CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ARRENDAMENTO
Sumário


O direito ao arrendamento da casa de morada da família deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise, a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

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Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Évora,
I. RELATÓRIO
AA instaurou a presente ação de atribuição da casa de morada de família contra BB.
Alegou, em síntese, que autora e réu encontram-se a viver separados de facto desde 2017, pois, apesar de se encontrarem a viver na mesma casa, certo é que desde a referida data que dormem em quartos separados e levam vidas independentes, situação que conduziu à instauração da ação de divorcio que corresponde aos autos principais.
Mais referiu que pouco tempo depois do nascimento do filho comum de ambos, atualmente maior de idade, decidiu em conjunto com o Requerido que deveria deixar o trabalho que tinha na altura, no departamento de recursos humanos da T..., S.A., em Alcanena para se dedicar à educação, cuidados de saúde do filho (que, então, eram constantes) e às lides domésticas do agregado familiar, que depois de sair da referida empresa, apenas esporadicamente foi efetuando trabalhos de curta duração e que há vários anos a esta parte que o Requerido carrega e entrega à Requerente um “Cartão Presente” representativo de um valor monetário ao portador, recarregável, umas vezes emitido pelo supermercado Pingo Doce, outras pelo supermercado Continente, e que esta utiliza em compras nas lojas onde os mesmos são aceites.
Acrescentou que após as compras a Requerente está, inclusive, incumbida pelo Requerido de apresentar os respetivos talões comprovativos das compras efetuadas e pagas através dos ditos cartões presente, que presentemente, presta serviços de limpeza e tratamento de roupas em casa de amigas sendo com o dinheiro que elas lhe pagam que compra os alimentos, que é a Requerente que assegura a preparação das refeições, limpeza, a maior parte das compras, do agregado familiar composto por três pessoas (além da própria, marido e o filho maior de ambos) e que o Requerido nunca desempenhou estas lides, exceto algumas compras que também realiza para a casa menosprezando a autora, discutindo e dizendo- lhe constantemente que não faz nada e que passa os dias inteiros sentada no sofá e isto na presença do filho de ambos, em manifesta falta de respeito.
Alegou ainda que está cansada de ser humilhada e subestimada pelo Réu, que a partir de determinada altura da sua vida de casados a acusou de não fazer nada, designadamente, que não tem um emprego porque não quer, que vive atualmente num ambiente hostil, em que o Requerido se recusa a entabular qualquer tipo de diálogo consigo, e quando o faz é só para a ofender, o que torna insustentável a vivência em comum, estando inclusive o filho (apesar de já maior de idade) a sofrer os efeitos colaterais desta difícil situação e que o Requerido recusa-se a sair de casa e a Requerente não sai porque não tem alternativa, não possuindo rendimentos que lhe permitam arrendar outra casa.
Esclareceu que a casa de morada de família é bem comum e que sobre a casa de morada de família impende uma hipoteca que garante um crédito contraído com a Caixa Geral de Depósitos para aquisição da fração.
Relativamente ao Requerido referiu que trabalha como vendedor de automóveis na ..., de ... e embora não saiba concretizar o valor do seu vencimento, o mesmo auferiu em 2021 um rendimento anual ilíquido no valor global de 27.005,77 €.
Concluiu que, tendo em conta a situação de desemprego em que a Requerente se encontra, facilmente se descortina que a mesma vive com sérias dificuldades financeiras, que a Requerente socorre-se da ajuda de familiares e amigas para suportar algumas das despesas de alimentação, não dispõe de condições para arrendar uma outra casa por carecer de meios financeiros para o efeito, nem tão pouco dispor de outra e que o Requerido porque trabalha e aufere um rendimento anual que durante o ano de 2021 foi de 27.005,77 €, pode arrendar uma casa para residir.
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Foi designada e realizada tentativa de conciliação entre as partes que não se revelou possível.
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Notificado para o efeito, o Réu veio apresentar contestação pugnando pela improcedência da ação, mais pedindo que a casa de morada de família lhe seja atribuída.
Alegou que a Requerente tem habitação alternativa que pertence à herança aberta por óbito de seu pai uma casa devoluta sita em ..., que está mobilada, desocupada e habitável, e a que a requerente tem livre e total acesso, incluindo para a habitar, e que a mesma tem meios que lhe permitam arrendar outra casa, pois tem, pelo menos, e desde 2007, certificados de aforro, no valor de 18.480,03 euros cujo documento data de maio de 2022, que a requerente não paga uma única despesa comum ou referente a seu filho, que a casa de morada de família foi adquirida pelo casal com recurso a empréstimo bancário de 50.000,00 euros cujo cumprimento se encontra assegurado por hipoteca, do que se encontra ainda em dívida à CGD a quantia de 18.703,50 euros, a amortizar em 135 prestações vincendas mensais e sucessivas, atualmente no valor de 169,41 euros e que é o requerido quem suporta esse pagamento, bem como as outras despesas com isso relacionadas, como os seguros de vida, multirriscos ou o condomínio.
Referiu que o filho do casal, com 22 anos, nascido a ../../2001, vive com os pais, e frequenta o 3º ano da Licenciatura ..., em Lisboa, para onde se desloca de comboio todos os dias úteis. Obtendo aproveitamento, faltam-lhe ainda dois anos de Mestrado, assim previsivelmente concluindo o seu Curso em julho de 2025, sendo o requerido quem suporta e sempre suportou o custo das propinas do filho, o passe e a sua alimentação (almoços) em Lisboa, e todas as suas demais despesas.
Acrescentou que a Requerente não tem qualquer limitação que a impeça de exercer atividades remuneradas, e que o requerido não tem meios para arrendar outra casa, que em 2021 o requerido auferiu retribuição mensal na ordem dos 1.500,00 euros/mês, que tem de fazer face a despesas mensais fixas de 1.305,00 euros, assim lhe sobrando em média e mensalmente 280,00 euros, a que acrescem várias outras despesas fixas ou variáveis, e ainda para vestir e calçar.
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Após a realização das diligências probatórias pertinente foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto decido:
a) Atribuir ao Réu BB, o direito de utilização da casa de morada da família, sita na Rua ..., ..., ..., encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...67 da União de freguesias da cidade de ... mediante celebração de contrato de arrendamento a seu favor.
b) O arrendamento fica sujeito às regras gerais do arrendamento urbano para a habitação, fixando-se em 30 dias o prazo para a autora abandonar a casa de morada da família e o montante da renda mensal corresponderá ao valor da prestação para amortização mensal do crédito bancário, que o réu pagará diretamente à entidade bancária;
c) Fixo o valor da ação em € 30.000,01.
Custas pela autora sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.
Registe e notifique.”
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Inconformada com esta decisão, a Requerente da mesma interpôs recurso pedindo a sua revogação, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1 - O incidente de atribuição da casa de morada de família a que se reportam os presentes autos foi instaurado pela Autora tendo em vista a atribuição do direito de utilização da mesma.
2 - Com o intuito de obter a tutela jurídica e deste modo salvaguardar o seu direito, alegou a Autora factos justificativos da necessidade da sua permanência na casa de morada de família dos quais deriva que,
3 - Desde 2017 que Autora e Réu se encontram a viver separados apesar de se encontrarem a viver na mesma casa, desde a referida data que dormem em quartos separados;
4- O Réu leva uma vida independente e separada da Autora.
5 - Pouco tempo depois do nascimento do filho comum de ambos, autora e réu decidiriam que esta deveria deixar o trabalho que tinha na altura, no departamento de recursos humanos da T..., S.A., em Alcanena para se dedicar à educação, cuidados de saúde do filho (que, então, eram constantes) e às lides domésticas do agregado familiar;
6 - Depois de sair da referida empresa, apenas esporadicamente foi efetuando trabalhos de curta duração;
7 - Presentemente, presta serviços de limpeza e tratamento de roupas em casa de amigas sendo com o dinheiro que elas lhe pagam que compra os alimentos.
8 - Autora e Réu asseguram a preparação das refeições, limpeza, compras do agregado familiar de forma não concretamente apurada;
9 - A casa de morada de família é bem comum, situa-se na Rua ..., ..., ..., encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...67 da União de freguesias da cidade de ..., com o valor patrimonial actual de 75.556,60 €, e encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...17, da freguesia ... (...).
10 - A autora está desempregada, encontrando-se inscrita no Centro de Emprego ... e suporta parte das despesas de alimentação.
11 - Sobre a casa de morada de família impende um crédito hipotecário sobre a Caixa Geral de Depósitos, o qual é suportado pelo réu, o empréstimo nº ...85 adquirida pelo casal com recurso a empréstimo bancário de 50.000,00 euros cujo cumprimento se encontra assegurado por hipoteca, do que se encontra ainda em dívida à CGD a quantia de 18.703,50 euros, a amortizar em 135 prestações vincendas mensais e sucessivas, atualmente no valor de 169,41 euros;
12 - O requerido trabalha como vendedor de automóveis na ..., de ... e embora não saiba concretizar o valor do seu vencimento, o mesmo auferiu em 2021 um rendimento anual ilíquido no valor global de 27.005,77 €, tal correspondeu a 22.000,47 euros líquidos, ou seja, a retribuição mensal na ordem dos 1.500,00 euros/ms;
13 - Aufere ainda comissões pela venda de automóveis, não tendo direito a qualquer compensação mensal se não vender mais do que 3 carros e se ultrapassado esse objetivo ainda minorada a comissão em função do menor número das suas vendas;
14 - A autora socorre-se da ajuda de familiares e amigas para suportar algumas das despesas de alimentação e também do valor titulado nos certificados de aforro;
15 - O filho maior de ambos, reside actualmente com os pais, é estudante, desloca se diariamente para o Instituto Superior ... Aplicada sito em Lisboa, onde frequenta o 3º ano do curso de psicologia.
16 - O pai da autora, CC que faleceu em ../../2007, no estado de viúvo de DD, tendo deixado três filhos como herdeiros (a ora requerente e os seus 2 irmãos) sendo que do acervo hereditário consta, efetivamente, o prédio urbano sito na Travessa ..., ... ..., como resulta da respetiva Participação do Imposto de Selo efetuada em 30-05-2007. Este prédio encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...93 da freguesia ... e concelho ... que não oferece condições mínimas de habitabilidade.
17- Em Maio de 2022 a autora era portadora de certificados de aforro no valor de 18.480,03 euros;
18 – Pelo que o direito a utilizar a casa de morada de família até venda ou partilha da mesma devia ser atribuído à Autora, tendo em conta que é ela, de entre ambos os cônjuges, a que tem maior premência da necessidade da casa.
19 – Ao decidir como decidiu, a douta Sentença recorrida faz uma errónea interpretação do art. 1793º nº 1 do C. Civil.
20 – Em face do exposto, deve a douta Sentença recorrida ser revogada por acórdão que atenda ao alegado no presente recurso, e em consequência ser atribuído à Autora o direito de utilizar a casa de morada de família até à partilha ou venda da mesma, com todas as consequências legais, para que se faça a devida JUSTIÇA.
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O Requerido veio responder ao recurso concluindo pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida.
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II. Questões a decidir
Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se afere, fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, 608º, nº. 2, e 679º do CPC).
Assim, no caso dos autos, e em face das conclusões de recurso apresentadas, importa apreciar e decidir se existe fundamento para a requerida atribuição da casa de morada de família à Autora, pois que essa é a única questão suscitada pela Apelante.
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III. Fundamentos de Facto
III.1. Foram os seguintes os factos considerados provados na sentença proferida, com interesse para a decisão da causa, decisão que, nessa parte, não foi impugnada por nenhuma das partes:
1) A Autora e o Réu, casaram ../../1995, sem convenção antenupcial, conforme certidão do Assento de Casamento nº ...95 de 2012 ;
2) Deste casamento existe um filho, BB, nascido a ../../.... de
2001;
3) Desde 2017 que Autora e Réu se encontram a viver separados apesar de se encontrarem a viver na mesma casa, desde a referida data que dormem em quartos separados;
4) O Réu leva uma vida independente e separada da Autora,
5) Pouco tempo depois do nascimento do filho comum de ambos, autora e réu decidiriam que esta deveria deixar o trabalho que tinha na altura, no departamento de recursos humanos da T..., S.A., em Alcanena para se dedicar à educação, cuidados de saúde do filho (que, então, eram constantes) e às lides domésticas do agregado familiar;
6) Depois de sair da referida empresa, apenas esporadicamente foi efectuando trabalhos de curta duração;
7) Presentemente, presta serviços de limpeza e tratamento de roupas em casa de amigas sendo com o dinheiro que elas lhe pagam que compra os alimentos.
8) Autora e réu asseguram a preparação das refeições, limpeza, compras do agregado familiar de forma não concretamente apurada;
9) A casa de morada de família é bem comum, situa-se na Rua ..., ..., ..., encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...67 da União de freguesias da cidade de ..., com o valor patrimonial actual de 75.556,60 €, e encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...17, da freguesia ... (...).
10) A autora está desempregada, encontrando-se inscrita no Centro de Emprego ... e suporta parte das despesas de alimentação.
11) Sobre a casa de morada de família impende um crédito hipotecário sobre a Caixa Geral de Depósitos, o qual é suportado pelo réu, o empréstimo nº ...85 adquirida pelo casal com recurso a empréstimo bancário de 50.000,00 euros cujo cumprimento se encontra assegurado por hipoteca, do que se encontra ainda em dívida à CGD a quantia de 18.703,50 euros, a amortizar em 135 prestações vincendas mensais e sucessivas, atualmente no valor de 169,41 euros;
12) O Réu suporta o pagamento dos seguros de vida e multirriscos;
13) O requerido trabalha como vendedor de automóveis na ..., de ... e embora não saiba concretizar o valor do seu vencimento, o mesmo auferiu em 2021 um rendimento anual ilíquido no valor global de 27.005,77 €, tal correspondeu a 22.000,47 euros líquidos, ou seja, a retribuição mensal na ordem dos 1.500,00 euros/ms;
14) Da liquidação do IRS resultou até reembolso no valor de 520,00 euros transferidos para conta bancária própria dela e exclusiva - da CGD a que corresponde a conta destino ...00, e posteriormente 150,00 euros para a conta do filho de ambos;
15) O requerido trabalha para o Entreposto Auto com a categoria de vendedor e aufere o vencimento base de 760,00 euros brutos, a que acresce subsidio de alimentação.
16) Aufere ainda comissões pela venda de automóveis, não tendo direito a qualquer compensação mensal se não vender mais do que 3 carros e se ultrapassado esse objetivo ainda minorada a comissão em função do menor número das suas vendas;
17) O Réu em Janeiro de 2023 auferiu a quantia de 2.160,59 euros líquidos, sendo que 616,00 corresponderam a trabalho extraordinário prestado a Sábados (e só em Janeiro), e a compensação única atribuída pela entidade patronal e pagou de amortização do crédito habitação 148,72 euros, 11,46 euros de seguro de vida dos mutuários, 437,40 euros das propinas do filho, 75,00 euros do passe da CP do BB, 220,00 euros de alimentação do BB com almoços em Lisboa, 5,99 do telemóvel do filho, 45,80 euros do ginásio do filho, 47,43 euros de fornecimento de energia elétrica na habitação, 21,17 euros de fornecimento de água, 37,89 euros de pacote de televisão/internet, 32,60 euros de botija de gás no valor total em Janeiro de 2023 somam 1.083,46 euros.
18) Em Fevereiro, despesas com o crédito 158,13 euros; 768,19 euros com o filho do casal, e 123,51 euros de despesas gerais da habitação, tudo no valor somado de 1049,83 Euros; - Em Março, despesas com o crédito 178,82 euros; 859,29 euros com o filho do casal, e 129,91 euros de despesas gerais da habitação, tudo no valor somado de 1.168,02 euros; - Em Abril, despesas com o crédito 178,82 euros; 807,73 euros com o filho do casal, e 137,77 euros de despesas gerais da habitação, tudo no valor somado de 1.124,32 euros; - E em Maio, despesas com o crédito 178,82 euros; 809,18 euros com o filho do casal, e 113,34 euros de despesas gerais da habitação, tudo no valor somado de 1.101,34 Euros;
19) E suporta despesas gerais e habituais, como 121,00 euros semestrais de condomínio, 133,55 de Imi, 248,48 euros de seguro do carro utilizado pela requerente, seguro do carro utilizado pelo filho, inspeções automóveis e IUC´s de ambos os veículos, ou o seguro multirriscos de 120,00 euros;
20) Em Janeiro auferiu 2.160,59 euros líquidos, em Fevereiro 779,76 euros, em Março 1.314,46 euros, em Abril 2.900,71 euros, em Maio 769,55 euros ou seja, o requerido aufere uma média mensal líquida de 1.585,00 euros.
21) BB não necessita de qualquer especial cuidado há mais de 10 anos.
22) A autora é cotitular de conta bancária da CGD podendo também movimentá-la ;
23) O réu compra e confeciona as suas próprias refeições (e jantares do filho) e aprovisiona a casa.
24) A autora socorre-se da ajuda de familiares e amigas para suportar algumas das despesas de alimentação e também do valor titulado nos certificados de aforro;
25) O filho maior de ambos, reside actualmente com os pais, é estudante, desloca-se diariamente para o Instituto Superior ... Aplicada sito em Lisboa, onde frequenta o 3º ano do curso de psicologia.
26) O pai da autora, CC que faleceu em ../../2007, no estado de viúvo de DD, tendo deixado três filhos como herdeiros (a ora requerente e os seus 2 irmãos) sendo que do acervo hereditário consta, efetivamente, o prédio urbano sito na Travessa ..., ... ..., como resulta da respetiva Participação do Imposto de Selo efetuada em 30-05-2007. Este prédio encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...93 da freguesia ... e concelho ... que não oferece condições mínimas de habitabilidade;
27) Em Maio de 2022 a autora era portadora de certificados de aforro no valor de 18.480,03 euros

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III.2. O Tribunal Recorrido considerou que não se provaram os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
- Que a autora tenha habitação alternativa;
-Há vários anos a esta parte que o Requerido carrega e entrega à Requerente um “Cartão Presente” representativo de um valor monetário ao portador, recarregável, umas vezes emitido pelo supermercado Pingo Doce, outras pelo supermercado Continente, e que esta utiliza em compras nas lojas onde os mesmos são aceites;
- Após as compras a Requerente está, inclusive, incumbida pelo Requerido de apresentar os respetivos talões comprovativos das compras efetuadas e pagas através dos ditos cartões presente.
- A Requerente vive atualmente num ambiente hostil, em que Requerido se recusa a entabular qualquer tipo de diálogo consigo, e quando o faz é só para a ofender, o que torna insustentável a vivência em comum, estando inclusive o filho (apesar de já maior de idade) a sofrer os efeitos colaterais desta difícil situação.
- Com alimentação própria, e para além dos seus almoços (refeição cujo custo até lhe tem maior expressão), o requerido gasta mensalmente quantia não inferior a 300,00 euros, nomeadamente em compras de supermercado com que aprovisiona a casa e confeciona os seus jantares e do filho. Despende cerca de 40,00 euros com combustível do automóvel em que o filho circula, nomeadamente de/para casa/estação ou aos fins de semana.
- A requerente nunca procurou ativamente nenhum emprego, aliás recusou e recusa fazê-lo - e só em Setembro de 2021 se inscreveu, decorativamente, no Centro de Emprego.
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IV. Fundamentação Jurídica.
A Recorrente vem insurgir-se contra a sentença proferida na parte em que atribuiu ao Réu a utilização da casa de morada de família, por entender que o direito a utilizar a mesma até venda ou partilha da mesma devia ser atribuído à Autora, tendo em conta que é ela, de entre ambos os cônjuges, a que tem maior premência da necessidade da casa.
Vejamos.
Como a própria Apelante reconhece, o Tribunal Recorrido descreveu adequadamente o quadro jurídico aplicável às pretensões deduzidas, enunciando os critérios de atribuição da casa de morada de família em termos que sufragamos e nos dispensamos de reproduzir.
Na verdade a pretensão da Requerente encontra fundamento no art.º 1793.º do Código Civil, que respeita à casa de morada de família, na sequência da separação ou divórcio dos cônjuges, determina que pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer essa seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
É ao abrigo desta previsão legal que qualquer membro do casal ou ex-casal pode pedir ao tribunal que lhe reconheça o direito a utilizar em exclusivo a casa de morada de família, por dela ter necessidade, mesmo que esta não seja da sua propriedade exclusiva.
Sobre os pressupostos enunciados no normativo referido, escreve o Professor Pereira Coelho[1]:
“[…] a lei quererá que a casa de morada da família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro […]. Ora, este critério geral, segundo nos quer parecer, não pode ser outro senão o de que o direito ao arrendamento da casa de morada da família deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela. […] A necessidade da casa (ou a «premência», como vem a dizer a jurisprudência; melhor se diria a premência da necessidade) parece-nos ser, assim, o factor principal a atender. […] Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal ter em conta, em primeiro lugar, justamente estes dois elementos, que mais expressivamente a revelam […]. Trata-se, quanto à «situação patrimonial» dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais os rendimentos e proventos de um e de outro […]. No que se refere ao «interesse dos filhos», há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos menores […]. Mas o juízo sobre a necessidade ou a premência da necessidade da casa não depende apenas destes dois elementos. Haverá que considerar ainda as demais «razões atendíveis»: a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.».
A Apelante insurge-se contra a decisão recorrida por entender que procedeu a uma interpretação errada do artigo 1793º, n.º 1 do Código Civil, já que se demonstrou que é ela que tem maior premência da necessidade da casa.
Não se ignora a fragilidade da situação da ora Apelante do ponto de vista económico e financeiro, na justa medida em que se encontra desempregada, realizando apenas alguns trabalhos para pessoas amigas, esteve casada com o Requerido durante décadas, tendo-se dedicado às lides domésticas e à maternidade, por opção do casal.
Não pode deixar de antever-se, perante os factos provados, a dificuldade que sentirá em arranjar trabalho, apenas prestando pontualmente alguns serviços, tendo estado fora do mercado de trabalho por muitos anos, repete-se, por opção do casal.
Certo é, porém, que a situação do Requerido não pode, atualmente, em face dos factos provados, reconhecer-se como mais folgada, na medida em que embora auferindo vencimento mensal, suporta exclusivamente o empréstimo bancário do imóvel, encargos da habitação e do filho de ambos.
O Tribunal Recorrido enfrentou a questão em termos que consideramos justos em face dos factos provados, no contexto global atual de cada um dos membros do casal ao referir:
“No caso dos autos apurou-se que o réu desempenha actividade profissional remunerada e assume alguns encargos do imóvel como o pagamento do empréstimo bancário para além de custear despesas do filho de ambos; a autora está desempregada, realizando alguns trabalhos pontuais e dispondo como único património próprio, de certificados de aforro no valor superior a 18 mil euros em Maio de 2022.
Nenhum dos intervenientes alegou padecerem de problemas de saúde não dispondo ambos de habitação alternativa.
Mantém-se a viver ambos no imóvel comum o que gera desconforto.
Todavia, e apesar de notoriamente ser insustentável a vivência em comum no imóvel, o certo é que se a favor da autora releva a circunstância de estar desempregada não podemos olvidar que dispõe de uma quantia bastante generosa que lhe permite encontrar outro espaço para viver, estando o réu, embora auferindo vencimento mensal, a suportar exclusivamente o empréstimo bancário do imóvel, encargos da habitação e do filho de ambos.
A ponderação dos factos deve ser objectiva e não podemos ser alheios à existência de fundos próprios da autora para se autonomizar aos quais recorre pontualmente como referiu.
Aliás, apesar de mencionado pela autora nenhuma prova se fez quanto a outros rendimentos ou quantias na disposição do réu que até poderiam influir na presente decisão mas cuja prova não foi concretizada.
Independentemente das questões morais que possam sobressair quanto ao alegados comportamentos do réu e o impacto na vida socioeconómica a autora (sacrifício de abdicar da vida profissional pelo filho), as necessidades habitacionais deste são mais prementes face aos encargos que assegura sozinho.
Este conjunto de factos (necessidades habitacionais do requerido e a circunstância do mesmo suportar as prestações do empréstimo e muitas outras obrigações familiares) apontam claramente no sentido da atribuição da casa de morada da família ao réu, através da celebração de um contrato de arrendamento imposto por lei (constituição de arrendamento a favor do réu).”
O Tribunal Recorrido não se ficou pela análise da capacidade de ganho de cada uma das partes, antes tendo ponderado a situação financeira global de cada um deles, não deixando de relevar quanto ao Requerido a circunstância de encargos relevantes, de forma praticamente exclusiva e que não poderá descurar, e, por outro lado, a situação patrimonial da Requerente, que dispõe de poupanças e de direitos relativos a herança ainda pendente de partilha, que lhe permitirão nesta fase, fazer face aos encargos de uma solução alternativa.
Note-se que o facto de se tratar de um processo de jurisdição voluntária determina a tangibilidade do caso julgado e, assim, a possibilidade de a decisão ser modificada em função da alteração das circunstâncias, efeito expressamente assegurado no n.º 3 do artigo 1793º do Código Civil.
Assim, tendo-se tornado insustentável a vivência em comum no imóvel, e não obstante as dificuldades já salientadas que seguramente serão sentidas pela ora Apelante, como pelo Apelado, não se vê que não se tenha atendido aos critérios legais, pelo que nenhuma razão se vislumbra para alterar o decidido.
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VI. Decisão:
Em face do exposto, julga-se improcedente a apelação.
Custas pela Apelante.
Notifique.
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Évora, 2024-05-23
Ana Pessoa
Maria João Sousa e Faro
José António Moita
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[1] In Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, n.º 122, Ano 1989 – 1990, páginas 137, 138, 207 e 208.