ABUSO DE DIREITO
COVID
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
SUSPENSÃO DO CONTRATO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário


I- O exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa ou intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito
II- O facto de o legal representante da autora não se ter oposto por escrito à comunicação da suspensão do contrato de prestação de serviços que a autora mantinha com a ré e ter pedido o pagamento dos 14 dias em dívida até à suspensão, não constitui comportamento que, por si só, evidencie que aceitou a suspensão do contrato sem retribuição, de modo a criar na ré a convicção de que não vai exigir a retribuição, tanto mais que contactou diversas vezes a ré a indagar do pagamento dos serviços a que esta se obrigara contratualmente, o que lhe foi negado.
III- São requisitos necessários para que a alteração das circunstâncias em que os contraentes fundaram a decisão de contratar conduza à resolução do contrato ou à sua modificação, nos termos previstos nos artigos 437º e 438º do Código Civil, que: – a alteração diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar, que estejam na base do negócio; – essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal, no sentido da excepcionalidade, que escapa à regra; – a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes, que perturbe o originário equilíbrio contratual; – a manutenção do contrato afecte gravemente os princípios da boa fé; – a situação não se encontrar abrangida pelos riscos próprios do contrato; e – não exista mora do lesado (requisito negativo).
IV- A pandemia de Covid-19 consubstancia uma grande alteração das circunstâncias, criando a necessidade de reconformação do quadro em que se desenvolve a generalidade das relações jurídicas de carácter patrimonial.
V- Numa relação bilateral não é justo que a abrupta mudança das circunstâncias tenha que ser suportada apenas e só por uma das partes, quando as circunstâncias extraordinárias sobrevindas da súbita eclosão da pandemia e as medidas sanitárias decretadas, perturbaram o equilíbrio contratual inicialmente desejado, vindo a lesar qualquer uma das partes. Daí que as regras da boa-fé impeçam qualquer solução de aproveitamento exclusivo de uma das partes em detrimento ou penalização arbitrária da posição contratual da outra.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Recurso de Apelação n.º 961/21.6T8FAR.E1

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – Relatório
1. C... Unipessoal, Lda., intentou a acção declarativa, sob a forma comum, contra Vicra Comunicações, Lda., peticionando a condenação da R. no pagamento da quantia total de €11.366,66 (onze mil trezentos e sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos), acrescido de juros vencidos e vincendos, e ainda no pagamento de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de indemnização por dados não patrimoniais.

2. Para tanto, alegou, em síntese, que:
· Entre a A. e a R. foi celebrado um contrato de prestação de serviços, ao abrigo do qual aquela se obrigou a prestar serviços de fotojornalismo, ficando esta obrigada ao pagamento da contraprestação mensal fixa;
· Do contrato consta uma cláusula de anti concorrência, que impediria que a A. prestasse serviços de fotojornalismo a outras empresas concorrentes, e ainda uma outra onde se prevê a faculdade de denunciar o contrato;
· Na pendência do mesmo, a A. recepcionou missiva, datada de 14/04/2020, através da qual a R. comunicava a suspensão do contrato de prestação de serviços;
· Desde então a R não efectuou os pagamentos mensais; e
· A R. denunciou o contrato através de comunicação datada de 19/10/2020.
· Neste lapso temporal a R. utilizou e publicou material fotográfico proveniente dos serviços prestados pela Autora;
· O “Autor” e sua família sofreram danos com a falta dos pagamentos mensais a que estava a R. obrigada.

3. Citada, a R. ofereceu contestação, impugnando parcialmente a factualidade alegada pela A., invocando que o que as partes acordaram “não foi uma cláusula de anticoncorrência, nem um impedimento da A. “trabalhar para órgãos de comunicação social concorrentes”, pois poderia prestar os mesmos serviços que prestava à R., desde que não lhe fizesse concorrência, e que a suspensão do contrato celebrado ocorreu devido à suspensão dos eventos desportivos decorrente do decretamento do estado de emergência relacionado com o COVID-19, e consequente houve queda abrupta na receita adveniente de publicidade, atento o cancelamento das competições desportivas, o que impossibilitou a prestação de serviços contratados.
Mais alegou que, quando retomaram as competições desportivas, com restrição de número de jornalistas na assistência, usou material fotográfico disponibilizado gratuitamente e/ou a custos verdadeiramente reduzidos, e que A. concordou com tal suspensão, não lhe sendo devido por isso qualquer valor.

4. Foi realizada a audiência prévia, proferido despacho saneador tabelar, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizou-se a audiência final, após o que veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
«a) Condenar a ré VICRA COMUNICAÇÕES LDA a pagar à autora C... UNIPESSOAL LDA, a quantia total de €9.945,83 (nove mil novecentos e quarenta e cinco euros e oitenta e três cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal anual contados a partir de cada mês não pago pela Ré (2020) e com referência aos seguintes valores: Maio €687,50; Junho €1.375,00; Julho €1.375,00; Agosto €1.375,00; Setembro €1.375,00; Outubro €1.375,00; Novembro €1.375,00; Dezembro €1.008,33;
b) Absolver a Ré VICRA COMUNICAÇÕES LDA do demais peticionado.»

5. Não se conformando com a sentença proferida, interpôs a R. o presente recurso, versando sobre a matéria de facto e de direito, o qual motivou, concluindo nos seguintes termos:
a. Vem o Recurso interposto da Sentença que considera a “acção parcialmente procedente” e condena a Recorrente no pagamento à Recorrida da quantia de “€ 9.945,83 (nove mil novecentos e quarenta e cinco euros e oitenta e três cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal anual contados a partir de cada mês não pago pela Ré (2020) e com referência aos seguintes valores: Maio € 687,50; Junho € 1.375,00; Julho € 1.375,00; Agosto € 1.375,00; Setembro € 1.375,00; Outubro € 1.375,00; Novembro € 1.375,00; Dezembro € 1.008,33”, tendo andado mal o Tribunal a quo ao decidir nos termos em que o fez, não tendo feito uma correcta apreciação da prova documental, nem da prova testemunhal, devendo este Tribunal, reapreciando a prova gravada e a demais prova produzida, alterar a decisão quanto à matéria de facto, considerando factos não provados factos que foram considerados factos provados e como factos provados factos que foram considerados como factos não provados.
b. A alteração quanto à decisão da matéria de facto terá efeitos na decisão quanto à matéria de direito, e consequente condenação da Recorrente.
Da Impugnação da Matéria de Facto considerada provada e não provada
c. A Recorrente não se conforma com a Decisão proferida quanto à matéria de facto, mais concretamente, no que respeita aos factos provados 25., 26., 31., 33., 34., 35., 36. e 37.; não se conformando, igualmente, com a decisão quanto aos factos não provados A. B. e C., devendo a decisão quanto à matéria de facto ser alterada em conformidade.
d. No que respeita ao facto provado 25., tendo presentes, designadamente, os documentos n.º 3 e 8 da Contestação, referidos em sede de Alegações, e tendo presente, designadamente, os depoimentos das testemunhas AA e BB, transcritos em sede de Alegações, o mesmo deverá ser alterado, passando a ter a seguinte redacção:“25. A Ré manteve ininterruptamente a sua actividade durante o estado de emergência decretado, e após tal estado, mas, por força dos fortes condicionamentos inerentes ao referido estado de emergência decretado, utilizando material de arquivo, transmitindo programas gravados e, no que respeita ao Jornal A Bola no qual são publicadas as fotografias obtidas pela Ré, com a redução do número de páginas de entre as 40 a 48 para 32 páginas por ausência de assuntos a publicar.”
e. No que respeita ao facto provado 26., tendo presente, designadamente, o documento n.º 6 referido em sede de Alegações, e tendo presentes, designadamente, os depoimentos das testemunhas AA e BB, transcritos em sede de Alegações, o mesmo deverá ser alterado, passando a ter a seguinte redacção:“26. Em Junho de 2020 foram retomadas, em parte, as competições desportivas, mais concretamente, de índole futebolística e, especificamente, a Primeira Liga de Futebol Profissional designada por “Liga NOS”, sendo o acesso aos recintos desportivos limitado, designadamente para cobertura jornalística.”
f. No que respeita ao facto provado 33., tendo presente, designadamente, o documento n.º 8 da Contestação referido em sede de Alegações, e tendo presentes, designadamente, os depoimentos das testemunhas AA e BB, transcritos em sede de Alegações, o mesmo deverá ser alterado, passando a ter a seguinte redacção: “33. Posteriormente a Agosto de 2020, a Ré determinou a suspensão do contrato de trabalho de vários trabalhadores, designadamente fotógrafos, ao abrigo do processo de lay-off comum previsto no Código do Trabalho.”
g. Deve, pois, a Decisão quanto à matéria de facto ser alterada em conformidade, tendo presentes os meios de prova devidamente analisados em sede de Alegações, passando os factos provados 25., 26. e 33. a ter a redacção acima indicada.
h. Por outro lado, os factos provados 31., 34., 35., 36. e 37., tendo presente tudo quanto se alegou em sede de Alegações, para as quais se remete, e tendo presente a ausência de elementos de prova bastantes e credíveis, bem como a existência de elementos probatórios em contrário, deverão passar a ser considerados como factos não provados.
i. Ainda por outro lado, tendo presentes os demais factos considerados como factos provados, não objecto de impugnação, não se poderá manter, conforme melhor se alegou em sede de Alegações, a decisão quanto à matéria de facto no que respeita aos mencionados factos provados 31., 34., 35., 36. e 37., situação para a qual também releva o depoimento da testemunha BB, transcrito em sede de Alegações para as quais se remete.
j. Por fim, e ainda por outro lado, tendo presentes, designadamente, os documentos n.ºs 3, 6 e 8 da Contestação referidos em sede de Alegações, bem como o facto de estarmos perante factos públicos e notórios, e tendo presentes, designadamente, os depoimentos das testemunhas AA, BB e CC, transcritos em sede de Alegações, os seguintes factos não provados deverão passar a ser considerados como factos provados: “A. Fruto do descrito em 22. dos Factos Provados se tivesse verificado uma acentuada queda de audiências;”“B. O aludido em A. dos Factos Não Provados tivesse determinado uma acentuada e abrupta redução de fontes de receita da Ré decorrente, nomeadamente, das receitas de publicidade;”“C. Fruto do descrito em 22. dos Factos Provados, tivesse ocorrido um cancelamento da publicidade no canal televisivo da Ré.”
k. Deve, pois, a decisão quanto à matéria de facto ser alterada em conformidade com o vindo de alegar, com a consequente alteração da Sentença recorrida no segmento condenatório, mais concretamente, com a integral absolvição da Recorrente do pedido, como de seguida se passará a demonstrar.
Do Recurso quanto à matéria de Direito
l. A Recorrida actuou na situação jurídica controvertida nos presentes Autos numa situação de abuso do direito, na vertente de venire contra factum proprium, nos termos do artigo 334.º do Código Civil e tendo presente a Jurisprudência citada em sede de Alegações, devendo a Recorrente ser integralmente absolvida do pedido.
m. A Recorrente, durante o período em causa nos presentes Autos, tinha trabalhadores com a categoria profissional de fotógrafo – funções contratadas à Recorrida – em Layoff (simplificado e comum) com suspensão de contrato de trabalho, estando, por via do disposto no Decreto-Lei n.º 10-G/2020, de 26 de Março e nos artigos 298.º e seguintes do Código do Trabalho legalmente impossibilitada de manter a prestação de serviços da Recorrida, conforme se alegou e demonstrou em sede de Alegações, para as quais se remete, pelo que deve a Recorrente ser integralmente absolvida do pedido.
n. O objecto da prestação de serviços tornou-se impossível, em virtude da suspensão das competições desportivas, inexistindo eventos para recolha de imagens, ou existindo limitações ao acesso aos recintos desportivos e disponibilização de material fotográfico por parte dos Clubes e da LIGA, pelo que mais a Recorrente não poderia fazer que não suspender a prestação de serviços, por impossibilidade da sua manutenção, conforme se alegou e demonstrou em sede de Alegações, para as quais se remete, pelo que deve a Recorrente ser integralmente absolvida do pedido.
o. Tendo presente o disposto no artigo 437.º do Código Civil, improcedendo a fundamentação expendida na Sentença recorrida, deve a Recorrente ser integralmente absolvida do pedido.
p. Porquanto é claro e inequívoco que existiu uma alteração anormal às circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, conforme se alegou e demonstrou em sede de Alegações, para as quais se remete, tendo a Recorrente comunicado à Recorrida a suspensão da prestação de serviços, a partir de 14 de Abril de 2020.
q. A Recorrida, na sequência de tal suspensão, no dia 8 de Julho de 2020, solicitou à Recorrente que efectuasse o pagamento dos serviços até à data da suspensão da prestação de serviços, isto é, até ao dia 14 de Abril de 2020.
r. Nem na comunicação de 8 de Julho de 2020, nem em momento posterior, a Recorrida peticionou junto da Recorrente o pagamento integral das quantias mensais constantes do contrato de prestação de serviços, e não questionou a suspensão da prestação de serviços, criando na Recorrente a convicção – legítima – que aceitava a mencionada suspensão.
s. A Recorrente apenas em Outubro de 2020 comunica à Recorrente que, afinal, e contrariamente ao que havia feito crer à Recorrente, não aceitava a suspensão da prestação de serviços, peticionando o pagamento integral das quantias constantes do contrato de prestação de serviços.
t. Nesta sequência, também em Outubro de 2020, a Recorrente denunciou o contrato de prestação de serviços.
u. Ou seja, a Recorrente, confrontada com a anormal alteração das circunstâncias, comunicou à Recorrida a suspensão da prestação de serviços, não tendo a Recorrida questionado tal suspensão, pelo que mais não se poderá concluir que a aceitou, pelo que deve a Recorrente ser integralmente absolvida do pedido.
v. Deve, pois, ser a Sentença proferida pelo Tribunal a quo revogada e substituída por uma outra que, considerando o presente Recurso totalmente procedente, absolva integralmente a Recorrente dos pedidos nos termos e com os fundamentos supra alegados.
w. Ou, quanto muito, ser a Recorrente condenada a pagar à Recorrida a quantia correspondente ao período decorrido entre a comunicação da Recorrida de que não aceitava a suspensão da prestação de serviços – 19 de Outubro de 2020 – e o termo do contrato por denúncia da Recorrente – 22 de Dezembro de 2020.
Nestes termos, e nos mais de Direito, deve o presente Recurso ser considerado totalmente procedente, por provado, seja no que respeita à alteração da Decisão quanto à matéria de facto – nos termos supra expostos –, seja no que respeita à matéria de Direito, com a consequente integral absolvição da Recorrente do pedido.

6. Não se mostram juntas contra-alegações.

7. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Da alteração da matéria de facto;
(ii) Da reapreciação jurídica da causa, havendo a este respeito, no essencial, que se indagar se a A. aceitou a suspensão do contrato vigente entre as partes e se ocorreu alteração das circunstâncias que presidiram à decisão de contratar que, no caso, justificasse a decisão unilateral da R. de suspender o contrato.
*
III – Fundamentação
A) - Os Factos
A.1. Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos [correspondendo os destaques a bold às alterações efectuadas no presente recurso]:
1. A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica a actividades fotográficas.
2. A Ré é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto principal o exercício da actividade de televisão, podendo dedicar-se: a) à concepção, produção, realização e comercialização de programas relativos a quaisquer eventos aptos a serem objecto de difusão por qualquer meio, nomeadamente em televisão, rádio, internet e multimédia; b) à aquisição e comercialização de direitos de autor ou de direitos sobre eventos para transmissão televisiva ou por qualquer outro meio de difusão; c) à exploração de quaisquer actividades de valorização comercial de objectos ou pessoas; d) à comercialização de imagens, serviços fotográficos e vídeos; e) à prestação de serviços de assessoria, consultadoria ou de desenvolvimento na área informática, de produção gráfica ou em qualquer outra área relacionada com o seu objecto; f) a outras actividades acessórias das acima referidas.
3. O capital social da Ré é detido pela Sociedade Vicra Desportiva, S.A., sociedade anónima, com sede na Travessa da Queimada, n.º 23, R/C, 1200-365 Lisboa, com o contribuinte n.º 500269335.
4. A Sociedade Vicra Desportiva, S.A. é proprietária do jornal A Bola, edição em papel, do site www.abola.pt, da revista Autofoco, edição em papel, e do site www.autofoco.pt.
5. Em 2012, A Bola passou, também, a ser a designação de um canal de televisão, designado A Bola TV, detido pela aqui Ré, com redacção em Lisboa, na sede da sociedade, e na cidade do Porto, no mesmo local da redacção do Porto do jornal A Bola.
6. A Ré e a Sociedade Vicra Desportiva, no exercício da sua actividade, cujo escopo é idêntico, acabam por partilhar diversos serviços, com vista à pesquisa, rápida divulgação e tratamento de conteúdos noticiosos e contenção de custos.
7. A Ré presta serviços à Sociedade Vicra Desportiva, nomeadamente no que respeita às reportagens fotográficas do jornal A Bola, as quais são realizadas pela aqui Ré.
8. Desde a constituição da sociedade Autora, até 05.04.2021, DD sempre foi o único sócio e gerente da mesma.
9. Por acordo datado de 12.11.2014, escrito e assinado por Autora e Ré, intitulado “Contrato de prestação de serviços”, consta:
9.1. “Cláusula 1.ª - Entre a Primeira e o Segundo Outorgante está em vigor, desde 01 de Janeiro de 2013, um contrato de prestação de serviços que tem como objecto a elaboração, pelo Segundo, de serviços fotográficos de âmbito desportivo”.
9.2 – “Cláusula 2.ª Como contrapartida da colaboração prestada o Segundo Outorgante receberá, doze vezes por ano, uma mensalidade que, presentemente, é de 1.375,00 (mil trezentos e setenta e cinco euros)”.
9.3 – “Cláusula 3.ª 1. O Segundo Outorgante cede à Primeira todos os direitos de autor dos trabalhos por si produzidos, podendo a Primeira utilizá-los livremente inclusive na INTERNET”.
9.4 – “Cláusula 3.ª 2. O disposto no número anterior aplica-se a todos os trabalhos produzidos desde o início da colaboração do Segundo Outorgante”.
9.5 – “Cláusula 4.ª 1. O Segundo Outorgante presta os serviços autonomamente, sem estar sujeito à autoridade e direcção, bem como ao poder disciplinar da Primeira Outorgante, nem a qualquer horário de trabalho”.
9.6 – “Cláusula 4.ª 2. O Segundo Outorgante poderá prestar serviços fotográficos para outros órgãos de comunicação social desde que não faça concorrência à Primeira Outorgante”. 9.7 – “Cláusula 5.ª O presente contrato pode ser denunciado automaticamente em qualquer altura por qualquer das partes, mediante carta registada a enviar à outra parte com a antecedência mínima de 60 dias em relação à sua conclusão”.
9.8 – “Cláusula 6.ª Em tudo o omisso, aplicam-se os art.s 1154.º e seguintes do Código Civil”.
10. Os serviços identificados em 9.1 também tinham por objecto todas as competições desportivas que se realizavam no Algarve.
11. Por carta, registada com aviso de recepção, datada de 14 de Abril de 2020, a Autora efectuou comunicação à Ré com o seguinte teor: “(…) Serve a presente para, face à actual situação no país e ao facto da actividade desenvolvida pela Vicra Comunicações Lda, ter sido fortemente afectada pela situação de pandemia declarada a nível internacional, fruto do surto do vírus COVID-19, que fica suspensa a prestação de serviços entre esta empresa e V. Exas.
Esta suspensão temporária irá durar até que a nossa actividade se encontre normalizada e se encontre ultrapassada a situação de surto que o país atravessa”.
12. Esta mesma comunicação foi recepcionada por DD em 16.04.2020.
13. Em 14 de Abril de 2020 às 15h40, foi enviado escrito, por ..........@abola..... para agenda@....., com o seguinte conteúdo: “(…) Vimos por este meio informar, que devido à actual situação no país e ao facto da actividade desenvolvida pela Vicra Comunicações Lda, ter sido fortemente afectada pela situação de pandemia declarada a nível internacional, fruto do surto do vírus COVID-19, que fica suspensa a prestação de serviços entre V. Exa. e a Vicra comunicações, com efeitos imediatos. Esta suspensão temporária irá durar até que a nossa actividade se encontre normalizada e se encontre ultrapassada a situação de surto que o país atravessa. Entraremos em contacto quando assim for. (…)”.
14. Em 8 de Julho de 2020 às 13h18, foi enviado escrito, por agenda@..... para ..........@abola....., com o seguinte conteúdo: “(…) Venho por este meio, e visto que desde a suspensão de dia 14 de Abril, até esta data não ter sido contactado nem informado por vós sobre o meu pagamento dos 14 dias até esta suspensão, pois não houve marcação de serviços até essa data mas estive sempre disponível como estou até esta data. Gostaria também se possível de saber qual vai ser a vossa previsão de retoma ao serviço. Trabalho desde 29 de Novembro de 2005 e como é de vosso conhecimento sempre estive disponível, bem como em período de férias todos estes anos (Férias remuneradas sempre no mês de Junho, devido a paragem do campeonato), e sempre que havia serviços nesse período sempre os realizei. Aguardo os seus comentários o mais breve possível (…)”.
15. Por carta datada de 07.10.2020, a Autora efectuou comunicação à Ré com o seguinte teor: “(…) 01. Em 2013.01.01 ou em 2014.11.12 (estranhamento o contrato refere duas datas distintas, uma no início e outra no fim do mesmo), foi celebrado entre a empresa VICRA COMUNICAÇÕES LDA e C... UNIPESSOAL LDA, com o número de contribuinte ...90 e domicílio na Rua ..., ... Faro, um contrato de prestação de serviços, conforme documento anexo. 02. DD é o único sócio da referida empresa. 03. E antes, desde 2005.11.29, prestava serviços para a Vicra Comunicações Lda, então como trabalhador independente, a recibos verdes. 04. O contrato prevê a denúncia por qualquer uma das partes, em qualquer momento, mediante aviso por carta registada enviada com a antecedência mínima de 60 dias. 05. O contrato remete as partes, em tudo o que nele seja omisso, para o artigo 1154.º e seguintes do Código Civil. 06. Em 2020.04.14 a empresa Vicra Comunicações Lda comunicou a C..., Unipessoal Lda, a suspensão do contrato de prestação de serviços por tempo indeterminado “até que a nossa actividade se encontre normalizada” alegando que a mesma estava a ser fortemente afectada pela pandemia COVID-19. Aqui chegados: 07. Nem o contrato nem as disposições legais para o qual o mesmo remete prevêem a figura da suspensão. 08. Nem sequer a (abundante) legislação especial aprovada, de carácter excepcional e temporária, de resposta à pandemia COVID-19, o prevê. 09. A empresa Vicra Comunicações Lda não invoca qualquer disposição legal que sustente a sua unilateral tomada de decisão. 10. Com a decisão tomada, a Vicra Comunicações Lda deixou de cumprir tudo quando se obrigara para com C..., Unipessoal Lda, privando esta última dos rendimentos contratualmente previstos e, ao mesmo tempo, impedindo este de prestar os serviços definidos no contrato. Assim: 11. Estamos perante uma figura suspensão do contrato de prestação de serviços inexistente e, por isso, obviamente, não aplicável. 12. A empresa Vicra Comunicações Lda poderia, isso sim, ter denunciado o contrato (respeitando a exigência da comunicação com 60 dias de antecedência) mas em nenhum momento, até ao dia de hoje, o fez. 13. Resulta, assim, que o contrato de prestação de serviços celebrado entre Vicra Comunicações Lda e C... Lda se encontra em vigor, com todas as consequências legais daí advenientes. E nem poderia ser de outra forma, porquanto: 14. A empresa C..., Unipessoal Lda, não recebeu, em momento nenhum momento, qualquer denúncia do mesmo.15. A comunicação de que o contrato foi suspenso indeterminadamente não encontra qualquer amparo legal nem é admissível nem aceitável à luz da nossa legislação e dos princípios que a regem, porquanto deixaria C... Unipessoal preso a um compromisso, sem fim à vista e sem qualquer rendimento proveniente do mesmo. 16. Sem ter havido a denúncia do contrato, C... Lda encontra-se impedido de assumir outros compromissos na mesma área de actividade, por os mesmos poderem traduzir-se numa violação da cláusula 4.ª n.º 2 do contrato celebrado, dando, eventualmente, origem a justa causa para rescisão do mesmo pela Vicra Desportiva Lda. 17. C... Unipessoal Lda. Empresa esteve disponível, desde 2020.04.14 e até hoje, para cumprir o que se encontra contratualizado e se não efectuou qualquer trabalho para Vicra Desportiva Lda neste período de tempo tal ficou a dever-se a uma decisão unilateral desta, sob o pretexto de uma figura inexistente a suspensão do contrato de prestação de serviços e sem qualquer amparo legal. Face ao exposto, vimos junto de Vexas Solicitar que, no prazo de cinco dias úteis, após boa recepção desta carta 18. Sejam regularizados todos os valores em dívida até este dia no âmbito do contrato de prestação de serviços celebrado entre Vicra Desportiva Lda e C... Unipessoal Lda que se encontra em vigor (…)”.
16. A comunicação referida em 15. foi recepcionada pela Ré.
17. Por carta datada de 19.10.2020, a Ré efectuou comunicação à Autora com o seguinte teor: “(…) Conforme é de conhecimento de V. Exa., a actividade desenvolvida por esta empresa foi fortemente afectada pela situação de pandemia a nível internacional, fruto do surto do vírus COVID-19, tendo sido confrontada com uma situação de crise empresarial, decorrente, essencialmente do cancelamento de competições desportivas, com a consequente inexistência de serviços a prestar por V. Ex.as. Nesta sequência, esta sociedade, por missiva de 14 de Abril de 2020, comunicou a V. Exas. A suspensão da prestação de serviços, por ausência de objecto. Não obstante a retoma parcial de competições desportivas, e contrariamente ao expectável, esta sociedade viu-se confrontada com uma acentuada quebra de actividade, com a consequente redução de serviços a prestar, em especial dos serviços a prestar por parte dessa sociedade, na sequência do que comunicou a V. Exas. A manutenção da suspensão da prestação de serviços, por ausência de objecto. Neste sentido, mantendo.se a ausência de serviços a adjudicar a V. Ex.as, vimos por este meio comunicar a V. Ex.as que a suspensão da prestação de serviços se mantém. Por fim, e sem prejuízo, ao abrigo do disposto na Cláusula 5.ª do Contrato de prestação de serviços, vimos por este meio comunicar a denúncia do Contrato de Prestação de Serviços celebrado com V. Ex.as, produzindo tal denúncia efeitos 60 sessenta) dias a contar da data da recepção da presente comunicação.(…)”.
18. A comunicação aludida em 17. foi recepcionada pela Autora.
19. Por carta datada de 23.10.2020, a Autora comunicou à Ré o seguinte: “(…) Recebi no dia 22 de Outubro de 2020 através de carta registada, a comunicação da denúncia do contrato de prestação de serviços celebrado entre a empresa VICRA COMUNICAÇÕES LDA e C..., UNIPESSOAL LDA. Assim, e de acordo com os termos do contrato firmado, o mesmo irá extinguir-se no próximo dia 22 de Dezembro de 2020, dois meses depois da sua denúncia por uma das partes. Como muito bem Vexas. sabem, o contrato de prestação de serviços em causa não prevê a figura da suspensão. Tal como não prevê a legislação aplicável. Poderiam Vexas denunciar o contrato em questão em qualquer momento e sem necessidade de alegar qualquer pretexto para o efeito, bastando a comunicação com dois meses de antecedência sobre o fim previsto. Apenas agora, no dia 22 de Outubro de 2020, o contrato foi denunciado por Vexas. Desde 14 de Abril que não recebo o que me é devido ao abrigo do que está acordado entre as partes, tendo estado sempre disponível para cumprir todos os termos do contrato, e sem que houvesse da V.a parte, qualquer denúncia do mesmo. Pelo que aguardo o pagamento de todos os valores em dívida desde essa data e, ainda, dos valores que venceram até ao próximo dia 22 de Dezembro. Assim, e mais uma vez, solicito o pagamento imediato dos valores em dívida desde 14 de Abril, nos cinco dias úteis seguintes à boa recepção desta carta. E o pagamento dos valores relativos aos meses de Outubro, Novembro e de Dezembro (aqui até ao termo do contrato) até ao oitavo dia do mês seguinte. Caso tais pagamentos não sejam atempadamente efectuados, agirei, nas instâncias competentes na defesa dos meus legítimos interesses (…)”.
20. A comunicação referida em 19. foi recepcionada pela Ré.
21. Por força do acordo referido em 9., foram emitidas as seguintes facturas, pagas pela Ré:
21.1. Factura n.º 1 1900/000036, com data de emissão e vencimento a 01.11.2019, no valor de €1.691,25 (mil seiscentos e noventa e um euros e vinte e cinco cêntimos), refente ao mês de Outubro de 2019;
21.2 Factura n.º 1 1900/000038, com data de emissão e vencimento a 01.12.2019, no valor de €1.691,25 (mil seiscentos e noventa e um euros e vinte e cinco cêntimos), refente ao mês de Novembro de 2019;
21.3 Factura n.º 1 2000/000001, com data de emissão e vencimento a 01.01.2020, no
valor de €1.691,25 (mil seiscentos e noventa e um euros e vinte e cinco cêntimos), refente ao mês de Dezembro de 2019;
21.4 Factura n.º 1 2000/000005, com data de emissão e vencimento a 02.02.2020, no
valor de €1.691,25 (mil seiscentos e noventa e um euros e vinte e cinco cêntimos),
refente ao mês de Janeiro de 2020;
21.5 Factura n.º 1 2000/000008, com data de emissão e vencimento a 02.03.2020, no
valor de €1.691,25 (mil seiscentos e noventa e um euros e vinte e cinco cêntimos),
refente ao mês de Fevereiro de 2020;
21.6 Factura n.º 1 2000/000011, com data de emissão e vencimento a 01.04.2020, no
valor de €1.691,25 (mil seiscentos e noventa e um euros e vinte e cinco cêntimos),
refente ao mês de Março de 2020.
22. Devido à situação epidemiológica provocada pela doença COVID-19, foi decretado o estado de emergência em Portugal às 00h00m do dia 19 de Março de 2020, tendo apenas cessado a partir das 23h59m do dia 2 de Maio de 2020.
23. Na sequência da situação referida em 22., foram cancelados, suspensos e/ou adiados, todos os eventos desportivos que se encontravam agendados e que se iriam realizar no lapso temporal referido em 22..
24. No período compreendido entre Abril e Julho de 2020 a Ré procedeu à suspensão de contratos de trabalho de vários trabalhadores, nomeadamente de 9 (nove) trabalhadores com a categoria profissional e fotógrafos.
25. A Ré, porém, manteve ininterruptamente a sua actividade durante o estado de emergência decretado, e após tal estado mas, por força dos fortes condicionamentos inerentes ao referido estado de emergência decretado, utilizando material de arquivo, transmitindo programas gravados e, no que respeita ao Jornal A Bola no qual são publicadas as fotografias obtidas pela Ré, com a redução do número de páginas.
26. Em Junho de 2020 foram retomadas, em parte, as competições desportivas, mais concretamente, de índole futebolística e, especificamente, a Primeira Liga de Futebol Profissional designada por “Liga NOS”.
27. Em 3 de Junho de 2020 às 13h56, foi enviado escrito por ..........@a bola2... para ..........@a bola 3.....; ..........@abola 4....., com o seguinte conteúdo: “(…) tendo em conta as limitações que nos Liga] foram impostas pela DGS, e contando com um limite máximo de 189 pessoas para toda a operação de um jogo, vimo-nos forçados a limitar o acesso aos estádios, para segurança de todos” pelo que “a Liga de Clubes irá disponibilizar uma plataforma onde, de forma totalmente gratuita, serão disponibilizadas todas as fotografias das partidas da Liga NOS, para que jornais, publicações e agências passam ter acesso às mesmas, de forma ilimitada (…)”.
28. Para publicitação de conteúdo noticioso sobre a “LIGA NOS” a Ré acedeu a fotografias disponibilizadas pela própria Liga Portuguesa de Futebol Profissional, as quais utilizou nas suas publicações.
29. Em Junho de 2020 a Ré decidiu que quatro dos trabalhadores cujos contratos de trabalho teriam sido suspensos, retomariam as suas funções, tendo os quatro retomado aos seus postos de trabalho, a tempo completo, exercendo as funções na categoria de fotógrafos.
30. O Sporting Clube Farense, clube de futebol português, subiu à 1.ª Liga de Futebol (LIGA NOS) em 05 Maio de 2020.
31. A Autora, através do legal representante C..., contactou diversas vezes telefonicamente a Ré, para indagar quanto ao pagamento dos serviços que se obrigava contratualmente a prestar, tendo a Ré informado que, face à ausência de possibilidade de prestação de serviços, nada teria de pagar à Autora.
32. Durante e após o período aludido em 22., a Ré utilizou material fotográfico produzido pela Autora, o qual dispunha em arquivo.
33. Posteriormente a Agosto de 2020, a Ré determinou a redução do período normal de trabalho de vários trabalhadores.
34. A Autora recebeu contacto telefónico do responsável pela edição da fotografia do jornal A Bola, em nome da Ré, solicitando a prestação de serviços, propondo o pagamento por cada registo fotográfico efectuado em cada evento desportivo, e não por um valor fixo mensal.
35. A Ré não aceitou a proposta descrita em 34.
36. C..., na qualidade de legal representante da Autora, solicitou verbalmente à Ré que esta denunciasse o contrato e lhe pagasse os dois meses previstos para exercício do direito de denúncia do contrato.
37. O pedido referido em 36. foi negado pela Ré.
38. Fruto da situação descrita em 22. houve queda de audiências e a ré teve redução de fontes de receitas decorrente, nomeadamente, das receitas de publicidade.
*
A.2. E consideraram-se como não provados os seguintes factos [correspondendo os destaques a bold às alterações efectuadas no presente recurso]:

A. Fruto do descrito em 22. dos Factos Provados se tivesse verificado uma acentuada queda de audiências; [eliminado]
B. O aludido em A. dos Factos Não Provados tivesse determinado uma acentuada e abrupta redução de fontes de receita da Ré decorrente, nomeadamente, das receitas de publicidade; [eliminado]
C. Fruto do descrito em 22. dos Factos Provados, tivesse ocorrido um cancelamento da publicidade no canal televisivo da Ré.

*
B) – O Direito
1. A R. discorda da sentença, começando por impugnar a matéria de facto constante dos pontos 25, 26 e 33, dos factos provados, para os quais propõe outra redacção, dos pontos 31, 34, 35, 36 e 37 dos factos provados, que entende deverem passar a não provados, e a matéria das alíneas A), b) e C), dos factos não provados, que consideram que deveriam ter sido julgados como provados.
E indica as provas em que funda as pretendidas alterações, pelo que, considera-se ter dado cumprimento aos ónus de impugnação a que está adstrito o recorrente que impugna a matéria de facto, como previsto no artigo 640º do Código de Processo Civil.

2. Porém, antes de entrarmos na análise das questões colocadas, importa sublinhar que, não obstante se garantir no sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do artigo 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.
Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova (Remédio Marques, Acção Declarativa, à Luz do Código Revisto, 3.ª Edição, pág. 638 -641).
Assim, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo, a qual não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.
E, como nos dá conta o Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 25/01/2016 (processo n.º 05P3460), disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt: “(…) VII - O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
VIII - O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte. (…)”
Deste modo, a Relação aprecia livremente as provas, de acordo com o princípio constante do n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, a tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre convicção acerca de cada facto controvertido.
Por outro lado, não invalida a convicção do tribunal o facto de não existir uma prova directa e imediata da generalidade dos factos em discussão, sendo legítimo que se extraiam conclusões em função de elementos de prova, segundo juízos de normalidade e de razoabilidade, ou que se retirem ilações a partir de factos conhecidos.
Não se pode, porém, esquecer que nesta sua tarefa a Relação padece de constrangimentos decorrentes da circunstância de os depoimentos não se desenvolverem presencialmente, pelo que na reapreciação dos depoimentos gravados, a Relação tem apenas uma imediação mitigada, pois a gravação não transmite todos os pormenores que são captáveis pelo julgador e que vão contribuir para a formação da sua convicção.
Assim, a alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, em casos excepcionais e pontuais, e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.
Vejamos agora os factos impugnados.

3. No ponto 25 deu-se como provado que:
«25. A Ré, porém, manteve ininterruptamente a sua actividade durante o estado de emergência decretado, e após tal estado.»
Pretende a R. que se altere a redacção deste factos, passando a constar como: “25. A Ré manteve ininterruptamente a sua actividade durante o estado de emergência decretado, e após tal estado, mas, por força dos fortes condicionamentos inerentes ao referido estado de emergência decretado, utilizando material de arquivo, transmitindo programas gravados e, no que respeita ao Jornal A Bola no qual são publicadas as fotografias obtidas pela Ré, com a redução do número de páginas de entre as 40 a 48 para 32 páginas por ausência de assuntos a publicar.”
Para esta nova redacção, que mais não é do que um aditamento, convoca a R. os documentos n.ºs 3 [notícia alusiva à recepção pelo Presidente da República das Empresas de Comunicação Social] e 8 [registo da adesão pela R. ao “layoff” e de “apoio extraordinário à manutenção do Contrato de Trabalho”] juntos com a contestação e os depoimentos das testemunhas AA e BB.
Ora, no apuramento da matéria em causa, o Tribunal recorrido fundamentou-se também na prova indicada pela recorrente, tendo referido:
«O descrito em 25., relativamente à Ré ter mantido a sua actividade ao longo do estado de emergência decretado, obteve ganho de prova quer do que foi dito pela Autora, quer do que foi dito pela própria Ré, esta que no seu articulado admitiu expressamente ter continuado a efectuar publicações diárias, não obstante a suspensão das práticas desportivas, quer da prova documental (prints dos jornais, fls. 15 a 20 e 49), quer do depoimento testemunhal com referência às testemunhas EE, FF, GG, AA, CC e BB.
Com efeito, com grande relevo probatório nesta matéria, tivemos o depoimento da testemunha AA, que exerceu funções de técnica de recursos humanos quer para a Ré, quer para a sociedade Vicra Desportiva, com base no qual foi aferido quais os actos praticados pela Ré quando se viu confrontada com o decretamento do estado de emergência, como continuou a Ré a publicar diariamente conteúdo noticioso e onde se socorria para obter fotografias para o efeito. A testemunha disse que, perante o cenário pandémico, a Ré decidiu recorrer ao procedimento de lay off simplificado, com 9 (nove) pessoas com a categoria profissional de fotógrafos submetidas a tal procedimento deixando de prestar temporariamente as suas funções – cfr. facto provado em 24. Foi ainda da conjugação entre este depoimento testemunhal e o documento prints Segurança Social online (fls. 49v. a 50 v.) que resultou cabal leitura e análise do conteúdo deste.
A testemunha AA disse ainda que, com a retoma das competições desportivas, para recolha de fotografias das mesmas e publicação noticiosa, a Ré determinou que quatro dos seus trabalhadores que beneficiaram do regime de lay off voltassem a exercer as suas funções – cfr. facto provado em 29 – e ainda lançou mão de material fotográfico cedido gratuitamente por outras entidades – cfr. facto provado em 28.. Também com base neste depoimento resultou provado o facto constante de 32. (utilização pela Ré de material fotográfico de arquivo, produzido pela Autora).» (fim de citação)
É verdade que o facto em causa, se lido isoladamente inculca a ideia de que a R. manteve a sua actividade normal.
Porém, o referido ponto da matéria de facto tem que ser lido e interpretado no contexto em que surge, na sequência da situação epidemiológica provocada pela Covid 19, dos constrangimentos resultantes para a actividade da R. e das consequências para os seus trabalhadores, como consta dos pontos 22 a 24 e 33. E está também dado como provado no ponto 32 que no período de 19/03/2020 a 02/05/2020, a R. utilizou material fotográfico que tinha em arquivo produzido pela A..
A redacção proposta pela R., através do aditamento tem apoio nos depoimentos que cita, pelo que tendo em conta os constrangimentos decorrentes da situação pandémica no período em referência – de 19 de Março de 2020 a 2 de Maio de 2020 – tornam credível a versão transmitida pelas ditas testemunhas, sendo evidente que nesse período houve redução de actividade, tanto mais que foram cancelados, suspensos e/ou adiados todos os eventos desportivos que então se iam realizar e houve suspensão de contratos de trabalho, e a R. exerce a sua actividade na área do desporto.
Entende-se, assim, que há prova suficiente para justificar o aditamento pretendido, mas sem a concretização do número de páginas do jornal em causa, por falta de prova concludente quanto a esse aspecto, o qual passará a constar como seguinte teor:
“25. A Ré manteve ininterruptamente a sua actividade durante o estado de emergência decretado, e após tal estado, mas, por força dos fortes condicionamentos inerentes ao referido estado de emergência decretado, utilizando material de arquivo, transmitindo programas gravados e, no que respeita ao Jornal A Bola no qual são publicadas as fotografias obtidas pela Ré, com a redução do número de páginas.”

4. No ponto 26 deu-se com provado que:
« 26. Em Junho de 2020 foram retomadas, em parte, as competições desportivas, mais concretamente, de índole futebolística e, especificamente, a Primeira Liga de Futebol Profissional designada por “Liga NOS”.»
Pretende a recorrente que se adite que “…, sendo o acesso aos recintos desportivos limitado, designadamente para cobertura jornalística.”
Porém, o referido aditamento corresponde às limitações que, no essencial, se indicam no escrito reproduzido no ponto 27, pelo que o aditamento não se justifica.

5. No ponto 33 deu-se como provado que:
«33. Posteriormente a Agosto de 2020, a Ré determinou a redução do período normal de trabalho de vários trabalhadores.»
Entende a R. que este ponto da matéria de facto deve constar com a seguinte redacção: “33. Posteriormente a Agosto de 2020, a Ré determinou a suspensão do contrato de trabalho de vários trabalhadores, designadamente fotógrafos, ao abrigo do processo de lay-off comum previsto no Código do Trabalho.”
Pretende, pois, a R. que se considere como provado que suspendeu os contratos de trabalho, e não que reduziu o período normal de trabalho de vários trabalhadores, invocando os depoimentos das testemunhas AA e BB, bem como o documento n.º 8, já referido, junto com a contestação.
Porém, o dito documento, não identifica quais os trabalhadores abrangidos pelas medidas nele referidas.
Das passagens das gravações, designadamente do depoimento da testemunha BB, que a recorrente invoca, este referiu que em Março/Abril o responsável pela fotografia (HH) estava em Lay-off, dizendo “penso que com suspensão do contrato mesmo”, acrescentado depois que “estava suspenso”, e que assim se manteve durante 1 ano ou ano e meio. E também disse que os fotógrafos estava em lay-off, referindo que “eu penso que na primeira fase todos estavam com o contrato de trabalho suspenso e que depois quando começou e voltou o futebol, estivemos dois em Lisboa e dois no Porto durante vários meses.” Referiu ainda que do grupo de 9 ou 10 fotógrafos 4 foram retirados do lay-off.
Porém, daqui não resulta a convicção de que tenha sido em Agosto de 2020 que ocorreu a suspensão dos contratos de vários trabalhadores e não a redução do período normal de trabalho de alguns.
De resto, dos depoimentos das testemunhas citadas a convicção que se adquire é que, num primeiro momento houve suspensão de contratos de trabalho de vários trabalhadores e, decorrido algum tempo, a redução do período normal de trabalho, com quatro trabalhadores cujos contratos foram suspensos a reiniciar funções em Junho, como aliás consta do ponto 29 e se diz na motivação na sentença, por ser esse número suficiente para assegurar a cobertura fotográfica dos eventos desportivos a nível nacional.
Assim, não ocorre fundamento que imponha a alteração do facto em causa.

6. Nos pontos 31, 34, 35, 36 e 37, deu-se como provado que:
«31. A Autora, através do legal representante C..., contactou diversas vezes telefonicamente a Ré, para indagar quanto ao pagamento dos serviços que se obrigava contratualmente a prestar, tendo a Ré informado que, face à ausência de possibilidade de prestação de serviços, nada teria de pagar à Autora.»
«34. A Autora recebeu contacto telefónico do responsável pela edição da fotografia do jornal A Bola, em nome da Ré, solicitando a prestação de serviços, propondo o pagamento por cada registo fotográfico efectuado em cada evento desportivo, e não por um valor fixo mensal.
35. A Ré não aceitou a proposta descrita em 34.
36. C..., na qualidade de legal representante da Autora, solicitou verbalmente à Ré que esta denunciasse o contrato e lhe pagasse os dois meses previstos para exercício do direito de denúncia do contrato.
37. O pedido referido em 36. foi negado pela Ré.»

6.1. Tais factos foram considerados provados pelo Tribunal recorrido com a seguinte fundamentação:
«Atenta a não impugnação de tal facto pela Ré, por um lado (apenas impugnou que tenham sido diversos os telefonemas), e o depoimento da testemunha GG, que acompanhou directamente toda a situação vivenciada pelo legal representante da Autora, por outro, deu o Tribunal como provado o descrito em 31..
Os factos descritos em 34. a 37. resultaram provados com base no depoimento das testemunhas GG e II, os quais disseram, unanime e assertivamente, que pela Ré foi feita tal proposta, porém, recusada, e que a Ré se teria recusado a denunciar o contrato, a pedido de C..., pois não queria pagar o montante relativo a dois meses. A testemunha BB também dissera que existiu desacordo quanto aos valores das prestações de serviços, o que leva a crer que houve efectiva tentativa de negociação.»
A recorrente pretende que tais factos sejam alterados para não provados, por falta de elementos de prova “bastantes e credíveis”, e haver elementos de prova em contrário, referindo o depoimento da testemunha BB.

6.2. Não cremos que do facto de a A. só ter manifestado por escrito em Outubro a sua pretensão de receber as quantias referentes ao período de suspensão do contrato comunicada pela R., consubstancie a aceitação da suspensão e de que o pagamento não era devida.
Depois, a A. alegou no artigo 11º da petição inicial que: “Em várias diligências, por via telefónica, para saber em concreto as consequências dessa suspensão, o Autor foi informado de que não receberia qualquer retribuição durante a mesma e que não havia um fim previsto para a suspensão do contrato”,
Ora, no artigo 103º da contestação, a R. alegou: “A Ré aceita, também parcialmente, o alegado no artigo 11º da petição inicial, mais concretamente, aceita que a Autora, através do seu legal representante, contactou a R. com vista a indagar quanto ao pagamento dos serviços a que se obrigara contratualmente a prestar, tendo a Ré informado que, face à ausência da possibilidade da prestação de serviços os mesmos seriam suspensos e não iria proceder ao pagamento dos serviços prestados”.
Deste modo, atenta a confissão parcial e o teor do depoimento da testemunha GG, que o Tribunal recorrido invocou, o facto enunciado no ponto 31 permanece inalterado.
No que se reporta à matéria dos pontos 34 e 35 dos factos provados, o que a recorrente procura fazer é descredibilizar o depoimento das testemunhas GG e II, que contribuíram para a formação da convicção do Tribunal, referindo a relação de união de facto da testemunha GG com o legal representante da Recorrida, e a segunda a relação de amizade que mantém com este, tendo prestado depoimento indirecto.
Porém, tais razões não podem, por si só servir de pretexto para minorar os depoimentos de tais testemunhas, ainda mais quando se mostram credíveis, sendo que a este respeito importa não esquecer que na tarefa da reapreciação da matéria de facto, com base na prova gravada, a Relação padece de constrangimentos decorrentes da circunstância de os depoimentos não se desenvolverem presencialmente, pelo que na reapreciação dos depoimentos gravados, a Relação tem apenas uma imediação mitigada, pois a gravação não transmite todos os pormenores que são captáveis pelo julgador e que vão contribuir para a formação da sua convicção, como já se disse.
De todo o modo, ouvido o depoimento da referida testemunha, esta é clara e peremptória ao referir que o legal representante da A., seu companheiro, recebeu a proposta referida no ponto 34, que ouviu a conversa e sabe que quem lhe ligou foi BB, propondo a C... que ele voltaria “à peça”, que (se não lhe falha a memória) recebia € 40 e que precisava de alguém no Algarve e eram estas as condições, o que C... não aceitou. E também confirmou o facto referido no ponto 36, não tendo a R. denunciado o contrato (ponto 37).
E quanto à testemunha II, que trabalhou no jornal a Bola e é amiga do A., mostrou saber dos factos referidos nos pontos 36 e 37, e quanto aos indicados em 34 e 35, o seu depoimento não se baseou no que ouviu dizer, mas sim no facto de se encontrar em casa de C... quando decorreu a conversa (telefónica) e ter ouvido alguém do Jornal a “A Bola” a falar com ele de uma nova proposta de pagamento, em vez de ser por avença, ser ao serviço, com menor valor, o que não foi aceite.
Assim, tais factos mantém-se inalterados.

7. Impugna ainda a recorrentes a matéria constante das alíneas A), B) e C), onde se deu como não provado que:
«A. Fruto do descrito em 22. dos Factos Provados se tivesse verificado uma acentuada queda de audiências;
B. O aludido em A. dos Factos Não Provados tivesse determinado uma acentuada e abrupta redução de fontes de receita da Ré decorrente, nomeadamente, das receitas de publicidade;
C. Fruto do descrito em 22. dos Factos Provados, tivesse ocorrido um cancelamento da publicidade no canal televisivo da Ré.»
O que se pretendia saber era se, fruto da situação pandémica provocada pela doença Covid-19, tendo sido decretado o estado de emergência entre o dia 09/03/2020 e 02/05/2020, ocorreu uma acentuada queda de audiências, uma acentuada e abrupta redução de fontes de receita da R., decorrente, nomeadamente das receitas de publicidade, e que tivesse ocorrido um cancelamento da publicidade no canal televisivo do R..
Concordamos com a sentença, mas no sentido de que para prova da referida factualidade, com o alcance pretendido, não foi feita prova concludente.
Porém, que houve redução da actividade da R. já resulta indiciado no facto 25, e todos sabemos dos constrangimentos que a dita situação pandémica teve na vida pessoal e laboral de todos nós.
Trabalhando a R. na área do desporto e tendo sido cancelados, suspensos ou adiados os eventos desportivos que cobria é natural que tenha havido quebras de audiência no seu canal televisivo, apesar de nessa altura as pessoas terem permanecido em casa, e, teoricamente, com mais tempo disponível. Mas não havia notícias novas que despertassem o interesse em seguir os ditos canais, pelo menos como se vinha fazendo até então.
Daí que se aceite ter havido redução de receitas, nomeadamente de publicidade, com redução dos períodos publicitários e até os valores a pagar, o que surge justificado pela quebra de audiências.
Mas tal não significa que tais reduções tenham sido abruptas e acentuadas, sendo que para tanto era necessário que se tivesse feito outro tipo de prova, designadamente documental, que o atestasse, o que facilmente a R. poderia ter feito.
E lembramos, como já se disse, que foi dito que a R. já se encontrava numa situação financeira precária antes da pandemia, vindo esta a agravá-la.
Deste modo, e com apoio nos depoimentos das testemunhas que a recorrente refere, deve eliminar-se as alíneas A) e B) dos factos não provados e aditar-se à matéria de factos provado um facto, que passará a constar com o seguinte teor:
«38. Fruto da situação descrita em 22. houve queda de audiências e a ré teve redução de fontes de receitas decorrente, nomeadamente, das receitas de publicidade.»
Quanto à matéria da alínea C), entende-se não haver prova concludente que imponha que se considere provado que houve o cancelamento da publicidade no canal televisivo, que inculca a ideia que houve uma total falta de publicidade. Que houve redução dos tempos de publicidade e dos preços a pagar aceita-se, mas que toda a publicidade tenha sido cancelada não.

8. Deste modo, procede parcialmente o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, nos pontos assinalados, improcedendo nos demais.

9. No que se reporta à reapreciação jurídica da causa, propriamente dita, importa ponderar o seguinte:
Com a presente acção pretende a A. a condenação da R. no pagamento da quantia total de €11.366,66 (onze mil trezentos e sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos), acrescido de juros vencidos e vincendos, e ainda a no pagamento de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de indemnização por dados não patrimoniais.
Não se suscitam dúvidas de que entre as partes foi celebrado um contrato de prestação de serviços, que se reconduz ao tipo amplo definido no artigo 1154.º do Código Civil [“[c]ontrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição”.
Tendo em conta as cláusulas estipuladas e as obrigações principais assumidas pelas partes, temos, por um lado, a A. a assumir a obrigação de elaboração de serviços fotográficos de âmbito desportivo – cfr. 9.1 dos Factos Provados – e, por outro, a R. a assumir a obrigação, como contrapartida da colaboração da A., a pagar a esta a quantia mensal de €1.375,00 – cfr. 9.2 dos Factos Provados.
Mas, como se evidencia na sentença, a par desta obrigação principal assumida pela A., aparecem outras: uma traduzida na cedência dos direitos de autor dos trabalhos realizados pela Autora – cfr. 9.3 dos Factos Provados. Assim não tivesse sido convencionado e, nos termos do n.º 2 do artigo 14.º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos (C.D.A.D.C.), presumir-se-ia que a titularidade do direito de autor relativo a obra feita por conta de outrem pertenceria ao seu criador intelectual (ou seja, no caso, à aqui Autora). Relembremos que os trabalhos de fotografia embora exteriorizados num suporte material, constituem o produto de um trabalho intelectual, sendo uma criação do espírito, e que goza, por isso, da protecção própria do regime do C.D.A.D.C. – cfr. artigos 2.º n.º 1, alínea h), 11.º, 25.º, 164.º a 168.º do Decreto-Lei nº 63/85, de 14 de Maio e alterações subsequentes; outra, a obrigação assumida pela Autora de não prestação de serviços fotográficos a empresas concorrentes com a Ré – cfr. 9.6 dos Factos Provados.
E diz-se na sentença:
«Assim, estamos perante um contrato que ora tem características de um contrato de prestação de serviços, na modalidade de contrato de avença, pois neste contrato releva mais do que a obtenção de um resultado, a colocação do trabalho do avençado como meio de prossecução da actividade que o credor pretendeu contratar (…) – vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-10-2014, P. 168/10.8TTVNG.P3.S1, disponível em www.dgsi.pt – o que no caso, se verifica; ora estamos perante um contrato com características de cessão de direitos autorais.
Qualificando juridicamente, trata-se de um negócio jurídico bilateral, rectius, um contrato sinalagmático, oneroso, comutativo e consensual, dele emergem reciprocamente direitos e deveres, consubstanciados numa relação jurídica complexa: exige-se da Autora que coloque o seu trabalho como meio de prossecução da actividade da Ré, que ceda os seus direitos de autor sobre os trabalhos por si realizados no âmbito deste contrato à Ré e que não celebre contratos com empresas concorrentes da Ré; exige-se da Ré que pague o preço – certo, determinado e com a periodicidade mensal – à Autora.
Da leitura e interpretação do clausulado podemos concluir que a colocação do trabalho da Autora como meio de prossecução da actividade da Ré é uma das características essenciais do contrato celebrado entre as partes. O próprio contrato não dá enfoque ao resultado que teria de ser obtido pela Autora, nem ao número mínimo de registos fotográficos que a Autora teria de fazer, mas sim à colocação da Autora à disposição da Ré para o efeito. E daí se extrai que a Autora não estava obrigada a uma prestação efectiva de registos fotográficos para obter a contrapartida remuneratória, bastando para o efeito ser colaboradora da Ré.
Com isto, entendemos, estamos perante um contrato atípico ou inominado, cujo regime jurídico aplicável vamos agora tratar.
Dispuseram as partes que em tudo o que lhe fosse omisso, aplicar-se-iam os artigos 1154.º e seguintes do Código Civil – cfr. 9.8 dos Factos Provados. Já vimos que tais normas apresentam conexão com o acordado pelas partes, e – para lá do que, ao abrigo do princípio da autonomia privada e liberdade contratual, as partes convencionaram – deverão por isso aplicar-se ao caso, assim como, supletivamente, as regras do mandato – cfr. artigo 1156.º do Código Civil – esta remissão carece de alguma adaptação sempre que não envolva a prática de actos jurídicos, vide Ac. STJ de 11.12.2003, onde se pode ler “(…)VI - A aplicação do regime do mandato ao contrato de prestação de serviço, com as necessárias adaptações, nos termos do artigo 1156.º, significa, por um lado, que nem todas as normas integradoras do regime objecto da remissão se tornam necessariamente aplicáveis, e, por outro lado, que a sua aplicação, sendo caso disso, não tem lugar qua tale, mas com os cuidados devidos, de forma a evitar equiparações inadequadas que deixem no esquecimento, nomeadamente, especificidades imanentes à situação a regular(…)”.
Acrescem naturalmente as disposições gerais aplicáveis aos contratos, isto é, a responsabilidade contratual e o cumprimento e não cumprimento das obrigações, previstas nos artigos 762.º e seguintes do Código Civil.» (fim de citação).

10. Feito este enquadramento jurídico do contrato, colocou-se o julgador perante a questão de saber se a R. incumpriu o acordado com a A. ao suspender o contrato e não pagar a retribuição, tendo-se concluído, em breve síntese, que tal suspensão não tinha guarida nas normas legais aplicáveis ao contrato nem tinha sido aceite pela R., mas que, em função da alteração das circunstâncias que presidiram à decisão de contratar, justificava-se a redução da contraprestação da R. em 50%, no período entre 16 de Abril e 1 de Junho de 2020, sendo devido o pagamento integral a partir deste período até ao fim do contrato, que ocorreu por denúncia da R., com efeitos a 22/12/2020.
A R. discorda deste entendimento, em consequência da alteração pretendida quanto à matéria de facto e invocando o abuso de direito por parte da recorrida, entendendo que aceitou a dita suspensão, invoca a impossibilidade da prestação e a alteração das circunstâncias como causa justificativa para a suspensão do contrato.
Porém, desde já se adianta que não lhe assiste razão, porquanto as alterações efectuadas à matéria de facto não implicam que houvesse impossibilidade da prestação, nem que tenha ocorrido aceitação pela A. da suspensão do contrato, tendo antes a questão que ser analisada à luz da norma do artigo 437º, nº 1, do Código Civil, como se fez na sentença.

11. Como resulta dos autos, devido à situação epidemiológica provocada pela doença COVID-19, foi decretado o estado de emergência em Portugal às 00h00m do dia 19 de Março de 2020 – cfr. 22. dos Factos Provados. Em 14.04.2020, a R. enviou comunicação à A. a suspender o contrato – cfr. 11. e 13. dos Factos Provados – momento a partir do qual, não obstante manter-se disponível para o efeito, a Autora não efectuou quaisquer registos fotográficos para a Ré.
E, como se diz na fundamentação da sentença, com a qual concordamos e que, por elucidativa transcrevemos:
«Mantendo-se disponível, a Autora interpelou diversas vezes a Ré para que lhe fossem pagas as quantias em dívida ou para que a Ré denunciasse o contrato e pagasse dois meses como contratualmente acordado, quer telefonicamente quer por escrito – cfr. 9.7, 14., 15., 19., 31., 36. dos Factos Provados.
Ora, os contratos regem-se pelas suas cláusulas, enquanto expressão do princípio da autonomia privada e do seu corolário de liberdade contratual, embora sempre dentro dos limites legais (artigo 405.º do Código Civil). Em nenhum momento, as partes acordaram a possibilidade de suspensão do contrato celebrado. Do regime legal previsto nos artigos 1154.º do Código Civil, bem como das disposições gerais relativas ao cumprimento e não cumprimento das obrigações (artigos 762.º e seguintes do Código Civil) não resulta a possibilidade de suspensão do referido contrato.
Devendo o contrato ser pontualmente cumprido, só se podendo alterar ou extinguir por vontade das partes ou nos termos admitidos na lei – artigo 406.º, n.º 1 do Código Civil – tudo indica que o mesmo vigorou – sem interrupções e/ou suspensões – quer durante quer após o período de estado de emergência.
Saliente-se que não se figura defensável que dos actos praticados pela Autora após lhe ter sido comunicado alegada suspensão do contrato, se possa inferir que tenha tacitamente acordado na suspensão.
Com efeito, a Autora, por escrito e verbalmente, não expressou posição compatível com aceitação da suspensão dos efeitos do contrato, dizendo-se aliás sempre disponível para colaborar com a Ré. por outro lado, o seu silêncio também não se traduz em aceitação desde logo porque, fora das hipóteses do artigo 218.º do Código Civil, o silêncio não vale como declaração tácita negocial. Não valendo o silêncio como aceitação, também não estamos perante um caso de dispensa de declaração de aceitação – cfr. artigo 234.º do Código Civil.
Houve suspensão e adiamento dos eventos desportivos – cfr. 22. e 23. dos Factos Provados.
Considerando que a obrigação a que se vinculou a Autora se prende com a elaboração de serviços fotográficos de âmbito desportivo, a suspensão e adiamento dos eventos desportivos terá impossibilitado a prestação?
O estado de emergência e seus efeitos designadamente na vida desportiva do país legitimam alterações contratuais no caso concreto?
Impossibilidade da prestação
Dispõe o artigo 790.º, n.º 1, do Código Civil que “A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor.”. E o artigo 795.º, n.º 1, do mesmo código que “Quando no contrato bilateral uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa.”.
A impossibilidade objectiva da prestação, configurada no n.º 1 do artigo 790.º do Código Civil como causa de extinção da obrigação, “é somente a impossibilidade absoluta e não a mera difficultas proestandi resultante da extraordinária onerosidade ou excessiva dificuldade da prestação para o devedor, que não acarretam a extinção da obrigação deste” – cfr. Ac. TRG de 01.10.2009, P. 127/06.5TBAMR.G1, disponível em www.dgsi.pt.
Ainda que a memória recente nos conduza a reviver o medo de sair à rua no momento em que se decretara o estado de emergência, observando com objectividade, não nos parece que a prestação aqui em causa se tornasse absolutamente impossível.
Com efeito, serviços fotográficos de âmbito desportivo não se esgota em eventos públicos desportivos, existindo os treinos dos jogadores, o impacto da paragem na vida dos atletas, a reacção destes, as medidas adoptadas pelos clubes desportivos, etc. E ainda que confinados, o que dificultou a prestação de trabalho por muitas pessoas e entidades, a verdade é que, para o sector da comunicação, como é o da aqui Ré – que para além de partilhar recursos com a empresa Vicra Desportiva que é detentora do jornal A Bola, é detentora de canal televisivo e noticioso A Bola – cfr. 4., 5., 6. e 7. dos Factos Provados – o leque de possibilidades não reconduz, sem mais, à impossibilidade absoluta da prestação da Autora. O que não se deverá confundir com necessidades ou desnecessidades da Ré.
Nesta medida, o incumprimento contratual mantém-se, até aqui, apenas do lado da Ré, esta que devia ter pago à Autora os montantes acordados, como contraprestação da disponibilidade da Autora em colaboração com a Ré, sem contratar com empresa concorrencial – cfr. artigos 406.º, n.º 1, 763.º, 1167.º al. b) ex vi 1156.º, todos do Código Civil.
As exigências objectivas de comportamento impostas na ordem jurídica pelo princípio da boa fé – deveres comportamentais de correcção, honestidade e lealdade – que obrigam as partes ao longo da execução do contrato, também nos dão respostas ao presente caso.
Com efeito, lançar mão de uma figura inexistente na ordem jurídica, como a suspensão (unilateral) do contrato celebrado, mantendo-o após retoma dos eventos desportivos, ou seja, a partir de Maio de 2020, é escandalosamente violador dos deveres da boa fé contratual. De facto, a Ré, unilateralmente, pretendeu paralisar os efeitos do contrato, sem procurar renegociar com a Autora, nem chegar a qualquer tipo de solução justa e equilibrada para ambas as partes, deixando aquela à espera do momento em que, à Ré e só à Ré, fosse conveniente voltar à efectiva relação contratual (ainda que se tenha retomado alguns eventos desportivos).»

12. E não se argumente com o abuso de direito, previsto no artigo 304º do Código Civil, onde se estipula que “[é] ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Para que haja abuso de direito é, pois, necessário que exista uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito (cf. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, Almedina, 6ª ed., pág. 516).
Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa ou intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. I, 4ª ed. pág. 299).
Como se diz no Acórdão da Relação de Lisboa, de 24/04/2008 (proc. n.º 2889/2008-6): “existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado”.
A invocação pela R. deste instituto radica no facto de se entender que, ainda que a A. tivesse direito às retribuições não pagas no período da “suspensão do contrato”, o exercício da sua pretensão de as receber estaria paralisado por ter aceitado a suspensão do contrato.
Porém, não pode a recorrente retirar tal aceitação da carta mencionada no ponto 14 dos factos provados, onde a A. refere a falta de pagamento dos 14 dias anteriores à dita suspensão, sem manifestar oposição à suspensão do contrato, pois está também provado que a A. contactou a R. por diversas vezes para indagar do pagamento dos serviços e a R. até lhe chegou a propor o retomar dos serviços com o pagamento de outro modo (cf. pontos 31 e 34 dos factos provados).
Por conseguinte não está demonstrada matéria factual que sustente a dita excepção.

13. De resto, a questão tinha que ser resolvida à luz das normas referentes à alteração das circunstâncias, que legitimam a resolução ou modificação do contrato, nos termos previstos nos artigos 437º a 439º do Código Civil.
No que se reporta a este instituto, como se disse no acórdão desta Relação de 23/04/2024 (proc. 7105/21.2YIPRT.E1):
«Como se prescreve no artigo 437º, n.º do Código Civil: «Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato».
E, como se acrescenta no artigo 438º do mesmo código: «A parte lesada não goza do direito de resolução ou modificação do contrato, se estava em mora no momento em que a alteração das circunstâncias se verificou».
Assim, são requisitos necessários para que a alteração das circunstâncias pressupostas pelos contraentes conduza à resolução do contrato ou à sua modificação que:
- A alteração diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar;
- Essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal;
- A estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes;
- A manutenção do contrato afecte gravemente os princípios da boa fé;
- A situação não se encontrar abrangida pelos riscos próprios do contrato; e
- Não exista mora do lesado (requisito negativo) [cf. neste sentido, entre outros, Almeida Costa, ob. cit, pág. 336 a 342]
Como diz o mesmo Autor (ob. e loc. cit.), que nesta apreciação seguimos de perto, afigura-se necessário que as circunstâncias em análise tenham que representar-se evidentes, segundo o fim típico do contrato, ou seja, devem encontra-se na base do negócio, com consciência de ambos os contraentes ou razoável notoriedade.
Mas também é necessário que essa alteração seja anormal, no sentido da excepcionalidade. E, é anómala, a que escapa à regra, a que produz um sobressalto, um acidente, no curso ordinário ou série natural de acontecimentos.
Quanto ao requisito da existência de lesão para uma das partes, o aspecto a ter liminarmente em conta a respeito desta exigência é o da perturbação do originário contratual, que muitas vezes, consistirá no facto de se haver tornado demasiado onerosa, numa perspectiva económica, a prestação de uma das partes, não bastando uma qualquer diferença, antes deve ser expressiva, mas sem necessidade de colocar a parte numa situação de ruina económica, caso o contrato se mantenha incólume.
A ideia que domina a disciplina do n.º 1 do artigo 437º reporta-se aos princípios da boa fé negocial: são eles, em última análise que fundamentam a resolução ou revisão do contrato.
Como também refere o mesmo Autor, «[o] critério que sempre se impõe consiste em a divergência da prestação afectar gravemente os princípios da boa fé. Com um limite, porém: a alteração anómala das circunstâncias não deve compreender-se na álea própria do contrato, isto é, nas suas flutuações normais ou finalidade».
E, por fim, a exigência de um requisito negativo, a inexistência de mora do lesado.
Quanto a este requisito: «A lei refere-se ao momento em que se produz a alteração. Logo, se esta alteração antecede a mora, «não é o simples facto de o devedor ter incorrido em mora que o impede de pedir a resolução ou modificação do contrato [cfr. Pires de Lima/Antunes Varela, Cod. Civil. Anot., cit. vol. I,, 4ª ed. (com a colaboração de M. Henrique Mesquita), Coimbra, 1987, pág. 416, anotação 2 ao artigo 438º]. Parece solução indiscutível. Como também se afigura de admitir que, havendo prorrogação de prazo por acordo das partes, deverá atender-se à finalidade que elas tiveram em vista para efeitos de aplicação da doutrina da resolubilidade ou modificabilidade do contrato às alterações posteriores a essa prorrogação.»
Importa ainda salientar que a alteração das circunstâncias é um instituto que se fundamenta numa exigência de justiça.
Como refere Ana Filipa Morais Antunes (Alteração das Circunstâncias, Vulnerabilidade Negocial e Tutela da Parte Lesada; Almedina, 2024, pág. 30): «Está, assim, em causa um regime funcionalmente dirigido a tutelar, em primeira linha, o contraente que actua, no momento da superveniência extraordinária e prejudicial, na posição jurídica de devedor. Só deve, portanto, ser convocado na estrita medida pressuposta pela necessidade de protecção do sujeito que se encontra adstrito a realizar uma prestação a favor de outrem, à data da superveniência extraordinária e prejudicial; numa palavra, perante “um sacrifício que excede a razoabilidade da manutenção da sua vinculação nos termos acordados” [V. Henrique Sousa Antunes, A alteração das circunstâncias no direito europeu dos contratos, p. 21]».
E como salienta a mesma Autora, (ob. cit. pág. 32), «[n]o recente contexto pandémico, os casos apreciados pelos tribunais relevam, também, a ideia de onerosidade excessiva das condições do cumprimento do contrato, assim como a preocupação de evitar desequilíbrios negociais relevantes.» [Neste sentido, veja-se a resenha jurisprudencial elencada de fls. 33 a 36]

14. Como se concluiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/05/2023 (proc. n.º 1455/21.5YLPRT.L1.S1): «I - A crise COVID-19 consubstancia uma “grande alteração das circunstâncias”, criando a necessidade de reconformação do quadro em que se desenvolve a generalidade das relações jurídicas de carácter patrimonial».
E, a este respeito, escreveu-se no dito aresto:
«Costuma pensar-se nas grandes alterações de circunstâncias como sendo natureza política, social ou económica [Cfr., por exemplo, Manuel A. Carneiro da Frada, “Crise financeira mundial e alteração das circunstâncias – Contratos de depósito vs. Contratos de Gestão de Carteiras”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 71].
Ora, a crise COVID-19 foi, em primeiro lugar, multidimensional, afectando todas, simultaneamente, estas e outras dimensões do ser humano (físicas, psicológicas, culturais). Superou, pois, neste sentido, a “grande depressão” de 1929 e a crise global de 2008.
Depois, ela alastrou-se, de forma mais ou menos simétrica e de forma mais ou menos sincrónica, a todo o globo. Diversamente de uma guerra, e até diversamente de uma guerra mundial, não existem lugares absolutamente seguros ou não contaminados.
Por fim, os seus efeitos produziram-se – produzem-se ainda – por muito tempo, o que é apenas lógico, dado o seu extraordinário alcance.
Em suma: a crise COVID-19 configura uma “modificação brusca das condicionantes estruturais da coexistência social”, isto é, uma “grande alteração das circunstâncias” [Cfr. Werner Flume, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, Zweiter Band – Das Rechtsgeschäft, Berlin, Springer, 1992, pp. 523-524, e, ainda, Manuel A. Carneiro da Frada, “Crise financeira mundial e alteração das circunstâncias – Contratos de depósito vs. Contratos de Gestão de Carteiras”, cit., p. 70] – e uma em grau superlativo, que escapa às categorias dogmáticas habituais. (…)»

15. Nas circunstâncias em causa nos autos, a boa-fé impõe que a pandemia existente não deva ser aproveitada unilateralmente por um dos sujeitos em detrimento do outro, nem penalize arbitrariamente uma das partes, visto que a alteração das circunstâncias, conforme já dito, é totalmente alheia a qualquer das partes, devendo ser vista como um risco a que ambos os contraentes estão sujeitos [cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13/09/2022 (proc. n.º 3478/20.2T8 CSC.L1-7)].
Quando A. e R. celebraram o contrato assumindo determinadas obrigações, partiram do pressuposto que existiriam sempre eventos desportivos, nomeadamente jogos de futebol, entre outras competições desportivas, e factos relacionados com o desporto merecedores de publicidade (conferências, treinos, etc.), sem prejuízo da não realização de jogos por motivos previsíveis, como por exemplo férias dos desportistas. Não era naturalmente previsível, nem sequer de equacionar, o surgimento de uma pandemia que inicialmente faria com que ocorresse uma suspensão ou adiamento das competições desportivas, e subsequentemente que tais eventos ocorressem em número substancialmente inferior ao habitual.
Com este quadro de pandemia e da indefinição e dificuldade generalizada, como resulta dos factos provados, a R. foi afectada, na medida em que a sua actividade de publicação noticiosa de assuntos relacionados com actividades desportivas ficou afectada com falta de eventos desportivos, e que se traduziu numa diminuição de conteúdo noticioso-desportivo e também de receitas.
Porém, sopesando as circunstâncias concretas com que a R. se deparou - por um lado, sem eventos desportivos a decorrer, mas por outro mantendo em mãos um jornal com quem colaborava (A Bola), um canal televisivo (A Bola) e as plataformas digitais (site A Bola, redes sociais, etc.) – a mesma continuou a veicular informação noticiosa aos seus clientes, embora com limitações.
Já a A., por sua vez, como se diz na sentença, gozava de uma mão cheia de nada: um contrato (ilegal e unilateralmente suspenso) que continuava a cumprir, atenta a disponibilidade, sem contraprestação alguma, proibida de efectuar registos fotográficos para outras entidades concorrentes da Ré, como decorre da cláusula de exclusividade, e num país – que a final era o mundo inteiro – doente e cheio de incertezas.
Assim, numa relação bilateral, ao contrário do que a R. parece fazer crer, não é justo que a abrupta mudança das circunstâncias tenha que ser suportada apenas e só pela A., quando, no caso, as circunstâncias extraordinárias sobrevindas da súbita eclosão da pandemia e as medidas sanitárias decretadas, perturbaram o equilíbrio contratual inicialmente desejado vindo a lesar qualquer uma das partes.
Neste contexto, como bem se diz na sentença, “ditava o princípio da boa fé nas relações contratuais que Autora e Ré negociassem e/ou ajustassem o clausulado à nova realidade, mas nunca totalmente a desfavor/favor de uma das partes. Por outras palavras, as regras da boa-fé impediam qualquer solução de aproveitamento exclusivo pela Ré, em detrimento ou penalização arbitrária da posição contratual da Autora, pois, o risco contratual, na ponderação dos factos apurados nas circunstâncias ocorridas, deveria ter sido encarado como um risco distribuído – cfr. Manuel Carneiro da Frada, in obra citada, p. 156.”
Deste modo, concluímos igualmente que, justificando-se uma modificação do contrato, a mesma deverá obedecer a um critério de equidade, como consignado na sentença, onde se entendeu que:
«Da factualidade provada, resulta que, devido à situação epidemiológica provocada pela doença COVID-19, foi decretado o estado de emergência em Portugal às 00h00m do dia 19 de Março de 2020, tendo apenas cessado a partir das 23h59m do dia 2 de Maio de 2020, na sequência do que foram cancelados, suspensos e/ou adiados, todos os eventos desportivos que se encontravam agendados e que se iriam realizar nesse lapso temporal, retomando em Junho de 2020, em parte, as competições desportivas, mais concretamente, de índole futebolística e, especificamente, a Primeira Liga de Futebol Profissional designada por “Liga NOS”, com o Sporting Clube Farense a subir à Primeira Liga em 5 de Maio de 2020 – cfr. 22., 23., 26. e 30. dos Factos Provados.
A actividade da Ré não ficou paralisada, mas grandemente diminuída – cfr. 25. dos Factos Provados.
Com este enquadramento factual, entendemos que, no período temporal compreendido entre 16 de Abril e 1 de Junho de 2020, a contraprestação a que a Ré se obrigou perante a Autora deverá ser reduzida em 50%, sendo assim distribuído equitativamente o risco contratual assumido pelas partes – cfr. artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil.
Assim, naquele período, justificando-se a modificação do contrato por alteração das circunstâncias, à Autora era devido, pela Ré, o pagamento do valor de €687,50 (seiscentos e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos) referente a Maio de 2020 (considerando pago o mês de Abril).
No mais, atente-se.
A partir de Junho de 2020, decorridos mais de dois meses sobre o início da pandemia, com melhor visão sobre o futuro empresarial, a retoma da vida de algumas competições desportivas e afins e a subida de uma equipa de futebol de Faro à Primeira Liga (Sporting Clube Farense) – o que obrigara a “resgatar” quatro trabalhadores que se encontravam abrangidos pelo regime de lay off para efectuar registos fotográficos actualizados dos eventos desportivos – a postura da Ré, perante a Autora, manteve-se igual.
A Ré continuou a negar à Autora quer o pagamento de qualquer quantia, quer ainda a denúncia do contrato com pagamento de dois meses – cfr. factos 36. e 37. dos Factos Provados. A Ré, aliás, chegou a propor o pagamento à peça, e não mensal, de possíveis registos fotográficos a efectuar – cfr. 34. e 35. dos Factos Provados – o que releva para concluir que era possível a continuação da prestação pela Autora. Esta proposta, diga-se, implicava a celebração de um contrato em moldes completamente diferentes do que estaria a vincular as partes, sendo desajustada perante a alteração das circunstâncias em causa.
E só em Outubro de 2020, perante a insistência da Autora, a Ré decidiu denunciar o contrato – cfr. 17. e 18. dos Factos Provados – sem, contudo, efectuar qualquer pagamento relativo ao período de 60 (sessenta) dias de aviso prévio da denúncia, conforme contratualmente estabelecido – cfr. 9.7 dos Factos Provados.
A partir do momento em que retomam as competições desportivas, mesmo que em número inferior ao habitual, constatando-se em concreto a ocorrência de registos fotográficos dos eventos desportivos, com uma equipa de futebol algarvia a jogar na Primeira Liga, a Ré só não lançou mão da colaboração da Autora porque assim não quis, correndo o risco contratual por sua conta, e só por sua conta.
Dirá a Ré que necessitou de efectuar um corte nas fontes de despesa da sua empresa, decidindo obter os registos fotográficos através dos seus trabalhadores, porém, tal realidade não é imputável à Autora, muito menos quando a Ré podia optar pela denúncia do contrato, fazendo cessar a colaboração da Autora.
Tudo ponderado, chegamos à conclusão que, no caso concreto, alterações das circunstâncias que justificam a modificação do contrato – e nos moldes já expostos – verificaram-se apenas relativamente ao período compreendido entre Abril e 1 de Junho de 2020 (estado de emergência, confinamento, não ocorrência de eventos desportivos), devendo para lá desse tempo – entre 1 de Junho e 22 de Dezembro de 2020 – voltar a cumprir-se as cláusulas contratuais inicialmente estabelecidas entre as partes.
Assim, com referência aos meses de Abril e Maio de 2020, a contraprestação devida pela Ré à Autora deverá corresponder a metade do valor inicialmente contratado – sendo que, com este enquadramento jurídico, o mês de Abril se considera pago – e com referência aos meses de Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e 22 dias de Dezembro de 2020, a contraprestação devida pela Ré à Autora corresponderá ao valor inicialmente contratado – sendo o referente ao mês de Dezembro, no valor de €1.008,33 – num total de €9.945,83 (nove mil novecentos e quarenta e cinco euros e oitenta e três cêntimos).»

16. Com tais fundamentos, que aqui reiteramos, que não se mostram abalados pelas alterações efectuadas à matéria de facto, improcede a apelação, com a consequente manutenção da sentença recorrida.
*
IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
*
Évora, 6 de Junho de 2024
Francisco Xavier
Manuel Bargado
Elisabete Valente
(documento com assinatura electrónica)