HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
RÉU
NULIDADE
Sumário


I. Havendo outros herdeiros da falecida Autora, para além do Réu X, para, em representação da mesma prosseguirem a acção, não há motivo para extinguir a instância;
II. Dada a posição que o seu herdeiro X assume no litígio – de réu e interveniente no negócio objecto do pedido de declaração da nulidade – o mesmo não está legitimado a ocupar o lugar da falecida Autora; verifica-se um impedimento a que seja habilitado como seu sucessor na relação jurídica em litígio.
III. Sendo a própria lei processual que admite que a qualidade de sucessor de uma das partes não seja necessariamente coincidente com a de herdeiro que acorreu ao chamamento e aceitou a herança, também é de admitir que ocorra um desvio à legitimidade no incidente de habilitação quando aquele ocupe “ab initio” na relação jurídica processual uma posição antagónica à da parte falecida.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


ACÓRDÃO

I. RELATÓRIO
1. AA, co-réu nos autos à margem identificados, nos quais figurava como Autora, entretanto falecida, BB, inconformado com a decisão proferida no incidente de habilitação de herdeiros, dela veio interpor recurso, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
A)- São incontestados e suportados em documentos autênticos os factos dados como provados na douta sentença recorrida; sendo que se impugna, sim, o seu errado entendimento de que parte dos herdeiros da falecida autora detenham legitimidade para prosseguir esta demanda em sua representação;
B)- A douta sentença recorrida é parca em razões de direito, dizendo apenas, que “ainda existirão outros herdeiros para assumirem a posição da falecida autora”, afigurando-se até passível de nulidade por falta de fundamentação, tanto que, perante uma herança indivisa, impõe genericamente a lei o exercício dos direitos por todos os herdeiros, tratando-se de um caso de litisconsórcio necessário activo e passivo, de acordo com o disposto no art. 2.091º do C. Civil e art. 33º do CPC;
C)- Assim sendo, os herdeiros não podem estar, ainda que parcialmente, em posições antagónicas na acção, como bem expende o douto Ac. do TR de Coimbra, aqui citado em 4;
D)- Constituem excepção à regra geral, apenas os casos previstos nos arts 2087.º a 2090.º e 2078.º, n.º 2, do Código Civil, em que o cabeça-de-casal pode assumir a qualidade de parte desacompanhado dos demais herdeiros, ou nos termos da acção possessória consagrada no art.º 2078.º, n.º 1, do Código Civil, para a qual qualquer herdeiro tem legitimidade activa.
E)- Daí que, em resposta à contestação do incidente os recorridos tenham invocado que reconhecendo embora a aplicação ao caso do disposto no art. 2.091º do C. Civil, se está na presença das excepções previstas no disposto nos arts. 2.088º e 2.089º do mesmo diploma
F)- Evidenciou o recorrente na sua contestação da acção que a falecida BB alegou que a presente Impugnação Pauliana se destina a garantir a cobrança de uma alegada indemnização por violência doméstica, sendo que, vem depois considerar em 30º e 33º da douta PI, que a doação aqui impugnada afinal se destina a frustrar a acção de revogação referida em 25º desse articulado, ou seja, a da primitiva doação, pelo que pede a declaração de nulidade do acto aqui em causa, sem bem se entender se se trata de uma ou das duas razões simultaneamente;
G)- Ora, Conforme bem ensina o douto Ac. STJ de 22/6/2023 in dgsi.pt: (…) A acção pauliana é uma acção de declaração de ineficácia dos actos em relação ao credor: não se visa declarar nulos os actos praticados em detrimento do devedor (que o não são), mas, apenas, atacá-los de forma a se tornarem ineficazes em relação ao credor e na medida do seu crédito (isto é, na medida em que diminuem a garantia patrimonial do crédito).
H)- Por isso, não cabe no processo da impugnação pauliana o pedido de declaração de nulidade do acto, porquanto o credor é sempre parte terceira em relação ao mesmo; na verdade, estes autos não têm a virtualidade de suprir a não oponibilidade ao recorrente dos factos dados como provados naquele processo-crime e, muito menos a sentença proferida no processo que reverteu a primitiva doação.
I)- Os pedidos da falecida A deduzidos na acção visando a declaração da invalidade substancial da doação aqui impugnada também não podem proceder na impugnação pauliana por erro na forma do processo (aplicação de um processo especial em detrimento de um ordinário) nem com base no
princípio do aproveitamento dos actos previstos no art. 193º do CPC; É que na impugnação pauliana vigoram normas de ónus da prova especiais previstas no art. 611º do Código Civil em contraste com as normas do processo comum previstas no art. 342º nº 1 do mesmo diploma.
J)- Acresce que, o disposto no art. 2.088º do Código Civil que os Requerentes da habilitação invocam refere-se a acções possessórias para entrega ao cabeça-de-casal de bens da herança sujeitos à sua administração, o que manifestamente não pode ser o propósito destes autos, pois que o prédio em questão não integra aqueles bens, já que está inscrito em nome do ora Réu.
K)- Quanto ao disposto no art. 2.089º do C. Civil que confere ao cabeça-de-casal o direito de cobrar dívidas activas da herança, sabemos já que pelos documentos juntos aos autos que o mesmo existe, tem fixado o valor de € 400,00 e que está em cobrança pelo cabeça-de-casal no processo nº 157/19.... do Juiz ... de ..., conforme documento agora junto, ou seja, na acção competente, posto que esta acção se não destina à sua cobrança e, por conseguinte, se não inscreve na invocada excepção;
L)- A impossibilidade superveniente da lide ocorre quando sobrevém uma circunstância na sua pendência que impede a manutenção da pretensão formulada, neste caso o óbito da Autora, sendo o Réu (um dos Réus) seu sucessor; quando tal ocorra, o caso é, sem mais, de extinção da instância principal, nos termos do disposto do art. 277º alínea e)- do citado diploma, decisão essa que deve ser proferida no âmbito do incidente por economia processual;
M)- Ao decidir em contrário a douta decisão violou o disposto nos arts. 2.091º do Código Civil e 33º do Código de Processo Civil, devendo como tal ser revogada.
Termos em que deve esta apelação ser julgada procedente e provada e por via dela declarada extinta a instância principal com todas as legais consequências.

2. Contra-alegaram os habilitados no lugar da falecida Autora defendendo a improcedência do recurso.

3. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se apenas à questão de saber se o falecimento da Autora determina a extinção da instância pelo simples motivo de o Réu, ora apelante, ser um dos seus herdeiros.

II- FUNDAMENTAÇÃO
4. É o seguinte o teor da decisão proferida neste conspecto pelo Tribunal “a quo”da qual emerge a factualidade a factualidade a atender na decisão do recurso:
“CC e DD, na qualidade de herdeiros da A. deduziram INCIDENTE DE HABILITAÇÃO DE HERDEIROS, por óbito da A. BB nos termos do disposto no art.º 351.º CPC contra os RR. na presente acção EE e AA.
Alegaram, para tanto, que BB faleceu, tendo-lhe sucedido como herdeiros os Requerentes, filho e neto da falecida A., e AA, Reu na presente acção, encontrando-se os herdeiros notarialmente habilitados e peticionando os Requerentes a sua habilitação como AA na presente acção.
Concluem pela procedência do incidente devendo os Requerentes ser habilitados como AA a fim de prosseguirem os ulteriores termos dos autos contra os ora RR.
*
Foi junta aos autos habilitação notarial de herdeiros de BB e foi cumprido o disposto no art.º 352.º CPC.

*
O Tribunal é competente.
O processo, que é o próprio, não enferma de nulidades de que cumpra conhecer.
Inexistem excepções dilatórias, questões prévias ou incidentais.
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Atenta a prova documental junta aos autos verifica-se que BB faleceu em ../../2022, no estado de viúva de FF, tendo deixado testamento outorgado no dia 30 de novembro de 2022 no Cartório Notarial ..., lavrado a folhas 65 do livro de notas para testamentos e escrituras de revogação de testamentos número 7, (ora junto aos autos) no qual institui herdeiro da sua quota disponível o seu neto DD, ora Requerente.
Mais resulta da documentação junta aos autos que sucederam à falecida como herdeiros legitimários os seus filhos:
a) CC, casado com ..., no regime da comunhão de adquiridos, ora Requerente; e
b) AA, casado com GG, no regime da comunhão de adquiridos, e Réu na presente acção.
Assim sendo, atendendo a que a presente acção de impugnação pauliana foi intentada pela falecida BB contra o seu filho AA e o seu neto EE, peticionando a nulidade da transmissão de propriedade do bem imóvel por simulação absoluta e a ineficácia em relação à A. do acto de doação entre os RR., terá a presente acção prosseguir com a habilitação dos Requerentes do incidente de habilitação, visto não poder o R. assumir na acção a qualidade de A e de Réu. Não existe, porém, fundamento para a extinção da acção por confusão da qualidade de A e R. na mesma pessoa, visto que existem outros herdeiros para além do R. na presente acção, mantendo este a qualidade de R..
*
Em face do exposto, julgam-se habilitados, a prosseguir os termos da demanda como AA. na qualidade de sucessores de BB os requerentes CC e DD.”

5. Do mérito do recurso
Entende o apelante que a instância deve ser extinta porque teriam de ser habilitados em representação da falecida Autora todos os seus herdeiros e não apenas aqueles que não lhe estavam em posição antagónica na acção.

Vejamos.

Como é consabido, o incidente de habilitação é um dos meios de modificar a instância quanto às pessoas, in casu pela morte de uma das partes, a então Autora BB (sucessão universal ).

Neste tipo de habilitação, o incidente tem por objecto a determinação de quem são os sucessores do falecido, relativamente ao direito em litígio.

Não basta que o habilitando seja herdeiro da parte falecida para que proceda o pedido de habilitação, posto ser indispensável a demonstração de que, segundo o direito substantivo, lhe sucedeu na relação jurídica em litígio.[1]

Por esse motivo, pode não coincidir a qualidade de herdeiro com a de sucessor na relação jurídica objecto do processo.

É, aliás, o que resulta do disposto no art.º 353º, nº 1 do CPC quando alude à “qualidade de herdeiro ou aquela que legitimar o habilitando para substituir a parte falecida”.

No caso, discute-se prioritariamente se a doação efectuada pelo Réu EE ao seu pai, o Réu AA, é nula por simulada.

Ambos foram demandados pela falecida Autora, respectivamente avó e mãe dos Réus.

Mas, para além do seu filho AA, a falecida Autora deixou um outro filho, CC, seu herdeiro legitimário, e um outro neto, DD, seu herdeiro testamentário.

Não há quaisquer dúvidas de que todos eles são herdeiros de BB pelo que, em princípio, todos eles deveriam ser habilitados, em substituição do falecida, para prosseguir, em seu lugar, a demanda.
Sucede, porém, como se viu, o apelante AA é igualmente Réu na presente acção.

É indiscutível, e isso o apelante reconhece, que não pode assumir simultaneamente a veste de (co) Autor e (co) Réu. E, por isso, defende a extinção da instância.

Porém, parece-nos evidente que que tal vicissitude não pode determinar a extinção[2] da instância (por impossibilidade) porque há outros herdeiros para, em representação da falecida, prosseguirem a acção e há também um outro réu, o Réu EE.

Para além disso, estamos em presença de um litisconsórcio necessário passivo já na presente acção se visa essencialmente a declaração de nulidade de um negócio em que para além do Réu EE interveio o apelante, impondo-se por isso a presença de ambos em juízo como Réus (art.º 33º, nº1 do CPC).

Porém, não é imperativo que a representação da falecida Autora nesta acção seja assegurada pela integralidade dos seus herdeiros; apenas que o seja por quem está legitimado a ser seu sucessor na relação jurídica em litígio.

Ora, dada a posição que o seu herdeiro AA assume no litígio – de réu e interveniente no negócio objecto do pedido de declaração da nulidade – cremos que não está legitimado a ocupar o lugar da falecida Autora; verifica-se um impedimento a que seja habilitado como seu sucessor na relação jurídica em litígio. Não obstante ser seu herdeiro…

Sendo a própria lei processual que admite que a qualidade de sucessor de uma das partes não seja necessariamente coincidente com a de herdeiro que acorreu ao chamamento e aceitou a herança, também é de admitir que ocorra um desvio à legitimidade no incidente de habilitação quando aquele ocupe “ab initio” na relação jurídica processual uma posição antagónica à da parte falecida.

E, por isso, a decisão que julgou apenas habilitados em lugar da Autora BB, o seu filho CC e o seu neto DD não merece qualquer censura.

III- DECISÃO

Por todo o exposto se acorda em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Évora, 23 de Maio de 2024
Maria João Sousa e Faro (relatora)
José António Moita
Francisco Xavier
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[1] Neste sentido, Ac. rel. Coimbra de 21.5.85 in CJ, T.3, pag.79.
[2] Como se afirmou no Acórdão do STJ de 17.11.2021 só ocorre inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide quando a extinção, por confusão, dos direitos e obrigações das partes atinja todos os litigantes.