CESSÃO DE CRÉDITOS
PAGAMENTO DE PRESTAÇÕES DE EMPRÉSTIMO À HABITAÇÃO
Sumário

I - A natureza do recurso, como meio de impugnação de decisões judiciais, impõe uma limitação ao seu objecto: destinando-se à reapreciação de decisões judiciais, apenas pode incidir sobre questões anteriormente suscitadas e decididas pelo Tribunal da Primeira Instância, não podendo o Tribunal ad quem ser confrontado com questões novas, excepto se se tratar de questões de conhecimento oficioso.
II - Contudo, as questões novas, de conhecimento oficioso, suscitadas em sede de recurso devem circunscrever-se à realidade factual narrada nos articulados, fixada no âmbito do Tribunal da Primeira Instância, não podendo assentar num quadro fáctico, novo, alegado, apenas, na peça de recurso, opção que se mostra vedada, desde logo, pelo princípio da preclusão.
III - Assim, está vedado ao Tribunal ad quem o conhecimento da nulidade do contrato de empréstimo, com fundamento em “desvio do fim” ou “simulação”, sustentada na alegação de o crédito ter sido concedido como “complementar do crédito à habitação” e não “para apoio à aquisição de bens de caráter utilitário”, questão não suscitada no Tribunal da primeira instância.
IV - São requisitos da cessão de créditos: a) um negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou de parte do crédito; b) a inexistência de impedimentos legais ou contratuais a essa transmissão; c) a não ligação do crédito, em virtude da própria natureza da prestação, à pessoa do credor.
V - O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) consagra, no seu art. 8.º, o princípio da exclusividade relativamente a determinadas actividades aí previstas, determinando que elas só podem ser exercidas pelas entidades ali enunciadas, designadamente pelas instituições de crédito e sociedades financeiras.
VI - A aquisição do crédito à habitação, pela Exequente, não envolve o efectivo exercício pela cessionária (Exequente) de nenhuma das referidas actividades que, nos termos da citada disposição legal, estão reservadas às instituições de crédito. O direito adquirido pela Exequente relativamente a esses créditos apenas se reconduz ao direito de reclamar e exigir o respectivo cumprimento, sem que isso envolva o exercício de qualquer actividade ou a prática de quaisquer actos que estejam reservados por lei às instituições de crédito.
VII - Tendo ficado acordado, no contrato de empréstimo, o pagamento das prestações através da conta bancária de depósitos à ordem e concedida autorização, nesse contrato, à instituição bancária para proceder ao débito do valor da prestação, na data do respectivo vencimento, não se afigura necessário o prosseguimento dos autos para a fase de julgamento com a finalidade de o devedor demonstrar o oferecimento das prestações, na data do respectivo vencimento.

Texto Integral

Apelação nº 5920/22.9T8MAI-A.P1

Acordam os Juízes da 5.ª Secção (3ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relatora: Anabela Morais;

Primeiro Adjunto: Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais e

Segunda Adjunta: Ana Olívia Esteves Silva Loureiro

            

I - Relatório

Por apenso à acção execução sumária para pagamento de quantia certa, intentada por A... S.A.R.L., os executados AA e BB deduziram embargos de executado, pedindo que os mesmos sejam julgados procedentes por provados, com as legais consequências.

Alegaram, em síntese, que:

- os pagamentos referentes aos créditos dos contratos de mútuo e respectivos contratos de seguro eram efectuados através da conta nº  ...20, de que eram titulares os embargantes, e que a conta, domiciliada no Banco 1..., passou para o Banco 2...;

- não é verdade que tenham interrompido o pagamento das prestações de ambos os empréstimos, em 16 de Novembro de 2018 e 16 de Janeiro de 2019, respectivamente, remetendo para o extracto bancário que juntaram;

- o Banco 2... descontou as prestações de crédito até, pelo menos, 8 de Março de 2019 (prestação nº 131) e o pagamento do seguro foi liquidado em 23 de Agosto de 2019;

- com a mudança das agências do Banco 2..., e porque era necessário efectuarem a reestruturação dos créditos assumidos, em virtude de terem um filho autista que os obrigou a um enorme dispêndio económico, iniciaram este processo para entrega dos documentos necessários para o efeito, na agência de ..., no Porto, não tendo tido qualquer resposta;

-  algum tempo depois, após o embargante se ter deslocado à agência da Maia do Banco 2..., para verificar o que se passava com os créditos assumidos, constatou que deixaram de cobrar as prestações vincendas, existindo, no entanto, “capital na conta domiciliada para procederem ao seu desconto”, desconhecendo os embargantes a razão pela qual o Banco 2..., deixou de fazer essa cobrança;

- com vista à reestruturação dos créditos assumidos, deram início ao processo “para entrega dos documentos necessários para o efeito”, não tendo obtido qualquer resposta da instituição bancária.

Concluíram no sentido da existência de mora do credor.


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Recebidos os embargos de executado, por despacho de 18/1/2023, foi determinada a notificação da exequente para, querendo, contestar.

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Notificada, a exequente contestou, respondendo às excepções e concluindo pela improcedência dos embargos de executado.

Alegou, em síntese, que:

-  aceita a confissão dos executados quanto à celebração dos contratos accionados nos autos e ao conhecimento da transmissão do crédito do Banco 1..., Lda., para o Banco 2...;

- o incumprimento do contrato que corresponde à escritura identificada como documento nº 2 (empréstimo no valor de € 103.927,14 – cento e três mil e novecentos e vinte e sete euros e catorze cêntimos) ocorreu no dia 16 de Novembro de 2018 e o incumprimento do contrato que corresponde à escritura identificada como documento nº 3 (empréstimo no valor de € 84.072,86 – oitenta e quatro mil e setenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), ocorreu no dia 16 de Janeiro de 2019;

-  dos extractos bancários juntos pelos embargantes não resulta qualquer prova de pagamento ou data de incumprimento;

- os embargantes invocam o pagamento da prestação nº 131, em 8 de Março de 2019, e que esse facto resulta do extracto bancário, mas não indicam relativamente a que contrato é que tal prestação foi paga;

- do extracto bancário junto apenas resulta que foram pagas, pelo executado, pequenas quantias (Eur. 14,42; Eur. 1,65, Eur. 0,07; Eur. 11,31; Eur. 113,87) que, na sua globalidade, não correspondem ao pagamento de uma singela prestação de qualquer um dos contratos accionados;

- os executados, após o incumprimento dos contratos manifestaram a intenção de reestruturação dos créditos assumidos junto do Banco cedente, mas não apresentaram qualquer proposta junto do mesmo, invocando sempre dificuldade de obtenção de novo financiamento, para amortização das prestações vencidas;

-  das condições contratuais previstas nos contratos accionados, resulta que em caso de  incumprimento definitivo, pelo devedor, são os contratos considerados resolvidos, sendo exigível a totalidade da dívida, pelo que é inócuo que, posteriormente a estas datas o devedor tenha ou não saldo na sua conta bancária, uma vez que o plano prestacional acordado já não se encontra em vigor;

- se os embargantes entendiam que não existia qualquer incumprimento, e que as prestações não estavam a ser cobradas, como homem médio e diligente, aquando das suas várias deslocações aos Balcões do Banco cedente, conforme confessa na sua petição inicial, o executado deveria ter solicitado, por escrito, referências multibanco para efectuar o pagamento das suas prestações, o que não ocorreu;

- o executado sabia e bem sabe que incumpriu os contratos e a prova disso é a confissão, na sua petição, que tentou efectuar a restruturação do empréstimo, a qual não chegou a ocorrer.

Concluiu que a alegação de mora do credor é manifestamente inócua uma vez que para se verificar, teria que ter existido, por parte do Banco cedente, a recusa em receber a prestação ou ausência de colaboração, por motivo injustificado, o que não ocorreu no presente caso.


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Por despacho de 30/3/2023, foi designada audiência prévia destinada a tentativa de conciliação, nos termos do disposto nos artigos 591º, nº 1, a), e 594º, nº 1, do Código de Processo Civil.

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Realizada a audiência prévia, em 18 de Maio de 2023, não se mostrou possível a conciliação, mantendo as partes a posição vertida nos articulados.

Nessa diligência foi proferido o seguinte despacho:

Determino que as partes no prazo de 10 dias, se pronunciem sobre a eventualidade de o Tribunal proferir decisão judicial quanto à subsequente tramitação dos autos, sejam no sentido de decisão de mérito imediata seja no sentido de prosseguimento para julgamento, por inexistência de factos controvertidos relevantes”.


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A exequente/embargada apresentou requerimento, manifestando que não se opõe ao prosseguimento do presente processo para decisão de mérito ou para a realização de audiência final de julgamento.

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Os embargantes apresentaram requerimento, pugnando pela procedência das excepções invocadas, informando que, caso assim não se entenda, não se opõem ao prosseguimento do presente processo para decisão de mérito ou para realização de audiência final de julgamento.

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Em 12/6/2023, foi proferida a seguinte decisão:

“Dado o estado dos autos, havendo o processo de findar no despacho saneador por ser possível conhecer imediatamente do mérito da causa sem necessidade de mais provas, dispensa-se a audiência prévia, nos termos do disposto nos arts. 593º, nºs 1 e 2, a) e 595º, nº 1, b), do Código de Processo Civil, pelo que se passa a elaborar o despacho saneador”.

Feito o saneamento dos autos e julgada improcedente a excepção de ilegitimidade da exequente, foi proferida decisão, apreciando o mérito dos autos, constando da parte decisória:

“Julgo os presentes embargos de executado improcedentes e em consequência, absolvo a exequente do pedido contra si formulado.


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Custas pelos executados embargantes, nos termos do disposto no art. 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

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Fixo à causa o valor de € 194.313,66 (cento e noventa e quatro mil e trezentos e treze euros e sessenta e seis cêntimos), nos termos do disposto nos arts. 297º, nº 1 e 306º, nº 2, do Código de Processo Civil.

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Registe e notifique”.

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Não se conformando com a decisão, dela apelaram os embargantes/executados AA e BB, formulando as seguintes conclusões:

“i. A Douta Sentença julgou totalmente improcedente os embargos de executado e, em consequência, absolveu a exequente do pedido contra si formulado.

ii. As escrituras que constituem a causa de pedir na execução são nulas, porquanto:

iii. Pela escritura de 16.09.2008, o Banco 1..., concedeu um empréstimo aos embargantes, no valor de 84.702,86€ destinado à transferência do crédito à habitação própria e permanente dos mutuários;

iv. Na data da concessão deste empréstimo, estava em vigor o Decreto-Lei 349/98, que veio revogar o Decreto-Lei 328-D/86, que regulava a concessão de crédito à habitação;

v. O Decreto-Lei 349/98, regula a concessão de crédito à aquisição de habitação própria e permanente (art.º 1.º, alínea a));

vi. Este crédito apenas podia ser concedido por instituições de crédito (art.º 6.º do citado diploma);

vii. Sendo que somente se admitia a transferência deste crédito entre Bancos, como é o caso em apreço;

viii. Daí que na citada escritura não se preveja a cessão de créditos a favor de terceiros que não sejam Bancos, como é o caso da A... S.A.R.L., ora recorrida;

ix. Quer isto dizer que o crédito à habitação, tinha e tem um regime jurídico próprio onde avultam os decretos-leis 328-B/86, 349/98 e 74-A/2017, somente podendo ser concedido por Bancos e está sujeito à supervisão do Banco de Portugal;

x. Daqui decorre que a cessão de créditos a favor da A... S.A.R.L. é nula, nulidade que é do conhecimento oficioso e pode ser suscitada em qualquer altura, como seja no presente recurso;

xi. Pela escritura de 16.09.2008, ou seja, no mesmo dia, o Banco 1... concedeu um empréstimo de €103.927,14 alegadamente para apoio à aquisição de bens de caráter utilitário para o mesmo imóvel;

xii. Este crédito é um crédito complementar do crédito à habitação e não um crédito ao consumo, revestindo a mesma natureza, razão pela qual foi concedido na mesma data e pelo mesmo prazo, 384 meses;

xiii. Daqui decorre que este crédito:

xiv. É qualificável como crédito à habitação e por isso se lhe aplica o regime jurídico deste crédito;

xv. Ou caso não fosse assim, esta escritura seria nula por desvio do fim, ou até por simulação, dado que ela visou substancialmente complementar o crédito à habitação e não comprar bens móveis como ambas as partes sabiam;

xvi. Seja por uma via, seja pela outra, a segunda escritura enferma da nulidade assacada à primeira escritura;

xvii. Daqui decorre que os mencionados créditos são insuscetíveis de serem cedidos a terceiros que não sejam instituições de crédito;

xviii. Daí que se invoque a nulidade das escrituras que constituem a causa de pedir na execução, a qual foi alvo dos embargos de executado, por violação do art.º 6.º do decreto-lei 349/98, em conjugação com os artigos 577.º, n.º 1, 281.º e 240.º, do Código Civil;

xix. Noutra ordem de considerações, os recorrentes invocaram a mora do credor, remetendo para a audiência de discussão e julgamento, através do seu requerimento probatório, mormente da prova testemunhal, para comprovar a sua alegação.

xx. Não obstante, a douta sentença recorrida refere que os embargantes não alegaram e muito menos comprovaram que tivessem oferecido o pagamento das prestações dos créditos, quer ao primitivo credor Banco 2... (que incorporou por fusão o Banco 1..., S.A., com a transferência global do património da sociedade incorporada para a sociedade incorporante), quer à cessionária ora exequente.

xxi. E que “nem alegaram e muito menos comprovaram que tivessem oferecido ao primitivo credor ou à exequente as restantes prestações vencidas, ou que eles tivessem levantado qualquer entrave à satisfação da obrigação”.

xxii. Concluiu-se na douta sentença que “deste modo, não se verifica a mora do credor, motivo pelo qual improcede a alegação dos embargantes nesta parte”.

xxiii. Situação esta que, salvo melhor entendimento, estaria sujeita, face ao alegado na sua petição de embargos, a prova testemunhal que foi aduzida pelos embargantes.

xxiv. Não havia outro modo de fazer prova de que os embargantes ofereceram as prestações em débito (havendo dinheiro nas contas bancárias no Banco 2..., para esse efeito), através daquele meio (prova testemunhal), e, portanto, nunca deveria ter havido uma decisão de mérito imediata, mas sim, proceder-se à realização final de audiência e discussão de julgamento.

xxv. Assim, na perspetiva dos embargantes, considerando-se que houve mora do credor conforme alegado nos embargos, a douta sentença violou os arts.º 813.º e 713.º do Código Civil, e, em consequência, não deveria ter havido saneador-sentença que pôs termo á ação, mas sim proferido despacho saneador a fim de permitir aos embargantes fazer prova do por si alegado, e continuar a ação para julgamento, tendo havido, por isso, violação do art.º 596.º, n.º 1 do CPC.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V/Exa. doutamente suprirá, deverá a sentença proferida pelo tribunal “a quo” ser revogada e substituída por decisão que altere a matéria de direito nos seguintes termos:

A cessão de créditos a favor da exequente, com base nas escrituras dadas à execução, seja considerada nula, por violação dos arts.º 6.º do decreto-lei 349/98, em conjugação com os artigos 577.º, n.º 1, 281.º e 240.º, do Código Civil, com as legais consequências;

Caso assim não se entenda, deverá a douta sentença ser revogada, pela violação do art.º 596.º, n.º 1 do CPC, e dos arts.º 71.º e 813.º do Código Civil, determinando-se a continuação do processo para audiência de discussão e julgamento;

Tudo com as ulteriores consequências, assim se fazendo Justiça!”


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Notificada, a Exequente/Embargada apresentou resposta, concluindo que “bem andou o Tribunal a quo”, pois que, decidindo, como decidiu, interpretou corretamente os factos e aplicou de forma adequada o Direito, não violando quaisquer normas jurídicas, designadamente, as invocadas pela Apelante, no que respeita aos fundamentos do presente recurso”.

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O recurso foi admitido por despacho datado de 23/10/2023, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

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Por despacho de 14/12/2023, foi comunicado às partes a intenção de, por este tribunal, ser apreciada a questão da observância/inobservância da regra plasmada no artigo 18º, nº1, al. c), do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro.

Pronunciando-se sobre a questão, o Recorrente/Embargante alegou não ter sido integrado no PERSI, pelo Banco 1..., instituição bancária que cedeu o crédito a uma entidade que não podia promover esse procedimento. Não tendo sido observado o disposto no artigo 18º, nº1, alínea c), do Decreto-Lei 227/2012, de 25/10, o empréstimo não podia ser resolvido e, consequentemente, não era possível a instauração da presente execução.

Concluiu, pedindo a extinção da execução, com fundamento no incumprimento do disposto no artigo 18º, nº1, alínea c), do Decreto-Lei 227/2012, de 25/10.


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A Recorrida A..., S.A.R.L. invocou a integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, em data anterior à cedência do crédito, alegando que:

_ os Recorrentes constituíram-se em mora nos contratos em causa nos autos, no ano de 2017, e, nessa sequência, foram integrados em PERSI, em 5 de Julho de 2017, juntando dois documentos para demonstrar o por si alegado;

_ em 23 de Novembro de 2017, o PERSI foi extinto com fundamento na alínea d) do n.º 2 do artigo 17.º do Decreto -Lei n.º 227/2012, de 25/10, tendo juntado dois documentos para demonstrar o por si alegado;

_ o incumprimento definitivo dos contratos em causa ocorreu em 16/11/2018 e 16/01/2019 e só  em 24 de Junho de 2019, foi efectuada a cessão de créditos dos contratos executados pelo Banco 2... à cessionária, ora Exequente.

Concluiu, assim, que o Banco cedente não estava impedido de efectuar a cessão em causa, nos termos do 18.º n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º227/2012, de 25/10.


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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II - Objecto do recurso

Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº. 4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Assim, perante as conclusões da alegação do Recorrente há que apreciar as seguintes questões:
i. Admissibilidade da junção dos documentos pela Recorrida, com o requerimento de 28/12/2023.
ii. Nulidade da cessão dos créditos, nos termos do artigo 18º, nº1, al. c), do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro.
iii. Nulidade da cessão do crédito:
a. decorrente do empréstimo, contraído junto do Banco 1..., por escritura de 16/09/2008, no valor de €84.702,86, destinado à transferência do crédito à habitação própria e permanente dos mutuários, por violação do disposto no artigo 6º do Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro, e no artigo 577º, nº1, do Código Civil;
b. decorrente do empréstimo, contraído junto do Banco 1..., por escritura de 16/09/2008, no valor de €103.927,14 “para apoio à aquisição de bens de caráter utilitário” para o imóvel adquirido: por violação do disposto no artigo 6º do Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro, e nos artigos 577º, nº1, e 281º do Código Civil ou, caso assim não se entenda, nos termos do artigo 240º do Código Civil.
iv. Necessidade de prosseguimento dos autos para a fase de julgamento por forma a permitir, aos embargantes, a produção de prova dos factos nos quais alicerçam a mora do credor, por aqueles alegada na petição dos embargos de executado.
v. Da verificação dos pressupostos da mora do credor.

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III. Fundamentação de facto

Consta da decisão recorrida, sob o ponto “Fundamentação de facto”:

“Face às posições das partes vertidas nos articulados e dos documentos juntos aos autos e demais termos do processo, resultam provados os seguintes factos:
a) O Banco 2..., incorporou por fusão o Banco 1..., S.A., com a transferência global do património da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, estando a mesma registada pela apresentação nº 24, datada de 27 de Dezembro de 2017.
b) Por escritura pública de cessão de créditos e documento complementar designado por “Contrato de compra e venda de uma carteira de empréstimos”, outorgado em 24 de Junho de 2019, o Banco 2..., cedeu à exequente os créditos decorrentes dos contratos dados à execução, bem como todas as garantias a ele inerentes.
c) O Banco 1..., S.A., e os executados embargantes outorgaram no dia 16 de Setembro de 2008 a escritura pública denominada de “Mútuo com hipoteca e fiança” e respectivo documento complementar, através da qual o Banco 1..., S.A., concedeu aos executados embargantes um empréstimo no valor de € 103.927,14 (cento e três mil e novecentos e vinte e sete euros e catorze cêntimos), que estes se obrigaram a reembolsar em trezentas e oitenta e quatro prestações mensais de capital e juros e ainda, para garantia de pagamento do referido empréstimo, dos juros, da cláusula penal e das despesas, declararam constituíram a favor daquele hipoteca sobre o prédio urbano composto por edifício de rés-do-chão e andar, para habitação, anexos para garagem e lavandaria e logradouro, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...09/19970814, da freguesia ....
d) O Banco 1..., S.A., e os executados embargantes outorgaram no dia 16 de Setembro de 2008 a escritura pública denominada de “Mútuo com hipoteca e fiança” e respectivo documento complementar, através da qual o Banco 1..., S.A., concedeu aos executados embargantes um empréstimo no valor de € 84.072,86 (oitenta e quatro mil e setenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), que estes se obrigaram a reembolsar em trezentas e oitenta e quatro prestações mensais de capital e juros e ainda, para garantia de pagamento do referido empréstimo, dos juros, da cláusula penal e das despesas, declararam constituíram a favor daquele hipoteca sobre o prédio urbano composto por edifício de rés-do-chão e andar, para habitação, anexos para garagem e lavandaria e logradouro, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...09/19970814, da freguesia ....
e) Da cláusula 11ª b) do documento complementar referente à escritura do empréstimo no valor de € 103.927,14 – cento e três mil e novecentos e vinte e sete euros e catorze cêntimos), e da cláusula 10ª b) do documento complementar referente à escritura do empréstimo no valor de € 84.072,86 – oitenta e quatro mil e setenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), consta que a falta de pagamento de uma prestação importa o vencimento de todas.
f) Sobre o imóvel descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...09/19970814, da freguesia ..., incidem registos de hipoteca voluntária, a favor do Banco 1..., S.A., pelas apresentações nºs 16 e 17, datadas de 12 de Setembro de 2008, para garantia de empréstimos, juros, cláusula penal e despesas, a primeira até ao montante máximo de € 125.268,00 (cento e vinte e cinco mil e duzentos e sessenta e oito euros) e a segunda até ao montante máximo de € 149.212,00 (cento e quarenta e nove mil e duzentos e doze euros), entretanto elevada em mais € 2.521,63 (dois mil e quinhentos e vinte e um euros e sessenta e três cêntimos) pela apresentação nº 39, datada de 23 de Setembro de 2008.
g) Sobre o imóvel descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...09/19970814, da freguesia ..., incidem registos de transmissão do crédito por fusão, a favor do Banco 2..., das hipotecas constantes das apresentações nºs 16 e 17, datadas de 12 de Setembro de 2008, pelos averbamentos constantes das apresentações nºs 2973, 2974 e 2975, datados de 23 de Novembro de 2018 (cfr. cópia digitalizada de certidão permanente que se encontra a fls. 55 e segs., dos autos principais).
h) Sobre o imóvel descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...09/19970814, da freguesia ..., incidem registos de transmissão do crédito por cessão, a favor da ora exequente, pelos averbamentos constantes das apresentações nºs 1027, 1028 e 1029, datados de 17 de Outubro de 2019.
i) Os embargantes manifestaram a intenção de reestruturação dos créditos assumidos junto do Banco 2..., mas a mesma não foi concretizada”.


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IV. Fundamentação de direito

1ª Questão: Da admissibilidade da junção de documentos, pela Recorrida. 

Na sequência do convite feito por este tribunal, a Recorrida A..., S.A.R.L. apresentou  requerimento, em 28/12/2023, alegando ter ocorrido a integração do cliente bancário, ora embargante,  no PERSI e a extinção deste procedimento, em data anterior à cedência do crédito. Para demonstrar a factualidade então alegada, juntou aos autos quatro documentos:

_ cópia de uma carta enviada pelo Banco 1..., ao embargante, datada de 5 de Julho de 2017, e de cujo teor consta:

Em consequência do incumprimento verificado desde 2017-05-16, das responsabilidades emergentes do contrato de crédito nº ...43, cujo saldo devedor ascende, nesta data, a €539,71, nos termos e para os efeitos do Artigo 14º, do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, serve a presente para notificar que se encontra integrado no Procedimento Extrajudicial de Regularização em Situações de Incumprimento (PERSI), identificado em assunto, com efeitos a partir da data aposta na presente comunicação …”.

- cópia de uma carta enviada pelo Banco 1..., ao embargante, datada de 5 de Setembro de 2017, e de cujo teor consta:

Como é do seu conhecimento, V. Exª. encontra-se integrado no PERSI nº PERSI/...94/...65/2017, com fundamento no incumprimento verificado no contrato de crédito nº ...43.

Tendo-se verificado que V. Exª. entrou também em incumprimento relativamente ao(s) crédito(s) de crédito; nº ...125, ficar(á)(ão) este(s), igualmente, abrangido(s) pelo PERSI melhor identificado no parágrafo anterior, tendo em vista o estudo da viabilidade de obtenção de solução que lhe permita regularizar os incumprimentos através de um único procedimento, nos termos do nº 3 do Artigo 14º, do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro…”.

- cópia de uma carta enviada pelo Banco 1..., ao embargante, datada de 23 de Novembro de 2017, e de cujo teor consta:

Assunto: Notificação da extinção do PERSI nº: PERSI/...13/...65/2017

Serve o presente para notificar V. Exa. que o procedimento no qual estava incluído(a) encontra-se extinto, nos termos do Artigo 17º do Decreto-Lei nº 227/2012 de 25 de Outubro.

Com efeito, a extinção tem por fundamento o facto de não ter facultado ao Banco 1..., S.A. os elementos necessários à apreciação da sua capacidade financeira”.

- cópia de uma carta enviada pelo Banco 1..., ao embargante, datada de 23 de Novembro de 2017, e de cujo teor consta:

“Assunto: Notificação da extinção do PERSI nº: PERSI/...13/...65/2017

Serve o presente para notificar V. Exa. que o procedimento no qual estava incluído(a) encontra-se extinto, nos termos do Artigo 17º do Decreto-Lei nº 227/2012 de 25 de Outubro.

Com efeito, a extinção tem por fundamento o facto de não ter facultado ao Banco 1..., S.A. os elementos necessários à apreciação da sua capacidade financeira.”

Cumpre, assim, apreciar da admissibilidade da junção desses documentos em sede recursória.

Os momentos normais para a junção dos documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção e da defesa são:

1) com o articulado respectivo (cf. art.º 423º, n.º 1, do CPC);

2) até ao encerramento da discussão em 1ª instância com multa (ou sem ela, se feita a prova da indisponibilidade no primeiro momento) – cf. n.º 2 do art.º 423º.

Depois do encerramento da causa, a junção de documentos apenas é admissível para aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior (art.º 425º do CPC).

Dispõe o art.º 651º, n.º 1 do CPC que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.”

Por sua vez, o art.º 425º do CPC estatui que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”

Da conjugação destas normas resulta que a junção de documentos em sede de recurso (junção que é considerada apenas a título excepcional) depende da alegação e da prova pelo interessado de uma de duas situações:

a) a impossibilidade de apresentação do documento até ao encerramento da discussão em 1ª instância, valendo aqui a remissão do artigo 651º, n.º 1, para o artigo 425º;

b) o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.

No que se refere à primeira situação, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva.

Objectivamente, só é superveniente quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão em primeira instância. Subjectivamente, é superveniente quando a parte tomou conhecimento da situação documentada ou da existência desse documento depois daquele momento.

A parte que pretenda oferecer o documento deve demonstrar a impossibilidade da junção do documento no momento normal, ou seja, alegando e demonstrando o carácter objectivo ou subjectivo da apresentação superveniente desse mesmo documento.

No tocante à superveniência subjectiva não basta, porém, invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1ª instância, impondo-se a demonstração da impossibilidade da sua junção até esse momento e, portanto, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua.

Não está em causa a impossibilidade de apresentação, em momento anterior, dos documentos, quer pela circunstância de os documentos serem objectivamente prévios à decisão impugnada, atenta a data que deles constam, quer por não ter sido alegado, pela apresentante, o seu desconhecimento.

No que tange à necessidade da junção de documento em virtude do julgamento da primeira instância, referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[1], “a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida.”

Refere António Abrantes Geraldes que a necessidade de juntar documentos por virtude do julgamento está relacionada com a circunstância de a decisão ser “de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo[2].

Referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[3], “[n]o que tange à parte final do n.º 1, tem-se entendido que a junção de documentos às alegações só poderá ter lugar se a decisão da 1.ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam”.

No caso dos autos, a Recorrida sentiu necessidade de juntar os documentos após tomar conhecimento que por este Tribunal ia ser apreciada e decidida a nulidade da cessão de créditos, à luz do artigo 18º, nº1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10, questão não apreciada pelo Tribunal da primeira instância, nem abordada pelas partes.

Face a este enquadramento, e atento o estatuído no art.º 651º, n.º 1 do CPC, admite-se a junção aos autos dos documentos apresentados.


*

Admitida a junção aos autos dos quatro documentos, apresentados, na fase recursiva, pela Recorrida – e não impugnados pelos Recorrentes/Embargantes  - , procede-se, nos termos do artigo 662º, nº1, do Código de Processo Civil, ao  aditamento à decisão da matéria de facto dos seguintes factos, pertinentes para a apreciação da nulidade da cessão de créditos, à luz do artigo 18º, nº1, alínea c), do Decreto-Lei n.º227/2012, de 25/10:
j) Pelo Banco 1... foi enviada, ao embargante, uma carta, datada de 5 de Julho de 2017, de cujo teor consta:
Em consequência do incumprimento verificado desde 2017-05-16, das responsabilidades emergentes do contrato de crédito nº ...43, cujo saldo devedor ascende, nesta data, a €539,71, nos termos e para os efeitos do Artigo 14º, do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, serve a presente para notificar que se encontra integrado no Procedimento Extrajudicial de Regularização em Situações de Incumprimento (PERSI), identificado em assunto, com efeitos a partir da data aposta na presente comunicação.
Na sequência do procedimento emergente do PERSI nº PERSI/...94/...65/2017, em que V. Exa. se encontra integrado, verifica-se nos termos e ao abrigo do nº 1 do Artigo 15º, do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, a necessidade de apreciar os seguintes elementos:
a) Última certidão de liquidação do Imposto sobre Rendimento de Pessoas Singulares disponível relativa ao agregado familiar;
b) Cópia dos documentos comprovativos dos rendimentos auferidos pelos membros do agregado familiar, nomeadamente a título de salário, remuneração pela prestação de serviços, pensões e outras prestações sociais;
c) Documento comprovativo do domicílio fiscal dos membros do agregado familiar;
d) Declaração escrita do cliente bancário, atestando a veracidade, completude e atualidade das informações prestadas.
Face ao exposto, fica V. Exª. notificado(a) para remeter / entregar na nossa agência sita (…) os elementos acima identificados, no prazo de 10 dias, contados da recepção da presente comunicação, a fim de viabilizar a apreciação da sua capacidade financeira para regularizar os incumprimentos acima identificados, bem como para fazer face às responsabilidades emergentes do crédito. …”. [documento nº1 junto com o requerimento de 10/1/2024 ]
k) Pelo Banco 1... foi enviada, ao embargante, uma carta datada de 5 de Setembro de 2017 e de cujo teor consta:
Como é do seu conhecimento, V. Exª. encontra-se integrado no PERSI nº PERSI/...94/...65/2017, com fundamento no incumprimento verificado no contrato de crédito nº ...43.
Tendo-se verificado que V. Exª. entrou também em incumprimento relativamente ao(s) crédito(s) de crédito; nº ...125, ficar(á)(ão) este(s), igualmente, abrangido(s) pelo PERSI melhor identificado no parágrafo anterior, tendo em vista o estudo da viabilidade de obtenção de solução que lhe permita regularizar os incumprimentos através de um único procedimento, nos termos do nº 3 do Artigo 14º, do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro…”.[documento nº2 junto com o requerimento de 10/1/2024 ]

l) Pelo Banco 1... foi enviada, ao embargante, uma carta datada de 23 de Novembro de 2017 e de cujo teor consta:
Assunto: Notificação da extinção do PERSI nº: PERSI/...13/...65/2017

Serve o presente para notificar V. Exa. que o procedimento no qual estava incluído(a) encontra-se extinto, nos termos do Artigo 17º do Decreto-Lei nº 227/2012 de 25 de Outubro.
Com efeito, a extinção tem por fundamento o facto de não ter facultado ao Banco 1..., S.A. os elementos necessários à apreciação da sua capacidade financeira”. [documento nº3 junto com o requerimento de 10/1/2024 ]

m) Pelo Banco 1... foi enviada, ao embargante, uma carta datada de 23 de Novembro de 2017, e de cujo teor consta:
“Assunto: Notificação da extinção do PERSI nº : PERSI/...13/...65/2017

Serve o presente para notificar V. Exa. que o procedimento no qual estava incluído(a) encontra-se extinto, nos termos do Artigo 17º do Decreto-Lei nº 227/2012 de 25 de Outubro.
Com efeito, a extinção tem por fundamento o facto de não ter facultado ao Banco 1..., S.A. os elementos necessários à apreciação da sua capacidade financeira.” [documento nº4 junto com o requerimento de 10/1/2024 ]

2ª Questão: nulidade da cessão de créditos a favor da Exequente, nos termos do artigo 18º, nº1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10.

Resulta da decisão da matéria de facto (não impugnada) que:

_ O Banco 1..., S.A., e os executados embargantes outorgaram, no dia 16 de Setembro de 2008, a escritura pública denominada de “Mútuo com hipoteca e fiança” e respectivo documento complementar, através da qual aquele concedeu aos segundos um empréstimo, no valor de €103.927,14 (cento e três mil e novecentos e vinte e sete euros e catorze cêntimos), que estes se obrigaram a reembolsar em trezentas e oitenta e quatro prestações mensais de capital e juros e ainda, para garantia de pagamento do referido empréstimo, dos juros, da cláusula penal e das despesas, constituíram a favor daquele hipoteca sobre o prédio urbano composto por edifício de rés-do-chão e andar, para habitação, anexos para garagem e lavandaria e logradouro, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...09/19970814, da freguesia ....

- O Banco 1..., S.A., e os executados embargantes outorgaram, no mesmo dia, 16 de Setembro de 2008, a escritura pública denominada de “Mútuo com hipoteca e fiança” e respectivo documento complementar, através da qual o aquele concedeu, aos segundos, um empréstimo, no valor de €84.072,86 (oitenta e quatro mil e setenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), que estes se obrigaram a reembolsar em trezentas e oitenta e quatro prestações mensais de capital e juros e ainda, para garantia de pagamento do referido empréstimo, dos juros, da cláusula penal e das despesas, constituíram a favor daquele hipoteca sobre o prédio urbano composto por edifício de rés-do-chão e andar, para habitação, anexos para garagem e lavandaria e logradouro, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...09/19970814, da freguesia ....

- Da cláusula 11ª b) do documento complementar referente à escritura desse empréstimo e da cláusula 10ª b) do documento complementar referente à escritura do empréstimo no valor de € 84.072,86 – oitenta e quatro mil e setenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), consta que a falta de pagamento de uma prestação importa o vencimento de todas.

- No requerimento executivo consta que:
i. Os mutuários AA e BB interromperam o pagamento das prestações do empréstimo, no valor de €103.927,14 (cento e três mil e novecentos e vinte e sete euros e catorze cêntimos), em 16/11/2018.
ii. Os mutuários AA e BB interromperam o pagamento das prestações do empréstimo, no valor de €84.072,86 (oitenta e quatro mil e setenta e dois euros e oitenta e seis cêntimos), em 16/1/2019.

- O Banco 2..., incorporou por fusão o Banco 1..., S.A., com a transferência global do património da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, estando a mesma registada pela apresentação nº 24, datada de 27 de Dezembro de 2017.

- Por escritura pública de cessão de créditos e documento complementar designado por “Contrato de compra e venda de uma carteira de empréstimos”, outorgado em 24 de Junho de 2019, o Banco 2..., cedeu à exequente os créditos decorrentes dos contratos dados à execução, bem como todas as garantias a ele inerentes.

Dispõe o artigo 18º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro:

1 - No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de:
a) Resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento;
b) Intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito;
c) Ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito; ou
d) Transmitir a terceiro a sua posição contratual.

2- Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do número anterior, a instituição de crédito pode:
a) Fazer uso de procedimentos cautelares adequados a assegurar a efetividade do seu direito de crédito;
b) Ceder créditos para efeitos de titularização; ou
c) Ceder créditos ou transmitir a sua posição contratual a outra instituição de crédito.

3 - Caso a instituição de crédito ceda o crédito ou transmita a sua posição contratual nos termos previstos na alínea c) do número anterior, a instituição de crédito cessionária está obrigada a prosseguir com o PERSI, retomando este procedimento na fase em que o mesmo se encontrava à data da cessão do crédito ou da transmissão da posição contratual”.

Este diploma aplica-se aos contratos de crédito relativos a imóveis abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de Junho, na sua redação actual, constando do artigo 2º, nº1, alínea c), deste diploma que “o presente decreto-lei aplica-se aos seguintes contratos de crédito, celebrados com consumidores: contratos de crédito que, independentemente da finalidade, estejam garantidos por hipoteca ou por outra garantia equivalente habitualmente utilizada sobre imóveis, ou garantidos por um direito relativo a imóveis”.

Pretendeu o legislador, com o Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro, “promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários”.

Consta do preâmbulo desse diploma: “A degradação das condições económicas e financeiras sentidas em vários países e o aumento do incumprimento dos contratos de crédito, associado a esse fenómeno, conduziram as autoridades a prestar particular atenção à necessidade de um acompanhamento permanente e sistemático, por parte de instituições, públicas e privadas, da execução dos contratos de crédito, bem como ao desenvolvimento de medidas e de procedimentos que impulsionem a regularização das situações de incumprimento daqueles contratos, promovendo ainda a adoção de comportamentos responsáveis por parte das instituições de crédito e dos clientes bancários e a redução dos níveis de endividamento das famílias” .

Entre as medidas impostas por esse diploma constam:
a. a criação, por cada instituição de crédito, de “um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI), fixando, com base no presente diploma, procedimentos e medidas de acompanhamento da execução dos contratos de crédito que, por um lado, possibilitem a deteção precoce de indícios de risco de incumprimento e o acompanhamento dos consumidores que comuniquem dificuldades no cumprimento das obrigações decorrentes dos referidos contratos e que, por outro lado, promovam a adoção célere de medidas suscetíveis de prevenir o referido incumprimento”.
b. a “definição de um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor”.

Nos termos do artigo 13º do Decreto-Lei 227/2012, “No prazo máximo de 15 dias após o vencimento da obrigação em mora, a instituição de crédito informa o cliente bancário do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida e, bem assim, desenvolve diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado”, estipulando o artigo 14º do referido diploma que “Mantendo-se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31.º dia e o 60.º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa”.

Resulta dos documentos juntos aos autos que o Banco 1... comunicou, ao embargante, por carta datada de 5 de Julho de 2017, a sua integração no Procedimento Extrajudicial de Regularização em Situações de Incumprimento (PERSI), com efeitos a partir da data aposta nessa carta, na sequência do “incumprimento desde 2017-05-16”. Nessa carta, com o “fim de viabilizar a apreciação da sua capacidade financeira para regularizar os incumprimentos acima identificados, bem como para fazer face às responsabilidades emergentes do crédito”, solicitou ao embargante: a) última certidão de liquidação do Imposto sobre Rendimento de Pessoas Singulares disponível relativa ao agregado familiar; b) cópia dos documentos comprovativos dos rendimentos auferidos pelos membros do agregado familiar, nomeadamente a título de salário, remuneração pela prestação de serviços, pensões e outras prestações sociais; c) documento comprovativo do domicílio fiscal dos membros do agregado familiar; d) declaração escrita do cliente bancário, atestando a veracidade, completude e atualidade das informações prestadas.”

O Banco 1..., por carta datada de 5 de Setembro de 2017, comunicou ao embargante que se encontrava inserido no PERSI nº PERSI/...94/...65/2017, com fundamento no incumprimento do contrato de crédito nº ...43, “tendo em vista o estudo da viabilidade de obtenção de solução que lhe permita regularizar os incumprimentos através de um único procedimento, nos termos do nº 3 do Artigo 14º, do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro…”.

Por cartas de 23 de Novembro de 2017, o Banco 1... comunicou ao embargante “que o procedimento [PERSI nº : PERSI/...13/...65/2017] no qual estava incluído(a) encontra-se extinto, nos termos do Artigo 17º do Decreto-Lei nº 227/2012 de 25 de Outubro, (…) com por fundamento no facto de não ter facultado ao Banco 1..., S.A. os elementos necessários à apreciação da sua capacidade financeira”.
A cessão dos créditos ocorreu em data posterior à extinção do PERSI.
Pelo exposto, não se verifica a nulidade da cessão de créditos por violação de norma de carácter imperativo constante do artigo 18º, nº1, alínea c), do Decreto-Lei 227/2012.

3ª Questão

Insurgem-se os recorrentes/embargantes quanto à decisão proferida pelo Tribunal a quo por entenderem que é nula a cessão de ambos os créditos por violação do disposto no artigo 6.º do Decreto-Lei nº349/98, de 11 de Novembro, e dos artigos 577.º, n.º 1, 281.º e 294º, ambos do Código Civil.

Alegam, em síntese, que:

A. Crédito concedido por escritura de 16/09/2008, no valor de €84.702,86:

- por escritura de 16/09/2008, o Banco 1... concedeu um empréstimo aos embargantes, no valor de €84.702,86, destinado à transferência do crédito à habitação própria e permanente dos mutuários;

- na data da concessão deste empréstimo, estava em vigor o Decreto-Lei 349/98, de 11 de Novembro que veio revogar o Decreto-Lei 328-D/86, de 30 de Setembro, que regula a concessão de crédito à aquisição, construção, beneficiação, recuperação ou ampliação de habitação própria, secundária ou de arrendamento, nos regimes geral de crédito, crédito bonificado e crédito jovem bonificado.

- de harmonia com o disposto no art.º 6.º do Decreto-Lei 349/98, de 11 de Novembro, apenas “As instituições de crédito têm competência para conceder financiamentos de acordo com o presente regime geral de crédito à habitação e dentro dos limites fixados nos artigos 3.º e 4.º do Decreto-Lei nº 34/86, de 3 de Março, para os bancos comerciais e de investimento”;

- o crédito à habitação tinha, e tem, um regime jurídico próprio onde avultam os Decretos-Leis 328-B/86, de 30 de Setembro, 349/98, de 11 de Novembro e 74-A/2017, de 23 de Junho, somente podendo ser concedido por Bancos e sujeito à supervisão do Banco de Portugal e a sua transferência apenas é admitida entre bancos.

Concluem, assim, que a cessão de créditos a favor da A... S.A.R.L. é nula, sendo a nulidade de conhecimento oficioso.

B - Crédito concedido por escritura de 16/09/2008, no montante de €103.927,14:

- o Banco 1... concedeu um empréstimo no montante de €103.927,14, por escritura de 16/09/2008, alegadamente para apoio à aquisição de bens de caráter utilitário para o imóvel que constitui a habitação própria e permanente dos embargantes;

- trata-se de um crédito complementar do crédito à habitação e não um crédito ao consumo, revestindo a mesma natureza daquele, pelo que se encontra sujeito ao regime jurídico do crédito ao consumo e, consequentemente, a sua transferência apenas é admitida entre bancos;

- caso assim não se entenda, esta escritura seria nula “por desvio do fim ou até por simulação” por o crédito visar “substancialmente complementar o crédito à habitação e não comprar bens móveis como ambas as partes sabiam”.

Concluem, assim, que ambos os créditos são insusceptíveis de serem cedidos a terceiros que não sejam instituições de crédito e, com este fundamento, invocam “a nulidade das escrituras que constituem a causa de pedir na execução”.

Advoga a exequente/recorrida que se trata de questões não invocadas perante o Tribunal da Primeira Instância e, consequentemente, encontra-se vedada a sua apreciação pelo Tribunal de recurso.

Fundamenta a sua posição, alegando que as questões de conhecimento oficioso tem sempre o limite da realidade factual dos autos, ou seja, do objecto do processo que corresponde ao conjunto das questões jurídicas sobre as quais o tribunal é chamado a pronunciar-se e identificam-se por referência aos factos a que se reportam as questões submetidas a julgamento e à qualificação que as normas de direito fazem desses factos.

Dissente, ainda, do entendimento perfilhado pelos Recorrentes de que se trata de nulidade de conhecimento oficioso.

Por último, refere que está em causa, apenas, a cessão dos créditos emergentes dos contratos de empréstimo que se mostram vencidos e em incumprimento há vários anos, ou seja, o direito adquirido pela Exequente relativamente a esses créditos apenas se reconduz ao direito de reclamar e exigir o respectivo cumprimento, sem que isso envolva o exercício de qualquer actividade ou a prática de quaisquer actos que estejam reservados por lei às instituições de crédito.

Cumpre apreciar e decidir.

Pese embora os Recorrentes/embargantes tenham enunciado a questão suscitada como nulidade da escritura pública da cessão de créditos, em rigor, não apontam qualquer vício de forma, mas a violação do disposto no artigo 6º do Decreto-Lei 349/98, de 11 de Novembro, por terem sido cedidos tais créditos a terceiros que não são instituições de crédito. Em rigor, pretendem os recorrentes invocar a nulidade da cessão de créditos a favor da Exequente por força da natureza dos créditos cedidos, considerando que se trata de créditos cuja concessão se encontrava vedada à actividade das Instituições de Crédito.

Previamente à apreciação da nulidade da cessão dos créditos, invocada pelos embargantes, importa apreciar se é admissível ao Tribunal ad quem, a sua apreciação.

No que tange ao empréstimo, no valor de €84.702,86, a nulidade invocada pelos embargantes assenta exclusivamente na matéria de facto alegada nos articulados. Nenhum facto novo foi carreado para os autos na peça recursiva. A questão suscitada prende-se unicamente com a violação do disposto no artigo 6º do Decreto-Lei 349/98, ou seja, importa aferir se do quadro fáctico narrado pelas partes, nos articulados, e considerado assente, pelo Tribunal a quo, se pode concluir que com a cessão do crédito à exequente foi violada aquela norma e, em caso afirmativo, se a consequência é a nulidade desse negócio.

Assim, utilizando as palavras da Recorrida, a pretensão recursória dos Recorrentes respeitou o “limite da realidade factual narrada nos articulados”, a “vinculação temática” da responsabilidade das partes, não tendo invocado “novas razões de facto”.

A concessão de crédito de crédito à habitação por entidades não previstas no artigo 6º do Decreto-Lei 349/98 tem como consequência a nulidade do negócio, nos termos do artigo 280º do Código Civil, que, atento o regime fixado no artigo 286º do Código Civil, é invocável a todo o tempo e pode ser conhecida oficiosamente.

Consequentemente, o seu conhecimento não está vedado ao Tribunal ad quem ainda que se trate de questão nova.

Situação diversa ocorre com a questão suscitada, pelos embargantes, por referência ao empréstimo, no montante de €103.927,14.

Advogam os Recorrentes que por escritura de 16/09/2008, o Banco 1..., S.A. concedeu-lhes um empréstimo, no montante de €103.927,14, “alegadamente para apoio à aquisição de bens de caráter utilitário” para o imóvel que constitui a habitação própria e permanente destes.

Com este pressuposto fáctico, conclui que se trata de “um crédito complementar do crédito à habitação e não um crédito ao consumo, revestindo a mesma natureza, razão pela qual foi concedido na mesma data e pelo mesmo prazo, 384 meses”. Qualificável como crédito à habitação, encontra-se sujeito ao regime jurídico de tais créditos e, consequentemente, insusceptível de ser cedido a terceiros que não sejam instituições de crédito, pelo que é nula a cessão, por violação do art.º 6.º do decreto-lei 349/98, em conjugação com os artigos 577.º, n.º 1, 281.º e 240.º, do Código Civil.

Advogam os Recorrentes que, caso assim não se entenda, “a escritura seria nula por desvio do fim, ou até por simulação, dado que ela visou substancialmente complementar o crédito à habitação e não comprar bens móveis como ambas as partes sabiam”.

A questão de o contrato de empréstimo se destinar a fim diverso do consignado na escritura, no caso, para “completar o crédito à habitação” e não para a aquisição de bens móveis, constitui questão nova assente numa realidade fáctica alegada apenas em sede de recurso.

Como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[4], citados pela Recorrida, «o conhecimento oficioso da norma jurídica está dependente da introdução na causa dos factos aos quais o tribunal a aplica, devendo sempre distinguir-se o plano dos factos, em que vigora, mesmo em matéria de direito processual, o princípio do dispositivo, e o plano do direito, em que a soberania pertence ao juiz, sem prejuízo ainda, no que ao direito material se refere, de o conhecimento oficioso se circunscrever no domínio definido pelo objeto do processo»

Ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 28/11/2013, proferido no processo nº 161/09.3TBGDM.P2.S1, “a oficiosidade não pode ir para além dos factos que foram alegados e controvertidos, pois a menção de novas razões de facto constituiria grosseira violação do princípio do contraditório conjugado com o princípio da preclusão que resulta do artigo 489.º/1 do C.P.C.”.

Nas palavras de António Abrantes Geraldes[5], “As questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recurso, pois estes destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição”.

Em conclusão, está vedado a este tribunal o conhecimento da nulidade do contrato de empréstimo, no montante de €103.927,14, com fundamento em  “desvio do fim, ou até por simulação”, por ter visado “complementar o crédito à habitação e não comprar bens móveis como ambas as partes sabiam”; bem como da nulidade da cessão desse crédito, à exequente, com fundamento no empréstimo concedido ter sido complementar do crédito à habitação e não “alegadamente para apoio à aquisição de bens de caráter utilitário” do imóvel adquirido e destinado à habitação.

Aqui chegados, importa apreciar e decidir se se verifica a nulidade da cessão de créditos, invocada pelos Recorrentes, por referência ao empréstimo no montante de €84.702,86, destinado “à transferência do crédito à habitação própria e permanente dos mutuários”.

Defendem os Recorrentes qu esse empréstimo encontra-se sujeito a um regime próprio decorrente dos Decretos-Leis nº 328-B/86, de 30 de Setembro, nº 349/98, de 11 de Novembro e nº74-A/2017, de 23 de Junho, somente podendo ser concedido por Bancos e sujeito à supervisão do Banco de Portugal e a sua transferência apenas é admitida entre instituições bancárias.

Dispõe o nº1 do artigo 577º do Código Civil que “O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor”.

Ensina o Professor Antunes Varela[6] que a cessão de créditos trata-se do “contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito (artigo 577.º)”.

Refere ainda que “o termo cessão, tanto designa o acto (contrato) realizado entre cedente e cessionário, como o efeito fundamental da operação (a transmissão da titularidade do crédito)”, sendo que esta pode ser operada não só por via convencional, ou contrato de cessão, mas também por disposição de lei ou por decisão judicial (cf. o artigo 588.º CC).

Nos ensinamentos do Professor Dias Marques, a cessão de créditos é definida «como a sucessão num crédito por efeito de um negócio jurídico inter vivos (v.g., venda, doação, troca...) através do qual o credor transmite a um terceiro o seu direito».[7]

Ensina o Professor Almeida Costa, «Repare-se, pelo que toca às partes, que a cessão pode realizar-se com vários objectivos, isto é, não lhe corresponde uma finalidade ou causa única e preestabelecida pela lei. Assim, ocorre porque o cedente recebe uma contrapartida (cessão a título oneroso), porque deseja fazer uma liberalidade ao cessionário (cessão a título gratuito), pretende extinguir uma obrigação (cessão solutória) etc[8].

São “requisitos da cessão de créditos: a) um negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou de parte do crédito; b) a inexistência de impedimentos legais ou contratuais a essa transmissão; c) a não ligação do crédito, em virtude da própria natureza da prestação, à pessoa do credor”[9].

O primeiro requisito verifica-se, encontrando-se plasmado no convénio celebrado entre o Banco 2..., SA e a Exequente, em 24 de Junho de 2019.

Conforme disposto no art. 577.º do CC, a cessão de créditos será admissível se não for proibida por determinação da lei ou convenção das partes e, portanto, o que interessa saber é se a cessão de créditos aqui em causa era proibida por lei.

O Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92 de 31/12 – consagra, no seu art. 8.º, o princípio da exclusividade relativamente a determinadas actividades aí previstas, determinando que elas só podem ser exercidas pelas entidades ali enunciadas, designadamente pelas instituições de crédito e sociedades financeiras nos termos ali definidos.

A Exequente não é uma instituição de crédito ou sociedade financeira, nem reúne as condições exigidas no citado diploma para as referidas instituições ou sociedades e, nessa medida, não está habilitada ao exercício das actividades que estão reservadas àquelas instituições.

Com ressalva das situações excepcionadas (que não ocorrem no caso sub judice), dispõe a citada disposição legal que só as instituições de crédito podem exercer a atividade de recepção, do público, de depósitos ou outros fundos reembolsáveis, para utilização por conta própria e que só as instituições de crédito e as sociedades financeiras podem exercer, a título profissional, as atividades referidas nas alíneas b) a i), r) e s) do n.º 1 do artigo 4.º, com excepção da consultoria referida na alínea i), ou seja, só essas instituições ou sociedades podem exercer as seguintes actividades:
- Operações de crédito, incluindo concessão de garantias e outros compromissos, locação financeira e factoring;
- Serviços de pagamento, tal como definidos no artigo 4.º do regime jurídico dos serviços de pagamento e da moeda eletrónica;
- Emissão e gestão de outros meios de pagamento, não abrangidos pela alínea anterior, tais como cheques em suporte de papel, cheques de viagem em suporte de papel e cartas de crédito;
- Transações, por conta própria ou da clientela, sobre instrumentos do mercado monetário e cambial, instrumentos financeiros a prazo, opções e operações sobre divisas, taxas de juro, mercadorias e valores mobiliários;
- Participações em emissões e colocações de valores mobiliários e prestação de serviços correlativos;
- Atuação nos mercados interbancários;
- Consultoria, guarda, administração e gestão de carteiras de valores mobiliários;
- Gestão em gestão de outros patrimónios;
- Emissão de moeda eletrónica;
- Outras operações análogas e que a lei lhes não proíba.

A aquisição dos créditos aqui em causa não envolve o efectivo exercício pela cessionária (a Exequente) de nenhuma das referidas actividades que, nos termos da citada disposição legal, estão reservadas às instituições de crédito. O direito adquirido pela Exequente relativamente a esses créditos apenas se reconduz ao direito de reclamar e exigir o respectivo cumprimento, sem que isso envolva o exercício de qualquer actividade ou a prática de quaisquer actos que estejam reservados por lei às instituições de crédito.

Nessa perspectiva, não existe qualquer impedimento à admissibilidade da cessão de créditos resultante da circunstância de a Exequente não ser uma instituição de crédito. Esta solução impor-se-ia, igualmente, relativamente ao empréstimo no montante de €103.927,14, caso estivesse em causa um contrato de crédito à habitação.

Improcede o recurso nesta parte.


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4ª Questão

Dissentem os Recorrentes da decisão proferida pelo Tribunal da primeira instância quanto à excepção peremptória da mora do credor, argumentando que:

- apresentaram requerimento probatório, visando comprovar a mora do credor em audiência de discussão e julgamento, mormente através de prova testemunhal;

- «na sentença recorrida é referido que os embargantes não alegaram e muito menos comprovaram que tivessem oferecido o pagamento das prestações dos créditos, quer ao primitivo credor Banco 2... (que incorporou por fusão o Banco 1..., S.A., com a transferência global do património da sociedade incorporada para a sociedade incorporante), quer à cessionária ora exequente.»;

- «na sentença recorrida é referido que os embargantes “nem alegaram e muito menos comprovaram que tivessem oferecido ao primitivo credor ou à exequente as restantes prestações vencidas, ou que eles tivessem levantado qualquer entrave à satisfação da obrigação.»;

- “nunca deveria ter havido uma decisão de mérito imediata, mas sim, proceder-se à realização final de audiência e discussão de julgamento” por forma a permitir aos embargantes demonstrar que ofereceram as prestações em débito, através da prova testemunhal indicada no requerimento probatório, não existindo “outro modo de fazer prova de que os embargantes ofereceram as prestações em débito (havendo dinheiro nas contas bancárias no Banco 2..., para esse efeito).

Concluem os Recorrentes que o Tribunal a quo violou o disposto nos arts.º 813.º e 713.º do Código Civil, e no art.º 596.º, n.º 1, do CPC.

Sustenta a Recorrida que, tratando-se de uma obrigação pecuniária, a prestação deve ser efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento, conforme preceitua o artigo 774º do Código Civil, ou seja, da exequente. Contudo, os embargantes não alegaram e muito menos comprovaram que:
i. tivessem oferecido o pagamento das referidas prestações quer ao primitivo credor Banco 2... (que incorporou por fusão o Banco 1..., S.A., com a transferência global do património da sociedade incorporada para a sociedade incorporante), quer à cessionária, ora exequente;
ii. tivessem oferecido ao primitivo credor ou à ao exequente as restantes prestações vencidas, ou que estes tivessem levantado qualquer entrave à satisfação da obrigação.

Refere, ainda que os Recorrentes invocam, agora, que iriam lograr provar, através de prova testemunhal, que o credor havia recusado o recebimento das prestações. Nos termos dos contratos de mútuo oferecidos como título executivo, consta que os pagamentos das prestações em causa deveriam ser realizados mediante transferências bancárias. Assim, a prova do pagamento deve ser feita por documento, existindo, por isso, restrições legais à admissibilidade da prova testemunhal, o mesmo sucedendo com a prova da recusa do recebimento das prestações.

Por último, alega que, conforme resulta da sentença proferida, a prova documental oferecida pelos Recorrentes, nomeadamente o extracto bancário, não prova que as prestações atinentes aos presentes contratos tenham sido realizadas/ ou tentadas realizar, pelos mesmos.

Cumpre apreciar e decidir.

Pretendendo os Recorrentes/embargantes o prosseguimento dos autos para a fase de julgamento com vista a possibilitar a demonstração da existência de mora do credor, a apreciação e decisão da sua pretensão recursória impõe, previamente, o apuramento dos pressupostos da mora do credor e qual a matéria de facto alegada pelos Embargantes para fundamentar a excepção de mora do credor.
A lei estabelece, no artigo 813º do Código Civil, que o credor incorre em mora, sempre que, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.
A mora do credor tem, assim, os seguintes pressupostos:
a. recusa ou não realização pelo credor da colaboração necessária para o cumprimento;
b. ausência de motivo justificado para essa recusa ou omissão.

Aqui chegados, vejamos qual a factualidade alegada pelos embargantes na qual fundamentam a excepção da mora do credor.

Consta da decisão recorrida que os Recorrentes/embargantes “não alegaram e muito menos comprovaram que tivessem oferecido o pagamento das prestações dos créditos, quer ao primitivo credor Banco 2... (que incorporou por fusão o Banco 1..., S.A., com a transferência global do património da sociedade incorporada para a sociedade incorporante), quer à cessionária ora exequente” e  “nem alegaram e muito menos comprovaram que tivessem oferecido ao primitivo credor ou à exequente as restantes prestações vencidas, ou que eles tivessem levantado qualquer entrave à satisfação da obrigação”.

Todavia, analisada a petição[10], constata-se que pelos embargantes foi negada a interrupção do pagamento das prestações, alegando que até 8/3/2019, o Banco procedeu ao desconto das prestações devidas.

Alegaram, ainda, que, em data posterior a 8/3/2019, a conta bancária encontrou-se provisionada com saldo suficiente para o pagamentos das prestações vincendas, factualidade esta irrelevante, face à localização temporal, pela exequente, do vencimento de todas as prestações ainda não vencidas (empréstimo no montante de €84.072,86: em 16/1/2019; empréstimo no montante de €103.927,14: em 16/11/2018).

Consta dos contratos de empréstimos juntos com o requerimento executivo, a cláusula 6ª com o seguinte teor:

“1- Os mutuários comprometem-se a manter a sua conta de depósitos à ordem aberta junto do banco, devidamente provisionada a fim de que no respectivo vencimento nela possam ser debitadas as quantias devidas, seja a título de reembolso de capital ou de pagamento de juros, comissões e demais encargos, ficando o banco expressamente autorizado a proceder aos respectivos débitos sem precedência de qualquer tipo de ordem fazendo seus os montantes correspondentes”.

Considerando o modo de pagamento das prestações acordado, a prova testemunhal mostra-se inidónea para demonstrar o quadro fáctico no qual os embargantes alicerçam a excepção da mora do credor. Concluindo-se que o oferecimento das prestações, na data do respectivo vencimento, só pode ser efectuado mediante prova documental, não se descortina qualquer utilidade no prosseguimento dos autos para julgamento, considerando que os documentos devem ser juntos com o articulado em que se aleguem os factos  demonstrar com tais elementos  correspondentes -cfr. artigo 423.º do CPC. Alias, os embargantes juntaram aos autos a prova documental que entenderam pertinente para a demonstração do pagamento das prestações (cfr. ponto 6º da petição).

Invocaram os embargante que com vista à reestruturação dos créditos assumidos, deram início ao processo “para entrega dos documentos necessários para o efeito”, não tendo obtido qualquer resposta.

O Decreto-Lei 2727/2012, de 25/10, alterado pelo Decreto-Lei 70-B/2021, veio estabelecer princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e criou mecanismos de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização de tais situações.

Consta do preâmbulo desse diploma que “pretende-se estabelecer um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas.

Em concreto, prevê-se que cada instituição de crédito crie um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI), fixando, com base no presente diploma, procedimentos e medidas de acompanhamento da execução dos contratos de crédito que, por um lado, possibilitem a deteção precoce de indícios de risco de incumprimento e o acompanhamento dos consumidores que comuniquem dificuldades no cumprimento das obrigações decorrentes dos referidos contratos e que, por outro lado, promovam a adoção célere de medidas suscetíveis de prevenir o referido incumprimento.

Adicionalmente, define-se um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor.”

De harmonia com o disposto nesse diploma, as instituições de crédito devem acompanhar de forma permanente e sistemática os contratos de crédito dos seus clientes, realizando, com uma periodicidade mínima mensal, as diligências necessárias para detectar eventuais indícios de risco de incumprimento. As instituições devem definir e implementar um plano de acção para o risco de incumprimento (PARI).  Sobre o cliente recai a dever de alertar a instituição de crédito para o risco de vir a incumprir, devido, por exemplo, a uma situação de desemprego ou de doença. Caso detecte indícios de degradação da capacidade financeira do cliente, a instituição de crédito deve contactá-lo no prazo de 10 dias para avaliar a sua capacidade financeira.

O cliente deve prestar a informação e os documentos solicitados pela instituição de crédito no prazo de 10 dias. A instituição não está obrigada a avaliar a situação do cliente se este não prestar as informações ou não disponibilizar os documentos solicitados.

Nos termos do artigo 12º do referido diploma, “As instituições de crédito promovem as diligências necessárias à implementação do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito”.

Após a integração do cliente em incumprimento no PERSI, a instituição de crédito avalia a situação de incumprimento e a capacidade financeira do cliente. O cliente deve prestar, no prazo máximo de 10 dias, toda a informação e entregar os documentos que lhe sejam solicitados.

A instituição de crédito, nos 30 dias posteriores ao início deste procedimento, deve apresentar ao cliente uma ou mais propostas para regularização do incumprimento, caso verifique que o cliente dispõe de capacidade financeira para fazer face ao cumprimento das condições previstas nas referidas propostas.

Consta do artigo 17º, nº2,a línea e) do Decreto-Lei 272/2012, que “A instituição de crédito pode, por sua iniciativa, extinguir o PERSI sempre que [o] cliente bancário não colabore com a instituição de crédito, nomeadamente no que respeita à prestação de informações ou à disponibilização de documentos solicitados pela instituição de crédito ao abrigo do disposto no artigo 15.º, nos prazos que aí se estabelecem…”.

Resulta da matéria de facto assente que o embargante foi inserido no Procedimento Extrajudicial de Regularização em Situações de Incumprimento (PERSI) cuja extinção teve como fundamento “o facto de não ter facultado ao Banco 1..., S.A. os elementos necessários à apreciação da sua capacidade financeira”.

Consta da matéria de facto considerada demonstrada que “i) Os embargantes manifestaram a intenção de reestruturação dos créditos assumidos junto do Banco 2..., mas a mesma não foi concretizada”. Esta matéria de facto não se mostra impugnada, sendo que a existência e tramitação do processo de reestruturação só pode ser objecto de prova documental.

Pelo exposto, não se descortina qual a utilidade de os autos prosseguirem para julgamento, considerando que não existe qualquer factualidade alegada na petição inicial, pertinente para a apreciação da excepção de mora do credor que possa ser objecto de prova testemunhal.

Por último, dispõe o artigo 8º do Código de Processo Civil que “As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”.

Compulsados os autos, verifica-se que na audiência prévia, realizada em 18 de Maio de 2023, foi proferido o seguinte despacho:

Determino que as partes no prazo de 10 dias, se pronunciem sobre a eventualidade de o Tribunal proferir decisão judicial quanto à subsequente tramitação dos autos, sejam no sentido de decisão de mérito imediata seja no sentido de prosseguimento para julgamento, por inexistência de factos controvertidos relevantes”.

Nessa sequência, os embargantes informaram que não se opunham ao prosseguimento do presente processo para decisão de mérito ou para realização de audiência final de julgamento. Contrariando a posição ora assumida, não transmitiram ao tribunal que, no seu entender, se mostrava necessária a produção de prova testemunhal. O princípio da autorresponsabilização das partes impõe que pelas mesmas não sejam assumidos, no processo, comportamentos contraditórios.

Improcede, assim, o recurso, nesta parte.


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Pelo Tribunal a quo não foi proferida decisão por referência à matéria de facto, narrada pelos embargantes, nos pontos 7º [não interromperam o pagamento das prestações de ambos os empréstimos, em 16/11/2018, e 16/01/2019, respetivamente] e 8º [“o Banco 2... descontou as prestações de crédito até pelo menos 08/03/2019”].

Como referido, consta dos contratos de empréstimo que o pagamento das prestações era efectuado através de débito em conta bancária, o que foi admitido pelos Embargantes, alegando que as prestações eram pagas através da conta n.º  ...20, de que eram titulares – artigo 6º da petição. Alegaram os embargantes a existência de saldo suficiente nessa conta para o pagamento das prestações, bem como o pagamento das prestações até 8/3/2019, tendo junto aos autos os extractos bancários referentes ao período de Agosto de 2018 a 23/8/2019.

Constando dos autos todos os elementos necessários - os extractos bancários da referida conta bancária -, ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil, procede-se, de seguida, à apreciação da matéria de facto acima indicada.

Dos documentos nº1 a 10 juntos com a petição inicial - extractos bancários referentes à conta n.º  ...20, reportados ao período de 2/8/2018 a 23/8/2019 -,  juntos pelos embargantes com a petição inicial resulta que:

_ a conta bancária apresentou saldo negativo desde 22 de Agosto de 2018 até 2 de Outubro de 2018. Entre 3 de Outubro e 4 de Outubro, teve saldo positivo. Desde 5 de Outubro a 26 de Novembro de 2018, não teve saldo positivo. De 28 de Novembro a 10 de Dezembro de 2018 apresentou saldo positivo [nesse período, até 9 de Dezembro, o saldo bancário atingiu o valor máximo de €101,15] mas de valor inferior ao valor de qualquer das prestações mensais que estavam obrigados a pagar, decorrentes dos dois contratos de empréstimo. Em 10 de Dezembro de 2018, o saldo bancário era no valor de €370,05. Em 28/2/2019, o saldo ficou em €0,00.  Em 8/3/2019, o saldo atingiu o valor máximo de €273,79 e, no mesmo dia, ficou com o valor €0,00.

- dos documentos nºs 6 e 7 resulta, por referência ao empréstimo no montante de €84.072,86 que: no dia 28/2/2019, para “regularização de situações de incumprimento”, foi debitada, da conta bancária dos embargantes, a quantia correspondente ao valor das prestações nºs 121 a 129, vencidas entre Março e Novembro de 2018. No dia 8/3/2019, foi debitada a quantia referente à prestação nº130, vencida em 16/12/2018.

- dos documentos nºs 8 e 9 resulta, por referência ao empréstimo no montante de €103.927,14 que: no dia 28/2/2019, para “regularização de situações de incumprimento”, foi debitada, da conta bancária dos embargantes, a quantia correspondente ao valor das prestações nºs 127 e 128, vencidas em 16/9/2018 e 16/10/2019, bem como da prestação nº129, vencida em 16/11/2018.

Resulta, efectivamente, da prova que o Banco descontou: em 8/3/2019, a quantia correspondente à prestação nº130 cujo vencimento ocorreu em 16/12/2018; e em 28/12/2019, descontou o valor das prestações vencidas entre Março e Novembro.

No entanto, a mora do credor pressupõe que o devedor tenha oferecido a prestação na data do respectivo vencimento, quadro fáctico que os embargantes não lograram demonstrar, sendo que recai sobre si o ónus de prova.

Refere a exequente, no seu requerimento executivo, que o não pagamento das prestações na data do respectivo vencimento, confere-lhe o direito de exigir o pagamento imediato de todo o capital em dívida, à data da última prestação paga.

Considerado o vencimento de todas as prestações vincendas, em 16/11/2018 [empréstimo no montante de €103.927,14] e 16/1/2019 [empréstimo no montante de €84.072,86 ], mostra-se irrelevante apurar se a conta bancária, em data posterior a 8/3/2019, estava provisionada com saldo suficiente para o pagamento das prestações mensais cujo vencimento ocorreria após essa data.

Assim, ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil, procede-se à modificação da decisão sobre a matéria de facto, aditando os seguintes factos:

Factos provados:

n. No dia 28/2/2019, para “regularização de situações de incumprimento”, foi debitada, da conta bancária dos embargantes, a quantia correspondente ao valor das prestações nºs 121 a 129 referentes ao empréstimo no montante de €84.072,86, vencidas entre Março e Novembro de 2018. No dia 8/3/2019, foi debitada a quantia referente à prestação nº130, vencida em 16/12/2018.

o. No dia 28/2/2019, para “regularização de situações de incumprimento”, foi debitada, da conta bancária dos embargantes, a quantia correspondente ao valor das prestações nºs 127 e 128, vencidas em 16/9/2018 e 16/10/2019, referentes ao empréstimo no montante de €103.927,14, bem como da prestação nº129, vencida em 16/11/2018.

5ª Questão

Dissentem os Recorrentes da decisão proferida pelo Tribunal a quo por, no seu entender, existir mora do credor.

Fundamentam a sua pretensão de revogação da sentença na alteração da decisão da matéria de facto, não tendo aduzido qualquer argumento estritamente jurídico para infirmar a decisão recorrida por referência à excepção de mora do credor com base nos factos considerados provados pelo Tribunal da Primeira Instância.

As conclusões delimitam o objecto do recurso e balizam o âmbito do conhecimento do Tribunal pelos fundamentos aduzidos, excepto tratando-se de questões de conhecimento oficioso.
Conforme se referiu, constituem pressupostos da mora do credor:
i. a recusa ou não realização pelo credor da colaboração necessária para o cumprimento;
ii. a ausência de motivo justificado para essa recusa ou omissão.

Ensina Antunes Varela[11] que “diz-se que há mora do credor (mora credendi), sempre que a obrigação não foi cumprida no momento próprio, porque o credor, sem causa justificativa, recusou a prestação que lhe foi regularmente oferecida ou não realizou os actos (de cooperação) de sua parte necessários ao cumprimento”.

Do requerimento executivo consta que “[o]s mutuários AA e BB interromperam o pagamento das prestações de ambos os empréstimos acima melhor identificados em 16/11/2018 e 16/01/2019, respetivamente”, o que “determinou, nos termos legais e contratuais, o direito de considerar vencida toda a dívida”.

Como referido, os embargantes não lograram demonstrar o oferecimento das prestações devidas relativamente a ambos os empréstimos, na data do respectivo vencimento, pressuposto da mora do credor.

Assim, não existindo qualquer outro fundamento invocado pelo Recorrente para a revogação da decisão recorrida, improcede, na íntegra, o recurso.


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Custas

De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1, do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

Nos termos do art. 1º, n.º 2 do RCP, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.

As custas do recurso são da responsabilidade dos Recorrentes, considerando a total improcedência das suas pretensões recursórias.


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IV - Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, julga-se o presente recurso totalmente improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida, sem prejuízo do aditamento, à decisão da matéria de facto, dos pontos j), l), m), n), o) e p), nos termos enunciados.

Custas da apelação pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário que os mesmos beneficiam (artigo 527.º, nº 1, do Código de Processo Civil e artigo 18º, nº4, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, com a alteração introduzida pela Lei nº47/2007.


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Sumário:

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Porto,3/6/2024

Anabela Morais;

Miguel Baldaia de Morais

Ana Olívia Loureiro


___________________
[1] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, págs. 533 e 534.
[2] António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022 - 7.ª edição, pá. 286.
[3] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração – Artigos 1.º a 702.º, Almedina, 2022- 3ª ed, pág. 849.
[4] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2021, vol. I, 4ª ed., pág. 41,
[5] António Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 2022, 7ª ed., pág. 250.
[6]Antunes Varela , “Das Obrigações em geral”, Almedina, vol. II, 5.ª ed., pág. 293.
[7] J. Dias Marques, “Noções Elementares de Direito Civil”, 7ª edição, pág.188.
[8] Almeida Costa, “Noções de Direito Civil”, 2ª edição, 1985, pág. 175.
[9] Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, “Direito das Obrigações” , vol. II, 11.ª ed., p.14.
[10] Consta da petição:
...
6.ºOra, conforme se pode ver dos extratos do Banco 2..., relativamente à conta n.º  ...20, de que eram titulares o Embargante marido e mulher, as prestações bancárias dos contratos, de mútuo, eram pagas nesta conta… (vide docs. 1.º a 10.º).
7.º E da leitura desses documentos, também se pode verificar que não é verdade que os Embargantes tenham interrompido o pagamento das prestações de ambos os empréstimos, em 16/11/2018, e 16/01/2019, respetivamente.

 9.º Verifica-se que o Banco 2... descontou as prestações de crédito até pelo menos 08/03/2019 (prestação n.º 131, referida no doc.n.º 3, agora junto). …
12º Algum tempo depois, (…) constatou que deixaram de cobrar as prestações vincendas.
13.º Sendo certo que havia capital na conta domiciliada para procederem ao seu desconto (vide doc. n.º 4 agora junto).
14.º …
[11] Antunes Varela, “Direito das Obrigações”, Almedina Coimbra, 1992, vol. II, 5ª ed., pág. 159.