SIGILO BANCÁRIO
INTERESSE PREPONDERANTE
INTERESSE DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA
Sumário

I - Mostra-se legítima a recusa do Banco ao abrigo do dever de segredo bancário, quando está em causa proceder à junção de documentos emitidos por terceiros, que não figuram como parte na ação e não autorizam a divulgação da sua identidade e que comprovam os movimentos na conta bancária titulada pela autora.
II - Na ponderação do interesse preponderante, prevalece o interesse na administração da justiça sobre o interesse privado, o que justifica a dispensa de sigilo bancário para o Banco réu proceder à junção de prova documental da origem (instruções) e destino (beneficiários) das transações bancárias operadas na conta à ordem, titulada pela autora e autorizar os colaboradores indicados como testemunhas a depor sobre tal matéria, com vista à comprovação dos movimentos bancários na conta titulada pela autora e referenciados na petição e na contestação.

Texto Integral

Sigilo Bancário – 3326/22.9T8VFR-A.P1


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SUMÁRIO[1] (art.º 663º/7 CPC):

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto ( 5ª secção judicial – 3ª Secção Cível )

I. Relatório

O réu Banco 1... veio requerer o incidente de LEVANTAMENTO DO SIGILO BANCÁRIO alegando para o efeito que enquanto instituição bancária, está obrigado a um dever de sigilo, não podendo revelar dados relativos a clientes e produtos financeiros (artigos 78.º e 79.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31/12).

Os beneficiários das ordens de pagamento sobre o estrangeiro invocadas pela A. na pretensão que deduz contra o R., e invocadas pelo R. na sua defesa (as entidades e as contas bancárias em causa) são dados conhecidos pelo R. mas que o mesmo não pode revelar nos autos por colidir com tal dever de sigilo.

Tais beneficiários/destinatários não requereram, nem consequentemente autorizaram, que fossem prestadas nos autos informações sobre a sua identidade. Tratando-se de dados relativos a contas bancárias de quem não é parte na causa e não existindo autorização do respetivo titular (que constitui cláusula geral de exclusão do dever de sigilo – artigo 79.º do RGICSF), está o R. impedido de os revelar (v. também o disposto no artigo 417.º, n.º 3, alínea c) do CPC).

No entanto, só o conhecimento da identidade dos ordenantes e beneficiários das operações bancárias aportadas aos autos pela A. (e de outras conexas, invocadas como defesa na presente contestação), permitirá conhecer e determinar com exatidão a existência, ou não, do direito a que a A. se arroga perante o R..

Mais alegou que conhece essa identidade, tratando-se, como por diversas vezes referiu na sua defesa, de pessoas relacionadas com a esfera pessoal familiar da autora e tem em seu poder documentos que esclarecem e identificam adequadamente a origem e destinatários das operações que são objeto dos presentes autos, como base da pretensão da autora e fundamento da defesa do réu.

Tais documentos e informações assumem manifesta pertinência para a prova dos factos contrapostos pelo R. à pretensão da A. Pelo que se revestem de notória utilidade para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa e aplicação da Justiça.

Conclui que a apresentação da prova documental da origem (instruções) e destino (beneficiários) das transações bancárias operadas na conta à ordem de que a A. é titular e em que funda a sua pretensão nos autos deve prevalecer sobre o dever de sigilo bancário, com o qual, porém, conflitua a sua pretensão probatória.

Termina por pedir, nos termos do disposto no art.º417.º, n.º4 do CPC, a remessa dos autos ao Tribunal da Relação para decidir e determinar a dispensa do dever de sigilo do R. e seus colaboradores (testemunhas arroladas) relativamente às contas, beneficiários e documentação referentes às operações realizadas na conta de depósitos à ordem de que a A. é titular e a que se referem os presentes autos e outras com elas conexas invocadas pelo R. na sua defesa, designadamente quanto aos seus beneficiários e ordenantes, permitindo a junção aos autos da prova documental correspondente, nos termos previstos no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, ex vi do artigo 417.º, n.º 4 CPC.


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Em sede de despacho saneador determinou-se a audição das partes a respeito do requerimento formulado pelo réu, quanto à dispensa do dever de sigilo bancário.

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A Autora veio pronunciar-se no sentido de nada ter a opor à pretendida dispensa de dever de sigilo.

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Proferiu-se o despacho que se transcreve:

Incidente de levantamento do sigilo (deduzido pelo Réu na contestação):

Na contestação, a Ré Banco 1..., S.A. veio requerer a remessa dos autos ao Tribunal da Relação para decidir e determinar a dispensa do dever de sigilo do R. e seus colaboradores (testemunhas arroladas) relativamente às contas, beneficiários e documentação referentes às operações realizadas na conta de depósitos à ordem de que a A. é titular e a que se referem os presentes autos e outras com elas conexas invocadas pelo R. na sua defesa, designadamente quanto aos seus beneficiários e ordenantes, permitindo a junção aos autos da prova documental correspondente, nos termos previstos no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, ex vi do artigo 417.º, n.º 4 o CPC.

Ouvida, a Autora declarar nada ter a opor.

Cumpre apreciar.

Preceitua o art.º 78.º do DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro, que:

“1 - Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.

3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços”.

E, dispõe o art.º 135.º Código do Processo Penal, aplicável “ex vi” do n.º 4 do art.º 417.º do CPC, que:

“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.

3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.

5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso”.

Por um lado, face ao disposto no referido art.º 78.º do DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro, afigura-se-nos que, como refere a Ré, a mesma, enquanto instituição bancária, está obrigada a um dever de sigilo, não podendo revelar dados relativos a clientes e produtos financeiros. Os beneficiários das ordens de pagamento sobre o estrangeiro invocadas pela A. na pretensão que deduz contra a R., e invocadas pela R. na sua defesa (as entidades e as contas bancárias em causa) são dados conhecidos pela R. mas que a mesma não pode revelar nos autos por colidir com tal dever de sigilo. Tais beneficiários / destinatários não requereram, nem consequentemente autorizaram, que fossem prestadas nos autos informações sobre a sua identidade. Tratando-se de dados relativos a contas bancárias de quem não é parte na causa e não existindo autorização do respetivo titular está a R. impedida de os revelar. Por outro lado, a pretendida junção de documentos, bem como a inquirição das testemunhas arroladas, colaboradores da Ré, revelam-se necessários para o correto andamento e boa decisão da causa, constituindo elementos relevantes e fundamentais em sede de produção instrutória para a descoberta da verdade material e da decisão de mérito da causa (art.º 6.º, 410.º e 411.º, do CPC), tendo sido requeridas pela Ré no âmbito do seu direito de produção de prova e direito de defesa, o objeto do litígio e os temas de prova.

Assim sendo, deverá ser aplicado o art.º 135º, n.º 3, CPP e, em conformidade, ser suscitada a intervenção do Tribunal da Relação do Porto.

Decisão:

Pelo exposto, determina-se se extraia certidão do despacho saneador, dos articulados apresentados pelas partes, da resposta da Autora quanto ao incidente suscitado pela Ré na contestação e do presente despacho e autue-se por apenso como incidente de levantamento do sigilo e conclua tal apenso para que se determine a sua remessa ao Tribunal da Relação do Porto.

Notifique”.


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Instruído o competente apenso, foi remetido ao Tribunal da Relação do Porto.

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Dispensaram-se os vistos legais.

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Cumpre apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do incidente

A questão a decidir consiste em saber se deve ser ordenado o levantamento do sigilo bancário do réu e seus colaboradores (testemunhas arroladas), para proceder à junção de documentação referente às operações realizadas na conta de depósitos à ordem, indicadas pela autora na petição e outras com elas conexas invocadas pelo réu na sua defesa, designadamente quanto aos seus beneficiários e ordenantes.


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2. Os factos

Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:

1. A A. detém uma conta bancária na R. sob a referência ...22-2 e está domiciliada no banco da R. em Santa Maria da Feira;

2. Trata-se de uma conta emigrante, dado que a A. reside fora de território português;

3. A abertura de conta foi consumada no início do ano de 2006;

4. A Autora interpelou o Réu mediante carta junta como doc. 2 com a p.i. e aqui dada por reproduzida.

5. Em sede de despacho saneador constam como temas da prova:

Constituem temas da prova:

“1. Entre o início de 2006 até 31/12/2019, foram efetuadas transações bancárias, nomeadamente as transferências, depósitos e pagamentos referidos discriminados no art.º 21.º da p.i., sem autorização ou consentimento da Autora.

2. Dos prejuízos daí advenientes para a Autora, ascendentes a €68.156,39.

3. A Autora nunca teve em sua posse qualquer cartão de débito ou crédito relacionado com a conta, nem aceso remoto à mesma até Julho de 2022.

4. Do conhecimento da Ré que aquelas transações não foram autorizadas pela Autora.

5. Muitas das transações referidas em 1. Foram efetuadas por AA, funcionário do Réu banco;

6. Das operações bancárias referidas pela A.:

- 3 são movimentos a crédito efetuados na conta à ordem;

- 3 são transferências para contas de depósito a prazo e subscrição de Fundo MG Rendimento Seguro, valores estes que, na maturidade/vencimento dos produtos, foram creditados na mesma conta à ordem;

- Entre as restantes operações, encontram-se ordens de pagamento para o estrangeiro (movimentos a débito) cujos beneficiários foram entidades relacionadas com a esfera familiar da Autora, processadas na sequência de correio eletrónico (email dirigido a AA), tendo algumas delas sido estornadas à conta (movimentos e crédito) por motivos diversos;

7. Das operações ordenadas na conta, o somatório entre créditos e débitos é de € 992,98 (€ 66.016,84 - € 65.023,86);

8. Considerando todas as operações processadas, os investimentos efetuados e entretanto reembolsados, resultaram numa mais-valia de € 90,52;

9. Da abertura da conta por AA, sobrinho da Autora;

10. Das informações prestadas por AA ao Réu banco;

11. Todos os movimentos da conta foram realizados por AA ou por instruções deste;

12. A Autora tinha conhecimento e pretendia que o AA efetuasse a “gestão financeira” da conta;

13. O AA abriu e movimentou a conta com o conhecimento e consentimento da Autora”.

6. O réu Banco 1... invocando o dever de sigilo bancário veio requerer a sua dispensa, indicando os seguintes fundamentos:

“ Os beneficiários das ordens de pagamento sobre o estrangeiro invocadas pela A. na pretensão que deduz contra o R., e invocadas pelo R. na sua defesa (as entidades e as contas bancárias em causa) são dados conhecidos pelo R. mas que o mesmo não pode revelar nos autos por colidir com tal dever de sigilo.

Tais beneficiários/destinatários não requereram, nem consequentemente autorizaram, que fossem prestadas nos autos informações sobre a sua identidade. Tratando-se de dados relativos a contas bancárias de quem não é parte na causa e não existindo autorização do respetivo titular (que constitui cláusula geral de exclusão do dever de sigilo – artigo 79.º do RGICSF), está o R. impedido de os revelar (v. também o disposto no artigo 417.º, n.º 3, alínea c) do CPC).

No entanto, só o conhecimento da identidade dos ordenantes e beneficiários das operações bancárias aportadas aos autos pela A. (e de outras conexas, invocadas como defesa na presente contestação), permitirá conhecer e determinar com exatidão a existência, ou não, do direito a que a A. se arroga perante o R..

Mais alegou que conhece essa identidade, tratando-se, como por diversas vezes referiu na sua defesa, de pessoas relacionadas com a esfera pessoal familiar da autora e tem em seu poder documentos que esclarecem e identificam adequadamente a origem e destinatários das operações que são objeto dos presentes autos, como base da pretensão da autora e fundamento da defesa do réu.

Tais documentos e informações assumem manifesta pertinência para a prova dos factos contrapostos pelo R. à pretensão da A. Pelo que se revestem de notória utilidade para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa e aplicação da Justiça”.

7. O juiz do tribunal “a quo” considerou legítima a escusa ao abrigo do art.78º do DL 298/92, de 31 de dezembro justificando-se a sua dispensa, com os seguintes fundamentos:

“Os beneficiários das ordens de pagamento sobre o estrangeiro invocadas pela A. na pretensão que deduz contra a R., e invocadas pela R. na sua defesa (as entidades e as contas bancárias em causa) são dados conhecidos pela R. mas que a mesma não pode revelar nos autos por colidir com tal dever de sigilo. Tais beneficiários / destinatários não requereram, nem consequentemente autorizaram, que fossem prestadas nos autos informações sobre a sua identidade. Tratando-se de dados relativos a contas bancárias de quem não é parte na causa e não existindo autorização do respetivo titular está a R. impedida de os revelar. Por outro lado, a pretendida junção de documentos, bem como a inquirição das testemunhas arroladas, colaboradores da Ré, revelam-se necessários para o correto andamento e boa decisão da causa, constituindo elementos relevantes e fundamentais em sede de produção instrutória para a descoberta da verdade material e da decisão de mérito da causa (art.º 6.º, 410.º e 411.º, do CPC), tendo sido requeridas pela Ré no âmbito do seu direito de produção de prova e direito de defesa, o objeto do litígio e os temas de prova”.


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3. O direito

No presente incidente de dispensa de segredo bancário está em causa apurar se é legítimo ao Banco 1..., réu na ação, requerer a dispensa do dever de sigilo do réu e seus colaboradores (testemunhas arroladas) relativamente às contas, beneficiários e documentação referentes às operações realizadas na conta de depósitos à ordem de que a autora é titular e a que se referem os presentes autos e outras com elas conexas invocadas pelo réu na sua defesa, designadamente quanto aos seus beneficiários e ordenantes, permitindo a junção aos autos da prova documental correspondente.

Invoca para o efeito a recusa de autorização dos ordenantes, que não figuram como partes nos autos, não os identificando por dever de sigilo e a impossibilidade de produzir prova, caso não seja dispensado o dever de sigilo.

O juiz do tribunal “a quo” considerou relevante para a boa decisão da causa a obtenção de tais elementos de prova.

As instituições bancárias, ainda que terceiros em relação ao processo, estão obrigados ao dever de cooperação.

 O dever de cooperação para a descoberta da verdade consagrado no art.º 417º/1 CPC determina que:

“ Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.”

A recusa de colaboração faz incorrer o faltoso nas sanções previstas no nº2 do citado preceito – multa, inversão do ónus da prova.

Contudo, nos termos do art.º 417º/3 CPC, a recusa mostra-se legítima nas seguintes circunstâncias:

“ a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;

b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;

c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4. “

No nº 4 determina-se o procedimento a seguir quanto à legitimidade da escusa e dispensa do dever de sigilo profissional ou de funcionários públicos invocado, remetendo-se para as normas do processo penal:

“4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado“.

Quanto à possível quebra dos deveres de sigilo propriamente dito, a lei de processo remete inteiramente para o estatuído no Código de Processo Penal sobre tal tema, por se entender que não seria viável estabelecer no âmbito das ações cíveis um sistema mais facilitado ou menos solene de apreciação das escusas apresentadas.

No domínio do processo penal, o art.º135º/3 CPP prevê o procedimento a adotar e competência para a decisão, nomeadamente, o critério a seguir na apreciação do pedido de dispensa de sigilo (ressalvadas as possibilidades do segredo religioso e do segredo de Estado – art.º 135º e 137º CPP).

Estatui o art.º 135º CPP:

“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.

3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.

5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.

Suscitada a escusa, como refere LOPES DO REGO podem configurar-se três situações:

- invocada a escusa e havendo dúvidas fundadas sobre a invocação, é ao juiz da causa (sublinhado nosso) que compete proceder às averiguações necessárias e – caso conclua pela ilegitimidade da escusa – determinar a forma de cooperação requerida;

- sendo a escusa fundada em sigilo efetivamente existente, é ao tribunal imediatamente superior (sublinhado nosso) àquele em que o incidente se tiver suscitado que incumbe decidir da efetiva prestação da cooperação requerida, com  preterição do dever de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante;

- estando em causa sigilo profissional, a decisão do tribunal (sublinhado nosso) é tomada ouvido o organismo representativo da profissão com ele relacionada, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a tal organismo seja aplicável[2].

Decorre do art.º135º/4 CPP que a escusa com fundamento em sigilo profissional efetivamente existente deve ser suscitada junto do Tribunal de 1ª instância e cumpre ao Tribunal da Relação decidir o incidente de dispensa do sigilo “segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”.

Neste quadro legal constata-se existirem duas situações distintas:

- as de legitimidade de escusa; e

- as de ilegitimidade de escusa da prestação de informações às autoridades judiciárias.

A escusa é legítima quando resulta do cumprimento de um dever legal, no caso o dever de confidencialidade.

A escusa é ilegítima quando o facto ou elemento solicitado não estiver compreendido no âmbito do sigilo profissional ou quando tiver havido consentimento do sujeito passivo.

O nº 2 do art.º 135ºCPP reporta-se ao caso da ilegitimidade da escusa, o que pode ocorrer quando os elementos em causa não estão legalmente cobertos pelo segredo ou porque houve autorização do titular.

Prevê a norma nessa hipótese que o próprio tribunal onde ela é efetuada ordena, oficiosamente ou a pedido, a prestação das informações. 

Nas situações de legitimidade da escusa, a qual resulta de os elementos estarem abrangidos pelo segredo e não existir autorização, a obtenção das informações já não poderá ser determinada sem a ponderação dos interesses que se mostram em confronto: de um lado, os interesses protegidos pelo segredo profissional, do outro, os interesses na realização da justiça, a ser efetuado no âmbito do incidente de quebra do segredo profissional, o qual deverá ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido.

O dever do sigilo bancário insere-se no âmbito dos deveres de sigilo profissional a que estão sujeitas todas as entidades que prestem serviços a outrem, no que toca às relações dessas entidades com os seus clientes, bem como, todos os atos que digam respeito à vida da instituição e que as respetivas administrações não queiram que sejam conhecidas.

A natureza jurídica do sigilo ou segredo bancário vai buscar apoio no art.26º/1 CRP (intimidade da vida privada e familiar) e art.º 25ºCRP (integridade moral das pessoas), pois através da análise dos movimentos de contas de depósitos ou dos movimentos com cartões, pode seguir-se a vida dos cidadãos e facultar tais elementos a terceiros é pôr termo à intimidade das pessoas e o desrespeito pelo segredo bancário põe ainda em causa a integridade moral das pessoas atingidas. A revelação de depósitos, movimentos e despesas pode ser fonte de pressão, de troça ou de suspeição.

O segredo bancário deriva também de uma relação contratual, como dever acessório, imposto pela boa-fé (art.º 762º/2 CC)[3].

O regime do sigilo bancário foi estabelecido pelo Regulamento Administrativo aprovado pelo Decreto de 25 de Janeiro de 1847, depois pelos artigos 1º, n.ºs 1 e 2, e 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 47 909, de 7 de Setembro de 1967. Após, pelos artigos 63º, n.º1 e 64º do Decreto-Lei n.º 644/75, de 15 de Novembro, depois pelos artigos 7º e 8º do Decreto-Lei n.º 729-F/75, de 22 de Dezembro, de seguida pelo Decreto-Lei n.º 2/78, de 9 de Janeiro e, atualmente, pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro que regula o processo de estabelecimento e o exercício da atividade das instituições de crédito e das sociedades financeiras (tendo este último diploma sofrido já diversas alterações, ultimamente pelo DL 357-A/2007 de 31-Outubro e pelo DL 1/2008 de 3-Janeiro e Lei 36/2010 de 02/09).

O segredo bancário é ainda tutelado pela Lei de Proteção de Dados Pessoais.

O REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 27 de abril de 2016 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) passou a prever:

Artigo 4º Definições

Para efeitos do presente regulamento, entende-se por:

1) «Dados pessoais», informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular;

2) «Tratamento», uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição;

3) «Limitação do tratamento», a inserção de uma marca nos dados pessoais conservados com o objetivo de limitar o seu tratamento no futuro;

[…]

7) «Responsável pelo tratamento», a pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, a agência ou outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outras, determina as finalidades e os meios de tratamento de dados pessoais; sempre que as finalidades e os meios desse tratamento sejam determinados pelo direito da União ou de um Estado-Membro, o responsável pelo tratamento ou os critérios específicos aplicáveis à sua nomeação podem ser previstos pelo direito da União ou de um Estado-Membro; 

[…]

9) «Destinatário», uma pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, agência ou outro organismo que recebem comunicações de dados pessoais, independentemente de se tratar ou não de um terceiro. Contudo, as autoridades 4.5.2016 L 119/33 Jornal Oficial da União Europeia PT públicas que possam receber dados pessoais no âmbito de inquéritos específicos nos termos do direito da União ou dos Estados-Membros não são consideradas destinatários; o tratamento desses dados por essas autoridades públicas deve cumprir as regras de proteção de dados aplicáveis em função das finalidades do tratamento; […]

Art. 5º Princípios relativos ao tratamento de dados pessoais

1.Os dados pessoais são:

a) Objeto de um tratamento lícito, leal e transparente em relação ao titular dos dados («licitude, lealdade e transparência»);

b) Recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas e não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com essas finalidades; o tratamento posterior para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, não é considerado incompatível com as finalidades iniciais, em conformidade com o artigo 89º/1 («limitação das finalidades»);

c) Adequados, pertinentes e limitados ao que é necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados («minimização dos dados»);

d) Exatos e atualizados sempre que necessário; devem ser adotadas todas as medidas adequadas para que os dados inexatos, tendo em conta as finalidades para que são tratados, sejam apagados ou retificados sem demora («exatidão»); 4.5.2016 L 119/35 Jornal Oficial da União Europeia PT (1)Diretiva (UE) 2015/1535 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de setembro de 2015, relativa a um procedimento de informação no domínio das regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO L 241 de 17.9.2015, p. 1).

e) Conservados de uma forma que permita a identificação dos titulares dos dados apenas durante o período necessário para as finalidades para as quais são tratados; os dados pessoais podem ser conservados durante períodos mais longos, desde que sejam tratados exclusivamente para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, em conformidade com o artigo 89º, nº 1, sujeitos à aplicação das medidas técnicas e organizativas adequadas exigidas pelo presente regulamento, a fim de salvaguardar os direitos e liberdades do titular dos dados («limitação da conservação»);

f) Tratados de uma forma que garanta a sua segurança, incluindo a proteção contra o seu tratamento não autorizado ou ilícito e contra a sua perda, destruição ou danificação acidental, adotando as medidas técnicas ou organizativas adequadas («integridade e confidencialidade»);

2.O responsável pelo tratamento é responsável pelo cumprimento do disposto no nº 1 e tem de poder comprová-lo («responsabilidade»).

Art. 38º

5.O encarregado da proteção de dados está vinculado à obrigação de sigilo ou de confidencialidade no exercício das suas funções, em conformidade com o direito da União ou dos Estados-Membros.

O regulamento foi transposto para a ordem jurídica interna pela Lei 58/2019 de 08 de agosto, que garante a execução interna do referido Regulamento, na qual se passou a prever:

- Artigo 2.º - Âmbito de aplicação

1 — A presente lei aplica -se aos tratamentos de dados pessoais realizados no território nacional, independentemente da natureza pública ou privada do responsável pelo tratamento ou do subcontratante, mesmo que o tratamento de dados pessoais seja efetuado em cumprimento de obrigações legais ou no âmbito da prossecução de missões de interesse público, aplicando –se todas as exclusões previstas no artigo 2.º do RGPD.

Artigo 10.º Dever de sigilo e confidencialidade

1 — De acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 38.º do RGPD, o encarregado de proteção de dados está obrigado a um dever de sigilo profissional em tudo o que diga respeito ao exercício dessas funções, que se mantém após o termo das funções que lhes deram origem.

2 — O encarregado de proteção de dados, bem como os responsáveis pelo tratamento de dados, incluindo os subcontratantes, e todas as pessoas que intervenham em qualquer operação de tratamento de dados, estão obrigados a um dever de confidencialidade que acresce aos deveres de sigilo profissional previsto na lei.

Artigo 20.º - Dever de segredo

1 — Os direitos de informação e de acesso a dados pessoais previstos nos artigos 13.º a 15.º do RGPD não podem ser exercidos quando a lei imponha ao responsável pelo tratamento ou ao subcontratante um dever de segredo que seja oponível ao próprio titular dos dados.

2 — O titular dos dados pode solicitar à CNPD a emissão de parecer quanto à oponibilidade do dever de segredo, sem prejuízo do disposto no Capítulo VII.

O regime previsto no DL 298/92, de 31 de Dezembro, com a redação do DL 222/99 de 22/06, regula o estabelecimento e o exercício da atividade de duas categorias de entidades, as instituições de crédito e as sociedades financeiras, caracterizando as primeiras como as empresas cuja atividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis, a fim de os aplicarem por conta própria mediante a concessão de crédito (art.º 1º e 2º).

Determina o art.º 78º do citado diploma que: “ Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das referidas instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos ou outras pessoas que lhe prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações dela com os seus clientes, cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.”

Estão, designadamente, sujeitos a segredo: “ os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias, o qual não cessa com o termo das funções ou serviços” (artigo 78º, n.º 2 e 3, pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, na redação da Lei 1/2008 de 03/01).

O dever de segredo, no entanto, não é absoluto.

O art. 79.º do mesmo diploma, prevê que:

1. Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo bancário podem ser revelados desde que tenha havido autorização do cliente, ou quando se esteja perante as hipóteses aí expressamente previstas ou em qualquer outra disposição legal que expressamente limite o dever de sigilo.

2. Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:

a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;

b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;

c) Ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização aos Investidores, no âmbito das respetivas atribuições;

d) Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal;

e) À administração tributária, no âmbito das suas atribuições;

f) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.”

Por motivos de interesse público e com especial incidência no âmbito do direito penal e fiscal, a lei limita o dever de sigilo nas seguintes situações:

> branqueamento de capitais (DL 313/93, de 15/09 e DL 325/95, de 2/12);

>tráfico de droga (DL 15/93, de 22/01;

> corrupção e criminalidade económica e financeira (Lei n.º 36/94, de 29/09 e Lei 5/2002, de 11/01;

> cheques sem provisão (DL 454/91, de 28/12 e DL 316/97, de 19/11;

> terrorismo, peculato, associação criminosa, contrabando, tráfico e viciação de veículos furtados, lenocínio e tráfico de menores e contrafação de moeda e títulos equiparados (Lei n.º 5/2002, de 11/01].

Conclui-se, assim, que a dispensa do segredo bancário pode resultar:

- da expressa autorização do cliente (art.º 79º citado e art.º 195º CP);

- dos limites impostos pela lei; e

- de decisão do tribunal superior, com fundamento no princípio da prevalência do interesse preponderante.

Retomando o caso dos autos.

Na presente ação visa a autora obter a indemnização dos prejuízos sofridos pelo facto de estar impedida de ter acesso a informação sobre a conta bancária por si titulada em agência do réu e quando autorizado o acesso a essa informação constatou que durante um certo período se realizaram movimentos vários a débito e a crédito na sua conta, sem o seu conhecimento e consentimento.

O réu veio contestar indicando como se processaram os movimentos a débito e a crédito, mas sem indicar a identificação do ordenante de certos movimentos, nem a respetiva conta para onde se processou a transferência de várias somas de dinheiro ou de onde foram efetuadas transferência para a conta titulada pela autora.

Constituem temas da prova:

1.Entre o início de 2006 até 31/12/2019, foram efetuadas transações bancárias, nomeadamente as transferências, depósitos e pagamentos referidos discriminados no art.º 21.º da p.i., sem autorização ou consentimento da Autora.

2. Dos prejuízos daí advenientes para a Autora, ascendentes a € 68.156,39.

3. A Autora nunca teve em sua posse qualquer cartão de débito ou crédito relacionado com a conta, nem aceso remoto à mesma até Julho de 2022.

4. Do conhecimento da Ré que aquelas transações não foram autorizadas pela Autora.

5. Muitas das transações referidas em 1. foram efetuadas por AA, funcionário do Réu banco;

6. Das operações bancárias referidas pela A.:

- 3 são movimentos a crédito efetuados na conta à ordem;

- 3 são transferências para contas de depósito a prazo e subscrição de Fundo MG Rendimento Seguro, valores estes que, na maturidade/vencimento dos produtos, foram creditados na mesma conta à ordem;

- Entre as restantes operações, encontram-se ordens de pagamento para o estrangeiro (movimentos a débito) cujos beneficiários foram entidades relacionadas com a esfera familiar da Autora, processadas na sequência de correio eletrónico (email dirigido a AA), tendo algumas delas sido estornadas à conta (movimentos e crédito) por motivos diversos;

7. Das operações ordenadas na conta, o somatório entre créditos e débitos é de € 992,98 (€ 66.016,84 - € 65.023,86);

8. Considerando todas as operações processadas, os investimentos efetuados e entretanto reembolsados, resultaram numa mais-valia de € 90,52;

9. Da abertura da conta por AA, sobrinho da Autora;

10. Das informações prestadas por AA ao Réu banco;

11. Todos os movimentos da conta foram realizados por AA ou por instruções deste;

12. A Autora tinha conhecimento e pretendia que o AA efetuasse a “gestão financeira” da conta;

13. O AA abriu e movimentou a conta com o conhecimento e consentimento da Autora.

O Banco réu não identificou quem figura como ordenante, por não obter autorização, sendo certo que não são cotitulares da conta titulada pela autora como resulta assente nos autos.

O juiz do tribunal “a quo” considerou relevante para a discussão da causa diligenciar no sentido de obter tais informações, para apurar a causa de tais movimentos e permitir a inquirição das testemunhas, funcionários do réu.

A conta ou contas beneficiárias da transferência não serão tituladas pela autora e as supostas ordens de pagamento, também não terão sido dadas pela autora, não se verifica qualquer das exceções previstas no art.º 79º do DL 298/92 de 31 de dezembro, por nomeadamente não ter sido comunicado o consentimento do titular das outras contas ou ordenantes.

Mostra-se legítima a escusa do réu porque está obrigado ao segredo pois não pode revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações dela com os seus clientes, cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços

Efetivamente, o Banco tem acesso à titularidade de contas bancárias, podendo informar quem são os seus titulares, movimentos e valores.

Com efeito, não foi possível obter o consentimento do(s) titular(es) da conta beneficiária da transferência, por se desconhecer quem figura como tal, sendo aliás essa uma das informações a obter. Apenas se sabe, face à defesa apresentada pelo Banco-réu que se operaram movimentos com transferência de dinheiro de e para a conta titulada pela autora e ainda realizaram-se ordens de pagamento. Verifica-se que a informação não respeita apenas ao cliente da instituição e que figura como autora na ação, mas abrange informação relativa a terceiros, o que impede a junção voluntária dos documentos[4].

Resta, assim, ao tribunal pronunciar-se sobre o levantamento do sigilo ponderando o interesse preponderante.

Nas relações privadas o levantamento do sigilo, como refere MENEZES CORDEIRO:”[…] só pode ocorrer em conjunturas muito particulares, impondo-se uma concreta ponderação de interesses, nunca devendo a quebra do sigilo, ir além do necessário”[5].

Nesse sentido, pronunciou-se, entre outros, o Ac. Rel. Porto de 19 de junho de 2006[6], onde se refere: “[h]á[…]neste tipo de situações cíveis, de analisar-se, caso a caso, se a quebra do sigilo é mais importante do que a manutenção do dever de sigilo, cuja proteção constitucional encontra a sua raiz no “direito à identidade pessoal, à imagem, à reserva da identidade da vida privada e familiar” e “às garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas[…] de informações relativas às pessoas e famílias”, a que se refere o art.º 26.º da Constituição da República Portuguesa no capítulo dos direitos, liberdades e garantias”.

Desta forma, na avaliação do interesse que em concreto irá prevalecer refere LOPES DO REGO que: “cumpre ao Tribunal atuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de “sigilo“, maxime “o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão.

[…] Daqui decorre que a dispensa do invocado sigilo dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da ação e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa[…][7]“.

Na situação concreta, resulta dos factos apurados que o juiz do tribunal “a quo“ entendeu relevante para a apreciação da matéria de facto controvertida que o Banco, réu na ação, proceda à junção de documentos, a origem (instruções) e destino (beneficiários) das transações bancárias operadas na conta à ordem de que a autora é titular, referenciadas pela autora e réu, nos respetivos articulados, bem como, a inquirição das testemunhas arroladas, colaboradores do réu.

Tais informações destinam-se a apurar as circunstâncias em que se processaram os movimentos na conta da autora, determinantes para apurar da responsabilidade do réu.

Verificando-se um conflito entre dever de sigilo que impende sobre as instituições de crédito e financeiras e o de cooperação para a realização da justiça, que visa satisfazer interesses bem mais relevantes, mesmo no âmbito do processo civil, deverá o mesmo ser dirimido no sentido da quebra ou levantamento de tal segredo.

Essa solução está conforme a uma certa hierarquização dos direitos garantidos constitucionalmente e em consonância com as normas atinentes à colisão de direitos, insertas no art.º 335° do Código Civil, aplicáveis, porque, “in casu”, a quebra do sigilo afeta interesses privados e visa a realização da justiça num caso em que também se discutem interesses dessa ordem, se bem que, aqui, a ênfase tenha de ser posta no interesse público dos tribunais disporem de todos os elementos para decidirem de acordo com a verdade das coisas; ou seja, de um lado temos particulares que gozam do direito à reserva da vida privada e dos dados pessoais (art.º 26°, 1 e 2, 35°, 4 e 7, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 80° Cód. Civil), e, do outro, também particulares a quem tem de ser garantido o “acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”, impondo-se assegurar-lhes que a causa em que são partes “seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”, de modo a que se apure a “verdade” e se consiga a “justa composição do litígio” (art.º 20º, 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, art.º 417° do Código de Processo Civil)[8].

Mas a questão tem de colocar-se, ainda, e com maior ênfase, num outro plano onde cumpre considerar o interesse público na administração da justiça, constitucionalmente cometida aos tribunais (art.º 20°, 1, 4 e 5, e 202°, 1 e 2, da CRP). Ora, integrando a administração da justiça uma das funções soberanas do Estado, mal se entenderia que lhe fossem postos entraves em nome de interesses privados[9].

Não resulta dos factos apurados, que a situação em causa esteja a coberto de qualquer limite ao dever de segredo bancário.

Nestas circunstâncias ordenar a realização da diligência viola o dever de segredo bancário imposto à entidade bancária, o que constitui uma nulidade, nos termos do art.º 195º/1, conjugado com o art.417º/3/ c) CPC.

Resulta de igual forma, dos factos apurados, que o meio de prova em causa mostra-se relevante, ainda que não determinante, para apreciar a concreta questão em litígio encontrando-se a instituição bancária numa posição privilegiada para fornecer tais informações por ter acesso às mesmas na sua atividade e apenas os respetivos funcionários revelarem conhecimentos específicos sobre a concreta matéria.

A falta destes elementos de prova tornará mais difícil ao julgador apreciar a posição das partes nos autos e realizar a Justiça que se espera.

Por outro lado, as informações bancárias solicitadas estão devidamente determinadas e definidas.

Verifica-se, assim, que é patente a colisão entre o interesse público de administrar a Justiça e o interesse privado do titular da conta bancária (no caso terceiro não identificado) de ver garantida a confidencialidade da sua situação bancária com o correlativo dever do Banco-réu, na qualidade de instituição bancária, manter o sigilo.

A necessidade de descoberta da verdade material e a justa composição do litígio, de modo a que se realize a Justiça, no caso concreto, exigem que se dispense o Banco do dever de segredo bancário, a fim de que prontamente possa remeter ao tribunal os documentos e se proceda à inquirição das testemunhas por si arroladas para prova da matéria objeto dos temas da prova.

O interesse na administração da Justiça prevalece, assim, sobre o interesse privado e por esse motivo, justifica-se dispensar o dever de segredo bancário.


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Nos termos do art.º 527º CPC as custas são suportadas pelo requerente/réu na ação.

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III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em deferir o incidente e nessa conformidade, ao abrigo do art.º 417º, 4 do Código de Processo Civil e art.135º/3 do Código de Processo Penal, dispensar o Banco 1... do dever de segredo bancário devendo proceder à apresentação da prova documental da origem (instruções) e destino (beneficiários) das transações bancárias operadas na conta à ordem titulada pela autora, transações essas referenciadas pela autora e pelo réu, nos respetivos articulados (petição e contestação), autorizando-se os funcionários da instituição em causa, indicados como testemunhas, a depor sobre a concreta matéria e documentos que venham a ser juntos aos autos.


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Custas a cargo do requerente.


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Porto, 03 de junho de 2024

(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)

Assinado de forma digital por

Ana Paula Amorim

Juiz Desembargador-Relator

Carlos Gil

1º Adjunto Juiz Desembargador

Fernanda Almeida

2º Adjunto Juiz Desembargador


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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.        
[2] CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 363.
[3]  ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Manual de Direito Bancário, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 265
[4] Cf. Caso idêntico tendo por objeto o depósito de cheques, Ac. Rel. Lisboa 19 de junho 2014, 1739/11.0 TBCLD.L1-6, acessível em www.dgsi.pt
[5] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Manual de Direito Bancário, ob. cit., pág. 273.
[6] Ac. Rel. Porto 19 de setembro de 2006, Proc. 0623992, Nº convencional JTRP00039477, acessível em www.dgsi.pt
[7] CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Comentários ao Código de Processo Civil, ob. cit., pág. 363-364.
[8] Cf. Ac. Rel. Porto 12 de setembro de 2011, Proc. 3553-06.6TJVNF-D.P1– publicado em www.dgsi.pt .
[9] Ac. Rel. Coimbra 06 de abril de 2010, Proc. 120-C/2000.C1 – acessível em www. dgsi.pt.