materialidade alegada e de modo algum se pode considerar que uma tal decisão de convite ao aperfeiçoamento reduza ou elimine a matéria a ser apreciada em julgamento.
Sendo certo que tal despacho encerra um juízo de valoração juridicamente relevante relativamente aos factos alegados, antes e depois do mesmo, essa relevância verifica-se apenas enquanto fundamento da decisão de convidar ao aperfeiçoamento, ou seja, como justificação das consideradas insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada que justificam o convite formulado, que de modo algum encerra uma decisão definitiva sobre a valoração jurídica de tais factos, que haverão de ser ulteriormente valorizados para esse efeito aquilatando-se então da sua suficiência e adequação como fundamento do incidente que com fundamento neles se pretendeu deduzir.
E assim sendo, dúvidas não podem restar de que o despacho recorrido, tal como se refere no despacho objeto de reclamação, constitui um verdadeiro despacho de aperfeiçoamento, que, enquanto tal, atento o disposto no artigo 590º n.º 7 do CPC, tem de ser considerado irrecorrível.

Conclui-se desta forma, como na decisão reclamada, que a decisão recorrida não é suscetível de apelação.
***
III. Decisão.
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a reclamação, mantendo a decisão reclamada que não admitiu o recurso.
Custas pela Reclamante.
Registe e notifique.
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Évora, 23.05.2023
Ana Pessoa
Maria João Sousa e Faro
Manuel Bargado
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[1] Cf os Acórdãos do Tribunal Constitucional ns. 31/87, 340/90 e 302/2005.