ENTIDADES SEGURADORAS / QUEBRA DO DEVER DE SIGILO
Sumário

I - As entidades seguradoras estão sujeitas ao dever de sigilo profissional, nos termos do art. 119º da Lei do Contrato de Seguro, em relação às informações de que tenham tomado conhecimento no âmbito de contrato de seguro, consigo celebrado, sendo legítima a escusa em fornecer tais elementos ao Tribunal.
II - A decisão sobre a quebra daquele dever de sigilo, nos termos do nº 3 do art. 135º do CPP “ex vi” do nº 4 do art. 417º do CPC, pressupõe a ponderação do valor dos interesses em confronto, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade da informação pretendida para a descoberta da verdade, em confronto com a tutela da reserva da vida privada protegida pelo dever de sigilo.
III - Visando a informação solicitada promover a obtenção de meios de prova, eventualmente, susceptíveis de demonstrar factos controvertidos na acção em que são solicitados, no confronto com o princípio que tutela a reserva de intimidade da vida privada, deve prevalecer o interesse público da administração e realização da justiça, dispensando-se o sigilo para aquele concreto fim.

Texto Integral

Proc. n° 3093/231.9T8VLG-B.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo do Trabalho de Valongo - Juiz 2

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo nº 3093/23.9T8VL, na sequência de pretensão deduzida pela Ré, solicitou a Mª Juíza “a quo” e foi instruído o presente incidente de quebra de sigilo, de harmonia com o art. 417º, nºs 3, al.c) e 4, do Código de Processo Civil e art. 135º, do Código de Processo Penal, atenta a escusa apresentada pela seguradora a “Companhia de Seguros A..., S.A.” em fornecer as informações requeridas pela Ré, naqueles autos.
Nos quais, acção comum emergente de contrato de trabalho, intentada pela A., AA, residente na Rua ..., nº ..., 4° Dt°, ... ..., contra a Ré, B..., Ldª, com sede na Rua ..., Io Dt°, sala ..., ... Porto, veio, aquela, após convite a aperfeiçoar o pedido inicial formulado em b) apresentar o seguinte:
“a) Que seja fixado o términus do contrato de trabalho em 04 de Agosto de 2023;
b) A Ré ser condenada no pagamento dos salários do mês de Julho e Agosto de 2023, nos valores de 1.231,87€ e 2.343,98€, respectivamente;
c) A Ré ser condenada no pagamento da quantia de 2.454,54€ referente ao pagamento do prémio de produtividade do ano de 2022, a ser liquidado ao longo do ano de 2023.
d) A Ré ser condenada no pagamento da quantia de 5.191,16€ referente ao pagamento das férias vencidas e não gozadas e ao valor proporcional ao tempo trabalhado, das férias e subsídios de Férias e de Natal;
e) A Ré ser condenada no pagamento da quantia de 6.480,00€ referente a diferenças salariais de todo o ano de 2022;
f) A Ré ser condenada no pagamento da quantia de 2.272,09€ referente a diferenças salariais dos primeiros seis meses do ano de 2023;
g) E ainda, ser a Ré condenada em custas, procuradoria condigna e tudo o mais que for legal.

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A Ré veio contestar, nos termos que constam do articulado junto e conclui que deve: “A) Ser considerada improcedente a ação e a Ré absolvida do pagamento das diferenças salariais nos anos de 2022 e 2023, nomeadamente, os pedidos elencados nas alíneas c), e), f).
B) Ser o pedido reconvencional considerado procedente e consequentemente ser compensado o crédito da A. (designadamente retribuições e componentes remuneratórias de julho e agosto de 2023, férias vencidas em 1 de janeiro de 2023 e não gozadas (9 dias), bem como, os direitos emergentes com a cessação do contrato de trabalho) com o valor que a mesma deve à R. no que respeita ao montante aqui reclamado de € 8.945,00
c) Deve ainda a A. ser condenada como litigante de má fé e consequente obrigada a pagar multa e procuradoria condignas, bem como, uma indemnização à R. no valor de € 8.934,54.”.
Em termos de meios de prova veio:
“- Requer que se oficie a companhia de seguros A..., sita na Rua ..., ... Porto, para que informe:
Quem é o titular da apólice denominada ... com o n.º ...;
Qual o valor total (valor inicial e reforços) que foi constituído na apólice ... com o n.º ...;
Para que conta foi transferido o valor dessa apólice;
Como é que os valores que integraram a apólice foram pagos, nomeadamente, se foram feitos reforços através da prestação de contas com a sociedade B..., Lda e em caso positivo qual foi o montante global pago através dessa forma.
Uma vez que se trata de documentos na posse da A. requer a V.a ex.a se digne notificar a A. para que junte aos autos:
Cópia da apólice denominada ... com o n.º ...;
Todos os resgastes que fez na apólice ... com o n.º ...;
Para que conta foi transferido o valor dessa apólice e se é titular do IBAN ....”.
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Oportunamente, a Mª Juíza “a quo”, proferiu despacho, onde em síntese, ordenou o seguinte. “oficie e notifique como requerido pela autora na petição inicial e pela ré na contestação.”.
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Notificada, a A... veio responder, conforme email junto aos autos, em 30.01.2024, nos seguintes termos:
“Exmos. Srs.
Rececionamos nestes serviços a notificação em epígrafe, cujo teor foi digno da nossa cuidada atenção.
A A... – Companhia de Seguros, S.A., pessoa coletiva ..., matriculada sob esse mesmo número na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, com sede no Largo ..., em Lisboa, vem, em resposta ao pedido de informação, informar que, estando esta Companhia e os seus colaboradores, por força do estabelecido no artigo 119º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, sujeitos a dever de sigilo, não pode disponibilizar a informação requerida, solicitando, pois, em conformidade com o expressamente previsto na alínea c) do n.º 3 e no n.º 4 do artigo 417º do Código do Processo Civil, escusa na prestação da mesma.”.
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A Mª Juíza “a quo”, em sede de saneador, nos termos do despacho, de 05.02.2024, proferiu o seguinte:
“Foi a Companhia de Seguros A..., S.A. notificada para informar a identidade do titular de uma apólice, qual o seu valor e movimentos.
Aquela entidade recusou-se a prestar tais informações, invocando a sua vinculação o sigilo.
Efectivamente, tais informações estarão sujeitas a sigilo, nos termos do artigo 119º do Decreto-Lei nº 72/2008 de 16/04, sendo legítima a recusa daquela instituição na prestação da pretendida informação.
Assim, notifique a ré para, querendo, em 10 dias, informar se pretende suscitar junto do Tribunal Superior a quebra daquele sigilo, tendo em conta os interesses em causa, nos termos dos arts. 135º, nº 3, do Código de Processo Penal, e 417º, nº 4, do CPC.”.
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De seguida, nos termos do requerimento, junto em 09.02.2024, a Ré, salvaguardando a hipótese de a A. não colaborar com o Tribunal, requereu o seguinte, “que, V.ª Ex.ª se digne:
Suscitar junto do Tribunal Superior a quebra do sigilo dos dados constantes nas apólice denominada ... com o número ... (titular, valores, movimentos e ordens dadas) da Companhia de Seguros A..., S.A, uma vez que a quebra do sigilo se mostra justificada, nomeadamente tendo em conta a sua imprescindibilidade para a descoberta da verdade material e para prova do vertido nos artigos 41, 42, 46, 53 e 54 da contestação/reconvenção.”.
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Em 06.03.2024, a Mª Juíza “a quo”, proferiu novo despacho onde, em síntese, decidiu, “Requerimento da ré de 9/02: antes de mais, tratando-se de uma apólice titulada pela autora, esta poderá ter a mesma na sua posse e, por outro lado, autorizar a Companhia de Seguros A..., SA a prestar informações sobre o seu valor e movimentos, mostrando-se, assim, desnecessária a tramitação do incidente de levantamento do sigilo profissional.
Assim, notifique a autora para, em 10 dias:
- juntar a apólice denominada ..., com o nº ...;
- juntar todos os resgates que fez naquela apólice;
- indicar para que conta foi transferido o valor dessa apólice;
- se é titular da conta com o IBAN ...; e
- esclarecer se autoriza que a referida entidade preste as informações pretendidas pela ré.”.
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A este, respondeu a A., conforme consta do requerimento junto, em 25.03.2024, informando não autorizar que a entidade Seguros A... preste qualquer informação.
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Nessa decorrência, nos termos constantes do despacho proferido, em 06.05.2024, o Tribunal “a quo” decidiu o seguinte:
«(…).
Requereu o réu a notificação da Companhia de Seguros A..., S.A. para informar:
- quem é o titular da apólice denominada ..., com o nº ...;
- qual o valor total (inicial e reforços) que foi constituído na apólice ... com o n.º ...;
- para que conta foi transferido o valor dessa apólice;
- como é que os valores que integram a apólice foram pagos, nomeadamente se foram feitos reforços através da prestação de contas com a sociedade ora ré e, em caso afirmativo qual o montante global pago através dessa forma.
O crédito que a ré/reconvinte invoca, cuja compensação pretende obter, assenta na alegada actuação da autora/reconvinda de criar uma apólice em seu nome, proceder ao seu reforço com valores da conta corrente que a ré mantinha com a A..., sem posteriormente transferir esses montantes para a conta da ré, procedendo depois ao resgate da apólice para a sua conta bancária, fazendo seu o valor de 8.945€.
Pretende a ré com as requeridas informações fazer prova desta actuação.
Assim, afigurando-se-me relevante para a boa decisão da causa e não sendo possível obter tais informações com o consentimento da autora (que não o prestou), determino seja solicitado ao Tribunal da Relação do Porto, de harmonia com o preceituado no artigo 417.º, n.ºs 3, c) e 4 do CPC e 135.º do Código de Processo Penal para, caso assim seja entendido, se autorize a quebra do sigilo previsto no artigo 119º do Decreto-Lei nº 72/2008 de 16/04, a fim de a Companhia de Seguros A..., S.A. fornecer as informações requeridas pelo réu acima referidas.”.
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Oportunamente, o presente incidente foi instruído através da certidão extraída dos autos principais.
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Dado cumprimento ao disposto na 1ª parte do nº 2 do art. 657º, nº 2, do CPC, há que apreciar e decidir.
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O objecto do presente incidente, consiste em saber se existe fundamento legal para a dispensa do dever de sigilo invocado pela seguradora.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Os factos a considerar são os que decorrem do relatório que antecede, os quais resultam dos autos documentalmente comprovados.
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Apreciando.
No presente incidente de dispensa do dever de sigilo invocado pela seguradora, no âmbito dos autos principais, acção laboral, supra identificada, está em causa apurar se é legítimo que a Companhia de Seguros A..., S.A., invoque o dever de sigilo, para não prestar as informações que lhe foram solicitadas e sendo legítima a escusa se, no caso, se justifica a quebra daquele dever de sigilo.
Sigilo que, como diz, (Ana F. Neves in “Os segredos no Direito”, AAFDL, 2019, págs. 20 e 21) “é uma imposição legal específica de circunspecção relativamente a informação, documentos e factos de que se tenha conhecimento num certo contexto funcional ou institucional”.
Na situação concreta, dispõe o art. 119º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008 de 16 de Abril, que: “1 - O segurador deve guardar segredo de todas as informações de que tenha tomado conhecimento no âmbito da celebração ou da execução de um contrato de seguro, ainda que o contrato não se tenha celebrado, seja inválido ou tenha cessado.
2 - O dever de sigilo impende também sobre os administradores, trabalhadores, agentes e demais auxiliares do segurador, não cessando com o termo das respetivas funções.”
Sendo, assim, inequívoco, à face deste normativo, que a seguradora/A... está onerada com o dever de sigilo e que está obrigada a invocá-lo no âmbito de qualquer processo.
Porque, ainda que terceiro em relação ao processo, está a mesma obrigada ao dever de cooperação para a descoberta da verdade, enunciado no art. 417º, nº1 do CPC, que dispõe: “Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.”.
Isto, apesar de, conforme dispõe o nº 3 do mesmo art. 417º, a recusa ser legítima se a obediência importar: “a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4.”.
O qual, determina sobre o procedimento a seguir quanto à legitimidade da escusa e dispensa do dever de sigilo profissional ou de funcionários públicos invocado, o seguinte: “4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”. Remetendo, assim, para as normas do processo penal, em concreto, o art. 135º do CPP, que dispõe:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.”.
Verifica-se, assim, que decorre do nº 4, deste art. 135º, que a escusa com fundamento em sigilo profissional efetivamente existente deve ser suscitada junto do Tribunal de 1ª instância e cumpre ao Tribunal da Relação decidir o incidente de dispensa do sigilo “segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”.
Constando-se que existem, neste quadro legal, duas situações distintas, de escusa da prestação de informações às autoridades judiciárias, as de legitimidade e as de ilegitimidade daquela.
Sendo que, a escusa é legítima quando resulta do cumprimento de um dever legal, no caso, o dever de sigilo ou confidencialidade. E nestas situações, de legitimidade da escusa, a qual resulta de os elementos estarem abrangidos pelo segredo e não existir autorização, a obtenção das informações já não poderá ser determinada sem a ponderação dos interesses que se mostram em confronto. Ou seja, de um lado, os interesses protegidos pelo segredo profissional, do outro, os interesses na realização da justiça, a ser efectuado no âmbito do incidente de quebra do segredo profissional, o qual deverá ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido, competindo-lhe, então, decidir da prestação de testemunho ou da apresentação dos documentos com quebra do dever de sigilo.
Segundo (Lopes do Rego in Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 363), suscitada a escusa, podem configurar-se três situações:
- invocada a escusa e havendo dúvidas fundadas sobre a invocação, é ao juiz da causa que compete proceder às averiguações necessárias e – caso conclua pela ilegitimidade da escusa – determinar a forma de cooperação requerida;
- sendo a escusa fundada em sigilo efetivamente existente, é ao tribunal imediatamente superior àquele, em que o incidente se tiver suscitado, que incumbe decidir da efetiva prestação da cooperação requerida, com preterição do dever de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante;
- estando em causa sigilo profissional, a decisão do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão com ele relacionada, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a tal organismo seja aplicável.
Ora, no caso, como já dissemos, estando em causa informações a prestar por seguradora, decorre daquele regime legal a que está subordinada tal actividade, que as entidades que o exploram, como a A..., estão sujeitas ao sigilo profissional, nos termos do já referido art. 119º da Lei do Contrato de Seguro.
Inserindo-se, o dever de sigilo da seguradora no âmbito dos deveres de sigilo profissional a que estão sujeitas todas as entidades que prestem serviços a outrem, no que toca às relações dessas entidades com os seus clientes, bem como, a de todos os actos que digam respeito à vida da instituição e que as respetivas administrações não queiram que sejam conhecidas.
Apesar de, importa que se diga, o dever de sigilo da seguradora não constituir um dever absoluto, pois pode ser dispensado por razões de direito público, quando existam razões justificativas, atenta a necessidade de proteger interesses que devam prevalecer sobre o sigilo, como se entendeu e decidiu nos Acórdãos, dos (TRC de 12.06.2018, Proc. 768/16.2T8CBR-C.C1, do TRG de 25.11.2021, Proc. nº 3739/20.0T8BRG-A.G1 e de 09.01.2023, Proc. 13/22.1GCTMC-A.G1, do TRL de 06.02.2020, Proc. 18479/16.7T8LSB-B.L1-2, do TRE de 09.11.2021, Proc. 73/21.2GARMR-A.E1 e deste TRP de 23.10.2023 728/22.4T8OVR-A.P1, entre outros, todos in www.dgsi.pt).
Ou seja, a quebra do dever de sigilo implica uma ponderação dos diferentes interesses em confronto. Em que, por um lado, temos os interesses directamente protegidos pelo sigilo, como o interesse público da confiança numa certa actividade empresarial e no seu regular funcionamento e a reserva da vida privada dos particulares que recorrem a essas empresas, com diferentes gradações consoante a maior ou menor sensibilidade da informação para o seu titular. Por outro lado, temos o interesse público da realização da justiça através da descoberta da verdade.
Donde, a quebra do dever de sigilo da seguradora, no caso, poder-se-á mostrar justificada segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, cfr. nº 3, do supra referido art. 135º, do CPP, cuja determinação deverá ser efectuada tendo em conta, nomeadamente, “a imprescindibilidade do depoimento ou dos documentos para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”.
Vejamos, então.
No caso, a Mª Juíza “a quo” solicitou junto da seguradora a prestação de informações respeitantes a apólice de seguro, titulada pela A., nomeadamente, quanto ao seu valor e respectivas movimentações, dado o solicitado pela Ré, na sequência da alegação constante da sua contestação, em concreto, o seguinte, “41.º
Em data que não consegue precisar, mas que situa no final do primeiro semestre de 2023, a R. constatou a existência de 4 apólices (denominadas "... - doravante designado por ...) em nome da A., da sua irmã BB, do companheiro da primeira CC e de um familiar deste DD) e cujo pagamento não estava a ser feito pelo titular da apólice (a A, companheiro e familiares de ambos), mas através da conta corrente da R. na companhia de seguros A..., sob forma de prestação de contas que são calculadas semanalmente.
42.º
A A. criou 4 apólices ... (uma das quais em seu nome) e procedia ao reforço do capital com os valores da conta corrente que a R. mantinha com a Companhia de seguros A..., sem que posteriormente transferisse esses montantes para a conta da R.
46.º
Em Fevereiro de 2022, a A., subscreveu como cliente uma apólice do produto ..., com o n.º ..., figurando como titular da apólice a A. AA.
53.º
O valor desta apólice foi sendo resgatado (quase sempre depois do valor ter sido pago pela R. e de igual valor a este) e transferido para a conta que constava da apólice e que a A. é titular, identificada com o IBAN: ..., nas seguintes datas com os seguintes valores:
175,00 21/03/22-doc. n° 19;
25,01 24/03/2022 - doc. n° 22;
750,00 25/03/2022 - doc. n° 23;
650,00 08/04/2022 - doc. n° 26;
25,01 24/03/2022 - doc. n° 22;
100,00 23/04/2022 - doc. n° 29;
650,00 06/05/2022 - doc. n° 32;
650.00 23/05/2022 - doc. n° 34;
1600,01 03/06/2022 - doc. n° 37;
990.01 18/07/2022-doc. n°42;
1100,01 08/12/2022-doc. n° 43;
799,80 13/03/2023 - doc. n° 56;
799,86 17/03/2023 - doc. n° 57;
599,41 11/05/2023-doc. n° 64.
(Cfr. doc. n° 65 e doc. que se junta com o n.° 66 e aqui se dá por reproduzido).
54.º
A A. constituiu um produto financeiro em seu nome, com o dinheiro da R., no valor de € 8.945,00, não procedeu à entrega desses montantes à R., tendo transferido tal valor para uma conta bancária que lhe pertence.”.
A seguradora não forneceu a informação, invocando o seu próprio dever de sigilo e dos seus colaboradores.
A A. não autorizou que aquela prestasse as informações peticionadas.
Tendo a Mª Juíza “a quo” considerado legítima a escusa em relação do dever de segredo de sigilo, mas necessária a sua dispensa para efeito de promover os ulteriores termos do processo.
Ora, como decorre do já supra exposto, a apreciação do incidente de dispensa do dever de sigilo justifica-se e a sua dispensa passa pela consideração do princípio da prevalência do interesse preponderante.
Que, adiantando, constatando-se a existência de um conflito entre, o dever de sigilo, profissional, que impende sobre a seguradora e o de cooperação para a realização da justiça, que visa satisfazer interesses, diga-se, bem mais relevantes, como é o caso, no âmbito do processo laboral, cremos, deverá o mesmo ser dirimido no sentido da quebra ou levantamento de tal dever de sigilo.
Solução que, não só, consideramos estar conforme a uma certa hierarquização dos direitos garantidos constitucionalmente – pois, que, de um lado temos particulares que gozam do direito à reserva da vida privada e dos dados pessoais (art.s 26°, 1 e 2, 35°, 4 e 7, da CRP e 80° do CC e, do outro, também particulares a quem tem de ser garantido, como se refere no (Ac. desta Relação de 12.09.2011, Proc. 3553/06.6TJVNF-D.P1 in www.dgsi.pt) o “acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”, impondo-se assegurar-lhes que a causa em que são partes “seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”, de modo a que se consiga a “justa composição do litígio” (art.s 20°, 1 e 4, da CRP, 2°, 6º, 411º, 3º, 7º e 417° do CPC). Como está conforme com as normas atinentes à colisão de direitos, enunciadas no art. 335° do CC, aqui aplicáveis, porque, no caso, a quebra do sigilo afecta interesses privados e visa a realização da justiça num caso em que também se discutem interesses dessa ordem, se bem que, na situação, o realce tenha de ser colocado no interesse público dos tribunais disporem de todos os elementos para decidirem de acordo com a verdade das coisas.
Além de que a questão tem, ainda, de colocar-se, noutro plano em que há que considerar o interesse público na administração da justiça, constitucionalmente incumbida aos tribunais, conforme art.s 20°, nºs 1, 4 e 5, e 202°, nºs 1 e 2, da CRP. Até porque, sendo a administração da justiça uma das funções soberanas do Estado, mal se entenderia que lhe fossem postos entraves em nome de interesses privados.
Assim, resultando da análise dos autos, que as informações solicitadas e requeridas se mostram relevantes, como bem o refere a Mª Juíza “a quo”, “para a boa decisão da causa e não sendo possível obter tais informações com o consentimento da autora (que não o prestou)” e que, tais elementos estão devidamente determinados e definidos, meios de prova, com vista a promover os ulteriores termos do processo, pese embora, ser patente a colisão entre o interesse público de administrar a Justiça e o interesse privado da A. de ver garantida a confidencialidade a informações por si tituladas, com o correlativo dever da seguradora, A..., de manter o sigilo, cremos, como já supra adiantámos, após a ponderação concreta dos interesses em confronto e tendo em conta a imprescindibilidade daquelas informações para a descoberta da verdade, que o interesse público na realização da justiça se apresenta claramente como o interesse preponderante a satisfazer nos autos principais.
Em suma, porque se mostra legalmente justificada, autoriza-se a quebra do dever de sigilo solicitada pelo Tribunal “a quo”, a fim de a Companhia de Seguros A..., S.A. fornecer, àquele, as informações requeridas pela Ré acima referidas, de modo a que promova os ulteriores termos do processo.
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III – DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente incidente de quebra do dever de sigilo e, consequentemente, determina-se que a seguradora “Companhia de Seguros A..., S.A., forneça aos autos principais as informações e documentos que lhe foram solicitados pelo Tribunal “a quo”.
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Custas pela A./recorrida, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Porto, 3 de Junho de 2024
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O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos,
Rita Romeira
António Luís Carvalhão
Germana Ferreira Lopes