LEI DE AMNISTIA
ARTIGO 6º DA LEI 38-A/2023
NÃO INCLUSÃO DE INFRAÇÃO LABORAL DE DIREITO PRIVADO
Sumário

I - O perdão de penas e a amnistia de infracções estabelecida na Lei nº 38-A/ 2023, de 2 de Agosto, decorrente da realização da Jornada Mundial da Juventude em Portugal, quando refere “infracções disciplinares” não está a incluir os ilícitos de natureza laboral praticados por trabalhadores vinculados a empregadores privados, ou seja, não abrange as infracções disciplinares laborais praticadas no âmbito de relações desta natureza.

(da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Proc. nº 15694/23.0T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo do Trabalho do Porto – Juiz 3



Recorrente: A..., S.A.
Recorrida: AA








Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto



I – RELATÓRIO
Nos termos do requerimento apresentado, em 15.09.2023, AA, casada, titular do Cartão de Cidadão n.º ..., contribuinte fiscal n.º ...27 e residente na Rua ..., frente, CP ... ..., veio, nos termos do artigo 170º e ss, do Código de Processo de Trabalho, intentar acção especial de impugnação de sanção disciplinar contra A..., SA, com o NIPC e NIF ...03 e sede na Rua ... - CP ... Lisboa, a qual após cumprimento do ordenado nos despachos de 20 e 27.09.2023, prosseguiu para apreciação do seguinte pedido, “que:
I. Seja declarada a nulidade de todo o procedimento disciplinar por eventuais vícios formais que tolham o direito de defesa da aqui A., impedindo que ele fosse de facto exercido nos termos legais;
II. Seja anulada a decisão disciplinar proferida pela Ré, por falta de fundamentação, nomeadamente, por não se ter pronunciado sobre a defesa apresentada pela A. e também pelo facto de esta atuar no exercício de um direito;
Ou,
III. Seja anulada a decisão disciplinar com fundamento em abuso de direito e/ ou sanção abusiva, considerando que a A. se recusou cumprir uma ordem à qual não devia obediência e como tal não pode ser cominada com sanção disciplinar.”.
Citada a ré, veio responder, nos termos do articulado junto, em 16.10.2023, terminando que, “deverá a presente ação ser julgada improcedente e não provada e a Ré absolvida de todos os pedidos, decidindo-se que é válido o processo disciplinar e válida e legitima a sanção disciplinar aplicada, que deverá manter-se.”.

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De seguida, a Mª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho: “Considerando a entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08 (Lei da Amnistia) e a sanção disciplinar que nestes autos é objecto de impugnação, notifique ambas as partes para se pronunciarem quanto à eventual aplicação da dita lei à sanção disciplinar em causa”.
Notificado este às partes, vieram pronunciar-se:
A A. dizendo que, “considerando o disposto no n.º 2, al. b) dos artigos 2.º e 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, deverá ser declarada amnistiada a infração disciplinar objecto da impugnação dos presentes autos, determinando a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos da al. e) do artº 277.º do CPC.”.
E a Ré, sob a argumentação de que a “Lei da Amnistia não se aplica aos presentes autos”, requer que, “- Seja julgada inconstitucional materialmente a Lei da amnistia (Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto) conforme acima invocado, sendo inaplicável às infrações praticadas por trabalhadores de entidades privadas;
- No caso de se entender que é constitucional e por isso aplicável a Lei da Amnistia – não concedendo -, então, não estão amnistiadas as infrações praticadas pela autora, uma vez que, tendo a decisão disciplinar que aplica a repreensão registada, sido decidida em 28.8.2023, e comunicada por carta de 29.8.2023, que ficou disponível para levantamento em 31.8.2023, - e tendo aquele diploma entrado em vigor em 1.9.2023, verifica-se que a amnistia já não se aplicaria então no caso dos autos.
- Deverá ser julgada improcedente a presente ação e a ré absolvida de todos os pedidos, mantendo-se a decisão disciplinar aplicada.”.
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De seguida, pela Mª Juíza “a quo”, foi proferida a decisão, datada de 14.12.2023, que terminou do seguinte modo:
«A) Julga-se amnistiada a infracção disciplinar imputada à autora por factos ocorridos no dia 24/05/2023, determinando-se a sua eliminação do respectivo registo disciplinar.
Sem custas, por não serem devidas.
Valor da acção: €5.000,01, porquanto a utilidade económica do pedido deduzido pela autora não é passível de ser quantificada.
Registe e notifique.».
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Inconformada com esta, veio a Ré interpor recurso, cujas alegações terminou com as seguintes “Conclusões:
1.A douta sentença recorrida decidiu – salvo o decidido respeito mal - que a infração disciplinar objecto dos presentes autos, está Amnistiada, com a entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023, de 2.8.2023 (Lei da Amnistia)
2.A referida Lei da Amnistia (Lei nº 38-A/2023, de 2.8.2023) não se aplica aos presentes autos.
3. Verifica-se a inconstitucionalidade da lei da Amnistia (Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto), que não é aplicada a infracções praticadas por trabalhadores ao serviço de empresas (privadas) com as quais tenham relações reguladas pelo Código do Trabalho, Lei Geral do trabalho.
4. A Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia) não amnistia as infracções disciplinares objecto dos presentes autos.
De facto,
5. A Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, veio estabelecer, no seu artigo 2º, n.º 2, alínea b) e artigo 6º, a amnistia das infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela mesma lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.
6. A Lei da Amnistia entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2023, conforme dispõe expressamente o seu artigo 15º.
7.Todavia, a Lei da Amnistia, no plano disciplinar, não se aplica às infrações disciplinares praticadas por trabalhadores ao serviço de entidades privadas, e tão só de entidades públicas.
8.Com efeito, a redacção da Lei da Amnistia gera algumas dúvidas sobre se quando a Lei se refere a “infrações disciplinares” – artigo 2º, n.º 2, alínea b) e artigo 6.º - pretende incluir as infrações disciplinares praticadas em empregadores privados ou se apenas estão abrangidas infrações disciplinares praticadas em entidades públicas.
9.Anteriores Leis da Amnistia - designadamente a Lei n.º 23/91, de 4 de Julho e a Lei n.º 29/99, de 12 de Maio – referiam-se expressamente as infrações disciplinares no âmbito do sector público, deixando à margem as infrações disciplinares praticadas em entidades privadas.
10. A nova Lei da Amnistia, por sua vez, não distingue entre infrações disciplinares praticadas no sector público ou no sector privado e, por isso, aparentemente o elemento literal aponta no sentido interpretativo de abranger todas as infrações disciplinares, quer no sector público, quer no sector privado.
11. Contudo, esta interpretação literal viola o disposto em algumas normas da Constituição da República Portuguesa, designadamente, o artigo 61º, que prevê o direito à iniciativa privada, o artigo 80º, alínea c), que estabelece como princípio fundamental da organização económico-social a liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista e, ainda, o artigo 86º, nº 2, que determina que o Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial.
12. Como escrevem António de Lemos Monteiro Fernandes e João Villaça para a RHMagazine (artigo disponível para consulta em https://rhmagazine.pt/atualidade-laboral- estarao-as-infracoes-laborais-cobertas-pela-amnistia/), 12.9.2023 em Destaques, Direito do Trabalho: (cfr. Doc. 1 junto com o requerimento da Ré, citius de 23.11.2023)
Atualidade Laboral: “Estarão as infrações laborais cobertas pela amnistia?”
A amnistia concedida pela visita do Papa Francisco deixa de pé a questão das sanções disciplinares laborais, aplicadas pelos empregadores privados.
A vinda a Portugal do Papa Francisco I, em virtude da realização das Jornadas Mundiais da Juventude, foi assinalada por um ato de clemência consistente num «perdão de penas e uma amnistia de infrações», conforme o regime estabelecido pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, designada como “Lei da Amnistia”.
No essencial, esse ato de clemência incidiu sobre as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto. Esta moldura deve entender-se válida para todo o regime de perdão e amnistia definido pelo diploma, embora alguma ambiguidade a esse respeito possa resultar de uma leitura menos atenta do seu texto.
Em primeiro lugar, é concedido um perdão de 1 ano sobre penas que não excedam 8 anos; são igualmente perdoadas sanções penais de menor importância, além de sanções acessórias relativas a contraordenações a que sejam aplicadas coimas de valor não superior a 1.000 euros. Esse perdão excetua, todavia, um vasto número de crimes.
Por outro lado, é estabelecida uma amnistia, a qual cobre as infrações penais cuja pena não ultrapasse 1 ano ou 120 dias de multa, e “as infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até àquela data, que não se revelem, em simultâneo, como ilícitos penais, e desde que não superiores a suspensão ou prisão disciplinar” – ou seja, infrações disciplinares punidas com sanções conservatórias.
Quanto a este último ponto, todavia, a Lei n.º 38-A/2023 parece deixar em aberto o significado a atribuir à expressão “infrações disciplinares”. O restante texto não oferece nenhuma indicação a esse propósito. Fica, aparentemente, de pé a questão de saber se essa expressão também abrangerá as sanções disciplinares laborais, aplicadas pelos empregadores privados, no exercício do seu poder disciplinar.
Em termos de consequências práticas, importará saber se as infrações que, no quadro das relações de trabalho privadas, tenham sido punidas com sanções conservatórias (a repreensão, a sanção pecuniária, a perda de dias de férias e a suspensão do trabalho sem retribuição) devem considerar-se cobertas pela amnistia estabelecida, impondo-se o seu apagamento dos respetivos registos disciplinares e a eventual devolução de valores salariais retidos.
Em geral, os anteriores diplomas referentes a amnistias não deixavam espaço significativo para tal dúvida. Tomando como exemplos os que assinalaram as visitas a Portugal do Papa João Paulo II, encontramos dois enunciados diferentes, mas que respondiam no mesmo sentido à questão posta. A Lei n.º 23/91, de 4 de julho estendia a amnistia às infrações disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, excetuando aquelas que, em simultâneo, constituíssem ilícito penal não amnistiado pela referida lei e tivessem sido punidas com despedimento. Por seu lado, a Lei n.º 29/99, de 12 de maio, excluía liminarmente do âmbito da amnistia os “ilícitos laborais”, e incluía ao mesmo tempo nesse âmbito as “infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares”, sob as mesmas condições definidas pela lei anteriormente citada. Era assim claro que, pelo menos, as infrações disciplinares praticadas por trabalhadores de empresas com as quais tivessem relações reguladas pela legislação laboral geral estariam excluídas do âmbito da amnistia.
A infeliz opção do legislador atual foi a de reproduzir uma parte da solução acolhida pela Lei n.º 29/99 (a inclusão na amnistia das infrações disciplinares e dos ilícitos disciplinares militares) omitindo a fórmula através da qual esse diploma afastava liminarmente da amnistia os “ilícitos laborais”. Uma interpretação literal do art. 6º da Lei n.º 38-A/2023 conduzirá, assim, à inserção de toda e qualquer infração disciplinar não extintiva no âmbito coberto pela amnistia.
Mas será, a nosso ver, uma interpretação errónea. O ato de clemência que se corporizou na Lei 38- A/2023 representa uma renúncia parcial e momentânea do Estado ao seu poder de punir (ius puniendi), reduzindo ou anulando penas aplicadas por crimes, coimas correspondentes a contraordenações e sanções fundadas em infrações disciplinares praticadas no âmbito de funções públicas, incluindo o sector militar. O Estado dispôs assim de faculdades sancionatórias que lhe pertencem, com o propósito de assinalar o acontecimento relevante que foi a Jornada Mundial de Juventude, com a presença do Papa.
Fora desse domínio se situa a disciplina laboral, conjunto de dispositivos de natureza normativa e sancionatória que se encontram na titularidade de quem gere empresas, como condição de viabilidade do funcionamento e da coesão interna destas. Em relação ao exercício do poder disciplinar, o legislador cria, normativamente, condições de controlo dos excessos e abusos a que ele pode conduzir, como poder funcionalizado ao interesse de uma das partes no contrato de trabalho. Mas não pode ir além disso. Não pode, nomeadamente, agir como se lhe pertencesse esse poder, renunciando totalmente ou parcialmente ao seu exercício – e privando da sua titularidade plena os empregadores.
A neutralização de decisões disciplinares nas empresas – para além dos casos em que a sua ilicitude seja declarada pelos tribunais – teria consequências conflituantes com a liberdade de organização e gestão das empresas, consagrada nos arts. 61º e 80º-c) da Constituição, e representaria uma forma de ingerência manifestamente não comportável nos limites definidos pelo art. 86º/2 da Lei Fundamental.
Esvaziar juízos disciplinares legitimamente realizados sobre comportamentos dos trabalhadores constitui um facto de enorme perturbação na ordem e na coesão interna das empresas, sem apoio no ordenamento constitucional.
Assim, pode bem interpretar-se o art. 6º da Lei 38-A/2023, nomeadamente no tocante à omissão do segmento que, na Lei 29/99, expressamente excluía os “ilícitos laborais”, como a expressão do reconhecimento das evidências que se acaba de apontar e, por conseguinte, em sentido restritivo, deixando à margem da amnistia decretada as infrações praticadas por trabalhadores ao serviço de empresas com as quais tenham relações reguladas pela lei geral do trabalho.
Resta saber se esta interpretação será acolhida pelos tribunais, em ações que a aparente ambiguidade da lei poderá ocasionar.”
13. Ao determinar a aplicação da amnistia às infrações disciplinares praticadas no sector privado, o legislador estaria - sem fundamento - a substituir-se aos empregadores privados no que respeita à liberdade de organização e gestão das suas empresas, possibilitando-se que o Estado – que não é a entidade patronal no caso - se imiscua e decida no âmbito de um poder disciplinar que não é seu (pois pertence a entidades privada), em oposição aos suprarreferidos normativos constitucionais.
14. Como se escreveu no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20/10/1993, Proc. 7298/91, disponível em www.dgsi.pt, a propósito da limitação às empresas públicas da amnistia da Lei n.º 23/91, de 4 de Julho:
Daí que, no caso da amnistia abarcar infracções disciplinares praticadas por trabalhadores do sector privado ou misto, poder-se-ia ver na actividade legislativa da Assembleia da República um confisco do poder disciplinar de entidades autónomas do estado, um ataque à iniciativa económica privada ou até uma ofensa ao direito de propriedade privada.
Certamente para obstar a essas consequências, o âmbito da aludida amnistia foi confinado a certas infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de entidades de natureza publica, em que o estado é, directa ou indirectamente o único titular do capital social dessas empresas.
15. Tendo em conta que a interpretação literal dos artigos 2º, nº 2, alínea b) e 6º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto viola o disposto em algumas normas da Constituição da República Portuguesa, designadamente, o artigo 61º, que prevê o direito à iniciativa privada, o artigo 80º, alínea c), que estabelece como princípio fundamental da organização económico-social a liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista e, ainda, o artigo 86º, nº 2, que determina que o Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial,
16. A interpretação feita pela douta sentença, ao entender que se aplica o disposto nos artºs 2º, nº 2, al. b) e artº 6º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, a infracções disciplinares praticadas por trabalhador de uma empresa privada (a Ré), com vínculo laboral à mesma, e no âmbito do sector privado, viola os referidos normativos constitucionais, sendo assim aquelas disposições da referida lei da Amnistia, inconstitucionais, na interpretação que o Tribunal a quo decidiu e aplicou nos presentes autos.
17. Deverão os referidos artigos 2º, nº 2, alínea b) e 6º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, ser interpretados de forma restritiva - sob pena de inconstitucionalidade material que aqui se invoca (por violação das disposições da CRP identificadas no parágrafo anterior)- no sentido de se aplicarem apenas às infracções disciplinares praticadas em entidades do sector público, ficando excluídas do seu âmbito de aplicação as infrações disciplinares praticadas em empregadores privados.
18.Atento o acima exposto a referida Lei da Amnistia (Lei nº 38-A72023, de 2 de Agosto), não se aplica a infracções disciplinares praticadas por trabalhadores ao serviço de entidades privadas (como é o caso dos presentes autos).
19. Mas, por outro lado, mesmo que aplicasse a Lei da Amnistia (Lei nº 38-A72023, de 2 de Agosto) – e não se aplica como vimos – não seria abrangida a sanção disciplinar decidida em 28.8.2023 (repreensão registada) (fls. 105 a 120, 121 e 122 do p.d. – Doc. 1 junto com a contestação)
20. Sobre a questão de saber se a Amnistia abrange os ilícitos disciplinares que já tenham sido sancionados à data da sua entrada em vigor e aqueles cuja sanção já tenha sido executada, é relevante o seguinte,
21. A amnistia aplica-se às infracções disciplinares praticadas até às 0:00h do dia 19 de Junho de 2023 (crf. Artº 2º, nº 2, b) daquela Lei).
22. Sendo a amnistia uma medida do campo penal, haverá que recorrer à aplicação dos princípios penais que são extensíveis ao plano disciplinar por se tratar também de direito sancionatório.
23. A amnistia é referida no artigo 127° do Código Penal como uma das causas de extinção da responsabilidade criminal e, quanto aos efeitos jurídicos, dispõe o n.° 2 do artigo 128.° do Código Penal, que “a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança”.
24. Assim, no plano disciplinar e cumpridos os demais requisitos, são amnistiadas as infracções disciplinares que ainda não tenham sido sancionadas e cessa a execução daquelas que se encontrassem nessa situação à data da entrada em vigor da Lei – 1 de Setembro/2023.
25. Como acima se viu, nos termos do artigo 127.º do Código Penal, a amnistia extingue a responsabilidade criminal e, por aplicação no plano disciplinar, a responsabilidade disciplinar.
26. Assim, a amnistia é uma medida que “apaga” o ilícito disciplinar. Existe, pois, uma eliminação retroactiva da infracção, no sentido em que a amnistia, operando ex tunc, incide não só sobre a própria pena, como também sobre o ilícito cometido, que cai em “esquecimento”, é tido como não praticado e, consequentemente, eliminado do registo disciplinar, com as demais consequências, como seja a restituição de perda de retribuição e a recontagem da antiguidade (no caso, claro está, de a sua execução ter ocorrido, total ou parcialmente, depois de 01/09/2023 – o que não é o caso dos autos).
27. Impugna-se a matéria de facto:
28. No caso dos autos, verifica-se o seguinte:
a)- Em 28.8.2023 – foi decidido a aplicação de sanção disciplinar (repreensão registada) – fls. 121 e 122 do p.d.
b)- Por carta de 29.8.2023 (Registo RL 096450539PT, que ficou disponível para levantamento em 31.8.2023) – foi comunicada a referida decisão – fls. 123 a 141, 142 e 143 do p.d.
c)- A sanção de repreensão registada verificou-se no dia 28.8.2023, comunicada por carta de 29.8.2023, que ficou disponibilizada para levantamento pela Autora, em 31.8.2023. (fls. 123 a 141, 142 e 143)
d)- Em 1.9.2023 – entrou em vigor a Lei da Amnistia (cfr. artº 15º da Lei nº 38- A/2023, de 2 de Agosto)
29. A ora Recorrente impugna a matéria de facto, por insuficiência, de forma a que a matéria descrita nas alíneas a), b) e c) supra transcrita (e que foi alegada no requerimento da Ré, de 23.11.2023, em resposta ao douto despacho – notificado à Ré por Ofício de 9.11.2023 – citius 453718668, para se pronunciar sobre a eventual aplicação da lei da Amnistia) seja levada aos factos provados, por ser relevante para o enquadramento de facto, sobre a matéria dos presentes autos, pois (no caso de se entender que a Lei da Amnistia é Constitucional – o que não se aceita), é relevante para se aferir, da aplicação ou não, daquela Lei.
30. Ou seja, quando a lei da Amnistia entrou em vigor (1.9.2023), a sanção disciplinar de repreensão registada já tinha sido decidida e já tinha sido remetida a sua comunicação à trabalhadora, ficando a carta disponível para levantamento, em 31 de Agosto de 2023.
31. Pelo que, quando a Lei da Amnistia entrou em vigor (1.9.2023), não só a sanção já tinha sido decidida, como já tinha sido comunicada.
32. Tendo a sanção disciplinar de repreensão registada ocorrido em 28.8.2023, comunicada por carta de 29.8.2023, disponível para levantamento em 31.8.2023, mesmo que fosse constitucional a lei da Amnistia (que entrou em vigor em 1.9.2023) – e não é, como acima alegado – nunca se aplicaria à infração disciplinar praticada no presente processo disciplinar, porquanto à data da entrada em vigor da lei da amnistia, já a sanção disciplinar tinha sido aplicada.
33. Verifica-se que a infracção disciplinar praticada pela Autora não se encontra amnistiada.
34. Atento o acima exposto deverá revogar-se a douta sentença recorrida e substituída por douta decisão no sentido de que a infração disciplinar discutida nos presentes autos (por factos praticados em 24.5.2023) não está amnistiada, devendo o processo seguir ulteriores termos.
35. Deverá julgar-se inconstitucional materialmente a Lei da amnistia (Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto) conforme acima invocado, sendo inaplicável às infrações praticadas por trabalhadores de entidades privadas;
36. No caso de se entender que é constitucional e por isso aplicável a Lei da Amnistia – não concedendo -, então, não estão amnistiadas as infrações praticadas pela autora, uma vez que, tendo a decisão disciplinar que aplica a repreensão registada, sido decidida em 28.8.2023, e comunicada por carta de 29.8.2023, que ficou disponível para levantamento em 31.8.2023, - e tendo aquele diploma entrado em vigor em 1.9.2023, verifica-se que a amnistia já não se aplicaria então no caso dos autos.
37. Deverá a douta sentença ser revogada e substituída por decisão judicial que mande baixar os autos com o prosseguimento dos ulteriores termos jugadando-se improcedente a presente ação e a ré absolvida de todos os pedidos, mantendo-se a decisão disciplinar aplicada.
38. Ao decidir como decidiu, violou a douta sentença judicial de fls…., designadamente, o disposto nos artigos 2º, nº 2, al. b) e 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2.8.2023, que deve ser interpretado de forma restrita – não se aplicando a infrações praticadas por trabalhadores do sector privado - sob pena de inconstitucionalidade, artº 15º do mesmo diploma, bem como violou o disposto nomeadamente nos artºs 61º, 80º, al. c), e 86º, nº 2 da CRP, bem como nos artºs 127º e 128º do Código Penal e no artº 98º do Código do Trabalho.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso assim se fazendo JUSTIÇA”.
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A A. não respondeu.
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A Mª Juíza “a quo”, admitiu a apelação, com efeito meramente devolutivo e ordenou a subida dos autos a este Tribunal.
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Já nesta Relação, o Ex.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos termos do art. 87º nº3, do CPT, no sentido de ser negado provimento ao recurso, no essencial, por considerar que, “3.2. A Lei n.º 38-A/2023, de 03.08, vem amnistiar as infrações penais cuja pena não ultrapasse 1 ano ou 120 dias de multa, e “as infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até àquela data, que não se revelem, em simultâneo, como ilícitos penais, e desde que não superiores a suspensão ou prisão disciplinar”, ou seja, infrações disciplinares punidas com sanções conservatórias.
Quanto a este último ponto, a Lei n.º 38-A/2023 deixa em aberto o significado a atribuir à expressão “infrações disciplinares”, pois, o texto não dá qualquer indicação a esse propósito.
O que coloca a questão de saber se esta expressão também abrange as sanções disciplinares laborais, e, abrangendo imporia a sua retirada dos respetivos registos disciplinares.
Os anteriores diplomas referentes a amnistias não davam espaço tão significativo para tal dúvida.
A Lei n.º 23/91, de 4 de julho estendia a amnistia às infrações disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, excetuando aquelas que, em simultâneo, constituíssem ilícito penal não amnistiado pela referida lei e tivessem sido punidas com despedimento.
E a Lei n.º 29/99, de 12 de maio, excluía do âmbito da amnistia os “ilícitos laborais”, e incluía ao mesmo tempo nesse âmbito as “infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares”, sob as mesmas condições definidas pela lei anteriormente citada.
Parecia, assim, que as infrações disciplinares praticadas por trabalhadores de empresas reguladas pela legislação laboral privada, estariam excluídas do âmbito da amnistia, o que não acontece com a actual Lei 38-A/23.
Ora, as leis de amnistia, como refere a jurisprudência, como providências de excepção que são, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, observando-se um critério de interpretação estrita, que exclua a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, ainda que daí resultem situações de injustiça relativa. (v. acs. do STJ, de 21.07.1987, proc. 039119, JSTJ00001529, www.dgsi.pt, da RC de 24.01.2024, proc. 14/23.2GTCBR.C1, da RL de 09.12.2020, proc. 690/12.2PFAMD.L3-3, e da RP de 27.11.2023, proc. 24/21.4PEPRT-B.P1).
Uma interpretação literal do art.º 6º da Lei n.º 38-A/2023, como deverá ser feita, conduzirá, pois, à inserção de toda e qualquer infração disciplinar não extintiva, no âmbito da amnistia, incluindo as laborais.
3.3. Entende, ainda, a Recorrente que se verifica “a inconstitucionalidade da lei da Amnistia (Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto), que não é aplicada a infracções praticadas por trabalhadores ao serviço de empresas (privadas) com as quais tenham relações reguladas pelo Código do Trabalho, Lei Geral do trabalho.”
Salvo melhor opinião, entende-se que a Lei de amnistia será aplicável às infracções laborais.
Poderia, eventualmente, verificar-se a inconstitucionalidade da mesma como refere a Ré.
Mas cremos que não. Com efeito, não se trata de uma intromissão do Estado nas empresas (privadas), na medida em que, o poder disciplinar não resulta de contrato (do contrato de trabalho), mas é, antes, previsto e regulado por lei.
Tal como depois a sanção disciplinar aplicada pela entidade empregadora pode ser impugnada nos tribunais judiciais como estava a decorrer neste caso.
E assim, entende-se que pode o Estado amnistiar, também, estas infracções disciplinares laborais, sem que isso constitua uma intromissão na organização empresarial.
4. Acompanhamos, pois, a douta sentença recorrida, para que se remete, entendendo-se que deve ser confirmada.”.
Notificadas deste, as partes não responderam.
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Cumpridos os vistos, há que apreciar e decidir.
*

É sabido que, salvas as matérias de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito a este Tribunal “ad quem” conhecer de matérias nelas não incluídas (cfr. art.s 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 608º nº 2, do CPC, aplicável “ex vi” do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT).
Assim, das questões suscitadas e a apreciar, a essencial, consiste em saber se a expressão “infrações disciplinares” constante da Lei nº 38-A/2023, de 03.08, abrange as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores de empresas privadas.
E, caso se entenda que sim, saber:
- se se verifica a inconstitucionalidade daquela Lei, como defende a recorrente.
E, ainda, caso se conclua pela sua constitucionalidade, saber:
- se a sanção disciplinar, em causa, decidida em 28.08.2023, não é abrangida pela referida Lei;
- se deve ser levada aos factos provados, a factualidade referida no ponto 28 das conclusões e, consequentemente, revogada a decisão recorrida e substituída por outra que decida o prosseguimento dos ulteriores termos da acção, como defende a recorrente.
*


II – FUNDAMENTAÇÃO
- Os factos a considerar são os que decorrem do relatório que antecede e que se encontram documentados nos autos.
*

Apreciando.
Nos presentes autos, vem a recorrente, através do presente recurso, insurgir-se contra a decisão recorrida, pretendendo a revogação desta, desde logo, na parte em que a Mª Juíza “a quo” julgou aplicar-se, ao caso, a Lei da Amnistia, nº 38-A/2023, de 03.08.
Comecemos, então, antes de qualquer outra consideração, por atentar na decisão recorrida, na qual se consignou o seguinte:
«(…).
Cumpre decidir.
Importa reter, antes de mais, que no caso em apreço estamos perante uma infracção disciplinar, punida com sanção de repreensão registada.
Dispõe o artigo 2.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, estão abrangidas pela amnistia as “sanções relativas a infracções disciplinares e infracções disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º”.
Já o artigo 6.º estabelece que: “São amnistiadas as infracções disciplinares e as infracções disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”. Estamos perante verdadeiras normas, inseridas no direito de clemência do Estado, entendidas unanimemente pela jurisprudência como normas de excepção, as quais não admitem, por esse motivo, qualquer aplicação analógica, nem interpretação extensiva ou restritiva das mesmas, devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas (por todos, o Assento n.º 2/2001, proc. n.º 3209/00-3, in DR I-A, de 14/11/2001).
Contrariamente às infracções e sanções penais, a delimitação subjectiva da aplicação da Lei da Amnistia prevista no n.º 1 do artigo 2.º (entre os 16 e os 30 anos de idade à data da prática dos factos), não é aplicável às infracções disciplinares, pelo que a mesma aplica-se independentemente da idade do agente à data dos respectivos factos.
Por outro lado, e no que toca à delimitação temporal, a Lei da Amnistia aplica-se às infracções praticadas até à meia-noite do dia 18/06/2023 (neste sentido, Pedro José Esteves de Brito, “Notas Práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, in Revista Julgar on-line). Por isso, julgamos não ser possível concluir, como o faz a ré, que a Lei da Amnistia apenas é aplicável às sanções que ainda estivessem pendentes de execução à data da sua entrada em vigor, já que se aplica a todas as infracções disciplinares praticadas até à meia-noite do dia 18/06/2023, sem qualquer restrição.
Analisadas as excepções previstas no artigo 7.º da referida Lei de Amnistia, que poderão determinar a exclusão da sua aplicação, verifica-se que, no caso em apreço, nenhuma das situações aí contempladas se encontra presente, desde logo a infracção disciplinar em apreço não constitui ilícito penal não amnistiado.
Acresce que, a sanção em apreço é precisamente uma das contempladas no artigo 6.º, por não se poder entender que é superior à sanção de suspensão.
No demais, cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20/01/1993, proc. n.º 003366, acessível in www.dgsi.pt, que a propósito da Lei 23/91 assim discorreu:
“II- Amnistia significa esquecimento, o apagamento dos efeitos jurídicos da infracção.
Trata-se de uma figura oriunda do direito penal. Apesar disso não existe uma conexão necessária entre amnistia e infracção criminal, não podendo afirmar-se actualmente que seja um instituto privativo do direito penal.
Desde há muito tempo a amnistia deixou de ser um instituto específico do direito penal, estendendo-se aos direitos sancionatórios conexos, como o direito penal e administrativo e ao direito disciplinar.
No domínio disciplinar, o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n. 24/84, de 16 de Janeiro, é expresso no n. 4, do seu artigo 11 em estatuir que as "amnistias não destroem os efeitos já produzidos pela aplicação da pena, deixando, porém, ser averbadas no competente processo individual". É indubitável, portanto, serem amnistiáveis as infracções disciplinares cometidas pelos funcionários e agentes da administração central, regional e local.
Por isso, não faz sentido negar a amnistiabilidade das infracções disciplinares no domínio das relações laborais comuns, porquanto as razões que justificam a amnistia daquelas infracções cabem inteiramente no âmbito destas.
Conforme se afirme no douto parecer junto, são "muitas as indicações constitucionais que apontam para uma concepção constitucional unitária das várias figuras sancionatórias (confere artigos 32, n. 8 e 269, n. 3) e que, por outro lado, tendem progressivamente a apagar as fronteiras entre as relações laborais de emprego público e as relações de trabalho reguladas pela lei comum do contrato de trabalho".
Aliás, a Constituição da República parte de uma concepção unitária dos direitos dos trabalhadores e das relações de trabalho, independentemente do seu estatuto, devendo "considerar-se trabalhador para efeitos constitucionais o trabalhador subordinado, o trabalhador por conta de outrém, ou seja, aquele que trabalha ou presta serviços por conta e sob direcção e autoridade de outrém, independentemente da categoria deste (contrato de trabalho privado, função pública, etc.)" (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, anotação I, 2 edição, página 290 e pelo artigo 53 e seguintes da Constituição da República Portuguesa).
Não admira, pois, que a amnistia de infracções laborais comuns não representa uma inovação da citada Lei n. 23/91, existindo, pelo menos, dois precedentes nesta matéria, constantes das Leis ns. 17/85, de 17 de Julho e 16/86, de 11 de Junho.
Por outro lado, a Constituição da República limita-se a atribuir competência à Assembleia da República para conceder amnistias, sem estabelecer qualquer concessão entre essa competência e a sua competência em matéria penal e sem impor qualquer restrição quanto ao âmbito dessa competência, podendo consequentemente, abranger as infracções disciplinares, qualquer que seja o seu tipo.
Nem se diga - como aduz o réu - que a amnistia está ligada ao poder primitivo do Estado, apenas sendo amnistiáveis as infracções que lhe cabe punir.
Desde logo, podendo a amnistia abarcar infracções disciplinares cometidas por funcionários ou agentes da administração regional e local e até de instituições dotadas de autonomia, como as universidades, é evidente que ela é extensiva a infracções que ao Estado não cabe punir, mas antes àquelas entidades, que gozam de autonomia relativamente ao Estado” – negrito nosso.
Não se vislumbra, pois, em que medida da amnistia da infracções laborais abrangida pela Lei em apreço contenda com o princípio da liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista, consagrado na alínea c) do artigo 80.º, da Constituição da República Portuguesa. “É certo que da Constituição portuguesa resulta reconhecida a liberdade de iniciativa económica privada, tal como decorre do artigo 61.º, n.º 1, a que se associa a liberdade de iniciativa e organização empresarial (artigo 80.º, alínea c), também da CRP). Uma das dimensões relevantes daquela liberdade é, sem dúvida, a liberdade empresarial ou a liberdade de exercício da atividade empresarial, a que se assinalam os limites ditados pelo «interesse geral», também referidos no n.º 1 do artigo 61.º da Constituição.
Do lado do Estado, o exercício daquelas liberdades é, em grande medida, garantido pelas incumbências constitucionalmente cometidas ao Estado com vista a assegurar «o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral» (artigo 81.º, alínea f), CRP).
– Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 430/2016, proc. n.º 367/13, acessível in www.tribunalconstitucional.pt.
“Como o Tribunal tem afirmado, a liberdade de iniciativa económica que pode retirar-se do disposto no n.º 1 do artigo 61.º e da alínea c) do artigo 80.º da CRP, visa garantir, no contexto de uma economia de mercado, que a produção e distribuição de bens ou serviços não seja vedada à acção dos privados, que terão assim um direito a uma actividade não obstaculizada por intervenções desrazoáveis ou injustificadas dos poderes públicos. Tal implica que no âmbito de protecção da norma contida no nº 1 do artigo 61.º se conte, não apenas a liberdade de iniciar uma certa actividade económica mas também a liberdade de organização e de ordenação dos meios institucionais necessários para levar a cabo a actividade que entretanto se iniciou (acórdão n.º 304/2010)” – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2016, proc. n.º 465/2015, acessível no mesmo site.
Salvo melhor entendimento, não vemos em que termos a aplicação de uma medida de clemência contende com a garantia institucional do sector privado e que possa representar ainda uma intervenção indevida do Estado na gestão das empresas privadas.
Como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06/10/1993, proc. n.º 003552, acessível in www.dgsi.pt, “também não se pode afirmar que a amnistia corresponde à supressão do poder disciplinar do Banco do réu.
A nosso ver, a amnistia não atenta contra o poder disciplinar e de direcção do Conselho de Administração da empresa, nesse sentindo.
O poder disciplinar podia ser exercido, como foi, pelo Conselho de Administração do Banco réu.
Mas isso não podia impedir, como não impediu, que, posteriormente, a Assembleia da República, no uso da sua ampla competência própria - artigo 164, alínea g), da Constituição da República Portuguesa – amnistiasse as infracções disciplinares laborais, como, de resto, sucede em matéria criminal, em que o poder de julgamento pertence aos tribunais.
O mesmo se poderia dizer se a amnistia tivesse sido decretada antes de exercido o poder disciplinar.
Como a amnistia faz esquecer a infracção disciplinar, ficava prejudicado o exercício do poder disciplinar quanto às infracções amnistiadas - como fica o poder de julgamento pelos tribunais - mas não o poder disciplinar do Conselho de Administração, que se podia continuar a exercer relativamente a quaisquer outras infracções disciplinares não amnistiadas” – negrito nosso.
Assim sendo, não encontramos motivos para afastar a aplicação da Lei da Amnistia ao presente caso, com fundamento em inconstitucionalidade.
Por todo o exposto, julga-se amnistiada a infracção imputada à aqui autora.
No que toca aos efeitos da amnistia da infracção, seguindo de perto a jurisprudência consolidada tirada ao abrigo das Leis de Amnistia precedentes, a amnistia não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da pena, conforme decidiram o Supremo Tribunal de Justiça, nos Acórdãos de 20/10/1993, proc. n.º 003720, de 04/11/1992, proc. n.º 003519, de 06/10/1993, proc. n.º 003552 e o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 28/11/1995, proc. n.º 036683, todos acessíveis in www.dgsi.pt.».
Desta, discorda a recorrente, desde logo, na consideração de a amnistia não ser aplicável ao caso argumentando, essencialmente, o seguinte: “(…), a Lei da Amnistia, no plano disciplinar, não se aplica às infrações disciplinares praticadas por trabalhadores ao serviço de entidades privadas, e tão só de entidades públicas.
Com efeito, a redacção da Lei da Amnistia gera algumas dúvidas sobre se quando a Lei se refere a “infrações disciplinares” – artigo 2º, n.º 2, alínea b) e artigo 6.º - pretende incluir as infrações disciplinares praticadas em empregadores privados ou se apenas estão abrangidas infrações disciplinares praticadas em entidades públicas.
Anteriores Leis da Amnistia - designadamente a Lei n.º 23/91, de 4 de Julho e a Lei n.º 29/99, de 12 de Maio – referiam-se expressamente as infrações disciplinares no âmbito do sector público, deixando à margem as infrações disciplinares praticadas em entidades privadas.
A nova Lei da Amnistia, por sua vez, não distingue entre infrações disciplinares praticadas no sector público ou no sector privado e, por isso, aparentemente o elemento literal aponta no sentido interpretativo de abranger todas as infrações disciplinares, quer no sector público, quer no sector privado.
Contudo, esta interpretação literal viola o disposto em algumas normas da Constituição da República Portuguesa, designadamente, o artigo 61º, que prevê o direito à iniciativa privada, o artigo 80º, alínea c), que estabelece como princípio fundamental da organização económico-social a liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista e, ainda, o artigo 86º, nº 2, que determina que o Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial.”.
Vejamos, então.
Verifica-se do que antecede que, a questão essencial a apreciar é saber se, ao contrário do que se decidiu no Tribunal recorrido, não estão incluídas no âmbito da Lei nº 38-A/2023, de 02.08 (Lei da Amnistia) as infrações disciplinares laborais praticadas por trabalhadores com vínculo a empregadores privados, sob pena de inconstitucionalidade, como defende a recorrente.
A presente questão, já foi apreciada em sede dos Tribunais da Relação, em concreto, em situação igual à vertente, observou-se no recente Acórdão desta RP, de 20 de Maio de 2024, (relatado pelo Desembargador Rui Penha, ao que supomos ainda sem publicação, disponível no registo de sentenças Citius), o seguinte, e passamos, com o devido crédito aos seus subscritores, a transcrever:
«Nos termos do art. 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, que “estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, são amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.
A questão que se coloca consiste em saber se a amnistia referida se aplica ou não a infracções disciplinares laborais no âmbito de empresas privadas. Sustenta-se na sentença sob recurso que nada obsta à resposta afirmativa a tal questão, pelo que a aplicou, e defende a recorrente a negativa, sustentando, em última análise a inconstitucionalidade do entendimento acolhido na sentença.
Importa começar por referir que a jurisprudência invocada na sentença sob recurso, nomeadamente o acórdão do Tribunal Constitucional nº 152/1993, de 3 de Fevereiro de 1993, processo 151/92, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, foi tirada a propósito da amnistia da Lei nº Lei nº 23/91, de 4 de Julho, não respondendo a esta questão, uma vez que a mesma jurisprudência apenas se pronuncia, de forma positiva, sobre a aplicação de tal amnistia às infrações disciplinares laborais no âmbito de empresas públicas ou de capitais públicos, deixando de fora a sua aplicação às infrações disciplinares laborais no âmbito de empresas privadas. Isso mesmo se refere expressamente no referido acórdão do Tribunal Constitucional: “não tem o Tribunal Constitucional de curar agora da questão de natureza seguramente diferente, a saber, a da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade de normas de amnistia que tivessem por destinatários trabalhadores de empresas privadas, autores de infracções disciplinares.”
Aliás, analisando tal acórdão, que faz uma resenha histórica no direito português e de direito comparado, resulta que a aplicação das leis de amnistia a infrações disciplinares laborais no âmbito de empresas privadas, ocorreram em escassas situações, em Espanha, França e Brasil, em contextos historicamente excepcionais de mutações constitucionais, ou semelhantes.
De todo o modo, isso não impediria o legislador nacional de consagrar a amnistia das infracções aqui em causa no art. 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, como se defende na sentença sob recurso, mesmo que tal se pudesse configurar como inconstitucional.
Entendemos, porém, que não foi essa a situação, como defende a recorrente.
Sobre a questão em análise pronunciou-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Janeiro de 2024, processo 778/23.3T8PDL-A.L1-4, acessível em www.dgsi,pt, nos seguintes termos:
“Nos termos do artigo 98º do Código do Trabalho, “O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho.”
Como se escreve no sumário do Acórdão do STJ de 21.03.2012, Proc. 161/09.3TTVLG.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt, “I - A titularidade do poder disciplinar, enquanto emanação essencial contida no contrato de trabalho, (que, por definição, conforma a posição de supremacia ou autoridade do empregador, nessa relação, por contraposição à característica subordinação jurídica do trabalhador), está legalmente conferida ao empregador. (…).” E como também elucida o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.02.2022, Proc. 9443/19.5T8LRS.L1, igual pesquisa: “I– O poder disciplinar caracteriza-se por ser um poder subjetivo do empregador, que se reconduz à categoria de direito potestativo, traduzindo-se para o trabalhador numa posição de sujeição face às alterações que o exercício de tal poder implicam na sua esfera jurídica. (…).”
E de acordo com o mesmo aresto, trata-se de um poder exclusivo do empregador, que pode ser exercido directamente pelo empregador ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele (art. 329º nº 4 do Código do Trabalho).
(...)
Não obstante, o despacho recorrido considerou que a sanção disciplinar aplicada à Autora está amnistiada.
(...)
A amnistia, é assim, uma medida de clemência emanada da vontade do poder político.
E como se afirma no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.12.2023, Proc. nº 2436/03.6PULSB-D.L1, consultável em www.dgsi.pt, “A amnistia e perdão são medidas penais que concedem a graça inerente, ou seja, amnistiando certos crimes e/ou perdoando certas penas, de determinada natureza e dentro de determinados limites, como ali se imponha. Enquanto reminiscências históricas e manifestação de soberana vontade de quem assim podia dispor dos poderes do Estado, chega aos nossos dias sobretudo com um âmbito que, ainda por conceder uma vantagem decorrente de uma circunstância não especificamente judiciária, se prefigura mais como a oportunidade de esbater os efeitos da generalidade e abstracção das normas legais.”
Por outro lado, há que ter presente que as Leis de Amnistia têm um carácter excepcional pelo que não comportam aplicação analógica (art. 11º do Código Civil).
(...)
Sucede, porém, que, nem o artigo 2º nº 2 al. b), nem o artigo 6º da Lei esclarecem sobre a natureza das “infracções disciplinares” contempladas pela amnistia colocando-se, pois, a questão de saber se nelas estarão incluídas as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores de empresas privadas.
Ora, limitando-se as mencionadas normas a aludir às “infracções disciplinares” sem operar qualquer distinção entre as praticadas por trabalhadores de empresas privadas e trabalhadores ao serviço de empresas ou organismos públicos e sendo conhecido o brocardo “onde a lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir”, à primeira vista, a conclusão a retirar seria a de que a Lei da Amnistia também abrangeria as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados por relação laboral privada.
Mas dizemos à primeira vista porque não será assim.
Como é sabido, a interpretação da lei não se cinge ao elemento literal.
Com efeito, estatui o artigo 9º do Código Civil: “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
(...)
Donde, a letra da lei é o ponto de partida e não pode ser considerado o pensamento legislativo que não tenha o mínimo de expressão no texto da Lei.
A par, impõe-se ao intérprete socorrer-se dos demais elementos de interpretação da lei, assumindo, por vezes, particular importância, na busca da mente do legislador, a proposta que antecedeu a lei.
(...)
Porém, no que respeita à questão em análise, a “Exposição de motivos” nada adianta quanto ao que extrair do artigo 2º nº 2 al. b) e 6º na parte relativa às “infracções disciplinares.”
Sustenta a Recorrente que o elemento histórico aponta no sentido de que as “infracções disciplinares” não respeitam às praticadas por trabalhadores de empresas privadas e chama à colação a Lei nº 23/91, de 4 de Julho, referindo que esta estendeu a amnistia mas limitada às infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos e que a Lei nº 29/99, de 12 de Maio, excluía liminarmente do âmbito da amnistia os “ilícitos laborais” e incluía as “infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares.”
A Recorrida, por seu turno, invoca que a inclusão de matéria disciplinar laboral comum no regime de amnistias, ao contrário do que alega a Recorrente, não foi apenas contemplada na Lei nº 23/91 de 4 de Julho, existindo, pelo menos, dois precedentes nesta matéria constantes na Lei nº 17/85, de 17 de Julho e na Lei nº 16/86, de 11 de Junho, mas reconhecendo que as amnistias anteriormente decretadas foram aplicadas a empresas públicas, concluindo, contudo, não haver fundamento para negar a amnistia a infracções disciplinares no domínio das relações laborais privadas.
Analisadas as referidas Leis constata-se que a Lei nº 23/91 de 4 de Julho amnistiou as infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos (art. 1º al. ii) e a Lei 29/99 de 12 de Maio, amnistiou as infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituíssem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela mesma lei e cuja sanção aplicável não fosse superior à suspensão ou prisão disciplinar, desde que não constituíssem ilícito antieconómico, fiscal, aduaneiro, ambiental e laboral (artigo 7º al. c).
De tal análise cremos poder concluir que a história recente das Leis de Amnistia nunca seguiu no sentido de abranger as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados.
E a explicação para tanto parece dever radicar na circunstância de o Estado não ter poderes para dispor de um direito de que não é titular.
Sobre esta questão escrevem António de Lemos Monteiro Fernandes e João Vilaça, em RH Magazine, 12 de Setembro de 2023, consultável em https://rhmagazine.pt/atualidade-laboral-estarao-as-infracoes-laborais-cobertas-pela-amnistia/: (...) “Quanto a este último ponto, todavia, a Lei nº 38-A/2023 parece deixar em aberto o significado a atribuir à expressão “infrações disciplinares”. O restante texto não oferece nenhuma indicação a esse propósito. Fica, aparentemente, de pé a questão de saber se essa expressão também abrangerá as sanções disciplinares laborais, aplicadas pelos empregadores privados, no exercício do seu poder disciplinar. A infeliz opção do legislador atual foi a de reproduzir uma parte da solução acolhida pela Lei nº 29/99 (a inclusão na amnistia das infrações disciplinares e dos ilícitos disciplinares militares) omitindo a fórmula através da qual esse diploma afastava liminarmente da amnistia os “ilícitos laborais”. Uma interpretação literal do art. 6º da Lei nº 38-A/2023 conduzirá, assim, à inserção de toda e qualquer infração disciplinar não extintiva no âmbito coberto pela amnistia. Mas será, a nosso ver, uma interpretação errónea. O ato de clemência que se corporizou na Lei 38-A/2023 representa uma renúncia parcial e momentânea do Estado ao seu poder de punir (ius puniendi), reduzindo ou anulando penas aplicadas por crimes, coimas correspondentes a contraordenações e sanções fundadas em infrações disciplinares praticadas no âmbito de funções públicas, incluindo o sector militar. O Estado dispôs assim de faculdades sancionatórias que lhe pertencem, com o propósito de assinalar o acontecimento relevante que foi a Jornada Mundial de Juventude, com a presença do Papa. Fora desse domínio se situa a disciplina laboral, conjunto de dispositivos de natureza normativa e sancionatória que se encontram na titularidade de quem gere empresas, como condição de viabilidade do funcionamento e da coesão interna destas. Em relação ao exercício do poder disciplinar, o legislador cria, normativamente, condições de controlo dos excessos e abusos a que ele pode conduzir, como poder funcionalizado ao interesse de uma das partes no contrato de trabalho. Mas não pode ir além disso. Não pode, nomeadamente, agir como se lhe pertencesse esse poder, renunciando totalmente ou parcialmente ao seu exercício – e privando da sua titularidade plena os empregadores. A neutralização de decisões disciplinares nas empresas – para além dos casos em que a sua ilicitude seja declarada pelos tribunais – teria consequências conflituantes com a liberdade de organização e gestão das empresas, consagrada nos arts. 61º e 80º-c) da Constituição, e representaria uma forma de ingerência manifestamente não comportável nos limites definidos pelo art. 86º/2 da Lei Fundamental. Esvaziar juízos disciplinares legitimamente realizados sobre comportamentos dos trabalhadores constitui um facto de enorme perturbação na ordem e na coesão interna das empresas, sem apoio no ordenamento constitucional. Assim, pode bem interpretar-se o art.º 6º da Lei 38-A/2023, nomeadamente no tocante à omissão do segmento que, na Lei 29/99, expressamente excluía os “ilícitos laborais”, como a expressão do reconhecimento das evidências que se acaba de apontar e, por conseguinte, em sentido restritivo, deixando à margem da amnistia decretada as infrações praticadas por trabalhadores ao serviço de empresas com as quais tenham relações reguladas pela lei geral do trabalho.”
Considerando o que acima se referiu sobre os contornos do poder disciplinar e sobre as Leis de Amnistia acompanhamos aquela interpretação, sendo certo que considerar o contrário violaria o quadro constitucional vigente.
Com efeito, a interpretação de que o artigo 2º nº 2 al. b) da Lei da Amnistia quando refere “infracções disciplinares” está a incluir os ilícitos de natureza laboral praticados por trabalhadores vinculados a empregadores privados, para além de esvaziar o poder disciplinar do empregador sem, em simultâneo, alterar o Código do Trabalho na parte relativa àquele poder, representaria uma intromissão por parte do Estado na gestão e organização das empresas privadas, não permitida por chocar com o direito à livre iniciativa, à liberdade de iniciativa e de organização empresarial e com o princípio de que o Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial, consagrados nos artigos 61º nº 1, 80º al. c) e 82º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, como afirmado por aqueles autores.
Por conseguinte, resta concluir no sentido de que a Lei nº 38-A /2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia), não abrange as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados.”
Este é o entendimento igualmente sufragado no acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, com a mesma data, 24 de Janeiro de 2024, processo 24210/21.8T8LSB.L2-4, assim como o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de Maio de 2024, processo 1773/23.8T8VCT-A.G1, também acessíveis em www.dgsi.pt, bem como pela doutrina citada pela recorrente nas suas alegações e na própria sentença recorrida.”
Procede, portanto, o recurso.».
Ora, este entendimento que se veio de reproduzir ajusta-se rigorosamente ao caso vertente. E concordamos inteiramente com ele.
Tudo o que pudéssemos dizer por palavras próprias mais não seria que uma repetição de tal entendimento.
Como assim, julgamos que não decidiu correctamente o Tribunal recorrido ao julgar amnistiada a infracção imputada à aqui autora e ter considerado não encontrar motivos para afastar a aplicação da Lei da Amnistia ao presente caso, com fundamento em inconstitucionalidade.
Por todo o exposto, fica prejudicada, qualquer outra questão dependente de se julgar improcedente aquela primeira e, consequentemente, o recurso só pode ser julgado procedente com a consequente revogação da decisão recorrida.

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III – DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes desta secção em julgar o recurso procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida.
*
Custas pela recorrida.



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Porto, 3 de Junho de 2024

*
O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos,
Relatora: Rita Romeira
1ª Adjunta: Nelson Fernandes
2ª Adjunta: Eugénia Pedro