RESOLUÇÃO DO ARRENDAMENTO
FIADOR
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Sumário


I – A violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma.
II – A ação na qual a autora (senhoria) pede que o réu (fiador) seja condenado a pagar as rendas devidas, após a resolução do contrato de arrendamento e subsequente despejo dos arrendatários, não depende da qualidade de proprietário do senhorio, porque não é um direito real, mas um direito obrigacional, que nasce por força do contrato de arrendamento celebrado entre as partes.
III - Aquele direito gerou-se na esfera patrimonial da autora, visto ter sido ela que celebrou o contrato de arrendamento, em nome próprio, como única senhoria, tendo por isso o direito de exigir do réu, fiador, o respetivo pagamento, assistindo-lhe por isso legitimidade substantiva para instaurar a presente ação.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Proc. nº 1811/22.1T8LLE.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra BB, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 19.424,36 a título de rendas devidas e não pagas desde o mês de setembro de 2018 até setembro de 2021, inclusive, à razão de € 550,00 mensais, bem como nos juros de mora vencidos e vincendos.
Alega, em síntese, que por contrato escrito datado de 1 de Abril de 2014 e destinado a vigorar a partir daquela data, deu de arrendamento o ... andar do imóvel urbano inscrito no artigo ...87 da freguesia ..., concelho ... a CC e marido DD, contrato no qual o réu outorgou como fiador e principal pagador, assumindo solidariamente com os locatários o cumprimento do contrato.
Não tendo os arrendatários pago as rendas referentes ao mês de setembro de 2018 nem as que se venceram nos meses subsequentes, e sem que tenham posto fim à mora, após notificação judicial avulsa, produziu-se a resolução do contrato de arrendamento, tendo a autora requerido a desocupação do locado e o pagamento das rendas vencidas e não pagas junto do Balcão Nacional de Arrendamento, sendo-lhe o imóvel entregue em setembro de 2021, e foram pagas rendas apenas no valor de € 2.750,00.
O réu contestou, invocando a sua ilegitimidade por estar desacompanhado do cônjuge, EE, com quem é casado no regime da comunhão de adquiridos, mais invocando a falta de um pressuposto processual por não ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 1041º, nº 5, do Cód. Civil, que no seu entender consubstancia uma exceção dilatória inominada.
No demais, e no essencial, defende-se por impugnação, tendo ainda deduzido reconvenção, pedindo a condenação da autora no pagamento de uma indemnização no valor de € 5.000,00 a título de danos morais, pelo estado de irritação, angústia e indignação por a autora o ter mantido na ignorância quanto à situação de falta de pagamento de rendas por parte dos locatários, e bem assim por danos patrimoniais pelo pagamento de taxa de justiça e honorários de advogado no valor de € 1.408,00.
A autora replicou, pugnando pela improcedência das exceções e da reconvenção, tendo ainda requerido a intervenção principal provocada do cônjuge do réu, a qual foi admitida.
Por entender que que o estado dos autos permitia conhecer “definitivamente da causa”, a Sr. Juíza a quo proferiu despacho saneador-sentença no qual decidiu julgar «procedente a excepção peremptória em causa, determinando-se a absolvição do réu do pedido».
Para assim decidir considerou a Sr.ª Juíza, em suma, que «apesar da autora ser dotada de legitimidade activa, do ponto de vista processual, o mesmo já não acontece do ponto de vista da legitimidade substantiva, dada a manifesta falta de direito que pretende fazer valer e a manifesta inviabilidade da sua pretensão, uma vez que, resulta dos factos provados, que o direito ao recebimento das rendas peticionadas não se gerou na esfera jurídica patrimonial da autora, não tendo aquela legitimidade, para em nome próprio, como o fez, peticionar o seu pagamento.»
Inconformada, a autora apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«UM: O douto Tribunal a quo, na sua decisão relativa à matéria de facto, não faz qualquer referência aos factos alegados em sede de Petição Inicial quanto à instauração do procedimento especial de despejo, pela Autora, aqui Recorrente, e quanto ao despejo dos arrendatários, factos esses que estão provados por prova documental (Vide Documentos nºs 2, 3 e 4 juntos com a Petição Inicial.
DOIS: Os factos relativos à resolução do contrato de arrendamento e ao despejo do imóvel arrendado são extremamente relevantes para a boa decisão da causa.
TRÊS: A qualidade de senhoria fundamenta a legitimidade substantiva da Autora, como se referirá infra, em sede de matéria de direito, pelo que todos os factos relacionados com a sua actuação como senhoria, quer no que se reporta à outorga do contrato de arrendamento (facto julgado como provado nº 1), quer no que se reporta à resolução do contrato e consequente despejo (não mencionados pelo douto Tribunal a quo) são essenciais para a boa decisão da causa.
QUATRO: Deverão ser aditados ao elenco dos factos julgados como provados os seguintes factos:
14 – Devido à falta de pagamento das rendas por parte dos arrendatários CC e cônjuge DD, a Autora notificou estes últimos através de Notificação Judicial Avulsa datada de 23 de Dezembro de 2018, para procederem ao pagamento das rendas em dívida no prazo de 30 dias, sob pena de operar a resolução do contrato de arrendamento.
15 – Uma vez que os arrendatários não procederam ao pagamento das rendas em dívida após a Notificação Judicial Avulsa referida em 14., a Autora considerou o contrato de arrendamento resolvido e requereu a desocupação do locado e o pagamento das rendas em dívida, junto do Balcão Nacional de Arrendamento, o que deu origem ao processo nº 500/19.....
CINCO: O Réu, em sede de requerimento datado de 23 de Outubro de 2023, invocou a excepção dilatória de ilegitimidade processual da Autora e requereu a sua absolvição da instância.
SEIS: O facto de uma das partes ter invocado a ilegitimidade processual não significa que o douto Tribunal a quo pudesse ter decidido relativamente a uma questão de legitimidade substantiva, dado que se trata de questões completamente diferentes, e que têm consequências completamente distintas (a excepção de ilegitimidade processual é uma excepção dilatória, dando lugar à absolvição da instância, e a excepção de ilegitimidade substantiva é uma excepção peremptória, dando lugar à absolvição do pedido).
SETE: Não obstante a excepção peremptória de ilegitimidade substantiva da Autora ser de conhecimento oficioso, caberia ao douto Tribunal a quo ter notificado previamente as partes para se pronunciarem sobre essa matéria, antes de tomar qualquer decisão, o que não fez.
OITO: A decisão do douto Tribunal a quo violou o princípio do contraditório, o que resulta na sua nulidade por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, pelo que deverá a sentença recorrida ser julgada nula, devendo ser assegurado o exercício do contraditório.
NOVE: O douto Tribunal a quo decidiu incorrectamente, ao julgar procedente a excepção peremptória de ilegitimidade substantiva da Autora, pois não considerou a qualidade de senhoria da Autora.
DEZ: A Autora celebrou o contrato de arrendamento como única senhoria e não como cabeça-de-casal da herança aberta por óbito FF, não existindo, aliás, qualquer referência no contrato de arrendamento à mencionada herança.
ONZE: A presente acção tem carácter meramente pessoal, porque se funda numa relação obrigacional, e tem por objecto a exigência, pela Autora, do pagamento das rendas devidas ao abrigo do contrato celebrado e que não foram pagas pelos arrendatários, sendo, por esse motivo, agora exigidas ao fiador, aqui Réu.
DOZE: A legitimidade substantiva para julgar procedente a presente acção não depende da qualidade de proprietária da Autora (ou de esta alegar a qualidade de cabeça-de-casal da herança indivisa), mas da sua qualidade de “senhoria”, pois o que está em causa na presente acção é a condenação do Réu, fiador e, portanto, parte no contrato de arrendamento celebrado com a Autora, no pagamento das rendas em dívida.
TREZE: O direito ao recebimento das rendas peticionadas não depende da qualidade de proprietário do senhorio, porque não é um direito real, mas um direito obrigacional, que se gera por força do contrato de arrendamento celebrado entre as partes.
CATORZE: O direito ao recebimento das rendas peticionadas gerou-se na esfera jurídica patrimonial da Autora, porquanto foi esta quem celebrou o contrato de arrendamento, em nome próprio, como única senhoria, tendo esta o direito de exigir do Réu, fiador, e, portanto, parte no mesmo contrato de arrendamento, as rendas vencidas e não pagas, e, consequentemente, tendo a Autora legitimidade substantiva para intentar a presente acção.
QUINZE: Não obstante a Autora não ter mencionado, em sede de Petição Inicial, ser cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de FF e cônjuge meeira, ainda assim, a Autora tinha essas qualidades, as quais estão provadas, conforme resulta dos factos julgados como provados nºs 11 e 12.
DEZASSEIS: Sendo a locação um acto de administração ordinária, e, portanto, sendo permitido à cabeça-de-casal a celebração de contratos de arrendamento, também terá de ser permitido à cabeça- de-casal cobrar as rendas devidas no âmbito dos contratos de arrendamento celebrados, independentemente de a cobrança de dívidas poder ou não perigar com a demora.
DEZASSETE: A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 9º, nºs 1 e 3, 1024º, nº 1, 2079º e 2092º do Código Civil, e nos artigos 3º, nº 3, 261º, 316º, e 615º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Civil.
DEZOITO: A herança indivisa não goza de personalidade judiciária, pelo que, independentemente de a Autora ter (ou não) mencionado a sua qualidade de cabeça-de-casal, seria sempre a Autora, quem, tendo a qualidade de cabeça-de-casal, administra a herança, celebra e cessa contratos de arrendamento, e cobra as rendas em dívida, pelo que seria igualmente a Autora quem poderia intentar a presente acção e pedir a condenação do Réu no pagamento das rendas devidas e não pagas.
DEZANOVE: Caso se entenda que as rendas devidas e não pagas são um crédito da herança, o que não se concede, tal não poderá obstar à legitimidade (quer substantiva, quer processual) da Autora, pois é esta quem tem legitimidade para as cobrar.
VINTE: O facto de a Autora, aqui Recorrente, não ter invocado a sua qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de FF não lhe retira essa qualidade, a qual está provada nos autos.
VINTE E UM: Nunca poderia o douto Tribunal a quo ter decidido que o direito às rendas peticionadas não se gerou na esfera jurídica patrimonial da Autora, uma vez que esta é herdeira da herança aberta por óbito de FF e cônjuge meeira, pelo que teria sempre direito à sua quota-parte dos rendimentos obtidos por essa herança indivisa.
VINTE E DOIS: Questão diversa seria aferir se a Autora poderia ou não exigir judicialmente do Réu, fiador no contrato de arrendamento em causa nos autos, as rendas peticionadas, desacompanhada dos restantes herdeiros (in casu, a sua filha GG).
VINTE E TRÊS: Mas tal questão reportar-se-ia à legitimidade processual da Autora (e não à sua legitimidade substantiva) e configuraria uma excepção dilatória, e não peremptória.
VINTE E QUATRO: Embora não se conceda que pudesse existir ilegitimidade processual da Autora, se, por algum motivo, assim se entendesse, sempre a Autora teria a possibilidade de requerer a intervenção principal provocada de GG até ao trânsito em julgado da decisão que julgasse procedente tal excepção dilatória, nos termos dos artigos 261º e 316º do Código de Processo Civil.
Pelo exposto e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, e julgada nula a douta sentença recorrida, por excesso de pronúncia, e sendo assegurado o exercício do contraditório quanto à excepção peremptória de ilegitimidade substantiva da Autora, ou, caso assim não se entenda, o que não se concede, deverá a douta sentença recorrida ser revogada, e substituída por decisão que julgue totalmente improcedente a excepção peremptória de ilegitimidade substantiva da Autora, prosseguindo os autos os seus termos até final, com a condenação do Réu no pedido, com o que se fará JUSTIÇA!»

O réu contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir, atenta a sua precedência lógica, são as seguintes:
- nulidade da decisão;
- aditamento de factos ao elenco dos factos provados;
- ilegitimidade processual/substantiva do réu.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
No saneador-sentença recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
1 - Por HH, viúva, na qualidade de senhoria, e por II, na qualidade de arrendatária, foi celebrado em 1 de abril de 2014 um contrato de arrendamento destinado à habitação relativamente ao ... andar do imóvel inscrito na matriz urbana da freguesia ... sob o artigo ...87, descrito na CRP ... sob o n.º ...28 da freguesia ...;
2 - No contrato referido em 1 também interveio o réu BB, na qualidade de fiador e principal pagador;
3 - No âmbito da cláusula primeira daquele contrato, convencionou-se que o mesmo teria início a 1 de abril de 2014 e término a 01 de abril de 2016;
4 - Nos termos da cláusula segunda, chegado o fim do prazo supra convencionado, o contrato renovar-se-ia por períodos sucessivos de um ano enquanto não fosse denunciado pelo senhorio ou inquilino;
5 - Nos termos da cláusula quinta foi ajustada o pagamento da renda mensal de €550,00 que se vence no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito e será paga na casa da senhoria ou no local ou a quem esta indicar para o efeito;
6 - Por força da cláusula décima quinta, o fiador e principal pagador assume solidariamente a obrigação do fiel cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, seus aditamentos legais e renovações até a efetiva restituição do local livre e devoluto e nas condições estipuladas e, bem assim, declara que a fiança que acaba de prestar subsistirá ainda que haja alteração de renda;
7 - Pela Ap....5/28 encontrava-se inscrito o direito de propriedade sobre o imóvel identificado em 1) a favor de AA e marido FF, casados entre si no regime da comunhão geral, por partilha da herança de JJ casado com KK no regime da comunhão geral;
8 - O casamento da autora com foi dissolvido pela morte do seu cônjuge em 18 de novembro de 1994;
9 – O imóvel locado foi restituído à autora em setembro de 2021;
10 – No período relativo a setembro de 2018 a setembro de 2021 a locatária II apenas pagou à autora o montante de €2.750,00 a título de rendas pela cedência do gozo do imóvel referido em 1), ficando por pagar o montante de €17.600,00;
11– A presente ação deu entrada neste Tribunal em 17 de junho de 2022.
12 – Em 24 de fevereiro de 2023 foi outorgada partilha da herança indivisa aberta por morte de FF, entre a autora, seu cônjuge sobrevivo e cabeça de casal, e GG, sua filha, sendo estas as únicas herdeiras por vocação legal, tendo, nesse acto, sido adjudicado à autora o direito de propriedade sobre o imóvel identificado em 1);
13 – Pela Ap. ...21 foi registada a aquisição do direito de propriedade a favor da autora do referido imóvel por efeito da partilha referida em 12).

Consignou-se que «[c]om relevância para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos não compagináveis com os acima indicados».

O DIREITO
Da nulidade do saneador-sentença
Diz a recorrente que «[n]ão obstante a excepção peremptória de ilegitimidade substantiva da Autora ser de conhecimento oficioso, caberia ao douto Tribunal a quo ter notificado previamente as partes para se pronunciarem sobre essa matéria, antes de tomar qualquer decisão, o que não fez».

Conclui, assim, que a decisão proferida «violou o princípio do contraditório, o que resulta na sua nulidade por excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, pelo que deverá a sentença recorrida ser julgada nula, devendo ser assegurado o exercício do contraditório» [vd. conclusões 7 e 8].
Nos termos do art.º 3º, nº 3, do CPC, «[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»
Trata-se da consagração expressa do princípio do contraditório na vertente da proibição da prolação de decisões-surpresa, garantindo aquele preceito às partes a sua efetiva intervenção no desenvolvimento de todo o litígio, sob pena de nulidade da decisão que o não respeite: é o que se chama de contraditório dinâmico.
E tem efetivamente razão a recorrente, pois tendo sido suscitada pelo réu a ilegitimidade processual da autora, a Sr.ª Juíza a quo decidiu aquela questão com uma fundamentação ou argumentação jurídica totalmente diferente da debatida pelas partes nos articulados, julgando verificada não a referida exceção dilatória, mas sim a exceção perentória de ilegitimidade substantiva da autora.
Ao decidir desse modo, ocorre uma nulidade do próprio saneador-sentença, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do CPC[1].
Com efeito, como se lê no escrito de 22.09.2020 do Blog do IPPC de LL, «(...) A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa). Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência. Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.»
Em conclusão, o despacho saneador recorrido é nulo por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.
Não obstante a declaração de nulidade do saneador recorrido, este tribunal de recurso vai conhecer do objeto da apelação, nos termos do art. 665º, nº 1, do CPC.

Do aditamento de outra factualidade ao elenco dos factos provados
Diz a recorrente nas conclusões 1 a 4, que os factos relativos à resolução do contrato de arrendamento e ao despejo do imóvel arrendado são relevantes para a boa decisão da causa e estão provados pelos documentos 2, 3 e 4 juntos com a petição inicial, sendo que a qualidade de senhoria fundamenta a sua legitimidade substantiva, pelo que entende que devem ser aditados ao elenco dos factos provados, os factos que transcreve na conclusão 4.
E, adiantamos desde já, assiste inteira razão à recorrente.
Na verdade, sem adiantar argumentos que serão expostos infra, todos os factos relacionados com a atuação da autora como senhoria, quer no que se reporta à outorga do contrato de arrendamento (ponto 1 dos factos provados), quer no que respeita à resolução do contrato e consequente despejo (não mencionados nos factos provados), se revelam essenciais à boa decisão da causa.
No elenco dos factos provados, consta apenas que o imóvel foi restituído à autora [ponto 9], não se especificando a razão pela qual cessou o contrato de arrendamento em causa e o que determinou a entrega desse mesmo imóvel.
Ora, foi alegado na petição inicial (arts. 4º a 7º), que devido ao incumprimento dos arrendatários no pagamento das rendas, a autora lançou mão do Procedimento Especial de Despejo previsto no artigo 15º e seguintes do NRAU, bem como, antes disso, requereu a notificação judicial avulsa dos arrendatários, mais alegando ter requerido a desocupação do locado, o que se mostra provado pelos documentos 2, 3 e 4 juntos com aquele articulado.
Estes factos, tendo em conta que a Sr.ª Juíza a quo considerou carecer a autora de legitimidade substantiva, assumem particular relevo para a decisão dessa questão, como veremos infra.
Assim, aditam-se ao elenco dos factos provados os seguintes factos:
14 - Devido à falta de pagamento das rendas por parte dos arrendatários CC e cônjuge DD, a Autora notificou estes últimos através de Notificação Judicial Avulsa datada de 23 de dezembro de 2018, para procederem ao pagamento das rendas em dívida no prazo de 30 dias, sob pena de operar a resolução do contrato de arrendamento.
15 - Uma vez que os arrendatários não procederam ao pagamento das rendas em dívida após a Notificação Judicial Avulsa referida em 14., a Autora considerou o contrato de arrendamento resolvido e requereu a desocupação do locado e o pagamento das rendas em dívida, junto do Balcão Nacional de Arrendamento, o que deu origem ao processo nº 500/19.....

Da legitimidade substantiva da autora
Entendeu-se na decisão recorrida que a autora carecia de legitimidade substantiva, mas sem razão.
No caso em apreço, e como resulta do facto julgado provado no ponto 1, o contrato de arrendamento em causa nos presentes autos, que teve início a 01.04.2014, foi celebrado pela autora, como senhoria, por II, como arrendatária, e pelo réu, como fiador.
Analisando o contrato junto com a petição inicial, verificamos que a autora celebrou o contrato de arrendamento como única senhoria e não como cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de FF, não existindo sequer qualquer referência no contrato de arrendamento à referida herança.
A presente ação, como bem aduz a recorrente, tem carácter meramente pessoal, porque se funda numa relação obrigacional, e tem por objeto a exigência do pagamento das rendas devidas ao abrigo do contrato celebrado e que não foram pagas pelos arrendatários, sendo, por esse motivo, agora exigidas ao fiador, aqui réu/recorrido.
A legitimidade substantiva para a presente ação não depende da qualidade de proprietária da autora - ou de esta alegar a qualidade de cabeça-de-casal da herança indivisa -, mas da sua qualidade de “senhoria”, uma vez que aquilo que está em causa é a condenação do réu fiador no pagamento das rendas em dívida.
No que respeita à legitimidade do senhorio para instaurar a ação de despejo, pronunciaram-se, entre outros, os seguintes acórdãos[2]:
- Acórdão da Relação de Lisboa de 10.10.2019[3], com o seguinte sumário:
«I- Embora não exista unanimidade doutrinária e jurisprudencial a este propósito, na esteira dos ensinamentos de Henrique Mesquita (RLJ, 125, 100, nota 1), Almeida Costa e Aragão Seia (Arrendamento Urbano, Almedina, 6.ª edição, págs. 78 a 81 e 105), entendemos que dada a natureza meramente obrigacional do contrato de arrendamento, a circunstância do senhorio não deter legitimidade, segundo a lei substantiva, para dar de arrendamento o arrendado, não determina a invalidade do contrato, pelo que o contrato de arrendamento de coisa alheia é válido.
II- “Senhorio” é aquele que, segundo o contrato de arrendamento celebrado e cuja resolução se pretende obter, ocupa essa posição, isto é, será aquele que nos termos do contrato de arrendamento outorgado se obrigou a proporcionar (e que proporcionou) ao outro contraente (o arrendatário) o gozo temporário do imóvel, mediante a obrigação deste de lhe pagar a renda convencionada e, bem assim aquele que, entretanto, por ato intervivos ou mortis causa, lhe sucedeu nessa sua posição contratual.
III- Deste modo, têm, em princípio, legitimidade para a acção de despejo os sujeitos da relação jurídica de arrendamento, ou seja, aqueles que segundo o respectivo contrato ocupam as posições de senhorio e de arrendatário. Embora o senhorio seja geralmente o proprietário do imóvel sucede que, por vezes, o não é”. A legitimidade activa para instaurar a acção de despejo não está dependente da alegação e prova por parte do senhorio da sua qualidade de proprietário em relação ao arrendado, mas sim da sua qualidade de “senhorio”, visto que na acção de despejo o que está em causa é a relação obrigacional e contratual senhorio versus inquilino.»
- Acórdão da Relação de Guimarães de 10.01.2019[4], em cujo sumário se consignou:
«1- O contrato de arrendamento tem efeitos meramente obrigacionais pelo que a legitimidade para a celebração deste tipo contratual e a consequente validade desse contrato, não depende do senhorio ser proprietário da coisa arrendada.
2- Também a legitimidade processual para instaurar a ação de resolução do contrato de arrendamento, sequer a legitimidade substantiva para julgar procedente essa ação, não estão dependentes da qualidade de proprietário do demandante (senhorio) em relação ao prédio arrendado, mas sim da sua qualidade de “senhorio”, uma vez que nessa ação o que está em causa é a relação obrigacional e contratual senhorio versus arrendatário.
3- Senhorio (demandante) é aquele que, segundo o contrato de arrendamento celebrado, e cuja resolução pretende obter, ocupa essa posição contratual ou aquele que, por ato inter vivos ou mortis causa, ocupa essa posição contratual, assim como arrendatário (demandado) é aquele que, segundo o contrato de arrendamento, ocupa essa posição contratual ou a quem esta foi transmitida.
(…)»
Também no acórdão desta Relação de 26.03.2015[5] e no acórdão da Relação de Guimarães de 10.07.2018[6] se considerou que nas ações de despejo o autor tem de fazer prova da sua qualidade de senhorio, e não de proprietário, comproprietário ou usufrutuário (podendo o senhorio ser ou não proprietário).
O direito ao recebimento das rendas peticionadas nesta ação não depende, pois, da qualidade de proprietário do senhorio, porque não é um direito real, mas um direito obrigacional, que nasce por força do contrato de arrendamento celebrado entre as partes, isto é, aquele direito gerou-se na esfera patrimonial da autora, visto ter sido ela que celebrou o contrato de arrendamento, em nome próprio, como única senhoria, tendo por isso o direito de exigir do réu, fiador, o respetivo pagamento, sendo assim inquestionável que a autora tem legitimidade substantiva para instaurar a presente ação.
Como é sabido, no direito substantivo, o conceito de legitimidade reporta-se à relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do ato jurídico e o titular do interesse por ele posto em causa.
Uma vez invocada no âmbito do próprio processo, a legitimidade substantiva é analisada a posteriori, como questão controvertida, constituindo, por conseguinte, um requisito de procedência do pedido formulado pelo autor na petição inicial e esgrimido pelo réu na sua contestação[7].
Ora, in casu, nem o réu pôs em causa a legitimidade substantiva da autora, tendo antes invocado a ilegitimidade processual desta, de todo inexistente, aliás, como neste caso se reconheceu no saneador recorrido, e que por isso não justifica aqui mais discussão.
Por conseguinte, o recurso merece total provimento.
Vencido no recurso, suportará o réu/recorrido as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam o saneador-sentença recorrido, devendo os autos prosseguir os seus regulares termos.
Custas pelo recorrido.

*
Évora, 6 de junho de 2024
Manuel Bargado (Relator)
Maria João Sousa e Faro
Maria Adelaide Domingos
(documento com assinaturas eletrónicas)
_________________________________________________
[1] Assim, inter alia, o acórdão do STJ de 13.10.2020, proc. 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1, in www.dgsi.pt.
[2] Também citados pela recorrente.
[3] Proc. 616/19.1YLPRT.L1-2, in www.dgsi.pt.
[4] Proc. 2290/16.8T8BCL.G1, in www.dgsi.pt.
[5] Proc. 183/11.4T2GDL.E1, in www.dgsi.pt.
[6] Proc. 208/17.0T8VRL.G1, in www.dgsi.pt.
[7] Neste sentido, João Paulo Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 3.ª Ed., p. 375.