CONTRATO DE SEGURO
SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
DANOS PRÓPRIOS
Sumário

I - O contrato de seguro é regulado pelas estipulações da respetiva apólice, que não sejam proibidas pela lei e, subsidiariamente, pelas suas disposições;
II – A cobertura facultativa de danos próprios em contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel rege-se pelas respetivas estipulações contratuais;
III – Podendo os danos decorrentes de acidente de viação ser indemnizáveis por duas seguradoras, uma por via de contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel celebrado pelo responsável civil outra por via de seguro facultativo com cobertura de danos próprios de que o lesado seja beneficiário, não ocorre solidariedade de devedores, sendo diversas as medidas e as fontes das respetivas responsabilidades.

(da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Processo número 2373/21.2T8PNF.P1
Juízo Central Cível de Penafiel, Juiz 1.


Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeira adjunta:  Eugénia Cunha

Segunda adjunta: Teresa Maria Sena Fonseca

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1 - Em 01-09-2021, AA intentou ação sob forma de processo comum contra A..., SA e B... – Companhia de Seguros, SA, pedindo a sua condenação solidária no pagamento de indemnização de 107 011,67  € (cento e sete mil e onze euros e sessenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação, pelos danos que diz ter sofrido em consequência de acidente de viação consistente em embate entre um veículo de marca Opel, modelo ..., então por si conduzido e um veículo automóvel de marca BMW que seguia no mesmo sentido e lhe veio a embater.

Alegou a dinâmica do acidente, os danos sofridos e a celebração entre a B... – Companhia de Seguros, SA e o proprietário do automóvel de marca BMW de um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, bem como a celebração de seguro de responsabilidade civil automóvel com cobertura de danos próprios decorrentes da circulação do veículo de marca Opel por si conduzido com a Ré B... – Companhia de Seguros, SA

2 - Ambas as Rés contestaram impugnando os factos alegados como causa de pedir, nomeadamente imputando a ocorrência do acidente à Autora e defendendo serem desajustados os valores por ela peticionados a título de indemnização.

A Ré A..., SA alegou, ainda, que a cobertura do contrato de seguro por si celebrado com o proprietário do veículo conduzido pela Autora não cobre os danos sofridos por esta por ter sido ela a responsável pelo acidente e que independentemente da forma como ocorreu o acidente e de quem lhe deu causa, tal contrato de seguro previa capitais máximos de indemnização por despesas de tratamento do condutor. Sustentou ainda, com base no clausulado do contrato de seguro, que o mesmo apenas cobria os riscos de morte ou invalidez permanente no caso de se verificarem nos dois anos após o acidente que lhes tiver dado causa o que defendeu não se verificar.

3 – Por despacho de 03-12-2021 foi ordenada a notificação da Autora para, querendo e em 10 dias, “exercer o seu direito de contraditório sobre as questões invocadas pelas Rés nas suas contestações, nos termos do artigoº 3º, nº 3 e nº 4 do C.P.C.”.

4 – A mesma veio responder a tal convite, em 16-12-2021, sustentando a versão da dinâmica do acidente e defendendo que os danos cuja reparação requer não estão excluídos por via do clausulado do contrato de seguro celebrado com a A..., SA que limita a indemnização a danos verificados nos dois anos após o acidente e que, mesmo que assim não fosse, sempre tal cláusula seria nula, por desrespeitar a lei civil que prevê um prazo de prescrição de 3 anos e por violar o princípio da boa fé contratual.

5 – Os autos foram saneados a 24-01-2022 e, após realização de perícia médico legal foi designada e frustrada tentativa de conciliação a que se seguiu a designação da audiência de julgamento que teve lugar ao longo de quatro sessões entre 12-12-2022 e 17-10-2023.

6 – A 27-11-2023 foi proferida sentença pela qual se julgou a ação parcialmente procedente e se condenaram as Rés, solidariamente, a pagar à Autora 6 260 € pelos danos patrimoniais decorrentes para a Autora do acidente e, ainda, a Ré B... – Companhia de Seguros, SA a pagar 5 200 € para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pela Autora.

II - O recurso:

É desta sentença que recorrem Ré A..., SA e a Autora e a pretendendo a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação.

Para tanto, alegam o que sumariam da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:
A) A Ré A..., SA

1. “À data do acidente dos autos a aqui contestante garantia a responsabilidade civil extracontratual emergente da circulação do veículo automóvel ligeiro de passageiros de

matrícula ..-..-AI.”

2. No dia 18.06.2018 achava-se em vigor o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel celebrado entre a aqui contestante e BB

CC, por via do qual, a aqui ré garantia a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula ..-..-AI, com os capitais mínimos legalmente exigidos, a saber: Responsabilidade civil por danos corporais – 6.070.000,00€; Responsabilidade civil por danos materiais – 1.220.000,00€;

3. Nos termos dos n.º 1 e 2 al. a) da cláusula 5ª das condições gerais da apólice, sob a epígrafe de «Exclusões da Garantia Obrigatória», “1. Excluem-se da garantia obrigatória do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, assim como os danos decorrentes daqueles. 2. Excluem-se igualmente da garantia obrigatória do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas: a) Condutor do veículo responsável pelo acidente;”

4. O tomador do seguro BB subscreveu a cobertura facultativa de «Protecção de Ocupantes e Condutor», cuja garantia ficou subordinada aos seguintes termos contratuais gerais:

«(…)  Cláusula 2.ª – Âmbito da cobertura: 1. Em derrogação do disposto no n.º 1 da cláusula 5.ª, em caso de acidente de viação com o veículo seguro, a presente Condição Especial garante a indemnização definida nas Condições Particulares, quando resulte para as Pessoas Seguras: a) Morte ou Invalidez permanente; b) Despesas de Tratamento, repatriamento ou funeral. 2. As indemnizações pelos riscos de Morte ou Invalidez permanente não são cumuláveis, pelo que à indemnização por Morte será abatido o valor eventualmente já pago a título de Invalidez Permanente. 3. Os riscos de Morte ou Invalidez permanente só estarão cobertos se verificados dentro do prazo de dois anos após o acidente de viação que lhes tiver dado causa.

(…) Cláusula 6.ª – Invalidez permanente

1. O pagamento da indemnização devida por Invalidez permanente, calculada com base na Tabela de Desvalorização indicada na Cláusula 1.ª da presente Condição Especial, será feito à Pessoa Segura, salvo indicação em contrário nas Condições Particulares da Apólice. 3. O Segurador procederá ao reembolso, até à quantia para o efeito fixada nas Condições Particulares, das Despesas de tratamento, repatriamento e de funeral documentalmente comprovadas e a quem demonstrar tê-las pago”.

5. No que tange a condição especial da apólice de «Protecção de Ocupantes e Condutor», o tomador do seguro subscreveu as seguintes coberturas, com os seguintes capitais máximos: Despesas de tratamento do condutor: capital máximo de 750,00€, sem franquia; Despesas de tratamento de ocupantes: 500,00€, sem franquia; Morte ou invalidez permanente: 5.000,00€, sem franquia; O que se requer.

18. A apelante foi solidariamente condenada a pagar à autora AA, a quantia de €6.260,00 pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida dos juros legais contados desde a citação até integral pagamento, que se decompõe nas seguintes parcelas indemnizatórias: 5.600,00€, atinente à indemnização pela perda futura de capacidade de ganho de que a recorrida ficou a padecer em consequência do acidente dos autos; 660,00€, atinente à indemnização pelas despesas tidas pela recorrida em transporte próprio para tratamentos;

19. Ora, a apelante não conforma com o segmento da decisão de direito que a condenou a pagar à recorrida a quantia e 5.600,00€, solidariamente com a ré “B...”, a título de perda futura de capacidade de ganho.

20. Considerando que os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, assim como os danos decorrentes daqueles, ficou excluída da garantia obrigatória do seguro aqui em apreço, não podia, nem pode a aqui recorrente ser condenada a pagar à apelada qualquer indemnização a título de dano patrimonial futuro decorrente do dano corporal, ao abrigo da cobertura obrigatória do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n.º ...18.

21. Todavia, a condição especial da apólice dos autos denominada de “Protecção de Ocupantes e Condutor”, caso prevê um capital máximo de 5.000,00€ para o caso de Morte ou Invalidez Permanente.

22. Em face do exposto, a responsabilidade de ambas as rés não assume natureza solidária,

posto que é distinta a fonte da responsabilidade de cada uma das rés nos danos sofridos pela autora.

23. Assumindo a natureza de responsabilidade civil contratual, com fonte no teor do contrato celebrado entre a aqui apelante e o tomador do seguro titulado pela apólice n.º ...18, importa arbitrar à autora a indemnização prevista no contrato e não qualquer outra, nomeadamente, aquela que foi imputada ao responsável civil pela ocorrência do acidente dos autos.

24. As lesões sofridas pela autora no acidente dos autos provocaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 6 pontos, pelo que importa perscrutar no teor do clausulado do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...18 qual a indemnização a que a mesma tem direito ao abrigo da cobertura facultativa de Protecção de Ocupantes e Condutor.

25. Nos termos do contrato, “o pagamento da indemnização devida por Invalidez permanente, calculada com base na Tabela de Desvalorização indicada na Cláusula 1.ª da presente Condição Especial, será feito à Pessoa Segura, salvo indicação em contrário nas Condições Particulares da Apólice”

26. Como tal, o pagamento da indemnização devida pela invalidez permanente será efectuado à autora, por se tratar da pessoa segura (no caso, a condutora do veículo seguro) e será calculado de acordo com a tabela de desvalorização indicada na cláusula 1.ª desta condição especial, a Tabela de Desvalorização como a Tabela Nacional de Avaliação de Incapacidades em Direito Civil, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro

27. De acordo com o n.º 8 da Cláusula 6ª da condição especial da apólice denominada Protecção de Ocupantes e Condutor, “para efeitos de determinação do valor da indemnização cada ponto da tabela de Direito Civil equivale a 1% de desvalorização”.

28. Em face do exposto, importa concluir que a autora tem direito a receber da aqui apelante o valor indemnizatório correspondente a 6% do capital estabelecido nas condições particulares da apólice para a condição especial de Morte ou Invalidez permanente, e não a qualquer outra indemnização eventualmente fixada com recurso a juízos de equidade, como foi a fixada pela decisão recorrida.

29. Não faria qualquer sentido que a autora, que ficou a padecer de uma incapacidade de 6 pontos (ou 6%, no caso), visse reconhecido o direito a receber da aqui apelante a mesma indemnização que lhe seria arbitrada (ou aos seus herdeiros) caso esta tivesse falecido em consequência do acidente dos autos, ou tivesse ficado a padecer de uma incapacidade de 100%.

30. Em face do teor da condição especial de Protecção de Ocupantes e Condutor prevista no contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...18, bem como, da incapacidade permanente de 6% de que ficou a padecer em consequência do acidente dos autos, tem a autora direito a receber da aqui recorrente a quantia de 300,00€ (5.000,00€ x 6%).

31. Por conseguinte, mal andou o Tribunal recorrido ao ter condenado a ora apelante, solidariamente, a pagar à autora a quantia de 5.600,00€ em consequência da perda de capacidade de ganho resultante do acidente dos autos, superior ao capital previsto na apólice para o caso de morte ou invalidez permanente dos ocupantes e/ou condutor do veículo seguro.

32. A decisão de condenação vertida na alínea a) do dispositivo da sentença deve ser parcialmente revogada, no que tange a condenação da apelante a pagar à autora, solidariamente, a quantia de 5.600,00€ a título de danos patrimoniais, e substituída por outra que, mantendo a condenação da apelante a pagar à apelada a quantia de 660,00€ a título despesas com deslocações para tratamentos, condene a recorrente a pagar à autora a quantia de 300,00€, a título de invalidez permanente, tal como previsto no contrato.

33. A decisão ora em apreço viola o preceituado no artigo 406º do Código Civil, bem como, o preceituado na condição especial de Protecção dos Ocupantes e condutor do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...18”.

B) A Autora:

“1. O acidente deu-se por culpa única e exclusiva do veículo segurado na 1ª Ré.

2. Impõe-se a reapreciação da prova relativa às alíneas a) e b) dos factos dados como não provados, por reporte à gravação do depoimento de parte da autora prestado em 12/12/2022 com início às 10h:59m:58s e fim às 11h:21m:23s- Passagem com Início: 01m:08s e Fim: 02m:20s.

3. Isto posto, a Recorrente entende que os pontos de facto que considera incorretamente julgados, para tanto na fundamentação desse erro (com indicação dos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que impõem decisão diversa e o sentido dessa decisão) – Art.º 640º nº 1 do CPC, impondo assim uma solução diferente para o litígio, devendo ser imputada uma responsabilidade de 100% às RR e nunca uma repartição de responsabilidades de 60% para a autora e 40% para as RR.

4. Uma vez que a Autora inicia a manobra de mudança de via para a sua esquerda, tomando as devidas precauções, não visualizou a presença do veículo BMW que se encontrava a circular obviamente a velocidade excessiva, acima da indicada para o local que é de 80Km/h) e a uma distância que ao momento que a autora tomou as devidas precauções, nunca conseguiria alcançar no seu campo de visão.

5. Atenta a responsabilidade imputada em 100% às RR., o que se requer, deverão as mesmas ser condenadas nos montantes doutamente fixados pelo tribunal a quo, a título de deslocações despesas que a Autora teve de suportar, em montante não concretamente apurado, mas não inferior a €1.650,00; a título de dano biológico, ao pagamento de uma indemnização pela perda de capacidade de ganho em €14.000,00, acrescida de juros legais contados desde a citação até integral pagamento e a título de danos não patrimoniais que a Autora sofreu, no pagamento de uma indemnização pelos danos morais sofridos pela Autora no montante de € 13.000,00, acrescida de juros legais contados desde a presente data até integral pagamento.

6. Para tanto secundando-se na indicação exata das passagens relevantes do depoimento gravado – art.º 640º nº 2 al. a) do CPC.

7. O que atrás logrou fazer, pois que que Meretíssimo Tribunal a quo, deveria ter dado como provado que a autora no que se reporta à sua conduta agiu de forma atenta, já que quando a Autora inicia a manobra de mudança de via para a sua esquerda, não visualizou a presença do veículo BMW que se encontrava a circular obviamente a velocidade excessiva, acima da indicada para o local que é de 80Km/h) e a uma distância que ao momento que a autora tomou as devidas precauções, nunca conseguiria alcançar no seu campo de visão.


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A Ré B... – Companhia de Seguros, SA apresentou contra-alegações ao recurso interposto pela Autora defendendo a confirmação da sentença de primeira instância.


III – Questões a resolver:
Em face das conclusões das Recorrentes nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:

1 – Aferir se deve ser aditado à matéria de facto o teor do clausulado do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...18, no tocante às cláusulas de exclusão e limitação da responsabilidade alegadas pela Ré A..., SA em sede de contestação; e, em caso afirmativo,

2 – Apurar a sentença deve ser anulada para aditamento de tais factos; em caso negativo,

3 – Aferir se a condenação da A..., SA deve ser reduzida na decorrência do referido clausulado; e,

4 – Se deve ser revogada a condenação solidária das duas Rés;

5 – Apurar se deve ser alterado o elenco dos factos provados e não provados passando a julgar-se provado o que ora consta sob as alíneas a) e b) dos factos não provados; e, se assim for

6 – Se devem as Rés ser condenadas a pagar a totalidade dos valores fixados na sentença a título de indemnização.


IV – Fundamentação:

Foram os seguintes os factos selecionados pelo tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa:

“1 - No dia 18 de junho de 2018, pelas 13h15m, ocorreu um embate entre a Autora, que circulava com o veículo de marca Opel, modelo ... –A, com a matrícula “..-..-AI”, na E.N. ...24 – ..., no sentido ... – Entre-os-Rios, Concelho de Penafiel e o veículo BMW, modelo ... L, com a matrícula “..-HC-..”, que circulava no mesmo sentido da Autora.

2 - A mencionada Estrada Nacional ...24 – ... – Entre-os-Rios, naquele local, onde ocorreu o embate, tem na sua faixa de rodagem dois sentidos separados com pinos divisórios, sendo que no sentido em que seguia o veículo da Autora e o BMW, tem duas vias de trânsito, com 3 metros de largura cada uma.

3 - No sentido de marcha Entre-os-Rios/..., a hemifaixa de rodagem direita da E.N. ...24 é dotada de uma única via de circulação, a qual é separada da hemifaixa de rodagem oposta por pinos verticais, colocados sobre as duas linhas contínuas de cor branca, pintadas no pavimento, que delimitam de ambos os indicados sentidos de marcha, sendo a velocidade máxima de circulação naquele local de 80 Km/h.

4 - A Autora circulava na via de trânsito mais à direita, a velocidade não concretamente apurada, mas não superior a 60 Km/h.

5 - O veículo BMW circulava numa reta, atrás do veículo da Autora, a uma distância não concretamente apurada, mas não superior a 100 metros, mas na via de trânsito mais à esquerda.

6 - O veículo BMW circulava a velocidade não concretamente apurada, mas não inferior a 90 Km/h.

7 - Quando a Autora se encontrava a tomar a via de trânsito à esquerda, o condutor do veículo BMW tenta passar pelo espaço existente entre os pinos que dividem a faixa de rodagem nos dois sentidos e o Opel.

8 - O veículo BMW acabou por tocar, num primeiro momento, na parte lateral esquerda traseira do Opel, o que fez com que este veículo se atravessasse e fosse embatido, num segundo momento, de modo quase simultâneo, na parte lateral esquerda, junto à porta do condutor.

9 - Em consequência do embate, a Autora foi transportada pelo INEM para o Hospital de Penafiel – Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE, onde ficou internada, e sendo submetida a intervenção cirúrgica no dia seguinte (19.06.2021), com colocação de fixador externo.

10 - A Autora efetuou TAC CE e apresentava hematoma epicraniano occipital à esquerda, sem traços de fraturas major da base ou calote cranianas; discretas hiperidentidades cortico-piais temporais à esquerda, lesão isquémica sequelar cerebelosa esquerda.

11 - Na TAC cervical apresentava artrodese anterior com discectomia a nível C6-C7.

12 - Na zona da Bacia sofreu fratura do púbis à direita com ligeira abertura sínfise mais fratura de ramos à esquerda.

13 - Em 20/8/2018 procedeu-se à extração do fixador externo da bacia.

14 - Na TAC apresenta consolidação do ramo ileo-púbico esquerdo; ainda sem consolidação no ramo ileo-púbico direito; mantém quadro álgico”.

15 - Nesta altura encontrava-se dependente de 3ª pessoa para cuidados de higiene, confeção de alimentação.

16 - A Autora efetuou tratamento de fisioterapia.

17 - A Autora teve de suportar despesas em transporte próprio, que consistiram em deslocações para comparência a consultas, exames e tratamentos hospitalares, durante os anos de 2018, 2019 e 2020 e 2021, que importam globalmente 4.583Km, despendendo cerca de 0,36 € por quilómetro, em montante não concretamente apurado mas não inferior a € 1.650,00.

18 - A data da consolidação das lesões é de 25/6/2020.

19 - O período de Défice Funcional Temporário Total é de 71 dias.

20 - O período de Défice Funcional Temporário Parcial é de 667 dias.

21 - As lesões sofridas provocaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 6 pontos, o que implica que a Autora terá de desenvolver maior esforço no exercício de toda e qualquer atividade pessoal que exerça.

22 - A Autora apresenta um dano estético permanente de grau 1 numa escala de 1 a 7.

23 - E apresenta um Quantum doloris fixado no grau 4 numa escala de 1 a 7.

24 - Repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 2 numa escala de 1 a 7.

25 - A Autora nasceu em ../../1967.

26 - A Autora encontrava-se desempregada à data do evento.

27 - O dono do veículo de matrícula “..-HC-..”, à data do embate, mantinha transferida a responsabilidade pelo risco de danos causados a terceiros com a circulação do mesmo para a 1ª Ré, por via de um contrato de seguro válido, titulado pela Apólice n.º ...08.

28 - A segunda Ré, através da apólice n.º ...18, era à data do embate a seguradora para quem se encontrava transferida a responsabilidade civil automóvel obrigatória do veículo Opel Corsa, conduzido pela Autora cuja apólice incorporava a cobertura de danos corporais sobre “Ocupantes” e “Condutor”.

Foi julgado não provado que:

a) A Autora olhou pelo retrovisor do seu lado esquerdo, bem como pelo espelho central que se encontrava no habitáculo do veículo por si conduzido, tendo-se certificado que não circulava qualquer veículo na sua retaguarda.

b) Para além do referido no ponto 7, a Autora encontrava-se a tomar a via mais à esquerda para entrar posteriormente na rotunda, denominada ou conhecida por “Rotunda ...” e assim seguir para Penafiel, (segunda saída à direita).

c) Quando ocorre o embate a que se alude no ponto 8, o BMW parte o farol do seu lado direito.

d) Para além do referido no ponto 6, que o veículo BMW circulava a uma velocidade de 140Km/h.

e) O HC circulava a uma velocidade de cerca de 50 km/h a alguns metros à frente circulava na mesma via e no mesmo sentido de marcha o veículo automóvel de matrícula ..-..-AI, conduzido pela Autora.

f) Quando ambos os veículos se aproximavam do termo dos pinos verticais a que se aludem no ponto 2, a Autora reduziu a velocidade do seu veículo para cerca de 20 km/h e encostou-se, o mais que pôde à berma direita da E.N. ...24, atento o seu sentido.

g) Perante o comportamento da Autora, o condutor do veículo HC acionou o pisca do lado esquerdo da sua viatura e, seguidamente, conduziu-o para a via da esquerda da hemifaixa de rodagem direita da E.N. ...24, nela passando a circular sensivelmente à mesma velocidade de 50 km/h.

h) Quando ambas as viaturas se encontravam praticamente lado-a-lado, o condutor do HC foi surpreendido por uma manobra de inversão de sentido de marcha protagonizada pela Autora, atravessando o veículo que conduzia na hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido .../Entre-os-Rios, cortando a linha de marcha do veículo de matrícula HC.

i) A Autora encetou a manobra inversão de sentido de marcha num local onde ambas as hemifaixas de rodagem da E.N. ...24 se mostram divididas por linhas brancas contínuas pintadas sobre o eixo da via, sem olhar para a sua parte de trás, para verificar se podia realizar a sobredita inversão do sentido de marcha.

j) A Autora necessitará de ajudas médicas e medicamentosas futuras pelo menos durante 10 anos.

l) Necessitária de assistência futura para fazer face às suas limitações físicas.

m) A Autora perdeu rendimentos por incapacidade temporária absoluta no valor de €1.144,11.

n) A Autora continua a ser seguida em consultas no Centro Hospitalar do Tâmega e SOUSA, EPE, sujeitando-se a várias consultas, exames e futuras intervenções cirúrgicas.

o) A Autora, à data do acidente, tinha rendimentos no valor de €6.960,00.”


*


1 – Cumpre começar por aferir se deve ser aditado à matéria de facto o teor do clausulado do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...18, no tocante às cláusulas de exclusão e limitação da responsabilidade alegadas pela Ré A..., SA em sede de contestação

Tal Ré alegara, no que aqui importa convocar, que, além do clausulado obrigatoriamente decorrente da lei e relativo ao contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que celebrou com o proprietário do automóvel que era conduzido pela Autora, o contrato de seguro titulado pela apólice em causa previa, também, uma cobertura facultativa de “proteção de ocupantes e condutor” sendo essa cobertura que justifica a sua demanda. Sustenta que tal cobertura facultativa tinha limites indemnizatórios que não foram tidos em conta pelo Tribunal recorrido, desde logo porque o mesmo não deu por provado o clausulado que a mesma especificamente alegou na contestação.

É manifesto que os artigos 1º, 2º, 3º, 6º e 7º da contestação contêm factos essenciais à defesa que o Tribunal recorrido não apreciou em sede de sentença.

Deles decorre o clausulado do contrato de seguro em que se estriba a demanda da Ré A..., SA. O teor dessas cláusulas não foi julgado não provado, como alega a Recorrente, estando completamente omitido no elenco dos factos provados e não provados.

Assentando, segundo a própria a Autora e como foi decidido em sentença, a responsabilidade da Ré A..., SA no contrato de seguro em apreço e, em particular, no clausulado em que se estipulou uma cobertura facultativa de danos corporais sofridos por ocupantes e condutor, é manifesto que o teor do clausulado contratual que prevê tal cobertura e regula os termos do seu cômputo é facto essencial que deveria ter sido objeto de decisão.

Na distinção entre os factos essenciais e os complementares afirma Teixeira de Sousa[1] que “os factos essenciais são aqueles que permitem individualizar a situação jurídica alegada na ação ou na exceção; - os factos complementares são aqueles que são indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte”.

Quanto aos primeiros afirma o referido Autor que “são necessários à identificação da situação jurídica invocada pela parte e, por isso, relevam, desde logo, na viabilidade da ação ou da exceção: se os factos alegados pela parte não forem suficientes para perceber qual a situação que ela faz valer em juízo (…), existe um vício que afeta a viabilidade da ação ou da exceção. É por isso que, quando respeitante ao autor, a falta de alegação dos factos essenciais se traduz na ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir (…) e que a ausência de um facto complementar não implica qualquer inviabilidade ou ineptidão, mas importa a improcedência da ação”. Já “Os factos complementares (ou concretizadores) são os factos que, não integrando a causa de pedir (porque não são necessários para individualizar o direito ou o interesse alegado pela parte), pertencem ao Tatbestand da regra que atribui esse direito ou interesse ou são circunstanciais em relação ao facto constitutivo desse direito ou interesse.”

Em resumo: os factos essenciais devem ser alegados pelas partes. Ora, era essencial à defesa da Ré A..., SA a alegação do teor do contrato que serve de causa à sua demanda na parte em que por via do seu clausulado se estipulam as exclusões da sua responsabilidade bem como a forma de cálculo da indemnização por si devida ao lesado. Pelo que deveria o Tribunal Recorrido ter selecionado tais factos como relevantes à decisão, julgando-os provados ou não provados, nos termos do previsto no artigo 607º, número 4 do Código de Processo Civil.

2 – A questão que cumpre conhecer de seguida prende-se com a possibilidade de este Tribunal se substituir ao Tribunal recorrido ampliando a matéria de facto nos termos da alínea c) do número 2 do artigo 662º, o que apenas pode fazer se para tanto dispuser dos elementos necessários [2].

Caso contrário, nos termos do artigo 662º, número 2 c) do Código de Processo Civil deve ser anulada a sentença e, nos termos do artigo 662º, número 3 c) do mesmo Diploma, repetir-se o julgamento que não abrangerá, contudo, a parte da decisão que não esteja viciada.

A Recorrente defende que tais factos devem ser julgados provados em sede de recurso na medida em que a Autora, em reposta à sua contestação, não impugnou os factos alegados quanto às condições gerais e particulares da apólice e nem impugnou o documento junto pela Ré (contrato de seguro) que lhe serve de suporte.

A falta de impugnação pela Autora dos factos alegados na contestação não importa, contudo, a sua admissão por acordo apenas estando prevista tal cominação para os articulados de contestação – cfr. artigo 574º, número 2 do Código de Processo Civil -, e de réplica – cfr. artigo 587º, número 1 do mesmo Diploma.

A Autora não ofereceu réplica, desde logo porque não foi deduzida reconvenção, apenas tendo respondido às contestações a convite do Tribunal sem possa, portanto, cominar-se a falta de impugnação de qualquer facto com a consideração do mesmo como confissão ficta.

Não podendo tais factos ser considerados confessados por acordo resta saber se, ainda assim, dispõe este Tribunal dos elementos que lhe permitam ampliar a decisão proferida sobre a matéria de facto. Assim é.

A Ré A..., SA juntou aos autos cópia do clausulado contratual que alegou e a Autora não impugnou o teor de tal documento nem juntou qualquer meio de prova tendente a contrariá-lo.

Como tal, sendo o contrato de seguro obrigatoriamente reduzido a escrito, nos termos do disposto no artigo 32º, número 2 do DL 72/2008 de 16 de abril, e não tendo sido impugnado tal meio de prova, nem tendo sido apresentada qualquer prova tendente a infirmar o seu teor, nem alegado qualquer facto que pudesse pô-lo em causa, deve concluir-se que constam do processo todos os elementos que permitem o aditamento desses factos ao elenco dos factos provados.

Não importará, contudo, proceder à transcrição integral do clausulado como foi alegado pela Recorrente, apenas se devendo selecionar os factos que tenham relevo para a solução de direito.

Assim, na procedência dessa pretensão do Recorrente, serão aditados aos factos provados os seguintes:

29. Nos termos do referido contrato de seguro o tomador BB subscreveu também a cobertura facultativa de “Proteção de Ocupantes e Condutor”, nos termos clausulados nas suas condições especiais cujo teor é o do documento número 1 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido e de que resulta nomeadamente o seguinte:

“Cláusula 1.ª – Definições

Para efeito da presente Condição Especial, entende-se por:

PESSOAS SEGURAS: Pessoas cuja vida ou integridade física se segura e que para efeitos da presente Condição Especial serão as abaixo indicadas, consoante a modalidade referida nas Condições Particulares:

Modalidade I - Tomador do Seguro, Condutor e Familiares

a) O Tomador do Seguro e o condutor efetivo do veículo;

 (…).

TABELA DE DESVALORIZAÇÕES: Tabela nacional de avaliação de incapacidades em direito civil, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, assim como quaisquer normativos que com o mesmo objeto, âmbito e finalidade, a alterem ou lhe venham suceder.

Cláusula 2.ª – Âmbito da cobertura

1. Em derrogação do disposto no n.º 1 da cláusula 5.ª, em caso de acidente de viação com o veículo seguro, a presente Condição Especial garante a indemnização definida nas Condições Particulares, quando resulte para as Pessoas Seguras:

a) Morte ou Invalidez permanente;

b) Despesas de Tratamento, repatriamento ou funeral.

(…)

3. Os riscos de Morte ou Invalidez permanente só estarão cobertos se verificados dentro do prazo de dois anos após o acidente de viação que lhes tiver dado causa.

(…)

Cláusula 6.ª – Invalidez permanente

1. O pagamento da indemnização devida por Invalidez permanente, calculada com base na Tabela de Desvalorização indicada na Cláusula 1.ª da presente Condição Especial, será feito à Pessoa Segura, salvo indicação em contrário nas Condições Particulares da Apólice.

(…)

8. Para efeitos de determinação do valor da indemnização cada ponto da tabela de Direito Civil equivale a 1% de desvalorização.

Cláusula 7.ª – Despesas de tratamento, repatriamento e de funeral

1. Por Despesas de tratamento entendem-se as relativas a honorários médicos e internamento hospitalar, incluindo assistência medicamentosa e de enfermagem que forem necessários em consequência do acidente.

No caso de ser necessário tratamento clínico regular, e durante todo o período do mesmo, consideram-se também incluídas as despesas de deslocação ao médico, hospital, clínica ou posto de enfermagem, desde que o meio de transporte utilizado seja adequado à gravidade da lesão.

(…)

3. O Segurador procederá ao reembolso, até à quantia para o efeito fixada nas Condições Particulares, das Despesas de tratamento, repatriamento e de funeral documentalmente comprovadas e a quem demonstrar tê-las pago.

(…)

Cláusula 11.ª – Concorrência de seguros

1. As indemnizações por Morte ou Invalidez permanente são devidas e pagas às Pessoas Seguras, aos seus herdeiros ou beneficiários, independentemente das que o forem ao abrigo de outros contratos de seguros da mesma natureza ou de responsabilidade civil extracontratual.

30 - No que tange a condição especial da apólice de “Proteção de Ocupantes e Condutor”, o tomador do seguro subscreveu as seguintes coberturas, com os seguintes capitais máximos:

- Protecção de ocupantes e condutor:

-Despesas de tratamento do condutor: capital máximo de 750,00€, sem

franquia;

- Despesas de tratamento de ocupantes: 500,00€, sem franquia;

- Morte ou invalidez permanente: 5.000,00€, sem franquia.”


*

3 – Na decorrência da alteração da matéria de facto por virtude do aditamento destes dois novos factos há que apreciar se deve proceder a pretensão da Recorrente A..., SA de revogação da sua condenação.

A mesma defende que, por um lado, não há qualquer arrimo legal para a sua condenação em valor de indemnização fixado com base na equidade devendo, antes, a mesma obedecer aos critérios de cálculo fixados no contrato e, por outro, sustenta que não há qualquer fundamento legal para a sua condenação solidária com a co-Ré, B... – Companhia de Seguros, SA.

A decisão de tal questão, todavia, deve ser precedida da análise do recurso da Autora.

É que esta pretende a alteração da matéria de facto e a consequente revogação da decisão no que tange à fixação da medida da responsabilidade de ambos os condutores para a produção do acidente. A sua apelação visa que seja considerado como único responsável pela produção do acidente o condutor do veículo seguro na B... – Companhia de Seguros, SA.

Se assim vier a decidir-se, afastando-se a responsabilidade da própria Autora, enquanto condutora, pela produção do acidente, já a responsabilidade da Ré A..., SA não estará afastada nos termos do artigo 14º, número 1 do DL 291/2007 de 21 de agosto pelo que a sua condenação será independente do que foi facultativamente estipulado no contrato de seguro celebrado com o proprietário do automóvel conduzido pela Autora.

Apenas no caso de se concluir pela improcedência dessa pretensão, mantendo-se a decisão recorrida no que tange à responsabilização da Autora pela produção do acidente, se deve aplicar o clausulado facultativo que ora foi aditado ao elenco dos factos provados, sendo com base nessas regras contratuais que deve ser apurada a responsabilidade da A..., SA.


*

4 - Passar-se-á, assim, de seguida, à apreciação da quinta questão a resolver acima enunciada, a saber, a de apurar se deve ser alterado o elenco dos factos provados e não provados passando a julgar-se provado o que ora consta sob as alíneas a) e b) dos factos não provados.

A recorrente sustenta que tais duas alíneas devem ser julgadas provadas para o que indica e transcreve uma breve passagem do depoimento de parte da Autora indicando as razões que entendem que devem levar à alteração do decido. Estão, pois, cumpridos os ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil para a impugnação da matéria de facto.

Recordemos o teor das duas alíneas que a mesma quer ver julgadas provadas:

“a) A Autora olhou pelo retrovisor do seu lado esquerdo, bem como pelo espelho central que se encontrava no habitáculo do veículo por si conduzido, tendo-se certificado que não circulava qualquer veículo na sua retaguarda.

b) Para além do referido no ponto 7, a Autora encontrava-se a tomar a via mais à esquerda para entrar posteriormente na rotunda, denominada ou conhecida por “Rotunda ...” e assim seguir para Penafiel, (segunda saída à direita)”.

Quanto a esta matéria o Tribunal Recorrido fundamentou assim a sua convicção:

“Relativamente às declarações da Autora de que só iniciou a manobra de mudança de via à esquerda, por previamente se ter certificado que não circulavam atrás de si quaisquer veículos, tendo olhado pelos retrovisores lateral e traseiro, sempre se dirá que tal não pode ter ocorrido, já que o veículo BMW circulava numa reta com, pelo menos, 100 metros de extensão e o embate ocorreu quando a Autora ainda estava a executar tal manobra de mudança de via à esquerda, o que nos permite concluir, atenta a própria velocidade de circulação do veículo BMW, que o mesmo encontrava-se a distância não concretamente apurada daquela mas não superior a 100 metros, a circular na via esquerda onde a Autora pretendia ingressar, pelo que, atenta a dinâmica do acidente descrito e as regras da normalidade e da experiência, sempre a Autora teria que ter visto que o veículo BMW a circular pela via à esquerda onde a Autora pretendia ingressar, caso a mesma tivesse olhado para a sua retaguarda através dos espelhos lateral/retrovisor, pelo que o tribunal considerou não provada tal factualidade.

Tal segurança probatória relativamente à dinâmica do sinistro não foi minimamente abalada pela versão do acidente apresentada pela Ré, na sua contestação, de que quando ambas as viaturas se encontravam praticamente lado-a-lado, o condutor do BMW foi surpreendido por uma manobra de inversão de sentido de marcha protagonizada pela Autora, atravessando o veículo que conduzia na hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido .../Entre-os-Rios, cortando a linha de marcha do veículo de matrícula HC, encetando a manobra de inversão de sentido de marcha num local onde ambas as hemifaixas de rodagem da E.N. ...24 se mostram divididas por linhas brancas contínuas pintadas sobre o eixo da via, sem olhar para a sua parte de trás, para verificar se podia realizar a sobredita inversão do sentido de marcha.

Ora, tal versão não foi aventada por qualquer testemunha em Tribunal, sendo que o próprio condutor do veículo BMW não compareceu em julgamento, não obstante o mesmo ter sido notificado e terem sido designadas várias datas para assegurar a sua comparência em julgamento, limitando-se as testemunhas DD, coordenador de peritos, que exerce funções na C... há cerca de 12 ano, sendo que tal entidade presta serviços à Ré B... há mais de 20 anos que fez uma peritagem aos veículos em causa, a referir que se tratou de um embate muito violento, EE, coordenador de averiguação de sinistros que trabalha para a Ré B... há cerca de 12 anos, que efetuou o relatório de averiguação, junto na sessão de julgamento de 23/6/2023, a referir que efetuou o seu relatório com base nas declarações do condutor do veículo BMW e com base na análise dos danos dos veículos, existindo compatibilidade entre ambas, nunca tendo tido conhecimento de qualquer outra versão da dinâmica do sinistro. Ora, tal versão dos factos alegadamente aventada pelo condutor do veículo BMW contraria totalmente as regras da normalidade e da experiência, já que a mencionada Estrada Nacional ...24 – ... – Entre-os-Rios, naquele local, onde ocorreu o embate, tem na sua faixa de rodagem dois sentidos separados com pinos verticais divisórios (cfr. fotografias juntas na contestação e no referido relatório de averiguação), sendo que no sentido em que seguia o veículo da Autora e o BMW, tem duas vias de trânsito, com 3 metros de largura cada uma, existindo uma rotunda a 1 Km de distância (conforme foi dito pelo próprio agente da GNR), sendo quase uma atitude suicida por parte da Autora que aquela efetuasse uma manobra de mudança de direção neste circunstancialismo, embatendo necessariamente no BMW que circulava a curta distância e, mesmo que não se tivesse apercebido da presença daquele veículo a curta distância de si, iria embater nos referidos pinos e no próprio veículo (táxi) que circulava em sentido contrário, quando tinha uma rotunda à curta distância de um quilómetro e que lhe permitia efetuar a manobra de mudança de direção sem quaisquer perigos.

Embora o perito EE, supra identificado, quando confrontado com a versão dos factos da Autora tivesse referido que se tivesse ocorrido um primeiro embate, o segundo não podia ser com aquela violência e que, mesmo que fosse de raspão, projetava o veículo da Autora para o outro lado e nunca para aquele ângulo de 90º graus, sempre se dirá que não podemos ignorar que quando ocorre o 1º embate de raspão, o Opel está a posicionar-se na via mais à esquerda, pelo que está ligeiramente inclinado naquele sentido, pelo que um toque ligeiro na parte lateral esquerda traseira, é compatível com um atravessamento do veículo a 90 graus e com o consequente embate violento entre a frente do BMW e a lateral esquerda do veículo Corsa.

Assim, tal versão dos factos foi considerada não provada, atenta a total incoerência da mesma e a total ausência de prova.”

Ouvida a indicada passagem do depoimento de parte da Autora não vemos qualquer razão para alterar o decidido sendo absolutamente coerente o raciocínio doo Tribunal a quo quanto à prova produzida.

De facto, ainda que desconsiderando a versão do acidente alegadamente relatada pelo condutor do BMW em sede de averiguação por perito ao serviço da seguradora e que que consta também resumida no auto de participação do acidente elaborado pela GNR - versão essa que ambas as Rés trouxeram aos autos-, o Tribunal concluiu que não pode julgar-se provado que a Autora tenha antecedido a sua manobra com os necessários cuidados de verificação, pelos espelhos, da possibilidade de realização a manobra que estava prestes a efetuar.

De facto, ao contrário do alegado pelas Rés, não ficou a convicção de que a Autora terá pretendido inverter a marcha no local onde veio a ser embatida, mas, tão-só a de que quis tomar a via de trânsito mais à sua esquerda, altura em que o automóvel de marca BMW que seguia atrás dela e na mesma direção, pretendeu passar pelo espaço livre ainda disponível à sua esquerda.

Apesar de não se ter gerado a convicção de que a Autora estava a encetar manobra de inversão de marcha (desde logo porque, como se afirma na decisão recorrida, existiam pinos verticais a separar ambos os sentidos de rodagem, o que impediria tal propósito, e porque a menos de um quilómetro mais adiante existia uma rotunda que lhe permitiria inverter a direção em segurança), a prova testemunhal (FF e GG, que presenciaram o acidente), foi de molde a confirmar que o embate ocorreu quando a Autora estava já a circular na faixa de rodagem mais à esquerda atento o seu sentido de trânsito, mas ainda havia espaço livre à sua esquerda por onde o condutor BMW tentou passar.

A própria autora admite que estava a mudar para a faixa mais à sua esquerda quando foi embatida. Ora, ficou provado sob a alínea 5 que o veículo BMW circulava numa reta, atrás do veículo da Autora, a uma distância não concretamente apurada, mas não superior a 100 metros, mas na via de trânsito mais à esquerda.

Ou seja, a Autora passou a circular na faixa mais à esquerda onde já antes circulava o BMW a velocidade superior à sua e que portanto, iria ultrapassá-la.

A extensão da reta que antecedia (atento o sentido de trânsito de ambos) permitia a visibilidade a pelo menos 100 metros pelo que é totalmente inverosímil que a Autora não pudesse ter visto a aproximação do BMW antes de ter encetado a mudança de faixa não sendo, assim, as suas declarações nesse sentido de aceitar como verdadeiras.

Quanto à intenção da Autora de mudar de faixa com vista a entrar na rotunda pela faixa central também não foi produzida qualquer prova além do depoimento da Autora sendo manifesto que a distância a que a mesma estava da rotunda  - a cerca de um quilómetro à sua frente -, não justifica de todo, pelo contrário, que a Autora estivesse já a mudar de faixa para entrar na rotunda pela via da esquerda. A mesma abandonou a via mais à direita atento o seu sentido de trânsito, muito antes de ter de passar a circular pela esquerda para, assim, entrar na rotunda.

Pelo que improcede a pretensão recursória da Autora de ver provados os factos constantes das alíneas a) e b) dos factos não provados.


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5 – Em face do insucesso dessa pretensão da Autora é de manter a decisão recorrida no que tange à repartição de culpas pela produção do acidente, já que as Rés com ela se conformaram e a Autora sustenta a sua pretensão de ver imputada ao condutor do automóvel de marca BMW a responsabilidade exclusiva pela produção do acidente apenas na alteração do elenco de factos provados que não logrou obter.

De facto, como bem ponderado na decisão recorrida, se é certo que o automóvel BMW seguia a velocidade não inferior a 90 km por hora em local cujo limite máximo de velocidade de circulação era de 80 km por hora, também ficou provado que a Autora passou a ocupar, momentos antes do embate, a via de trânsito mais à sua esquerda sem que tenha sido provada qualquer razão justificativa para tal, desde logo em face da não prova da alínea b). O que fez quando já antes ali circulava, a velocidade superior à sua, outro automóvel que era visível a pelo menos 100 metros dada a extensão da reta onde ambos seguiam.

Foi esse comportamento da Autora impediu a ultrapassagem pelo BMW, que circulava atrás de si e já nessa via de trânsito mais à esquerda, o que consubstancia violação do artigo 13º do Código da Estrada de que resulta que “O trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas e passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes”, podendo“(…) utilizar-se o lado esquerdo da faixa de rodagem para ultrapassar ou mudar de direção” em caso de necessidade.

Ora, a Autora mudou de faixa (antes do embate circulava à direita) num momento em que atrás de si e pela faixa da esquerda, circulava já um outro automóvel, a velocidade superior, e que, assim, a ultrapassaria nos termos estipulados nos artigos 13º número 2 e 36º, número 1 do referido Diploma. Foi, assim, a mudança de faixa da Autora que deu causa ao acidente sem embargo de a velocidade a que seguia o automóvel de marca BMW ter, também, contribuído para o sinistro na medida em que o mesmo não logrou parar o veículo ou desviar-se do automóvel da Autora no espaço livre e visível à sua frente, mercê da velocidade a que seguia. Todavia, o mesmo tinha iniciado a sua marcha pela faixa da esquerda antes da Autora, e atenta a velocidade a que seguia poderia ter efetuado a ultrapassagem pela faixa da esquerda num momento em que a mesma se encontrava livre como estipulado, portanto, nos artigos 36º, número 1 e 38º, número 2 a) do Código da Estrada.

Já a Autora não cumpriu o disposto no artigo 39º, número 1 do referido Diploma que a obrigava a facultar tal ultrapassagem, antes tendo passado a circular pela faixa onde seguia o automóvel de marca BMW sem qualquer razão justificativa e intercetando a sua linha de trânsito.

Não há, pois, que alterar a decisão recorrida como pretendido pela Autora, no sentido de concluir pela culpa exclusiva do condutor do automóvel de marca BMW pela produção do acidente, mantendo-se a repartição de responsabilidades fixada em primeira instância.


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6 - Estamos, assim, em condições de seguir na apreciação da apelação da Ré A..., SA, afastada que está a sua responsabilidade por via do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que celebrou com o proprietário do veículo conduzido pela Autora.

É que, como já acima salientado, por via do referido contrato de seguro obrigatório a Ré A..., SA não está obrigada ao ressarcimento dos danos sofridos pela condutora responsável pela produção do acidente, como decorre do disposto no artigo 14º, número 1 do DL 291/2007 de 21 de agosto que exclui da garantia de tal seguro obrigatório os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles.

Como já se viu também e resulta das alíneas 28 a 30 dos factos provados, a Ré A..., SA celebrou com o proprietário do automóvel conduzido pela Autora um contrato com estipulações que vão além do seguro obrigatório previsto naquele Diploma tendo, no que aqui releva, acordado em cobrir os danos do condutor e ocupantes ali descritos até ao limite previsto nas condições particulares da apólice,.

Nos termos do artigo 11º do DL número 72/2008, de 16 de abril, que instituiu o regime jurídico do contrato de seguro, tal contrato é regulado pelas estipulações da respetiva apólice, que não sejam proibidas pela lei e, subsidiariamente, pelas suas disposições.

Quanto ao clausulado do contrato de seguro celebrado pela A..., SA que aqui importa atender as partes estipularam a cobertura dos danos sofridos pelo condutor até ao limite de 750 € pelas despesas de tratamento do condutor e de 5000 € pelo dano de morte ou invalidez permanente.

A apelante A..., SA não pretende discutir a sua condenação no pagamento das despesas de tratamento, com que se conformou, mas apenas a forma como foi calculada a sua obrigação de pagamento da indemnização pelo dano biológico de que a Autora ficou portadora, ou seja, pela sua incapacidade permanente.

Defende, com inteira razão, que o contrato de seguro que celebrou não a obriga a ressarcir o dano sofrido pela lesada com base nas normas legais que regem o cálculo da indemnização, mas apenas com base nas normas contratuais acordadas que estipulam a forma de cálculo da indemnização desse dano.

Nos termos do artigo 128º do DL 72/2008 de 16 de abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro), a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro. O seu artigo 131º, por sua vez, permite às partes convencionar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização. É essa convenção que emerge do clausulado (cláusula 6ª das condições especiais da cobertura de condutor e ocupantes) dado por provado sob a alínea 29 dos factos provados.

É, assim, com base nesse clausulado que deve ser calculada a obrigação, contratual, da Ré A..., SA de indemnizar a incapacidade permanente de que a autora ficou portadora.

Ora, as partes estipularam que para efeitos de determinação do valor da indemnização cada ponto da tabela de Direito Civil equivale a 1% de desvalorização pelo que, tendo as lesões sofridas pela autora provocado um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 6 pontos de acordo com Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil encontra-se corretamente efetuado o cálculo apresentando pela Recorrente: a mesma, nos termos contratuais, terá direito a uma indemnização equivalente a 6% do capital seguro, isto é de 300 € (5.000,00 € x 6%).

A tal valor soma-se o montante fixado em primeira instância de 660 € que nenhuma das apelantes discutiu.

A condenação da Apelante A..., SA será, assim, no valor total de 960 €.


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Insurge-se ainda, a recorrente A..., SA contra a sua condenação solidária com a Ré B... – Companhia de Seguros, SA e, uma vez mais, lhe assiste razão.

Nos termos do artigo 513º do Código Civil a solidariedade de devedores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes. Está prevista como regime regra no caso de responsabilidade civil por factos ilícitos e pelo risco conforme previsto nos artigos 497º, número 1 e 507º, número 1 do Código Civil, mas, como se viu, a responsabilidade da Ré A..., SA é de natureza contratual.

A mesma está obrigada ao pagamento dos danos na medida de contrato de seguro facultativo (na medida em que ao contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel foram aditadas coberturas facultativas) e a sua responsabilidade não deriva da contribuição do segurado (por via de responsabilidade delitual ou objetiva) para a ocorrência dos danos, mas de obrigação contratualmente assumida de ressarcir danos dos ocupantes ou do condutor do veículo seguro até ao limite e nos termos especialmente previstos no contrato.

Como se pode ler no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-11-2012:

A obrigação solidária – de que é requisito básico a existência de uma pluralidade de devedores – tem como notas típicas (i) o dever de prestação integral, que recai sobre qualquer dos devedores, (ii) o efeito extintivo recíproco da satisfação dada por qualquer deles ao direito do credor, a (iii) identidade da prestação, (iv) a identidade da causa e (v) a comunhão de fim.”.[3]

No caso estamos perante duas diferentes obrigações, quer quanto ao seu fundamento legal quer quanto ao seu conteúdo: A Ré B... – Companhia de Seguros, SA responde por via do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em lugar do responsável civil – o condutor do veículo de marca BMW -, sendo a indemnização calculada nos termos previstos nos artigos 562º e 563º do Código Civil; A Ré A..., SA responde por via do contrato de seguro facultativo que celebrou com o proprietário do veículo conduzido pela Autora e nos termos do ali clausulado.

Não se verifica, assim, qualquer fundamento para a sua condenação solidária, pelo que também nesta parte procede a pretensão recursória da Apelante A..., SA.

V – Decisão:

Nestes termos, julga-se a apelação da Autora totalmente improcedente e parcialmente procedente a apelação da Ré A..., SA, revogando-se em parte a sentença, nos seguintes termos:


a) Condena-se a Ré A..., SA no pagamento à Autora de 960 € acrescida dos juros legais contados desde a citação até integral pagamento;

b) Absolve-se a Ré A..., SA do demais pedido;

Mantem-se o demais decidido.

Custas da ação e do recurso por Recorrentes e Recorridas, na proporção dos respetivos decaimentos, nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.


Porto,2024/6/3.

Ana Olívia Loureiro

Eugénia Cunha

Teresa Fonseca


_________________
[1] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Páginas 71 e 72.
[2] Segundo Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil. Volume I, em comentário ao então artigo 712º “(…) o exercício do poder de rescisão ou cassatório conferido por este preceito deverá, pois, entender-se como subsidiário relativamente aos poderes de reapreciação ou reexame dos pontos da matéria de facto questionados no recurso – só tendo lugar quando se revele absolutamente inviável o eficaz e satisfatório exercício destes pela Relação.”.
[3] Processo 246/10.3YRLSB.S1, disponível em:
http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3d75bdf858b0584980257ab8003b6ae1?OpenDocument