DIREITO DE PREFERÊNCIA
HERANÇA
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
Sumário


I. A declaração judicial de que o autor é o titular do direito de preferência não tem por efeito a constituição de um novo direito ou sequer a aquisição de um direito pré-existente, antes visa significar a substituição do adquirente pelo preferente no negócio jurídico realizado, tudo se passando juridicamente, após a substituição e pelo que respeita à titularidade do direito transmitido, como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com o preferente.
II. Isto significa que a partir do reconhecimento do direito de preferência ao autor no acórdão desta Relação, a apelante deixou de ter qualquer direito a manter em seu poder o imóvel que integrava a herança cujos quinhões havia adquirido, já que perdeu a qualidade de adquirente da mesma.
III. Não existindo qualquer fundamento para recusar a entrega do imóvel ao A., designadamente a partir da data em que o mesmo a interpelou para esse efeito, resulta ser ilícita a sua conduta que é, de igual sorte, danosa porquanto privou o Autor de a arrendar como era sua intenção e de auferir um determinado rendimento.
IV. Esta ofensa ou violação de um direito alheio perpetrada pela Ré/apelante é geradora de responsabilidade extracontratual uma vez que se mostram preenchidos os pressupostos previstos no art.º 483º do Cód.Civil.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral



ACÓRDÃO

1. AA intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Paradise Criterion, Lda. na qual formulou os seguintes pedidos:

A) Declarar e reconhecer o A. como único interessado na herança de seu pai BB, quer como herdeiro, quer como titular da meação e quinhão hereditário de CC e do quinhão hereditário de DD;

B) Declarar que a fração autónoma correspondente ao ... do prédio sito na Rua ..., ..., em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artº ...46..., da União de Freguesias ... ( ..., Nª ... e ... ), descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...11 da aludida Uniãomde Freguesias e concelho, pertence à herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de AA;

C) Ordenar o cancelamento ou retificação da inscrição registal de aquisição a favor da R. Paradise Criterion. Lda, subjacente à Ap....02 de 2017/08/23 referente à fração autónoma identificada em B), ordenando, que seja eliminada a inscrição a favor da R., passando a constar do registo, apenas o A., como herdeiro de BB, e como titular da meação e quinhão hereditário de CC e do quinhão hereditário de DD ;

D) Ordenar à Administração Tributária, por ofício a expedir ao 2º Serviço de Finanças ..., que a titularidade da fração autónoma inscrita na matriz predial urbana sob o artº ...46..., da União de Freguesias ... ( ..., Nª ... e ... ), pertence exclusivamente, à herança de BB, representada pelo A., devendo, nessa conformidade, ser suprimida, na matriz, a identificação da R., como titular da fração;

E) Condenar a R. a restituir/entregar à herança representada pelo A., a fração identificada em B), livre e devoluta, no mesmo estado em que a mesma se encontrava quando a ocupou;

F) Condenar a R. a pagar, a título de prejuízos causados, a quantia de € 10.450,00 ( Dez Mil Quatrocentos e Cinquenta Euros ) referente ao valor da renda que, até á data, a herança representada pelo A. deixou de receber por se ver impedido de arrendar a fração, acrescido do montante devido até efetiva entrega da fração ( à razão de € 550,00 mensais ), com juros á taxa legal contados da data da citação;

G) Condenar a R. em liquidação de execução de sentença, a pagar ao A., na sua aludida qualidade, o valor correspondente aos prejuízos causados no interior da fração ( os quais, nesta data, o primeiro desconhece)[1];

H) Condenar a R. no pagamento das custas e demais encargos processuais.”.

Alegou, em síntese, que obteve ganho de causa na acção de preferência que intentou contra a Ré, tendo por via da mesma havido para si, pelo preço de €12.500,00, a meação e quinhões que pertenciam a CC e DD, referentes à herança indivisa por óbito de BB, composta pelo imóvel descrito no artigo 2.º da petição. A Ré recusou a entrega da chave do imóvel ao Autor que a solicitou por diversas vezes, sendo que, por esse motivo, ficou o mesmo privado de aceder aquele, nomeadamente de o arrendar, não podendo a herança beneficiar de um rendimento que se cifra em € 550/mês desde 19/10/2020 (data do trânsito em julgado do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 7199/17....).
Devidamente citada, veio a Ré deduzir contestação, alegando que o Autor não diligenciou no sentido de tomar posse do imóvel, designadamente efectuando o registo a seu favor.
Mercê de desistência e transacção devidamente homologadas por sentença relativamente aos pedidos formulados a) a e) e g) , a acção prosseguiu para apreciação do pedido formulado na alínea f).
Realizada audiência final veio, subsequentemente, a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, condenou “ a Ré a efectuar o pagamento ao Autor, a título de indemnização por privação de uso, do montante de € 7.600,00, ao qual deverá acrescer o montante mensal de € 400, desde Junho de 2022 até Janeiro de 2023, tudo acrescido de juros de mora à taxa de 4%, vencidos desde a data em trânsito em julgado desta sentença e vincendos até integral pagamento.”.

2. É desta sentença que, inconformada, recorre a Ré, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:

“1. Entendeu o tribunal a quo que “(…) o Autor alegou e provou que pretendia arrendar o imóvel, o que consiste em dar ao imóvel uma utilização relevante, ou seja, que dele pretendia retirar as utilidades (ou alguma delas) que normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dele privado pela actualização ilícita da Ré.

Assim, entendemos dever concluir-se no sentido do Autor ter direito a ser indemnização pela privação do uso da fracção ocupada”.

2. Não pode a Recorrente conformar-se com esta conclusão.

3. A mesma padece de nulidade, por extravasar o objecto do pedido – atento o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

4. O pedido formulado pelo Autor foi o seguinte:

“Condenar a R. a pagar, a título de prejuízos causados, a quantia de € 10.450,00 (Dez Mil Quatrocentos e Cinquenta Euros) referente ao valor da renda que, até à data, a herança representada pelo A. deixou de receber por se ver impedido de arrendar a fração, acrescido do montante devido até efetiva entrega da fração ( à razão de € 550,00 mensais ), com juros á taxa legal contados da data da citação.”

5. O Autor não peticiona uma indemnização pela privação de uso da fracção.

6. O Autor peticiona o valor das rendas que deixou de auferir – o Autor peticiona lucros cessantes.

7. Isto implicaria que o Autor demonstrasse que estava em condições de arrendar a fracção a terceiros – o que não fez.

8. Resulta dos autos – e deveria constar nos factos provados, mas não consta – que o Autor apenas passou a figurar como proprietário da fracção junto da Administração Tributária e do Registo Predial em Janeiro de 2023.

9. Em sede de audiência prévia, ocorrida a 25-01-2023, o Autor juntou aos autos certidão de registo predial e caderneta predial emitidas a 23-01-2023, demonstrando ter regularizado a titularidade do registo a seu favor apenas naquela data.

10. Em consequência, desistiu de parte do pedido e a Recorrente aceitou proceder à entrega da fracção.

11. O Autor peticionou o pagamento das rendas que estava impedido de receber.

12. Importa apurar se o Autor estava impedido de receber as rendas por culpa directa da Ré, aqui Recorrente.

13. Para celebrar um contrato de arrendamento, comunicar tal arrendamento à Autoridade Tributária, proceder ao pagamento do imposto de selo devido e emitir os competentes recibos de renda, o Autor teria, forçosamente, de constar como titular da propriedade na respectiva caderneta predial.

14. Tal só ocorreu em Janeiro de 2023 – não antes.

15. Independentemente da entrega da fracção, a titularidade da propriedade era e é condição essencial para a celebração de um contrato de arrendamento.

16. O Autor estava impedido de arrendar a fracção, mas não devido à actuação da Ré: estava impedido de arrendar a fracção porque não era o titular inscrito como proprietário da dita.

17. O pedido do Autor não é a indemnização pela privação de uso – ao contrário do que a sentença recorrida repetidamente refere.

18. O pedido do Autor são os lucros cessantes: as rendas que deixou de auferir.

19. A fracção não poderia ser arrendada pelo Autor antes de 23-01-2023: porque antes dessa data, a propriedade não estava inscrita a seu favor.

20. Concluiu o tribunal a quo que “(…) a partir daquela data (trânsito em julgado do acórdão que declarou procedente a acção de preferência), inexiste qualquer direito da Ré que lhe permita reter o imóvel até à efectivação do registo”.

21. Tal interpretação não pode colher.

22. Porque a presunção do registo perante terceiros implica para a Ré, ora Recorrente, consequências gravosas.

23. É ao titular do registo que a Administração Tributária imputa a responsabilidade pelo pagamento dos impostos devidos.

24. É ao titular do registo que os terceiros – incluindo o Condomínio do prédio – imputam a responsabilidade pelo pagamento das despesas associadas à propriedade da fracção.

25. Aliás, atente-se ao depoimento da testemunha EE, proprietária de uma das fracções vizinhas, que relatou ter contactado a Recorrente na sequência de infiltrações no prédio porque apurou ser aquela a proprietária da fracção.

26. Terá de assistir ao adquirente preferido (a ora Recorrente) um direito de retenção sobre a coisa para garantia de todas as responsabilidades que sobre si recaem.

27. Em situação similar, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão datado de 17-11-2015 (processo n.º 480/11.9TBMCN.P1.S1):

“I. O adquirente preferido goza do direito ao reembolso das benfeitorias que tenha realizado, nos termos do art. 1273º do Código Civil.

II. O valor das benfeitorias necessárias que o adquirente preferido realizou é calculado, tal como o das úteis, segundo as regras do enriquecimento sem causa, e não segundo as regras da responsabilidade civil.

III. O reconhecimento judicial do direito de preferência tem efeito retroativo ao momento da alienação, sendo o adquirente substituído pelo preferente com eficácia ex tunc.

IV. Embora o contrato de compra e venda celebrado entre o alienante e o adquirente produza a sua normal eficácia translativa, durante o período que medeia entre a celebração do contrato e a decisão proferida na ação de preferência o adquirente preferido detém também a qualidade de possuidor da coisa.

V. Nesta medida, o adquirente preferido goza do direito de retenção sobre a coisa para garantia do pagamento do valor das benfeitorias necessárias que nela realizou.”

28. Deveria o Autor demonstrar que estavam reunidas as condições para arrendar a fracção e daí obter dividendos – os lucros cessantes que peticiona nos autos.

29. Como supra já exposto, não demonstra o Autor ter reunido a condição essencial da titularidade da propriedade.

30. Não obstante, o imóvel também não reunia condições de habitabilidade que lhe permitisse entrar no mercado de arrendamento.

31. E isto resultou amplamente da prova realizada em julgamento.

32. Vejam-se as declarações de parte do Autor, onde, repetidamente, este indica que “a casa não está em condições” e que “ainda não arrendou porque está a fazer obras de recuperação”.

33. A testemunha FF, que conheceu a fracção na condição de consultora imobiliária, esclareceu que a mesma não reunia condições de habitabilidade e que não lograria arrendar a mesma no estado em que se encontrava.

34. A testemunha GG, consultor imobiliário contratado pelo Autor, quando confrontado com as fotografias do estado da fracção confirmou que a mesma se mantém naquele estado, começou por afirmar que “com os problemas existentes não arranja pessoas que queiram arrendar”.

35. Daqui resulta, claramente, que não existiram lucros cessantes para o Autor que justifiquem a condenação da Recorrente no pagamento de uma indemnização.

36. Importa, assim, uma melhor apreciação da prova.

37. Deveria ter-se dado como provado que:

a. A propriedade do imóvel só foi registada a favor do Autor a 23-01-2023;

b. Que, até à alteração do registo de propriedade, foi a Ré quem suportou as despesas associadas ao imóvel: impostos, condomínio, etc.;

c. Que o imóvel necessitava de obras de recuperação profundas para poder entrar no mercado de arrendamento.

38. Atenta a prova que deveria ter sido considerada, a sentença proferida deveria ter considerado improcedente a acção e, consequentemente, absolvido a Ré do pedido.

Nestes termos,

E nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso proceder, por provado, e, em consequência, ser revogada a sentença proferida, fazendo-se assim a Costumada JUSTIÇA!”.

3. Contra-alegou o Autor defendendo a manutenção do decidido.

4. OBJECTO DO RECURSO

No caso, como vimos, apela-se da sentença final da 1ª instância.
E apesar do vago inconformismo, no corpo das alegações, acerca do modo como foram valorados depoimentos testemunhais e da crítica superficial que é feita à fundamentação de facto, o certo é que a apelante não extrai quaisquer consequências disso, ou seja não coloca em crise a decisão da matéria de facto com observância das exigências impostas pelo artº 640º do Código de Processo Civil, maxime através da concretização dos “ concretos pontos de facto que julga incorrectamente julgados” (nº1 a) ) ; “ a decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas “( nº1 c), nem indica as passagens da gravação do depoimento da testemunha em que funda o seu recurso ( nº2 a).
Assim sendo, é evidente que o recurso não tem, nem pode ter, como objecto (também) a decisão da matéria de facto.
Pelo que o mesmo, face às conclusões enunciadas, se atém à apreciação das seguintes questões:
4.1. Se a sentença enferma de nulidade por excesso de pronúncia;
4.2. Se devem ser aditados aos factos provados os sugeridos pela apelante;
4.3. Reapreciação jurídica da causa: da (in) existência do direito à indemnização reclamado pelo Autor em consequência da não entrega atempada do imóvel pela Ré.

II. FUNDAMENTAÇÃO

5. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida:

“Estão provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1) Por escritura de “Cessão de Quinhão Hereditário e Meação”, outorgada no dia 23 de Agosto de 2017, no Cartório Notarial de Lisboa, do Notário HH, CC, pelo preço de € 10.000,00, cedeu à Ré, a meação e o quinhão hereditário que lhe pertencia na herança indivisa por óbito de seu marido BB.
2) Através da mesma escritura, DD, também cedeu à Ré, pelo preço de € 2.500,00, o quinhão hereditário que lhe pertencia por morte do seu pai, o referido BB.
3) O acervo hereditário é composto pela fracção autónoma correspondente ao ... do prédio sito na Rua ..., ..., em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artº ...46... e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...11 da aludida União de Freguesias e concelho.
4) Pela Ap....02 de 2017/08/23, encontra-se inscrita a aquisição sobre o referido imóvel a favor do Autor e da Ré, em comum e sem determinação de parte ou direito.
5) Após a escritura referida em 1), a Ré de forma não concretamente apurada substituiu a fechadura.
6) Em consequência o Autor ficou privado de aceder ao imóvel.
7) Através de acção judicial, que correu termos sob o n.º 7199/17...., que intentou em 06/10/2017, o Autor impugnou judicialmente a escritura de “Cessão de Quinhão Hereditário e Meação“, tendo vindo a ser proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora, que transitou em julgado em 19/10/2020, que decidiu: «1) Reconhecer ao autor AA, o direito a preferir na cessão dos quinhões hereditários de CC e de DD, e da meação da primeira, todos da herança aberta por morte de BB; 2) Reconhecer ao autor a haver para si, em substituição da Ré Paradise Criterion, Lda, e pelo preço de € 12.500,00, os quinhões hereditários de CC e de DD, e da meação da primeira, todos da herança aberta por morte de BB;».
8) O Autor remeteu à Ré, que recebeu, a seguinte missiva: “(…)”
9) Embora tenha recebido esta carta/interpelação, até ao dia 06/02/2023, a Ré, não entregou a fracção/imóvel ao Autor e não lhe disponibilizou as respetivas chaves.
10) O Autor esteve impedido de dispor da fracção, nomeadamente não a pôde arrendar, como era, e é, sua intenção.
11) E desse modo, não pôde, a herança beneficiar de um rendimento correspondente ao seu valor locativo.
12) Considerando a localização do imóvel, o seu estado e a sua tipologia, o valor médio da renda mensal para uma fração similar cifra-se em € 550,00/mês.
*
Factos não provados:
Não resultaram provados os seguintes factos:
a) A Ré arrombou a porta ou mandou arrombar.
b) Após a situação descrita em 5), a Ré recusou a entrega da nova chave ao Autor, que a pediu por diversas vezes”.

6. Do mérito do recurso

6.1. Da imputada nulidade da sentença por excesso de pronúncia

A nulidade por excesso de pronúncia prevista na alínea d) do nº1 do art.º 615º do CPC está directamente relacionada com a regra inserta no nº2 do art.º 608º da qual decorre que o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Isto significa que o juiz há-de ter em consideração o objecto da acção delimitado através do pedido e da causa de pedir expressos nos articulados.

Com efeito, a causa de pedir é o elemento que, com o pedido, identifica a pretensão da parte e que por isso ajuda a decidir da procedência desta[2].

No caso em apreço, o que se impunha ao juiz conhecer se o Autor ao ter ficado privado do imóvel, por a Ré não lho ter entregue, não pôde beneficiar de um rendimento correspondente ao seu valor locativo.

A circunstância de não ter empregado na formulação do pedido a expressão “privação do uso” – conquanto a tenha utilizado expressamente no articulado ( cfr. art.º 29ºda petição) - não tem qualquer relevância, já que, claramente, se depreende ser esse o escopo da pretensão que deduziu.

Efectivamente, nada impede, antes tudo aconselha, que se interprete o pedido formulado pelo Autor, como é, aliás, preconizado no Acórdão do STJ de 22.2.2007 relatado pelo Conselheiro Salvador da Costa que aí refere : “ Dada a sua relevância no âmbito do processo, deve ser expresso com clareza, isto é, de forma inteligível.

Mas se, porventura, a sua formulação suscitar alguma dúvida, deve o juiz proceder à sua interpretação, tendo em conta o expressado a título de causa de pedir e à luz dos princípios consignados nos artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, do Código Civil. “.

Uma vez que a sentença interpretou, e bem, a vontade do autor, a sentença não incorreu em excesso de pronúncia.

6.2. Se devem ser aditados aos factos provados os sugeridos pela apelante:

A apelante pretende que sejam aditados ao rol dos factos provados três factos, a saber: a. A propriedade do imóvel só foi registada a favor do Autor a 23-01-2023; b. Que, até à alteração do registo de propriedade, foi a Ré quem suportou as despesas associadas ao imóvel: impostos, condomínio, etc.; c. Que o imóvel necessitava de obras de recuperação profundas para poder entrar no mercado de arrendamento.

Não alicerça a sua pretensão em qualquer meio de prova, nem justifica a pertinência do seu aditamento.

É que só faz sentido aditar factos quando os mesmos revelem pertinência para o objecto da acção.

A data em que o imóvel ficou registado a favor do Autor não reveste qualquer interesse perante a procedência da acção de preferência que o opôs à ora apelante que, como se sabe, tem como resultado a substituição, com eficácia ex tunc, do adquirente pelo preferente.

Mas nem sequer a pretensão da apelante tem apoio na certidão do registo predial junta aos autos: a decisão judicial referida foi registada no sistema em 29.12.2022.

Os demais factos nem sequer foram alegados pela apelante na contestação, pelo que mercê do princípio da preclusão emergente do disposto no art.º 573º, nº2 conjugado com o art.º571º, nº2, ambos do CPC, em circunstância alguma poderiam ser considerados.

6.3. Reapreciação jurídica da causa: da (in) existência do direito à indemnização reclamado pelo Autor em consequência da não entrega atempada do imóvel pela Ré.

Como se viu, o Autor pediu que a Ré fosse condenada a pagar-lhe “a título de prejuízos causados, a quantia de € 10.450,00 ( Dez Mil Quatrocentos e Cinquenta Euros ) referente ao valor da renda que, até á data, a herança representada pelo A. deixou de receber por se ver impedido de arrendar a fração, acrescido do montante devido até efetiva entrega da fracção ( à razão de € 550,00 mensais ), com juros á taxa legal contados da data da citação”.

Computou tal prejuízo desde a data do trânsito em julgado do acórdão que lhe reconheceu o direito de preferência na aquisição dos quinhões hereditários.

“A declaração judicial de que o autor é o titular do direito (de preferência) não tem por efeito a constituição de um novo direito ou sequer a aquisição de um direito pré-existente, antes visa significar a substituição do adquirente pelo preferente no negócio jurídico realizado, tudo se passando juridicamente, após a substituição e pelo que respeita à titularidade do direito transmitido, como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com o preferente.

O efeito do exercício da preferência não é a aquisição de um ius in re, mas sim a aquisição da qualidade de parte ou sujeito de determinado contrato, por via do qual se adquire a posição real sobre a coisa alienada.”[3]

Isto significa que a partir do reconhecimento do direito de preferência no acórdão desta Relação, a apelante deixou de ter qualquer direito a manter em seu poder o imóvel que integrava a herança cujos quinhões havia adquirido, já que perdeu a qualidade de adquirente dos mesmos.

Não existindo qualquer fundamento para recusar a entrega do imóvel ao A., designadamente a partir da data em que o mesmo a interpelou para esse efeito, resulta ser ilícita a sua conduta.

E é de igual sorte danosa porquanto privou o Autor de a arrendar como era sua intenção e de auferir um determinado rendimento.

Aliás, como sido entendimento seguido em diversos arestos[4] a privação do uso de um bem decorrente de ocupação ilícita importa em regra na existência de um dano de que o lesado tem de ser compensado com recurso, se necessário, às regras da equidade.

Em suma: Esta ofensa ou violação de um direito alheio perpetrada pela Ré/apelante é geradora de responsabilidade extracontratual uma vez que se mostram preenchidos os pressupostos previstos no art.º 483º do Cód.Civil.

Donde, a decisão que reconheceu ao Autor o direito a uma indemnização por privação do uso do imóvel, indemnização essa correspondente ao seu valor locativo, reduzido com recurso à equidade, e à Ré consequente obrigação de a satisfazer, não merece qualquer censura.

III. DECISÃO

Por todo o exposto se acorda em julgar totalmente improcedente a apelação e em confirmar a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Évora, 23 de Maio de 2024

Maria João Sousa e Faro

Ana Pessoa

Manuel Bargado

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[1] O Autor veio a desistir deste pedido na audiência prévia.
[2] A. Varela, RLJ, Ano 121, pag. 147 e segs.
[3] Cfr. Henrique Mesquita, em Obrigações Reais e Ónus Reais, págs. 221/222.
[4] Cfr. Acórdão STJ de 28.1.2021( Rosa Tching)no qual se afirmou que : “Competindo ao lesado provar o dano da privação do uso, não é suficiente, para tanto, a prova da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efetiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela atuação ilícita do lesante.
Sendo o imóvel em questão um prédio urbano, será, assim, suficiente demonstrar que o mesmo se destinava a ser colocado no mercado de arrendamento, correspondendo, neste caso, a indemnização pela privação do uso ao seu valor locativo.”.