CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
NEGLIGÊNCIA
Sumário


I – Age com negligência em matéria contraordenacional quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz (i) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de contraordenação, mas atuar acreditando que esse facto não se irá realizar (negligência consciente); ou (ii) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização desse facto contraordenacional, apesar de lhe ser exigível tal representação (negligência inconsciente).
II – A imputação a título de negligência de uma contraordenação laboral implica (i) a violação pela entidade empregadora de um dever de cuidado, que, segundo as circunstância, lhe era exigível que respeitasse; (ii) a verificação do resultado típico previsto na lei; e (iii) que a violação do dever de cuidado seja causa adequada para a produção do resultado típico.
III – Não é possível imputar determinada contraordenação laboral à entidade empregadora se o resultado verificado não couber no âmbito de proteção da norma contraordenacional violada ou se o comportamento violador do dever de cuidado adotado pela entidade empregadora não for adequado a evitar o resultado produzido.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Proc. n.º 6138/22.6T8STB.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A recorrente “AA – Peças e Acessórios para A..., S.A.”[2] (arguida) e BB (na qualidade de responsável solidária) vieram impugnar judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições de Trabalho (doravante designada ACT) que aplicou à arguida uma coima no valor de 90 UC, ou seja, de €9.180,00, pela prática de uma contraordenação muito grave, p. e p. pelos arts. 15.º, nºs. 4 e 14, da Lei n.º 102/2009, de 10-09, alterada pela Lei n.º 3/2014, de 28-01, 554.º, n.º 4 e 556.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
Realizado o julgamento, o Tribunal de 1.ª instância proferiu sentença em 06-11-2023, com o seguinte teor decisório:
Pelo exposto, julgando parcialmente procedente a presente Impugnação, decido:
a) manter a decisão administrativa proferida no âmbito do presente processo contraordenacional, que correu termos na Autoridade Para as Condições do Trabalho nos seus precisos termos, no que tange à condenação da “AA” na coima de 90 UC, pela contraordenação que lhe está imputada;
b) absolver BB, enquanto responsável solidária, do pagamento daquela coima.
*
Custas a cargo da recorrente “AA”, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC, nos termos do disposto no art. 8º, n.º 9, do RCP, e tabela III anexa, face ao número de questões suscitadas e sua complexidade.
*
Notifique.
*
Cumpra o disposto no artigo 45º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14/09.
Inconformada, veio a arguida “AA” interpor recurso da sentença, apresentando as seguintes conclusões:
I. O presente recurso é interposto da decisão proferida nos presentes autos de Recurso de Contraordenação que julga parcialmente improcedente, por não provada, a impugnação judicial e decide manter “a decisão administrativa proferida no âmbito do presente processo contraordenacional, que correu termos na Autoridade Para as Condições do Trabalho nos seus precisos termos, no que tange à condenação da “AA” na coima de 90 UC, pela contraordenação que lhe está imputada mantém nos seus precisos termos a decisão administrativa”.
II. A decisão administrativa sufragada e confirmada pelo Tribunal a quo condena a arguida pela prática da contraordenação prevista e punida pelo nº 4 do artigo 15º da Lei 102/2009, de 10 de Setembro, que dispõe o seguinte: “Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.”
III. O que tal normativo tutela e protege é o direito a prestar trabalho em condições de segurança e saúde, que constitui um direito fundamental dos trabalhadores (art.º 53.º da CRP) e o que impõe é que a entidade empregadora forneça ao trabalhador as “informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde”.
IV. De acordo com o Tribunal a quo “o trabalhador não procedeu, como não tinha procedido antes, à verificação do estado da dita válvula, por não representar os perigos associados a uma válvula de segurança com deficiência (qualquer que ela seja). E não procedeu porque não foi sensibilizado para isso, através da competente formação.”
V. De acordo com o Tribunal a quo é absolutamente irrelevante a circunstância do equipamento ter sido adulterado ou não, afirmando que “Note-se que aqui não interessa se o equipamento foi adulterado ou não”.
VI. A análise dos factos efectuada pelo Tribunal a quo afasta-se de critérios de razoabilidade e ponderação que devem estar sempre presentes na análise de uma qualquer situação de facto e de factores como a exigibilidade da conduta e a culpa.
VII. Decorre dos factos provados na sentença, designadamente, que:
a) “foi apurado pela empresa que presta serviços de manutenção do equipamento à arguida, que a aparadeira explodiu visto a mesma não ter válvula de segurança” (nº 10);
b) “a válvula fora substituída por um parafuso” (nº 11);
c) “O relatório do evento elaborado pela empresa “workcare” que presta serviço externo de Medicina, Higiene e Segurança à sociedade arguida, concluiu como causas possíveis do acidente “falha técnica: válvula de segurança do equipamento retida (devido a possível anomalia da mesma) e substituída por um parafuso, fazendo assim com que a pressão do equipamento aumentasse aquando da sua utilização” e “falha humana: não reporte da anomalia da válvula de segurança, e da respectiva troca por um parafuso; não verificação do equipamento e dos seus componentes de segurança antes da sua utilização.” (nº 12);
d) “O equipamento em apreço foi sujeito a verificação periódica pela empresa que o forneceu e objecto de certificação” (nº 24);
e) “O manuseamento da aparadeira de óleos, quer seja para extrair o óleo usado dos veículos automóveis sujeitos a intervenção, quer seja para o verter no depósito acrílico, é tarefa comum e rotineira para a totalidade dos trabalhadores da arguida afectos à oficina dos Centros Auto” (nº 25);
f) “Trata-se de uma tarefa que é realizada diariamente e no que tange ao verter no depósito acrílico, pelo menos, duas vezes ao dia” (nº 26).
VIII. A segurança do equipamento, e designadamente da válvula de segurança, é garantida e assegurada pela sua certificação e verificação periódica do equipamento, asseverada pela arguida (nº 24). A falta de segurança que, no caso concreto, produziu o sinistro nada tem que ver com a falta de diligência da arguida na formação ou informação do trabalhador sinistrado – on job como se refere no ponto 17 dos factos provados.
IX. O sinistro ocorreu porque, contrariando as instruções e regras vigentes na arguida, e de modo absolutamente imprevisível, a válvula de segurança foi substituída por um parafuso, sendo que, a absoluta imprevisibilidade e anormalidade desta conduta não mereceram a devida ponderação do Tribunal a quo, de acordo com o qual “não interessa se o equipamento foi adulterado ou não”.
X. A entidade empregadora não poderia prever o risco derivado de um comportamento menos próprio de um terceiro (substituição de uma válvula de segurança por um parafuso), pois que, de acordo com critérios de razoabilidade e de normalidade não era manifestamente previsível para qualquer empregador que, na situação concreta dos autos, pudesse ocorrer um acidente da forma com este ocorreu (adulteração de um equipamento).
XI. O sinistro ficou-se unicamente a dever a um comportamento injustificado e imprevisível, sendo de todo improvável, segundo um juízo de prognose, que o mesmo viesse a ocorrer.
XII. Para se determinar se é culposa uma conduta, deve aferir-se a mesma pelo conceito social sobre as condições de razoabilidade em que o agente procedeu, consideradas as circunstâncias da pessoa, do tempo e do lugar.
XIII. No caso, constata-se que o sinistro decorre de falha técnica - válvula de segurança do equipamento retida e substituída por um parafuso – e falha humana - não reporte da anomalia da válvula de segurança, e da respectiva troca por um parafuso não verificação do equipamento e dos seus componentes de segurança antes da sua utilização.
XIV. Ainda assim, o Tribunal a quo conclui, a partir de tais factos objectivos, pela violação do dever de formação e informação dos trabalhadores por parte da entidade empregadora, a título de negligência, afirmando que antes de cada utilização do equipamento o trabalhador tem o dever de verificar a válvula de segurança.
XV. Salvo o devido respeito, é o mesmo do que perante um acidente de viação decorrente de adulteração dos travões da viatura, concluir-se que o motorista não tinha formação adequada para conduzir o veículo, que é irrelevante a adulteração dos travões e que, previamente a cada utilização do veículo, o trabalhador tem o dever de verificar se os travões foram ou não adulterados.
XVI. Uma inadequada análise da culpa ou da exigibilidade ou inexigibilidade da conduta significará, em termos práticos, assumir a culpa como um facto e a responsabilidade contraordenacional como objectiva.
XVII. A determinação da negligência não ocorre de aferir em abstracto e concluir se é possível fazer mais, mas sim de averiguar em concreto e questionar se é, do ponto de vista prático e perante a imprevisibilidade da situação e as demais circunstâncias, exigir mais (exigibilidade da conduta).
XVIII. A ter sido feito uma devida ponderação dos factos concretos deveria o tribunal ter concluído que a conduta da arguida ora recorrente não merece qualquer censura ético jurídica, revogando a decisão da autoridade administrativa.
NESTES TERMOS,
Deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, nos termos e com os fundamentos supra expostos.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando, a final, pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1) A recorrente não se conformando com a douta sentença proferida, em 06/11/2023, que manteve a decisão administrativa da Autoridade para as Condições do Trabalho veio dela interpor recurso.
2) A recorrente alegou, em síntese, que o acidente que originou o levantamento do auto de notícia e que levou à aplicação da coima prevista no art. 15.º, n.º 4 da Lei n.º 102/2009, de 10/09, não foi de sua responsabilidade, ficando a dever-se a um “comportamento injustificado, imprevisível e improvável”, não imputável à recorrente, pois a substituição da válvula por um parafuso, que desconhecia, não é de sua responsabilidade.
3) Salvo o devido respeito, a recorrente, na argumentação do seu recurso, esqueceu-se de uma premissa fundamental e precedente que é a administração de formação profissional ao trabalhador para os riscos provenientes de todos os equipamentos com que este irá trabalhar e para os comportamentos de segurança a adotar no manuseamento desses mesmos equipamentos.
4) Na audiência de julgamento, a arguida não fez prova, como lhe competia, de que deu formação profissional ao trabalhador naquela vertente formativa; apenas provou que lhe deu formação on job, com auxílio de um trabalhador mais antigo na empresa, numa vertente meramente prática e operacional.
5) O risco de explosão e de, consequentemente, queimaduras graves, nunca foi transmitido ao trabalhador/sinistrado, por isso este não se preocupou em ver o estado da sobredita válvula.
6) Se nunca lhe foi transmitido pela recorrente que estava obrigado a certificar-se do estado daquela válvula antes da utilização do respetivo equipamento, o facto de lá estar a válvula, um parafuso ou outro qualquer objeto é completamente indiferente para o trabalhador, como bem concluiu o Mm. Juiz.
7) Nesta medida, a recorrente não forneceu ao trabalhador as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.
8) O despacho recorrido não violou, assim, o disposto nos artigos 15.º, n.º 4 da Lei n.º 102/2009, de 10/09.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Já neste tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso, devendo ser mantida a sentença recorrida.
A recorrente não veio responder a tal parecer.
Neste tribunal foi admitido o recurso nos seus precisos termos.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
II – Objeto do recurso
Nos termos dos arts. 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do art. 41.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10 (RGCO) e arts. 50.º, n.º 4 e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 410.º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Penal).
No caso em apreço, a questão que importa decidir é:
1) Inexistência de negligência por parte da arguida.
III. Matéria de Facto
A matéria de facto mostra-se fixada pela 1.ª instância, uma vez que o tribunal da relação, em sede contraordenacional laboral, apenas conhece da matéria de direito (art. 51.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14-09), com exceção das situações previstas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
A decisão da 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 04/11/2019, foi comunicada à ACT a ocorrência de um evento danoso nas instalações da “AA”, sitas ma Av. ..., em ..., que vitimou o trabalhador CC.
2. No dia 07/11/2019, foi a sociedade arguida notificada pela ACT, para apresentação de documentos, com vista à análise do evento em causa.
3. A arguida enviou a documentação solicitada, por email de 12/11/2019.
4. Foi realizada visita inspectiva pela ACT ao local de trabalho no dia 20/02/2020.
5. No dia 01/11/2019 – sexta-feira/feriado -, pelas 17:30 h, CC encontrava-se a realizar trabalhos como mecânico, nomeadamente, estava a despejar uma aparadeira de óleo de 90 litros, tendo um depósito de acrílico (também designado por bailarina – aspirador) de 10 litros sobre a mesma.
6. No momento, encontrava-se a linha de ar do compressor ligada à aparadeira, para meter pressão no balão/reservatório de forma a despejar o óleo, quando o trabalhador verificou que o óleo não escoava como habitualmente.
7. De repente, o trabalhador ouviu um barulho semelhante a uma panela de pressão e de imediato o depósito de acrílico explodiu.
8. Como o depósito de acrílico se encontrava à altura do antebraço esquerdo do identificado trabalhador, este recebeu sobre o braço esquerdo e abdómen estilhaços da explosão do depósito provocando-lhe feridas abertas.
9. O trabalhador recebe no local os primeiros socorros e foi encaminhado, pelo INEM, para o Hospital do Barreiro.
10. Cerca de um mês após o evento, foi apurado pela empresa que presta serviços de manutenção do equipamento à arguida, que a aparadeira explodiu visto a mesma não ter válvula de segurança.
11. A válvula fora substituída por um parafuso.
12. O relatório do evento elaborado pela empresa “workcare” que presta serviço externo de Medicina, Higiene e Segurança à sociedade arguida, concluiu como causas possíveis do acidente “falha técnica: válvula de segurança do equipamento retida (devido a possível anomalia da mesma) e substituída por um parafuso, fazendo assim com que a pressão do equipamento aumentasse aquando da sua utilização” e “falha humana: não reporte da anomalia da válvula de segurança, e da respectiva troca por um parafuso; não verificação do equipamento e dos seus componentes de segurança antes da sua utilização.”
13. Antes do evento descrito, a sociedade arguida não lhe deu formação sobre os riscos associados ao equipamento e quais os procedimentos de verificação que deveria realizar antes da utilização da aparadeira.
14. Solicitada à sociedade arguida a apresentação dos registos de formação dada ao a CC em matéria de SHST, aquela enviou um documento em como foi entregue ao trabalhador, em 26/04/2019, um pequeno manual sobre procedimentos de emergência.
15. No identificado manual não consta qualquer informação sobre procedimentos de verificação dos equipamentos de trabalho de uso diário, nem os riscos associados à sua utilização.
16. Um mês após aquele evento, o equipamento foi substituído por um novo e enviado um manual para cada um dos trabalhadores que podem manipulá-lo.
17. A formação dada ao trabalhador não era suficiente para que este tivesse conhecimentos necessários e a aptidão técnica para realizar tais procedimentos, ainda que em espírito de colaboração entre colegas, formação “on job”, tanto mais que aquele não sabia que procedimento de verificação deveria realizar antes da utilização da aparadeira, nomeadamente, da verificação dos seus componentes de segurança antes da sua utilização.
18. A arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada enquanto entidade empregadora, já que não acautelou, antes de confiar aquela tarefa que o trabalhador em causa tivesse os conhecimentos necessários e adequados a efectuar aqueles procedimentos e como tal submeteu o seu trabalhador a um risco profissional e subsequente facto lesivo, ao confiar-lhe tarefa para a qual não estava dotado dos conhecimentos necessários para realizar.
19. A arguida não procedeu com todo o cuidado a que segundo as circunstâncias estava obrigada e de que era capaz, acreditando que tudo iria decorrer com normalidade de outros serviços, quando está em causa a utilização de equipamentos de trabalho que comportam riscos na sua utilização, tanto mais que pela sua adulteração (colocação de um parafuso no lugar da válvula), fez com que o depósito de acrílico com a elevada pressão explodisse e atingisse o seu trabalhador.
20. A arguida não agiu com a diligência com que podia e devia ter agido, não cumprindo assertivamente com os seus deveres de entidade empregadora, nomeadamente ao não expor o seu trabalhador a um risco, por não ter sido verificado o equipamento e os seus componentes de segurança antes da sua utilização e por não ter fornecido essa informação ao trabalhador de modo a precaver o risco.
21. A arguida tem como actividade principal CAE 38212 – Tratamento e Eliminação de Resíduos Perigosos.
22. A sociedade arguida, em 2019, apresentou um volume de negócios de 47.022.177,00 €.
23. BB não era administradora da sociedade arguida aquando da ocorrência do evento lesivo.
24. O equipamento em apreço foi sujeito a verificação periódica pela empresa que o forneceu e objecto de certificação.
25. O manuseamento da aparadeira de óleos, quer seja para extrair o óleo usado dos veículos automóveis sujeitos a intervenção, quer seja para o verter no depósito acrílico, é tarefa comum e rotineira para a totalidade dos trabalhadores da arguida afectos à oficina dos Centros Auto.
26. Trata-se de uma tarefa que é realizada diariamente e no que tange ao verter no depósito acrílico, pelo menos, duas vezes ao dia.
27. CC foi admitido pela sociedade arguida para exercer as funções de mecânico na oficina do Centro Auto ... em 26/04/2019.
E considerou não provados os seguintes factos:
A. A formação ministrada ao trabalhador em matéria de Higiene e Segurança no Trabalho, antes de ocorrido o evento danoso, fosse a adequada e suficiente para que este pudesse executar as tarefas em segurança, nomeadamente, sabendo quais os procedimentos de verificação que deveria realizar antes da utilização de cada equipamento de trabalho.
B. A arguida transmite aos seus colaboradores, nas primeiras semanas de integração, toda a informação relevante com vista a que estes possam ter conhecimento dos riscos associados a uma incorrecta utilização/manuseamento da aparadeira.
C. Em concreto, foi transmitido a CC, relativamente à aparadeira do óleo, que:
a) O equipamento faz a aspiração dos lubrificantes dos motores, por vácuo, sendo aconselhado efectuar a aspiração com o óleo do motor quente;
b) O vácuo criado dentro do reservatório em acrílico é gerado pela passagem de um fluxo de ar comprimido através de uma válvula, situada no topo do reservatório;
c) Existe um manómetro que indica se está a ser criada essa depressão (vácuo);
d) Para gerar esta depressão é necessário garantir que o mecanismo de descarga do reservatório de aspiração está fechado, ligar uma mangueira com ar comprimido e esperar até que o manómetro eleve até à depressão máxima, média -0,7 Bar;
e) Posteriormente deve ser retirada a mangueira de ar comprimido e proceder-se à aspiração do óleo;
f) Caso não seja possível numa só operação aspirar a totalidade do óleo existente no motor é necessário repetir o processo anteriormente descriminado.
D. Ainda quanto à aparadeira, mas concretamente à operação de “despejo”, foi transmitido a CC, o seguinte:
a) Para efectuar o despejo do reservatório inferior existem dois procedimentos: i) por aspiração do reservatório através de uma bomba pneumática ou ii) por pressurização do reservatório;
b) Os procedimentos variam de oficina para oficina, mediante a tipologia de instalações e equipamentos;
c) Pelo método de aspiração basta conectar a bomba pneumática ao reservatório, abrir os passadores e ligar a bomba pneumática até o reservatório estar vazio;
d) Pelo método de pressurização do reservatório é necessário fechar os passadores da aparadeira de óleo, fechar o mecanismo de descarga do reservatório de aspiração do óleo, colocar o tubo de descarga do óleo no reservatório de óleos usados, abrir o passador deste tubo, ligar uma mangueira de ar comprimido ao reservatório inferior e pressurizar o reservatório, mantendo no máximo uma pressão de 0,5 Bar.
E. Ainda no que diz respeito à mudança de óleo por aspiração, CC foi informado das seguintes operações de preparação a adoptar:
a) Verificar o aspirador (0,7 bar; torneira de entrada de ar aberta; torneira de aspiração fechada e reservatório vazio);
b) Com a vareta, identificar sobre a sonda do comprimento mínimo a introduzir para atingir o cateter.
F. CC procedia diariamente à operação de despejo como aquela em que ocorreu o evento lesivo.
IV – Enquadramento jurídico
1 – Inexistência de negligência por parte da arguida
Entende a recorrente que perante a matéria que foi dada como provada não lhe pode ser imputada, a título de negligência, a referida contraordenação, visto que o acidente de trabalho ocorrido nos autos ficou a dever-se a um comportamento absolutamente imprevisível e anormal da conduta de um terceiro, que contrariou as instruções e regras vigentes da arguida, comportamento esse do qual a arguida não tinha conhecimento.
Mais invocou que a entidade empregadora não podia prever o risco derivado de um comportamento menos próprio de um terceiro, que substituiu uma válvula de segurança por um parafuso, visto que, de acordo com critérios de razoabilidade e de normalidade, não era manifestamente previsível para qualquer empregador que, na situação concreta dos autos, pudesse ocorrer um acidente da forma com este ocorreu.
Concluiu, por fim, que a determinação da negligência não ocorre de aferir em abstrato e concluir se é possível fazer mais, mas sim de averiguar em concreto e questionar se é, do ponto de vista prático e perante a imprevisibilidade da situação e as demais circunstâncias, exigir mais.
Dispõe o art. 15.º, n.ºs 4 e 14, da Lei n.º 102/2009, de 10-09,[3] que:
4 - Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.
[…]
14 - Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto nos n.os 1 a 12.

A noção de contraordenação laboral encontra-se prevista no art. 548.º do Código de Trabalho e dela resulta que se trata de um facto típico, ilícito e censurável praticado por um “qualquer sujeito no âmbito de relação laboral”.
O elemento subjetivo reporta-se, assim, à censurabilidade (culpa) que é essencial existir nas contraordenações laborais, sob pena de estas não se mostrarem preenchidas e, desse modo, não serem imputadas aos arguidos.
Porém, conforme expressamente consta do parecer do Conselho Consultivo da PGR:
1. O ilícito de mera ordenação social corresponde a uma censura de natureza social e administrativa cujo fundamento dogmático é a subsidiariedade do Direito Penal e a necessidade de sancionar comportamentos ilícitos mas axiologicamente neutros. Do ponto de vista teleológico, as contraordenações são uma medida de proteção da legalidade, o que justifica a maior flexibilidade na análise dos pressupostos da imputação, designadamente da culpa, que é diferente da culpa penal.

Na realidade, por no domínio do direito contraordenacional não estar em causa a culpa em sentido jurídico-penal (centrada na consciência e vontade do seu autor), mas apenas uma censura de natureza social e administrativa, caracterizada na violação de deveres legais,[4] é compreensível que a análise do elemento subjetivo do tipo contraordenacional seja bastante mais flexível e menos exigente do que nas situações criminais, porém, tal não significa que o mesmo não tenha de existir.
No caso em apreço, é a título de negligência que a contraordenação suprarreferida é imputada à arguida.
Não resulta da legislação contraordenacional o que seja o comportamento negligente, pelo que se torna necessário recorrer subsidiariamente ao art. 15.º do Código Penal.
Dispõe este artigo que:
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

Transportando esta definição para a área contraordenacional, significa que age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz (i) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de contraordenação, mas atuar acreditando que esse facto não se irá realizar (negligência consciente); ou (ii) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização desse facto contraordenacional, apesar de lhe ser exigível tal representação (negligência inconsciente).
Na realidade, a imputação a título de negligência de uma contraordenação laboral implica (i) a violação pela entidade empregadora de um dever de cuidado, que, segundo as circunstância, lhe era exigível que respeitasse; (ii) a verificação do resultado típico previsto na lei; e (iii) que a violação do dever de cuidado seja causa adequada para a produção do resultado típico.
Efetivamente não é possível imputar determinada contraordenação laboral à entidade empregadora se o resultado verificado não couber no âmbito de proteção da norma contraordenacional violada ou se o comportamento violador do dever de cuidado adotado pela entidade empregadora não for adequado a evitar o resultado produzido.
Cita-se a este propósito o sumário do acórdão do TRE, proferido em 31-03-2009:[5]
1. O preenchimento da tipicidade objectiva do crime negligente exige a verificação dos seguintes requisitos: a) A existência de um dever objectivo de cuidado; b) Uma acção ou omissão objectivamente violadora daquele dever; c) Um resultado típico; d) A imputação objectiva do resultado ao agente por sua vez exige que a acção ou omissão violadora do dever objectivo de cuidado seja adequada à produção do resultado, que o resultado pudesse ser evitável pela conduta adequada à observância do dever objectivo de cuidado e, ainda que o resultado caia no âmbito de protecção da norma.
2. Para se verificar o tipo de culpa inerente à negligência é necessário que se verifiquem três elementos: 1) A possibilidade de prever o perigo de realização do tipo; 2) A actuação que não observe o cuidado objectivamente requerido; 3) A produção do resultado típico.
É, assim, necessário que o agente tenha omitido um dever de cuidado, que se tivesse sido acatado, teria impedido a produção de um evento danoso em si previsível.
3. Existe previsibilidade quando o agente nas circunstâncias em que se encontrava podia, tendo em conta as circunstâncias em que o evento se produziu, ter representado como possível o resultado ocorrido.
Assim sendo, em sede do tipo de culpa a negligência pressupõe o não uso da diligência devida, segundo as circunstâncias em concreto, para evitar o resultado.
4. A negligência consiste, pois, em qualquer das suas modalidades, consciente e inconsciente na omissão de um dever objectivo de cuidado e de diligência: o dever de não confiar leviana ou precipitadamente na não produção do facto ou o dever de ter previsto tal facto e de ter tomado as diligências necessárias para o evitar.

Deste modo, o que importa apreciar no presente recurso, perante a factualidade dada como assente, é se houve por parte da entidade empregadora a violação de um dever de cuidado, que, segundo as circunstância, lhe era exigível que respeitasse; se houve a produção de um resultado típico previsto na norma contraordenacional violada; e se a violação daquele dever de cuidado por parte da entidade empregadora constituiu causa adequada para a produção daquele resultado típico.
Apreciemos, então, o caso concreto.
Resulta da matéria dada como assente que a entidade empregadora, ora arguida, não deu ao trabalhador CC formação sobre os riscos associados à utilização da aparadeira, nem sobre os procedimentos de verificação que deveria realizar antes da sua utilização, sendo esta a máquina que explodiu no dia 01-11-2019 quando o referido trabalhador se encontrava a trabalhar com a mesma (factos provados 5, 6, 10 e 13).
Constata-se, assim, que a arguida violou o dever de cuidado, imposto no n.º 4 do art. 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10-09, que se traduziu na obrigação de fornecer ao trabalhador CC as informações e formações necessárias relativamente à utilização da aparadeira, concretamente informação sobre os riscos associados à utilização da referida máquina, bem como sobre os procedimentos de verificação a realizar antes da sua utilização, de forma a que o mesmo pudesse desenvolver a sua atividade junto dessa máquina em condições de segurança e saúde.
Resultou também provado que, em face da explosão da máquina, o trabalhador CC recebeu sobre o braço esquerdo e abdómen estilhaços da explosão, provocando-lhe feridas abertas, tendo recebido no local os primeiros socorros e sido encaminhado, pelo INEM, para o Hospital do Barreiro. Constata-se, deste modo, a existência do resultado típico, ou seja, um acidente de trabalho (factos provados 8 e 9).
Importa, agora, apurar se este acidente de trabalho se ficou a dever à violação por parte da entidade trabalhadora do dever de informação sobre os riscos associados à utilização da referida aparadeira, bem como sobre os procedimentos de verificação a realizar antes da sua utilização.
Consta igualmente da matéria provada que um dos procedimentos que os trabalhadores que utilizassem a aparadeira deveriam ter, antes de proceder à sua utilização, era precisamente verificarem os seus componentes se segurança, sendo que este procedimento de verificação não foi transmitido ao trabalhador CC (facto provado 17).
Por fim, consta da matéria dada como assente que o acidente de trabalho resultante da explosão da aparadeira se ficou a dever à circunstância desta não ter válvula de segurança, a qual tinha sido substituída por um parafuso (factos provados 10 e 11).
Ora, se a arguida tivesse ministrado ao trabalhador CC a formação devida relativamente aos riscos associados à utilização da referida máquina, bem como aos procedimentos de verificação a realizar antes da sua utilização, concretamente à necessidade de verificação da sua válvula de segurança, este, ao verificar tal válvula e constatar a sua inexistência, tendo bem consciência dos riscos inerentes à utilização daquela máquina sem válvula de segurança, muito provavelmente não teria iniciado a sua atividade com tal máquina e o acidente de trabalho poderia ter sido evitado.
Diga-se que, sendo obrigatória a verificação da válvula de segurança da aparadeira antes da sua utilização, é efetivamente irrelevante a circunstância de a substituição da válvula de segurança por um parafuso ter sido realizada sem o conhecimento e consentimento da arguida, uma vez que tal situação teria sido detetada se o procedimento obrigatório tivesse sido respeitado pelo trabalhador CC. Atente-se que não se provou que o trabalhador CC tivesse conhecimento dessa substituição da válvula de segurança da aparadeira por um parafuso, sendo que, como também não lhe tinha sido ministrada qualquer informação sobre os riscos associados a essa máquina, concretamente sobre a importância da válvula de segurança, sempre tal situação também teria de ser devidamente contextualizada.
Por fim, dir-se-á apenas que, sendo um dos procedimentos de verificação a realizar antes da utilização da aparadeira, a verificação da sua válvula de segurança, é igualmente irrelevante se tal máquina era usada, pelo menos, duas vezes ao dia, tratando-se o manuseamento da aparadeira de óleos uma tarefa comum e rotineira para a totalidade dos trabalhadores da arguida afetos àquela oficina (factos provados 25 e 26), visto que, em momento prévio a cada utilização, os procedimentos de segurança deveriam ser efetuados, independentemente da quantidade de vezes em que a máquina, por dia, fosse utilizada.
Pelo exposto, apenas nos resta concluir pela improcedência do recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
V - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (art. 8.º, n.º 7 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
Notifique.
Évora, 23 de maio de 2024
Emília Ramos Costa (relatora)
Paula do Paço
João Luís Nunes
__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Paula do Paço; 2.º Adjunto: João Luís Nunes.
[2] Doravante “AA”.
[3] Na versão da Lei n.º 3/2014, de 28-01.
[4] Veja-se o acórdão do TRE, proferido em 08-11-2017, no âmbito do processo n.º 2792/16.6T8PTM.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] No âmbito do processo n.º 3321/08-1, consultável em www.dgsi.pt.