RESPONSABILIDADE CIVIL
DIREITO DE REGRESSO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DO ÁLCOOL
DOCUMENTO AUTÊNTICO
Sumário


I - O relatório do exame de colheita de sangue ao recorrente foi elaborado pelo Responsável Técnico e da Qualidade do Serviço de Química e Toxicologia Forense, Delegação do Sul do Instituto de Medicina Legal, com competência para o efeito, pelo que recebe a qualificação de documento autêntico (arts. 363º, nº 2 e 369º, nº 1, do Código Civil).
II - Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo e essa força probatória só pode ser ilidida com base na sua falsidade (arts. 371º, nº 1 e 372º, nº 1, do mesmo Código).
III - A proibição do tratamento de dados pessoais relativos à saúde, prevista no nº 1 do art. 9º do RGPD, não se aplica quando se verificar o caso previsto no nº 2, al. f), do mesmo preceito: «[s]e o tratamento for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício da sua função jurisdicional».
IV - É esta a situação dos autos, em que está em causa o exercício do direito de regresso da autora, sendo que o acesso ao exame da taxa de álcool no sangue (TAS) sempre haveria de considerar-se incluído na permissão relativa ao exercício da função jurisdicional.
V - Estando afastada a hipótese de, no momento da ocorrência do acidente, o recorrente apresentar uma TAS inferior àquela que, três horas e nove minutos depois do acidente, registou, de 1,30g/l, e que resultou da análise de sangue efetuada, ainda que, não esteja apurado o exato valor da TAS que o arguido apresentava, deve ser considerada a taxa de 1,30g/l.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Proc. nº 2500/23.5T8FAR.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AIG Europe, S.A. - Sucursal em Portugal intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de € 568.990,70, acrescida de juros de mora vincendos, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Alega, em suma, que ao abrigo de contrato de seguro e na qualidade de seguradora satisfez determinadas quantias referentes a indemnização pelas lesões sofridas por sinistrados de acidente de viação, no qual interveio o réu, único culpado na sua produção, conduzindo com uma taxa de álcool no sangue de 1,30 gl, pelo que a autora vem exercer o seu direito de regresso ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 27.º do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto.
O réu contestou, invocando a prescrição do direito da autora, pelo decurso do prazo de três anos a que alude o art. 498º, nº 2, do Código Civil e a ilegitimidade da mesma por não provar a titularidade do veículo seguro, defendendo, no mais, que as caraterísticas do veículo conduzido pelo sinistrado contribuíram para um agravamento das consequências resultantes do acidente para o veículo e para os passageiros transportados, contribuindo ambos os veículos para a eclosão do sinistro.
A autora respondeu à matéria de exceção, pugnando pela sua improcedência e concluindo como na petição inicial.
Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade da autora, e relegou para final o conhecimento da exceção perentória da prescrição, com subsequente fixação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Procedeu-se a audiência final, tendo sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, e ao abrigo dos citados preceitos legais, o Tribunal decide:
- julgar improcedente, por não provada, a exceção perentória de prescrição do direito da autora;
- julgar a presente ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condenar o réu a pagar à autora a quantia de €568.301,91, acrescida de juros de mora, à taxa legal de juros civis, contados desde a data da citação até integral pagamento;
- absolver o réu do demais peticionado.»
Inconformado, apelou o réu, encerrando as respetivas alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«I. A douta sentença ao ter considerado admissível o recurso ao documento impugnado (de fls. 21vº), documento impugnado pelo ora Recorrente e sem que a Recorrida, nos termos do artº. 374, nº2 do Cod. Civil, não fez qualquer prova da veracidade de tal documento.
II. E mesmo, que assim não fosse, tal documento, por respeitar a elementos de saúde, está abrangido pelo Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), Regulamento (UE)2016/679, sendo considerado dado sensível ( especial ) – artº. 4º, al. 15), e logo sujeito a sigilo (artº 9º, nº 2) .
III. E, por mera questão hipotética, mesmo que ele fosse admitido o Tribunal a quo, não levou em consideração a margem de tolerância constante no documento.
IV. Assim, a Douta sentença violou o disposto no artº 5º e 607º nº 4 do CPC, tendo feito má aplicação do artº. 374, nº2 do Cód. Civil, devendo ser revogada.
Termos em que concedendo provimento ao recurso e alterando a douta decisão recorrida nos termos das presentes alegações,
Far-se-á a devida Justiça».

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- admissibilidade, como meio de prova, do exame toxicológico por colheita de sangue a que foi submetido o réu;
- se o resultado desse exame está a coberto de sigilo, nos termos do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD);
- se não foi tida em consideração a margem de tolerância constante desse exame.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1- A autora é uma sociedade que exerce a indústria de seguros, explorando o ramo de responsabilidade civil automóvel.
2- No exercício da sua atividade a autora celebrou com a Europcar Internacional- Aluguer de Automóveis, S.A. um acordo escrito, titulado pela apólice n.º ...01, mediante o qual garantiu até ao limite de €100.000.000,00 a responsabilidade civil dos condutores dos veículos da sua frota por eventuais danos causados a terceiros resultantes da circulação rodoviária de tais veículos (cf. doc. de fls.18, cujo teor se dá por reproduzido).
3- Na qual se incluía o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-XH-.. (cf. doc. de fls.96, cujo teor se dá por reproduzido).
4- No dia 28.10.2019, pelas 00h25m, ocorreu um embate na EN ...25, ao km 142,200, na faixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido .../..., União de Freguesias ... e ... de ..., concelho ..., distrito de Faro.
5- Em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-XH-.., conduzido pelo réu AA, e o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula XU-..-.., propriedade e conduzido por BB.
6- O tempo encontrava-se seco e o local correspondia a uma reta, com visibilidade, sem iluminação pública, com velocidade permitida no local de 90 km/hora.
7- O pavimento era betuminoso e encontrava-se em estado de conservação regular, seco e limpo, sem a presença de obras ou obstáculos.
8- O veículo XU circulava na EN ...25, na faixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido .../..., a velocidade não inferior a 86 km/hora.
9- O veículo XH circulava numa estrada perpendicular à EN ...25, constituída em terra batida, a qual dava acesso ao Hotel ....
10- O condutor do veículo XH pretendia ingressar na faixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido .../..., na qual circulava o veículo XU.
11- Na convergência do acesso dessa estrada de terra batida com a EN ...25 encontrava-se um sinal vertical de STOP (B2), o qual era visível para quem nela circulava.
12- O condutor do veículo XH não parou junto do sinal de Stop e ingressou na faixa de rodagem onde circulava o veículo XU de forma repentina, surgindo na frente deste.
13- Indo o veículo XU embater com a parte frontal na parte lateral esquerda do veículo XH.
14- Em consequência do embate os condutores do veículo XH e do veículo XU e as passageiras deste último, CC e DD, sofreram lesões corporais e foram assistidos no Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P.E..
15- O condutor do veículo XU sofreu politraumatismo, com fratura da coluna torácica com lesão medular, fratura supra e intercondiliana do fémur direito com extensão articular, fratura do manúbrio esterno e fratura do 1º ao 8º arcos costais direitos.
16- Na data de entrada e durante o internamento apresentava força conservada nos membros superiores (5 MRC), com diminuição da resistência e dificuldade na força explosiva, sem atividade muscular nos membros inferiores, exceto esboço de movimento nos flexores da coxo-femural e extensores do joelho bilateralmente, mas ainda inconsistente.
17- Quanto teve alta apresentava politraumatismo com fratura vertebral e lesão medular, mantendo Paraplegia ISNCSCI AIS B, nível neurológico T10, independência modificada bas AVD da metade superior, ajuda nas AVD da metade inferior, transferências com ajuda mínima para o mesmo nível com execução lenta das várias fases do procedimento e deambulação em cadeira de rodas conduzida pelo próprio.
18- Foi avaliado na Clínica da Avenida, em Faro, por um médico especialista em ortopedia, que concluiu:
a) Consolidação médico legal: 5 de agosto de 2020;
b) Défice Funcionário Temporário Total: 278 dias;
c) Repercussão Temporária na Atividade Profissional: 278 dias;
d) Quantum Doloris: 6/7;
e) Défice Funcional na Atividade Físico-psíquica: 75 pontos;
f) Dano Estético: 4/7;
g) Repercussão Permanente nas Atividades Profissionais: “absoluta, apesar de atividade informal”;
h) Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer: 5/7;
i) Necessidade Permanente de terceira pessoa: 5 horas por dia;
j) Danos futuros: Vigilância de medicina física e reabilitação de 3 em 3 meses, consoante o equilíbrio do doente;
k) Ajudas técnicas: cadeira de rodas, cama articulada, colchão antiescaras; almofadas antiescaras; cateteres de esvaziamento vesical, fraldas, elevador para as transições de aleitamento; necessidades de transporte a cuidados hospitalares em ambulância; necessidade de medicamentos conforme prescritos pela Medicina Física e Reabilitação.
19- No dia 04.02.2021 a autora pagou à Farortopedica- Centro Traumatologico Algarve, Lda., pelo relatório elaborado na avaliação, o montante de €500,00.
20- No dia 15.10.2020 a autora pagou ao condutor do veículo XU, pelas lesões sofridas, uma indemnização no valor de € 283.116,09.
21- CC sofreu traumatismo crânio encefálico, fratura Smith do punho direito, fratura da clavícula direita e fratura do navicular do pé direito alinhado e ficou internada até ao dia 20.11.2019, apresentando na data da alta dificuldades na marcha e incapacidade para autonomia das atividades básicas da via diária, com necessidade de realizar sessões de fisioterapia durante um mês.
22- Foi sujeita a avaliação na Clínica ..., em Faro, por um médico especialista em ortopedia, na qual se concluiu:
a) Consolidação médico legal: 17 de julho de 2020;
b) Défice Funcional temporário Permanente: 52 dias;
c) Défice Funcionário Temporário Parcial: 215 dias;
d) Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total: ausente;
e) Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial: ausente;
f) Quantum doloris: 5/7;
g) Necessidade temporária de Terceira Pessoa: 30 dias;
h) Défice Funcional Permanente da Integridade Físico Psíquica: 6 pontos;
i) Dano estético: 1/7;
j) Repercussão Permanente nas Atividades Profissionais: ausente;
k) Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer: ausente;
l) Necessidade Permanente de Terceira Pessoa: ausente;
m) Danos Futuros: necessidade de EMOS de placa do punho direito.
23- Em 23.01.2020 a autora pagou a CC, relativo a óculos e despesas com farmácia, o montante de €604,93.
24 -Em 19.02.2020 a autora pagou-lhe, relativo a reembolso de consulta de oftalmologia e conserto de prótese com impressão, o montante de € 100,00.
25- Em 08.09.2020 a autora pagou-lhe, a título de indemnização pelo dano corporal, o montante de €15.621,65.
26- DD sofreu fratura do úmero direito, esteve internada de 31.11.2019 a 15.12.2019, foi operada em 09.12.2019 com osteossíntese de fratura proximal do úmero com placa Philos longa, e realizou fisioterapia.
27- Foi sujeita a avaliação na Clínica ..., em Faro, por um médico especialista em ortopedia, na qual se concluiu:
a) Existir uma situação clínica estabilizada;
b) Consolidação médico legal: 7/9/2020;
c) Défice Funcional Temporário Total: 15 dias;
d) Défice Funcional temporário Parcial: 300 dias;
e) Repercussão Temporária na Atividade Profissional Absoluta: 315 dias;
f) Quantum doloris: 5/7;
g) Défice Funcional Permanente da Integridade Físico Psíquica: 10 pontos;
h) Repercussão Permanente nas Atividades Profissionais: Esforço acrescido;
i) Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer: 2/7;
j) Necessidade de terceira pessoa: ausente;
k) Danos Futuros: ausente.
28- Em 11.03.2020 a autora pagou-lhe, a título de despesas médicas e de deslocação, o montante de € 186,85.
29- Em 01.09.2020 a autora pagou-lhe, a título de indemnização pela Incapacidade Temporária Absoluta fixada entre 29.10.2019 e 10.08.2020, o montante de € 5.640,00.
30- Em 07.04.2021 a autora pagou-lhe, a título de indemnização pelas lesões, o montante de €9.263,00.
31- Em 13.07.2022 a autora pagou-lhe, a título de Indemnização Final e Definitiva pelos danos passados, presentes e futuros decorrentes do embate, o montante de € 80.000,00.
32- Em 28.09.2020 a autora pagou ao Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE, a título de despesas médicas com DD o montante de €2.562,97, e a título de despesas médicas com CC o montante de €7.147,55.
33- Em 26.05.2021 a autora pagou ao CHUA, EPE, a título de despesas médicas com DD o montante de €88,80 e a título de despesas médicas com BB o montante de €31.374,82.
34- Em 08.09.2022 a autora pagou ao CHUA, EPE, a título de despesas médicas com BB, o montante de €84.048,00
35- Em 24.07.2020 a autora pagou à empresa P... Unipessoal, Lda., a título de alteração e remodelação de moradia e zonas envolventes da habitação de BB, o montante de €7.343,10.
36- E em 28.09.2020 a autora pagou-lhe o montante de €14.686,20 e em 02.11.2020 o montante de €7.343,10 relativo a esses trabalhos.
37- Em 28.10.2020 a autora pagou à T... Unipessoal, Lda., pela aquisição de diverso material de apoio técnico destinado a BB, o montante de €12.273,42.
38- Em 10.06.2020 a autora pagou à Trueclinic o montante de €43,05 e de €232,12; em 24.06.2020 pagou o montante de €488,40; em 10.02.2021 pagou o montante de €275,00 e em 16.03.2021 pagou o montante de €350,00, relativos a tratamentos e outras despesas com DD.
39- Em 23.02.2021 a autora pagou à F..., Lda., relativo ao relatório de avaliação de CC, o montante de €230,00 e em 21.10.2021, relativo ao relatório de avaliação de DD, o montante de €290,00.
40- Em 24.09.2020 a autora pagou à Rts Internacional Loss Adjusters, o relativo a serviços de averiguação do embate, o montante de €3.971,33.
41- Do embate resultaram estragos no veículo XU, o qual foi objeto de peritagem realizada no dia 08.11.2019, apurando-se que ficou impossibilitado de circular, tendo sido considerado numa situação de perda total.
42- Em 21.05.2020 a autora pagou à SGS, pela peritagem efetuada ao veículo XU, o montante de €62,73.
43-E em 16.10.2020 a autora pagou-lhe, pelas demais diligências efetuadas no âmbito da averiguação do embate, o montante de €147,60.
44- Com o embate o veículo XH foi projetado para um terreno contíguo à EN ...25, propriedade de EE, delimitado por uma vedação constituída por postes de madeira e rede, a qual ficou parcialmente destruída, numa extensão de 33 metros.
45- Em 06.07.2020 a autora pagou a EE, a título de indemnização pelos danos na vedação, o montante de € 400,00.
46- Pelas 03h34m do dia 28.10.2019 foi realizada colheita de sangue ao condutor do veículo XH.
47-Após realizado exame dessa colheita de sangue pelo Serviço de Química e Toxicologia Forense da delegação do Sul do Instituto de Medicina Legal, apurou-se que o condutor do veículo XH apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,30 g/l.
48- A taxa de álcool no sangue interferiu nos reflexos e capacidades de condução do condutor do veículo XH, levando a que não tivesse imobilizado o veículo que conduzia ou cedido passagem ao veículo XU e ingressado na faixa de rodagem na qual este circulava.

E foram considerados não provados os seguintes factos:
a) o veículo XH embateu na parte frontal do veículo XU;
b) o sinal Stop só era visível, no sentido de deslocação do veículo XH, após descrição de uma curva;
c) a autora pagou a BB, a título de indemnização pela perda total do veículo XU, o montante de €550,00;
d) a ausência de air-bags, sistema de ABS ou anti-bloqueio de travagem do veículo XU contribuiu para o agravamento das consequências do embate.

O DIREITO
Questão prévia (impugnação da matéria de facto)
Analisando as conclusões do recurso acima transcritas, facilmente se vê que o recorrente não cumpriu os ónus previstos no art. 640ºdo CPC, desde logo porque aí não constam nenhum facto impugnado.
Seja como for, no corpo das alegações verificamos que o recorrente põe em crise os pontos 46 a 48 dos factos provados, referentes à colheita de sangue ao condutor do veículo XH (o réu/recorrente), à taxa de álcool no sangue e à interferência desta nos reflexos e capacidade de condução do réu, factos estes que, segundo a recorrente deveriam ter sido considerados não provados.
Uma vez que tais factos estão claramente conexionados com as questões a decidir no recurso, não vemos razões para que a inobservância, por parte do recorrente, dos aludidos ónus, determine a imediata rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto no respeitante a tais factos, a qual, por isso, será apreciada no âmbito das questões decidendas.

Da admissibilidade, como meio de prova, do exame toxicológico por colheita de sangue a que foi submetido o réu
Sustenta o recorrente na conclusão I, que tendo impugnado o documento de fls. 21 vº[1], caberia à autora recorrida fazer prova da sua veracidade, nos termos do art. 374º, nº 2, do Código Civil, o que não fez.
O exame de pesquisa de álcool encontra-se minuciosamente previsto e regulado por lei, nos artigos 152.º, n.º 1, a), 153.º e 156.º do Código da Estrada e no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/2007, de 17 de maio), de onde decorre a obrigatoriedade da fiscalização para os condutores, os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito, e as pessoas que se propuserem iniciar a condução. Cominando inclusive a lei, com o crime de desobediência, a recusa de submissão às provas estabelecidas na lei para a deteção de álcool, por parte das pessoas que integram os dois primeiros grupos e com o impedimento de iniciarem a condução no caso das últimas.
A fiscalização da condução sob influência de álcool destina-se à recolha de uma prova rapidamente perecível e por isso de natureza urgente, que assegure o fim da descoberta da verdade no processo penal, bem como, ainda, a salvaguardar bens fundamentais, ao impedir que um condutor influenciado pelo álcool persista numa condução suscetível de fazer perigar a sua vida e integridade física, assim como as dos demais utentes da estrada.
O exame de sangue é a via excecional para a recolha de prova admitida na lei para tal efeito, apenas admissível em casos expressamente tipificados, designadamente quando o estado de saúde não permite o exame por ar expirado ou esse exame não for possível (cfr. arts. 153º, nº 8 e 156º, nº 2, do Código da Estrada).
A questão colocada pelo recorrente circunscreve-se ao valor probatório do relatório do exame toxicológico por colheita de sangue, uma vez que o mesmo não põe em causa que tal exame tenha sido realizado sem o seu consentimento, ou que não se tenha provado a excecionalidade que pudesse justificar o afastamento da determinação da TAS através do método de pesquisa no ar expirado.
E, acrescentamos nós, não o podia fazer, considerando os vários elementos constantes dos autos, nomeadamente o “Auto de Participação de Acidente de Viação”, donde resulta que o recorrente não foi submetido ao teste de álcool pelo ar expirado por ter ficado ferido e sido conduzido às Urgências da Unidade de Faro do Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE, pelo que não pode deixar de ter-se por verificada a previsão do nº 2 do art. 156º do Código da Estrada, justificadora da colheita de amostra de sangue ao recorrente, para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, através da qual se apurou ser ele portadora de uma taxa de 1,30 g/l de álcool no sangue.
Ora, no que concerne ao relatório do exame de colheita de sangue dos autos, o mesmo foi elaborado pelo Responsável Técnico e da Qualidade do Serviço de Química e Toxicologia Forense, Delegação do Sul do Instituto de Medicina Legal, com competência para o efeito, pelo que recebe a qualificação de documento autêntico (arts. 363º, nº 2 e 369º, nº 1, do Código Civil).
Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo e essa força probatória só pode ser ilidida com base na sua falsidade (arts. 371º, nº 1 e 372º, nº 1, do mesmo Código).
Ora, em momento algum o recorrente suscitou a falsidade de tal documento, tendo-se limitado, na contestação, a impugnar tal documento “por ser prova ilegal”, o que, como vimos, não corresponde à verdade.
Assim, tratando-se de um documento autêntico, cuja falsidade não foi invocada, ele está subtraído à livre apreciação do tribunal, antes integrando o domínio da prova vinculada, nos termos dos dois últimos preceitos citados.
Consequentemente, tem de se considerar assente a factualidade dada como provada nos pontos 46 e 47, isto é, que pelas 03 horas e 34 minutos do dia 28.10.2019 foi realizada colheita de sangue ao ora recorrente, e que após realizado o exame dessa colheita de sangue pelo Serviço de Química e Toxicologia Forense da delegação do Sul do Instituto de Medicina Legal, apurou-se que o recorrente, condutor do veículo XH, apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,30 g/l.

O caráter sigiloso do exame à luz do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados
Defende o recorrente, na conclusão II, que o documento em causa, ou seja, o relatório do exame de colheita de sangue, por respeitar a elementos de saúde, está abrangido pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados, «sendo considerado dado sensível (especial) - artº. 4º, al. 15), e logo sujeito a sigilo (artº 9º, nº 2)».
Vejamos.
A temática da proteção de dados pessoais tem determinado, nos últimos tempos, destacado interesse a que não se alhearam o legislador nacional e comunitário.
Assim, a nível europeu, foi aprovado o Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016[2], que veio estabelecer “as regras relativas à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados”, visando defender “os direitos e as liberdades fundamentais das pessoas singulares, nomeadamente o seu direito à proteção dos dados pessoais” (cfr. art. 1º, n.ºs 1 e 2).
Por “dados pessoais” entende-se a “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular” (cfr. art. 4º, n.º 1, do RGPD).
Escreveu-se na sentença recorrida:
«(…), pese embora o Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, preveja no art.º 4.º, al.15 que se trata de um dado relativo à saúde (porquanto relacionado com a saúde física o réu, revelando informação sobre o seu estado de saúde em determinado momento), nos termos do art.º 9.º, al. f), o respetivo tratamento será possível se for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício da suas função jurisdicional.
No caso, entendemos que se verifica a referida exceção, na medida em que, face à legislação aplicável e que fundamenta o pedido formulado pela autora, será necessário fazer prova do exercício da condução com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida.
Donde, no caso em apreço, funcionará essa derrogação ao dever de sigilo, na medida em que o acesso e o tratamento do referido exame toxicológico destinam-se ao exercício do direito de regresso da autora, podendo para esse efeito ser utilizado pelo Tribunal - factos vertidos nos pontos 46 e 47.»
Afigura-se inteiramente correto este entendimento:
Com efeito, a proibição do tratamento de dados pessoais relativos à saúde, prevista no nº 1 do art. 9º do RGPD, não se aplica quando se verificar o caso previsto no nº 2, al. f), do mesmo preceito: «[s]e o tratamento for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício da sua função jurisdicional».
É justamente a situação dos autos, pois como bem se diz na sentença recorrida, o acesso e o tratamento do referido exame toxicológico destinam-se ao exercício do direito de regresso da autora, que tem o devido acolhimento na lei, sendo que o acesso ao exame da taxa de álcool no sangue (TAS) sempre haveria de considerar-se incluído na permissão relativa ao exercício da função jurisdicional.
Improcede também este segmento recursório.

Da margem de tolerância da TAS constante do exame
Por último, sustenta o recorrente que o Tribunal a quo não levou em consideração a margem de tolerância constante no relatório do exame em causa.
Decorre dos factos provados que o acidente de viação em que o recorrente foi interveniente ocorreu pelas 00h:25m, do dia 28.10.2019 e foi efetuada colheita de sangue ao recorrente com vista à realização de teste de pesquisa de álcool no sangue, pelas 03h:34m desse mesmo dia, no Centro Hospitalar do Algarve, EPE, sendo o resultado desse exame de 1,30 g/l.
Relativamente ao momento temporal em que deve ser feita a recolha de sangue, com vista à realização de análise para a deteção e quantificação de álcool no sangue, dispõe o artigo 5º, n.º 1, da Lei nº 18/2007, de 17 de maio - Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas - que «[a] colheita de sangue é efetuada no mais curto prazo possível, após o ato de fiscalização ou a ocorrência do acidente».
A lei não estabelece qualquer limite temporal, para a colheita de sangue, com a descrita finalidade, preceituando apenas que «é efetuada no mais curto prazo possível».
E quando o método de pesquisa e de quantificação de álcool no sangue usado, for a análise sanguínea, o valor da taxa de álcool no sangue (TAS), por esse meio apurado, é fidedigno, não havendo, nessa situação que deduzir o erro máximo admissível (EMA). A dedução desse erro apenas se impõe, quando o método de quantificação da TAS utilizado, tiver sido o do ar expirado e relativamente aos valores verificados nos alcoolímetros, conforme decorre da Portaria n.º 1556/2007, de 19 de dezembro[3].
De acordo com estudos científicos realizados neste domínio, o pico máximo da TAS é, por norma, atingido cerca de 1 hora após a ingestão das bebidas alcoólicas, tendendo a partir daí a haver a diminuição da TAS (o mesmo é dizer a eliminação do álcool pelo organismo), a qual, embora seja variável de pessoa para pessoa – estando dependente da velocidade de degradação do álcool no fígado e das caraterísticas de cada individuo[4] -, é, em média, 0,10 g/l de álcool no sangue, por hora[5].
In casu, no que se refere ao tempo que mediou entre a ocorrência do acidente e a colheita de sangue verificamos que o acidente teve lugar pelas 00h25m e que a colheita de sangue foi obtida pelas 03h34m, ou seja, entre uma situação e outra decorreram três horas e nove minutos, sendo que nessa altura, como decorre do que acima se deixou dito, o organismo do recorrente já havia eliminado parte do álcool ingerido, forçoso será concluir que o valor da TAS que o mesmo apresentava, quando foi feita a colheita de sangue, é inferior à que apresentava no momento em que ocorreu o acidente.
Nesta conformidade, estando afastada a hipótese de, no momento da ocorrência do acidente, o recorrente apresentar uma TAS inferior àquela que, três horas e nove minutos depois do acidente, registou, de 1,30g/l, e que resultou da análise de sangue efetuada, ainda que, não esteja apurado o exato valor da TAS[6] que o recorrente apresentava, deve ser considerada a taxa de 1,30g/l.
Não existe, assim, qualquer fundamento válido, para que, ao Tribunal a quo se suscitasse a dúvida do recorrente, relativa ao valor da TAS que o mesmo apresentava, no momento em que, exercendo a condução de veículo automóvel se deu o acidente, poder ser inferior a 1,30 g/l.
E, sendo assim, como efetivamente é, mostra-se absolutamente correta a consideração como provada da facticidade constante do ponto 48: «[a] taxa de álcool no sangue interferiu nos reflexos e capacidades de condução do condutor do veículo XH, levando a que não tivesse imobilizado o veículo que conduzia ou cedido passagem ao veículo XU e ingressado na faixa de rodagem na qual este circulava».
Escreveu-se com total acerto na sentença recorrida:
«(…), resulta indubitável, segundo saber científico, que a TAS de que o réu era portador quando exercia a condução era suscetível de lhe diminuir o campo de visão, a perceção das distâncias, dos obstáculos e o tempo de reação (o citado estudo de Stoppard M. (2000), “A Verdade Acerca das Drogas: Desde o álcool e o tabaco até ao ecstasy e à heroína”, Lisboa: Civilização Editora).
Também segundo o saber científico a probabilidade de ocorrência de acidente duplica para uma taxa de 0.5 g/l, quintuplica para uma taxa de 0.8 g/l e é vinte vezes maior para taxas acima de 1.2 g/l (Silva Moura e Pereira da Silva, “Álcool e Acidentalidade”, Revista “O Médico”, 1984, n.º 5, p. 1688-1689).
Do que fica dito resulta que, em face da TAS de que o réu era portador (superior a 1,30 g/l) a probabilidade de o mesmo ter um acidente associado à ingestão de álcool é superior 20 vezes. A probabilidade da perda de controlo, o despiste e o embate ocorridos, podem, pois, ser associados, com elevada probabilidade à influência da TAS com que o réu conduzia, sendo de afastar, como causa provável do acidente, qualquer outra circunstância, mormente as condições do veículo que lhe embateu.
Ou seja, a causa mais provável que pode justificar a ocorrência do acidente é a TAS com que o réu conduzia, conjugada com a desatenção e falta de cuidado que imprimia na condução.
Dizemos mais provável porque não é possível - sejamos realistas - a demonstração direta do nexo causal entre a condução sob influência do álcool e o resultado danoso provocado pelo condutor alcoolizado, em casos do tipo em consideração.
Mas tal impossibilidade não pode conduzir, sem mais, à não prova do nexo causal, porque isso equivaleria à completa desresponsabilização de quem conduz sobre a influência de uma TAS proibida.
Numa área considerada de prova diabólica, a cuja dificuldade de demonstração direta o julgador não pode ser indiferente, o coeficiente de exigência probatória material tem que ser contido nos limites do razoável das circunstâncias concretas, do concreto tipo de nexo causal, onde as presunções judiciais, as regras da experiência científica, comum e da vida não podem deixar de ter uma intervenção significativa.
Assim sendo, sempre que se conclua, com um elevado grau de probabilidade, que o resultado se ficou a dever a determinada causa, fica afastada a dúvida razoável.
No caso concreto, esse elevado grau de probabilidade retira-se das referidas regras da experiência científica e comum.»
Por conseguinte, o recurso improcede, não se mostrando violadas as normas invocadas ou quaisquer outras.
Vencido no recurso, caberia ao réu/recorrente o pagamento das custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC), beneficiando o mesmo, porém, de apoio judiciário.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.

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Évora, 6 de junho de 2024
Manuel Bargado (Relator)
Mário Branco Coelho
José António Moita
(documento com assinaturas eletrónicas)
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[1] Trata-se do “Relatório Final” da “Delegação do Sul – Serviço de Química e Toxicologia Forenses” do Instituto de Medicina Legal.
[2] Doravante RGPD
[3] Cfr. Acórdão desta Relação de Évora de 27.09.2022, proc. 142/17.3GTSTB.E1, in www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto.
[4] Cfr. Sónia Maria Marques Teixeira Mendonça Gouveia, Avaliação de efeitos do álcool no tempo de reacção, FEUP 2010, pág. 11, acessível in https://repositorio-aberto.up.pt.
[5] Cfr. Álcool Verdades e Mitos, Ministério da Saúde, disponível in https://ucccb.pt/wp. Assim decidiram, inter alia, os acórdãos desta Relação de 24.01.2017, proc. 340/14.1GBPSR.E1 e de 23.03.2021, proc. 22/20.5GCLGS.E1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] Consta do relatório do exame de sangue ao recorrente “1,30 +/- 0,17 g/l”