I - O que dita se a desistência do pedido é ou não válida é ter a ação por objeto direitos disponíveis ou, ao invés, fundar-se em direitos indisponíveis.
II - Direitos disponíveis, como se extrai da própria expressão, são aqueles de que a parte pode, livremente, dispor e direitos indisponíveis os de que a parte não pode renunciar, aqueles em que a vontade das partes não pode manifestar-se de forma válida, que estão subtraídos ao domínio da vontade das partes, podendo sê-lo: i) quer por existir determinação legal expressa; ii) quer pela natureza da relação jurídica.
III - Consideram-se, em regra, indisponíveis as relações jurídicas concernentes ao estado das pessoas, não, já, ao seu património.
IV - Assim, a desistência do pedido sobre o próprio estado ou sobre os efeitos pessoais da impugnação e investigação da paternidade é nula (cfr. art.s 289, nº1, do CPC e 294º, do CC), pois que o estado de filho é irrenunciável, tanto o já constituído como o a constituir, versando sobre “direitos indisponíveis”.
V - Apresentando a desistente recurso extraordinário de revisão de sentença homologatória de desistência do pedido de impugnação da paternidade do marido da mãe e de investigação de paternidade do progenitor, arguindo a nulidade desta, cabe, desde logo, apreciar da invalidade de tal desistência face ao objeto da mesma e, sendo nula, prejudicado fica o conhecimento substancial dos invocados vícios da vontade e, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto, tornada inútil.
VI - A condenação de uma parte como litigante de má-fé traduz um juízo de censura sobre a sua atitude processual, visando o respeito pelos Tribunais, a moralização da atividade judiciária e o prestígio da justiça.
VII - Com a tipificação das situações objetivas de má-fé - nº2, do art. 542º, do CPC -, a figura da litigância de má-fé pretende cominar quem, dolosamente ou com negligência grave (elemento subjetivo), põe em causa os princípios da cooperação, da boa-fé processual, da probidade e adequação formal, que estão subjacentes à boa administração da justiça. Para a sua aplicabilidade, é exigido que resulte demonstrado nos autos que a parte agiu de forma reprovável e conscientemente ao pôr em causa a boa administração da justiça.
VIII - Tal não resulta evidente no caso, em que o recurso de revisão procede, com a revogação da sentença homologatória da desistência do pedido e o imposto prosseguimento dos ulteriores termos do processo, para o exercício do direito indisponível de impugnação da paternidade presumida do marido da mãe e estabelecimento da, efetiva, paternidade.
Recorrente: AA
Recorridos: Herdeiros de BB e CC
AA deduziu contra os Herdeiros de BB e CC recurso de revisão da sentença, proferida em 16 de abril de 2018, que homologou a desistência do pedido na ação comum de que o recurso constitui apenso, de impugnação da paternidade e de investigação da paternidade, ao abrigo do disposto na alínea d), do art. 696º, do CPC, pedindo seja admitido o referido recurso e, consequentemente, sejam anulados:
i) o acordo celebrado Recorrente e Recorridos no dia 28/03/2018;
ii) a desistência, da Autora, ora recorrente, do pedido;
iii) a sentença que homologou tal desistência;
por a A./Recorrente, à data da prática daqueles atos, se encontrar com a sua vontade viciada por erro sobre os motivos e por se verificar dolo do declaratário (a Herdeira DD) e, que, em virtude de tal anulação, seja reaberto o processo e apreciado o litígio que aqui estava em discussão.
Fá-lo formulando as seguintes conclusões:
“A) O Sr. CC sempre fez questão de participar e custear todas as festividades (religiosas e aniversários) da A./Recorrente, de intervir na sua educação; sempre se preocupou com a sua saúde e alimentação e garantiu todas as necessidades monetárias da mesma. A ligação entres os dois era muito grande e muito forte!
B) O Sr. CC faleceu no estado de viúvo, deixando como única e universal herdeira a sua filha DD.
C) Anos mais tarde, a A./Recorrente começou a ouvir rumores de vizinhos, que diziam que ela era filha do Sr. CC.
D) A A./Recorrente decidiu, nesse momento, confrontar a sua Mãe, Sra. EE, a qual lhe confirmou que o Sr. BB não era efetivamente o seu pai biológico, até porque era infértil, mas sim o Sr. CC, com quem mantivera uma relação amorosa durante o matrimónio.
E) Depois de tomar conhecimento destes factos, a A./Recorrente, em 22.10.2015, decidiu instaurar uma ação de impugnação de perfilhação e de investigação de paternidade contra os herdeiros do Sr. BB e contra os herdeiros do Sr. CC – ação principal à qual se apensa o presente Recurso de Revisão.
F) Ademais, a A./Recorrente requereu ainda que a paternidade fosse reconhecida pelos herdeiros do Sr. CC, maxime pela Sra. DD (única e universal herdeira [declarada]), a qual deveria ser condenada a abster-se de praticar atos lesivos dos direitos patrimoniais que para a A./Recorrente resultassem desse reconhecimento.
G) Na pendência dessa ação foram realizados testes genéticos, dos quais resultou que o Sr. CC é, com a probabilidade de 99,99%, pai biológico da aqui A./Recorrente.
H) Assim que se obtiveram os resultados das perícias médico-legais, a Sra. DD começou a diligenciar no sentido de chegar a acordo com a A./Recorrente, tendo requerido ao Tribunal que suspendesse a instância.
I) Assim, de imediato, a Sra. DD apresentou uma proposta à A./Recorrente na qual lhe deu a escolher um entre três prédios, dizendo que este era o único património do falecido Sr. CC a partilhar.
J) A A./Recorrente àquela data desconhecia o património do seu falecido pai biológico, Sr. CC e, portanto, de boa-fé, acreditou nas palavras da Sra. DD que lhe disse firmemente que apenas existiam os referidos prédios.
K) E celebrou o seguinte acordo com a Sra. DD:
“(…) 2ª A AA e a herança pretendem transigir na ação judicial supra identificada, o que fazem nos seguintes termos e condições:
(…)
A AA receberá uma importância em dinheiro e um bem imóvel da herança, como que se de uma partilha se tratasse, (…)
Com o recebimento dos bens indicados nas supras indicadas als. a) e b), a AA declara para todos os devidos e legais efeitos, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir, da herança, desistindo do pedido efetuado no processo judicial nº 5056/15.9T8MTS, que corre termos no Juízo de Família e Menores de Matosinhos – Juiz 4 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
3ª Caso, por qualquer motivo, não seja aceite pelo tribunal a desistência do pedido no processo atrás referido, a AA – atento o recebimento dos bens (importância em dinheiro e bem imóvel) atrás mencionados nas als. a) e b), e visto, com isso, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir da herança – obriga-se a nada reclamar ou peticionar seja a que titulo for da herança (ou seja, da Herança aberta por morte de CC, de Herdeiros de CC ou mesmo de DD), incorrendo na mesma obrigação os seus representantes, sucessores e herdeiros. (…)” – doc.1.
L) Ou seja, quando surgiram os resultados das perícias que provavam que a A./Recorrente também era filha do Sr. CC, a outra filha procurou, em pouco tempo, ludibriar a A./Recorrente, dizendo-lhe que o falecido pai apenas tinha deixado o referido património – quando sabia que isso não correspondia à verdade –, dando-lhe a escolher um prédio e ainda lhe oferecendo dinheiro, assim requerendo em troca que ela assinasse o referido acordo e desistisse da ação.
M) E fê-lo porque não era do seu interesse que fosse proferida sentença a declarar que a aqui A./Recorrente era filha biológica do Sr. CC, embora dúvidas já não restassem, impedindo assim que a A./Recorrente viesse posteriormente a reclamar a sua parte na herança, a que sempre teria direito!
N) Porquanto a Sra. DD bem sabia que aquilo que estava a propor à A./Recorrente era uma “ninharia” quando comparado com todo o património que o falecido Sr. CC havia deixado (e aquela havia herdado), tendo-se aproveitado da boa-fé e desconhecimento da A./Recorrente para a enganar e assim a fazer assinar um acordo e desistir da ação.
O) E isso fica ainda mais claro quando se lê o acordo e lá refere expressamente o seguinte:
Cláusula 2ª: “…a AA declara para todos os devidos e efeitos legais, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir, da herança, desistindo do pedido…”;
Cláusula 3ª: “Caso, por qualquer motivo, não seja aceite pelo tribunal a desistência do pedido no processo atrás referido, a AA – atento o recebimento dos bens (…) e visto, com isso, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir da herança – obriga-se a nada reclamar ou peticionar seja a que título for da herança…”. [Negrito e sublinhado constam do acordo]
P) Sendo notória a vontade real da Sra. DD: sabendo que a A./Recorrente era sua irmã, filha do Sr. CC e igualmente herdeira, dolosamente, induziu-a em erro, enganou-a e deu-lhe um prédio urbano para a “contentar”, ocultando todo o demais património do falecido. E ainda a fez assinar um acordo em que esta renuncia ao direito de vir “reclamar ou peticionar seja a que título for da herança”, fazendo-a considerar-se “integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir da herança” e a desistir do pedido efetuado nos autos principais!!
Q) É óbvio que se não existisse mais património do Sr. CC ou se a Sra. DD estivesse de boa-fé e desconhecesse os bens deixados pelo falecido pai (o que é impossível, diga-se, porque ela foi a única herdeira [declarada]) nunca a Sra. DD iria incluir tais cláusulas no acordo, tão minuciosas e limitativas dos direitos da A./Recorrente.
R) Ora, em virtude da celebração do aludido acordo, e tal como o mesmo impunha, em 05.04.2018 a A./Recorrente desistiu do pedido e o Tribunal julgou válida essa desistência, absolvendo os requeridos do pedido. Ou seja, não houve mera desistência do pedido, tendo, isso sim, as partes celebrado acordo nos autos principais a pôr termo ao processo.
S) Mas, reitera-se, claro que se a A./Recorrente soubesse, àquela data, que o património do Sr. CC era muito maior do que aquele que lhe foi apresentado pela Sra. DD, a A./Recorrente nunca teria celebrado aquele acordo e nunca teria desistido do pedido!!
T) Contrariamente àquilo que conhecia e acreditava à data em que celebrou aquele acordo e, em virtude deste, desistiu do pedido, a A./Recorrente, em junho do presente ano, através de conversas com familiares e amigos, designadamente com a Sra. D. FF, a Sra. D. GG e a Sra. D. HH, tomou conhecimento que o seu pai biológico, o Sr. CC, tinha um património de mais de 70 imóveis, avaliados em mais de 15 milhões de euros, para além de possuir várias contas bancárias, no Banco 1... em ..., Espanha (atual Banco 2...), na Banco 3... e no antigo Banco 4....
U) A A./Recorrente ficou boquiaberta e sentiu-se totalmente enganada e injustiçada!
V) Daí em diante a A./Recorrente começou a investigar quais os bens imóveis que faziam parte do património do falecido e eis que descobriu que, à data da morte do Sr. CC (abril de 1996), foi aberto processo de imposto sucessório 3514/P.IMP.SUC.Nº1971 no Serviço de Finanças de Matosinhos 2, tendo a Sra. DD sido declarada como única e universal herdeira.
W) Até à presente data, a A./Recorrente já conseguiu identificar parte do património que pertencia ao falecido Sr. CC e que a Sra. DD herdou – conforme certidões que se juntam como doc.2
X) Sendo certo que a Sra. DD foi alienando vários imóveis, quando já sabia que a A./Recorrente era sua irmã, pelo menos, desde setembro de 2016 (data dos resultados dos primeiros testes genéticos os quais não excluíram, desde logo, que o Sr. CC pudesse ser o Pai da A./Recorrente).
Y) Em suma, o Sr. CC deixou um património de mais de 70 imóveis e várias contas bancárias, que foi herdado na sua totalidade pela Sra. DD, quando devia ter sido herdado, em partes iguais, por ambas as filhas, dado que o falecido já estava viúvo à data da sua morte e aquelas são irmãs consanguíneas.
Z) Ora, nos termos dos art. 291º e 696º, al. d) do CPC, atualmente estamos perante dois meios de tutela jurisdicional alternativos.
AA) A jurisprudência tem entendido que a confissão/desistência/transação pode ser atacada através de ação judicial que, por via da declaração da respetiva nulidade ou anulabilidade, visa a destruição dos seus efeitos substantivos; e que a sentença pode ser atacada por via de recurso extraordinário de revisão que visa a destruição dos seus efeitos processuais decorrentes da extinção da instância no processo em que foi produzida essa sentença homologatória.
BB) Ora, a parte que pretenda um e outro dos referidos objetivos [destruição dos efeitos substantivos da confissão/desistência/transação e dos efeitos processuais decorrentes da extinção da instância] pode obtê-los interpondo meramente recurso de revisão e não já, como anteriormente, através da propositura de dois processos.
CC) Posto isto, no âmbito do recurso de revisão também cabe a apreciação e declaração de nulidade ou anulação daquele ato – aliás, isso mesmo resulta da letra da lei (vidé artigos 291º/2 e 696º, d) do CPC).
DD) Assim, o recurso de revisão destrói os efeitos substantivos do ato e a reposição da situação anterior, em virtude da declaração da nulidade ou anulação do mesmo; e destrói os efeitos processuais decorrentes da extinção da instância no processo em que foi produzida essa sentença homologatória, em virtude da eliminação da eficácia dessa sentença, permitindo a reabertura do processo e a apreciação do litígio que nele estava em discussão - Vidé n.º 2 do art. 700º e alínea c) do n.º 1 do art. 701º, ambos do CPC.
EE) Acresce que o recurso extraordinário de revisão comporta-se como verdadeira ação com um duplo objetivo: o primeiro é o de verificar a existência de qualquer vício na decisão transitada ou no processo a ela conducente – juízo rescidente; o segundo é o de substituir a decisão proferida através da repetição da instrução e julgamento da ação – juízo rescisório.
FF) Que é precisamente o que se pretende com o presente recurso de revisão: seja, em primeiro, declarada a nulidade ou anulada a desistência por parte da Autora, bem como o acordo a que a A./Recorrente e a Sra. DD chegaram, eliminada a eficácia da sentença que homologou esse ato, e, de seguida, reaberto o processo e a subsequente apreciação do litígio que aqui estava em discussão.
GG) O erro-vício traduz-se numa representação inexata ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efetuar o negócio.
HH) In casu, a A./Recorrente celebrou o aludido acordo com a Sra. DD e, consequentemente, desistiu do pedido da ação por julgar erradamente que só integravam o património do seu falecido pai, Sr. CC, os bens que haviam sido indicados pela sua irmã DD e lhe haviam sido dados a escolher, quando na verdade existia um património enormíssimo que a Sra. DD deliberadamente decidiu ocultar da sua irmã para não ter de o partilhar.
II) Ora, o erro-vício só assume relevância como motivo de anulabilidade quando estejam verificadas as caraterísticas gerais (essencialidade e propriedade) e especiais (as partes reconheçam, por acordo, a essencialidade do motivo). In casu, estão verificadas todas as caraterísticas, gerais e especial. Vejamos.
JJ) O erro sobre o motivo (quantificação do património do Sr. CC) foi essencial para que a A./Recorrente chegasse a acordo com a Sra. DD e, consequentemente, desistisse do pedido, porquanto se não fosse esse erro, a A./Recorrente não teria chegado a acordo e desistido do pedido!
KK) Por outro lado, o erro é próprio pois incide sobre a circunstância de o património do Sr. CC ser constituído por mais bens do que aqueles que a Sra. DD deu a conhecer, e não sobre a verificação de qualquer elemento legal de validade do negócio.
LL) Por fim, as partes reconheceram, por escrito, a essencialidade do motivo (vidé doc.1), sendo que a Sra. DD conhecia a essencialidade para a A./Recorrente do elemento sobre que incidiu o erro, dado que a Sra. DD sabia existir muito mais património (ela mesma o herdou) e, de má-fé, decidiu propor um acordo à A./Recorrente onde lhe deu a escolher um prédio entre três (os quais dizia serem os únicos imóveis do falecido), assim evitando que existisse uma sentença transitada em julgado que declarasse a A./Recorrente como filha do Sr. CC, e assim evitando a partilha daquele património.
MM) Logo, nos termos do n.º 1 do art. 252º do CC, por estarem verificadas as condições gerais e especial exigidas, o acordo celebrado entre a A./Recorrente e a Sra. DD é anulável, por a vontade da A./Recorrente estar viciada por erro quanto ao motivo. Consequentemente, a desistência do pedido feito pela A./Recorrente junto dos presentes autos é igualmente anulável por ter sido feita na sequência da celebração do aludido acordo e, por isso, a vontade da A./Recorrente está igualmente viciada por erro quanto ao motivo.
NN) A par do erro-vício sobre os motivos, é também outro vício da vontade o dolo (art. 253º/1 CC), o qual assume igualmente especial relevância no presente caso.
OO) O dolo é uma espécie de erro-vício qualificado: onde há dolo há sempre erro! Quem comete o dolo sabe e quer que o enganado preste a declaração que doutro modo não prestaria, existindo um nexo de causalidade entre o dolo e a declaração - Leia-se a este propósito o Ac. do STJ de 30-09-2003, proc. 03A2493.
PP) A anulabilidade é a consequência natural do dolo por força do disposto no n.º 1 do art. 254º do CC.
QQ) In casu, estão verificadas todas as aludidas condições: dolo do declaratário, ou seja, da Sra. DD; dolo positivo, na medida em que a Sra. DD, através de artifícios, como mentiras, teve intenção e consciência de induzir e manter em erro a A./Recorrente; dolus malus, dado que a Sra. DD não utilizou sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as conceções dominantes no comércio não teria celebrado tal acordo, nem desistido do pedido.
RR) Pelo que, nos termos dos arts. 253º e 254º do CC, o acordo celebrado entre a A./Recorrente e a Sra. DD é anulável, por a vontade da A./Recorrente estar viciada por dolo. Consequentemente, a desistência do pedido feito pela A./Recorrente junto dos presentes autos é igualmente anulável por ter sido feita na sequência da celebração do aludido acordo e, por isso, a vontade da A./Recorrente está igualmente viciada por dolo.
SS) Concluindo, por ter existido dolo e erro-vício nos motivos que determinaram a vontade da A./Recorrente no momento em que celebrou o aludido acordo e desistiu do pedido, porquanto se a A./Recorrente soubesse qual o verdadeiro património do Sr. CC naquela data, nunca teria celebrado o acordo e desistido do pedido, tendo sido completamente enganada pela Sra. DD, que atuou com a intenção e consciência de induzir e manter em erro a A./Recorrente, então o acordo entre a A./Recorrente e a Sra. DD (doc.1) e a consequente desistência do pedido devem ser anulados.
TT) Consequentemente, devem ser destruídos os efeitos substantivos daqueles atos e reposta a situação anterior, em virtude da anulação dos mesmos; e destruídos os efeitos processuais decorrentes da extinção da instância nos autos principais, em virtude da eliminação da eficácia da sentença que homologou a desistência e reaberto o processo e apreciado o litígio que aí estava em discussão.
UU) E assim se impõe porque esta é a única forma, o único “remédio” para a ofensa ao primado da justiça, devendo prevalecer sob o princípio do caso julgado, por ser um meio previsto legalmente (alínea d) do art. 696º do CPC) e porque, caso contrário, as exigências da justiça e da verdade ficariam clamorosamente abaladas!
VV) Pelo que, este é um caso de verdadeira justiça! É justo que seja anulado o acordo, a desistência e a sentença que a homologou, para que o processo siga os seus termos e seja reconhecida a paternidade, a fim de a A./Recorrente poder vir a reclamar a sua parte na herança, a que tem igualmente direito como a Sra. DD!!!“ (negrito nosso).
Por despacho de 3 de setembro de 2020 foi admitido o presente recurso e ordenada a notificação pessoal da recorrida para responder.
Respondeu a recorrida, defendendo-se por impugnação e arguiu, para além do mais, a inadmissibilidade dos fundamentos do presente recurso e a sua extemporaneidade, conforme fls. 71 e ss. Terminou pedindo a improcedência do recurso de revisão e a condenação da recorrente como litigante de má-fé em multa e indemnização a seu favor.
Foi designada data para a realização da audiência prévia, a qual se realizou para tentativa de conciliação.
Foi proferido despacho saneador, despacho a identificar o objeto do litigio e os temas da prova, tendo as partes sido notificadas para os efeitos do disposto no art. 593º, nº3, do CPC.
A recorrida reclamou dos temas da prova selecionados e usou da faculdade a que alude aquele preceito legal, tendo sido realizada audiência prévia no âmbito da qual foi proferido despacho que deferiu parcialmente a reclamação.
Realizou-se audiência de julgamento com observância das formalidades legais e foi proferida sentença, a qual veio a ser anulada, por despacho proferido em 3 de novembro de 2022, no apenso B, em obediência ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que ordenou a junção aos autos dos documentos apresentados sob a Ref. n.º 41277597.
Foi reaberta a audiência de julgamento e confrontadas as testemunhas indicadas pelas partes com os identificados documentos.
Foram os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância com relevância para a decisão (transcrição):
1) A recorrente nasceu no dia ../../1972 na freguesia e concelho de Matosinhos e foi registada como sendo filha de BB e de EE, casados entre si.
2) BB trabalhava como agricultor em vários terrenos agrícolas e afins que pertenciam a CC.
3) CC intitulava-se de Padrinho da recorrente e esta tratava-o como tal;
4) A recorrida, legal representante de Herdeiros de CC, é madrinha da recorrente;
5) Desde que a recorrente nasceu que CC participava em todas as suas festividades (religiosas e aniversários);
6) As famílias da recorrente e da recorrida eram próximas;
7) CC morreu no dia 2/04/1996, no estado de viúvo, tendo deixado como única e universal herdeira a sua filha DD, nascida no dia ../../1944 na freguesia ..., concelho Matosinhos;
8) Em 22/10/2015 a recorrente instaurou uma ação de impugnação de perfilhação e de investigação de paternidade contra os herdeiros de BB e contra os herdeiros de CC, pedindo que fosse reconhecido e declarado que não é filha de BB e fosse reconhecido e declarada a paternidade relativamente ao CC.
9) Na pendência dessa ação foram realizados exames periciais designadamente à recorrente, sua mãe, à recorrida e a CC cujo cadáver foi exumado:
10) Após o conhecimento do resultado do exame referido em 9) a recorrente e a recorrida requereram, por requerimento subscrito pelos respetivos mandatários, a suspensão da instância dos autos principais;
11) Nessa sequência, iniciaram-se negociações entre as mandatárias que representavam ambas as partes na ação principal com vista a alcançarem um acordo;
12) No âmbito dessas negociações foram apresentadas pelas representantes da recorrente diversas propostas de acordo, com vista a que lhe fossem atribuídos bens que integravam a Herança de CC;
13) De entre essas propostas, a recorrente propôs-se a que lhe fosse atribuído um dos prédios que integrava o património da herança de CC – Horto a que corresponde o artigo matricial ...62 da freguesia ..., proposta que veio a ser aceite pela recorrida e uma quantia em dinheiro;
14) Nessa sequência a recorrente e a recorrida celebraram o seguinte acordo:
“ AA (...) E, HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE CC E HERDEIOS DE CC (...) aqui representada pela universal herdeira e Cabeça de Casal a sua filha, DD (...) De boa-fé declaram e acordam o estabelecido nas cláusulas seguintes:
2ª A AA e a herança pretendem transigir na ação judicial supra identificada, o que fazem nos seguintes termos e condições:
Considerando que, os dois relatórios periciais de investigação de parentesco biológico realizados no âmbito daquele processo judicial, não permitem excluir que o pai da DD é o pai biológico da AA,
A AA receberá uma importância em dinheiro e um bem imóvel da herança, como que se de uma partilha se tratasse,
Neste seguimento, a AA receberá o seguinte:
a) a quantia de 81.000,00€ (oitenta e um [mil] euros), a qual deverá ser paga em numerário até ao dia ../../2018 (data da realização da escritura pública do bem imóvel identificado infra);
b) Um prédio Urbano, casa de dois pavimentos e quintal, tendo o r/c duas divisões, andar seis dependências (lotes de gado) seis dependências (coberta uma) e dependência (casa eira), com fachada gatlada, sito no ligar do tronco (estrada ...) n. ...75, casa ...2, ..., ... Porto, com a área total do terreno de 1925.0000m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...25/20020625 da freguesia ..., e inscrita na respetiva matriz urbana sob o artigo ...62 da referida freguesia ....
Com o recebimento dos bens indicados nas supras indicadas ais. a) e b), a AA declara para todos os devidos e legais efeitos, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir, da herança, desistindo do pedido efetuado no processo judicial n° 5056/1 5.9T8MTS, que corre termos no Juízo de Família e Menores de Matosinhos - Juiz 4 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
Caso, por qualquer motivo, não seja aceite pelo tribunal a desistência do pedido no processo atrás referido, a AA - atento o recebimento dos bens (importância em dinheiro e bem imóvel) atrás mencionados nas als. a) e b), e visto, com isso, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir da herança - obriga-se a nada reclamar ou peticionar seja a que titulo for da herança (ou seja, da Herança aberta por morte de CC, de Herdeiros de CC ou mesmo de DD), incorrendo na mesma obrigação os seus representantes, sucessores e herdeiros.
Cláusula 2 a : “ ...a AA declara para todos os devidos e efeitos legais, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha, possa ou pudesse advir, da herança, desistindo do pedido .
Cláusula 3 a : “ Caso, por qualquer motivo, não seja aceite pelo tribunal a desistência do pedido no processo atrás referido, a AA - atento o recebimento dos bens (…) e visto, com isso, considerar-se integralmente ressarcida de todo e qualquer direito que advenha possa ou pudesse advir da herança, obriga-se a nada reclamar ou peticionar a que titulo for da herança”.
15) No dia 5 de abril de 2018 a recorrente apresentou requerimento na ação principal no qual declarou desistir do pedido por si formulado;
16) Por sentença de 16 de abril de 2018 foi homologado a desistência do pedido formulado pela recorrente;
17) No dia 5 de abril de 2018 foi outorgada escritura publica de doação do imóvel do imóvel referido em 14) mediante a qual a recorrida o declarou doar a QQ, filha da recorrente, que aceitou a doação e na mesma data foi entregue à recorrente a quantia monetária referida em 14);
18) No mês de junho de 2020 a recorrente conversou com familiares e amigos, designadamente FF, GG e HH sobre o património de CC;
19) No dia 4 de junho de 2015 DD recebeu o seguinte escrito subscrito pelo mandatário da recorrente à data
“Exm. a Senhora:
Encarrega-nos a nossa cliente supra referenciada, sua irmã (como V. Ex. a bem sabe e admitiu expressa e directamente à mesma em conversa à cerca de 2 anos, a qual só ficou a saber a verdade nessa altura), por parte do seu falecido pai. o Sr. CC), e também sua afilhada e do seu ex-marido de V. Ex.* (por conveniência, como V. Ex. a também lhe explicou, para calar os rumores do povo e da vizinhança, pois era e é de conhecimento público).
Sobre a relação (extra-conjugal) que o seu falecido pai teve, com a mãe da sua irmã, a D. EE (na altura casada com o falecido Sr. BB), tendo nascido dessa relação, como V. Ex. a bem sabe e admitiu expressamente. a sua irmã D. AA, em ../../1972. não obstante, no Registo de Nascimento da mesma constar (indevidamente) o nome do referido marido da D. AA.
Assim, pretende a sua referida irmã, repor a verdade dos factos, e adquirir os eus direitos, na qualidade de legitima herdeira do falecido pai de ambas (Sr. CC), mediante a instauração das competentes Ações de Impugnação de Paternidade, e. Reconhecimento Judicial de Paternidade (estando a mesma na posse de provas diversas concretas e cruciais conducentes ao êxito de ambas as ações).
Contudo, torna-se necessária a colaboração de V, Ex. a , no testemunho e realização de eventuais testes de ADN . para evitar situações mais desagradáveis, como por exemplo: o pedido de exumação dos restos mortais do seu falecido pai. para a realização desses referidos testes de .ADN, a serem ordenados pelo Tribunal (caso não haja acordo ou intenção de colaboração de V. Ex. a ).
Finalmente, a sua referida irmã tem conhecimento que. desde que falou com V. Ex. a sobre este assunto e sobre os direitos da mesma sobre a herança do vosso falecido pai, V. Ex. a tem tomado diligências públicas e não só (na venda de bens imóveis, etc...), com vista à dissipação indevida dos bens que compõem a referida herança, para a tentar prejudicar, cuja Relação de Bens, à data do óbito temos na n/posse e que se junta em anexo. (…)”
20) Chegou ao conhecimento da recorrida que, durante o tempo em que decorreram as negociações referidas no facto 11), foi contratada uma arquiteta pela recorrente para avaliar os bens da herança de CC;
21) Á data da celebração do acordo referido em 14) a recorrente conhecia a relação de bens de CC à data do seu óbito;
Considerou o Tribunal de 1ª instância que, com relevo para a decisão da causa, não resultou provado que:
I. mais que um mero trabalhador de CC, BB era também um amigo seu;
II. para além do facto provado em 3) que a ligação entre a recorrente e CC fosse muito forte;
III. para além do facto provado em 6) a proximidade entre os lares fosse tão grande que todos eles se sentiam como familiares diretos, como se de uma única família se tratasse;
IV. para além do que se teve por provado em 11) a 13), na sequência do facto provado em 10) a representante da herança recorrida, DD, tenha apresentado uma proposta à Recorrente na qual lhe deu a escolher um prédio entre os seguintes: - 3 casas seguidas sitas na Travessa ... e terro ao lado (artigos ...90, ...92, ...86); - Horto (artigo ...62 ..., Porto); - Casa ao lado da habitação da Mãe da A. sita na Rua ..., ... (artigo ...46).
V. A representante da recorrida lhe tenha dito que o referido em IV) era o único património de CC a partilhar.
VI. A recorrida de boa-fé tenha acreditado nas palavras de DD.
VII. A recorrida à data das negociações referidas em 11) e 12) desconhecesse o património de CC;
VIII. quando surgiram os resultados das perícias que provavam que a Recorrente também era filha de CC, DD tenha procurado em pouco tempo, ludibriar a Recorrente, dizendo-lhe que o falecido pai apenas tinha deixado o património referido no facto IV, quando sabia que isso não correspondia à verdade,
IX. para além do que se teve por provado nos factos 12) e 13), DD tenha dado a escolher à recorrente um prédio e lhe tenha oferecido dinheiro, requerendo em troca que a recorrente assinasse o referido acordo e desistisse da ação, porque não era do seu interesse que fosse proferida sentença a declarara que CC era pai da recorrente
X. o prédio constante do acordo referido no facto 13) fosse uma “ninharia” quando comparado com todo o património que CC havia deixado.
XI. DD se tenha aproveitado da boa-fé e desconhecimento da Recorrente para a enganar e assim a fazer assinar um acordo e desistir da ação.
XII. DD tenha ocultado todo o demais património de seu pai, induzindo a recorrente a assinar o acordo referido em 14), para a enganar;
XIII. a recorrente desconhecendo a realidade dos factos, acreditando nas palavras de DD e que apenas os bens referidos em IV pertenciam á herança aberta por óbito de CC, tenha aceite os termos do acordo referido em 14);
XIV) se no momento em que subscreveu o acordo referido e 14) a recorrente soubesse que o património de CC era muito maior nunca teria aceite subscrever o acordo referido em 3) e desistir da ação principal.
XV) na conversa referida no facto 18) a recorrente tenha tomado conhecimento que CC tinha um património de mais de 70 imóveis, avaliados em mais de 15 milhões de euros, para além de possuir várias contas bancárias, no Banco 1... em ..., Espanha (atual Banco 2...), na Banco 3... e antigo Banco 4....
XVI) que após a conversa referida no facto 18) a recorrente sentindo-se magoada e enganada, tenha começado a investigar os bens imóveis que faziam parte do património de CC.
Cumpre apreciar da admissibilidade da junção de documentos com a resposta às alegações de recurso.
Analisando as normas adjetivas que regulam tal matéria, constata-se que após o momento próprio de apresentação - cfr. art. 423º, do Código de Processo Civil, abreviadamente CPC, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência - e mesmo depois do encerramento da discussão em 1ª instância, as partes podem juntar documentos em determinadas circunstâncias.
Na verdade, desde logo, o art. 425º estatui que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
E consagra o nº1, do artigo 651º, que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.
Assim, depois do encerramento da discussão em 1ª instância as partes só podem juntar documentos cuja junção não tenha sido possível até àquele momento, no caso de recurso (art. 425º), sendo que apenas poderão juntar documentos, com as alegações de recurso, nas duas situações excecionais previstas nos citados artigos.
O que diz a letra do referido nº1, do artigo 651º foi reproduzido no Acórdão da Relação de Guimarães de 22/1/2015, processo 561/12.1TBMAR-A.G1[2] e no Acórdão da Relação de Lisboa de 19/1/2016, onde se refere que da conjugação dos referidos artigos resulta que a junção de documentos em fase de recurso só é admissível em duas situações, a saber: a) por se ter tornado necessária a junção em virtude do julgamento proferido em 1ª instância, face à “surpresa” da decisão proferida; b) por não ter sido possível a sua apresentação até ao encerramento da discussão em 1ª instância[3], afirmando-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 23/4/2025, Processo 1481/05 que o documento que a parte teve a possibilidade de juntar ao processo até ao encerramento da discussão em 1ª Instância, por ter sido do seu conhecimento e disponibilidade, não pode ser junto com a alegação de recurso[4].
Da análise conjugada do nº1, do art. 651º, com os artigos 425º e 423º resulta que a junção de documentos na fase de recurso, é admitida a título excecional, dependendo da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações:
1º - a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso (1ª parte do art. 651º);
2º - ter o julgamento de primeira instância introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional (2ª parte do art. 651º).
Quanto à primeira situação, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objetiva ou superveniência subjetiva, sendo que:
- Objetivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado;
- Subjetivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado. Neste caso (superveniência subjetiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante a caráter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis. Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento[5].
Quanto à segunda situação, pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum[6].
Referindo ser legítimo às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objetiva e subjetiva) quando se destinem a provar fatos posteriores aos articulados ou quando a sua apresentação apenas se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior ao julgamento de 1ª instância, sendo que nesse caso podem ser oferecidos em qualquer estado do processo, considera o Tribunal da Relação de Guimarães e também o da Relação de Lisboa dever ser recusada a junção de documentos para provar factos que já antes da decisão se sabia estarem sujeitos a prova, não podendo a surpresa quanto ao resultado servir de fundamento válido para a sua junção[7] [8].
A junção de documento apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido no tribunal da primeira instância, só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância, por esta se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam[9]. Assim, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma direta e ostensiva com a questão suscitada nos autos.
Destarte, “Em sede de recurso e como resulta da análise conjugada do disposto nos artigos 425º e 651º nº 1 do CPC é admitida a junção de documentos após o encerramento da discussão e às alegações de recurso:
- nas situações do artigo 425º do CPC, ou seja quando a junção não tenha sido possível até ao encerramento da discussão.
Impossibilidade fundada em superveniência do documento por referência ao encerramento da audiência em 1ª instância.
Superveniência objetiva se em causa estiver ocorrência superveniente a tal momento temporal. Superveniência subjetiva se em causa estiver o não conhecimento pela parte da ocorrência ou do documento em si em momento anterior. Sobre a parte recaindo o ónus de justificar por que antes não teve de tal conhecimento.
- nas situações em que tal junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artigo 651º nº 1 do CPC).
Necessidade justificada pela novidade da questão tratada na decisão e que assim não visa provar o que foi alegado nos articulados”[10].
Resulta pacífico na jurisprudência que: “I. Da leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância. II. No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito. III. Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador. IV. No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento” [11].
Vista a lei e a interpretação que dela vem sendo feita pela Jurisprudência, vejamos os contornos de caso.
Invoca a apelante impossibilidade de apresentação dos documentos anteriormente ao recurso, sendo, alegadamente, os documentos: o nº1 a cópia de uma notícia retirada da internet em 12/7/2022, o nº2 cópia do anúncio e do PIP do imóvel, aquele com data de 20/10/2023 e este que, embora com data de 2024-01-30, se refere, como resulta de fls 2, do documento 2, a factos anteriores à data da audiência de julgamento, com última sessão no dia 23/10/2023 (cfr. fls 746), bem podendo ter sido solicitado à Câmara Municipal do Porto e junto aos autos em data anterior à referida sessão.
Assim, não sendo objetivamente supervenientes, desde logo, atenta a invocada data dos factos referidos, a apelada não justifica, nem comprova, a superveniência (a objetiva nem a subjetiva), e, também, não ocorre nenhuma situação em que a junção do documento só face ao sentido da decisão se relevasse necessária.
Nenhuma das supra referidas situações se verifica no caso. Não resulta invocada, nem provada, qualquer situação de impossibilidade, objetiva ou subjetiva, de apresentação dos documentos referidos anteriormente à fase de recurso, que mereça aqui acolhimento legal nem o julgamento da primeira instância introduziu qualquer elemento de novidade que pudesse tornar necessária a consideração de prova documental adicional, que até ao encerramento do julgamento em primeira instância se mostrasse inútil.
Na verdade, do facto de documento poder não estar em poder da apresentante em data anterior à do encerramento do julgamento não decorre a impossibilidade da sua junção, sempre podendo a mesma ter diligenciado pela sua obtenção e apresentação atempada.
In casu, para além de se não verificar superveniência, nem objetiva nem subjetiva, nenhuma alegação foi feita nem prova foi oferecida de conhecimento superveniente, não se justificando a sua junção com a alegação de recurso.
O documento nº3, embora superveniente ao julgamento em 1ª instância nenhum interesse tem para a decisão da causa, certo sendo, efetivamente que à data da celebração de tal escritura se não encontrava (como ainda não encontra) afastada a presunção de paternidade do marido da mãe.
Assim, sendo legalmente inadmissível, atento o disposto no nº1, do art. 651º, não se admite a junção dos documentos, cujo desentranhamento e devolução à apresentante cumpre ordenar, o que se faz, condenando-se a mesma na multa de 1 UC.
AA deduziu contra os Herdeiros de BB e CC recurso de revisão da sentença, proferida em 16 de abril de 2018, que homologou a desistência do pedido nos autos principais, ao abrigo do disposto na alínea d), do art. 696º, pedindo seja admitido o recurso de revisão e, consequentemente, se anule o acordo celebrado pela A./Recorrente e a herdeira DD no dia 28/03/2018, a desistência do pedido nos presentes autos realizada pela A./Recorrente, bem como a sentença que o homologou, por a A./Recorrente estar com a sua vontade, à data da prática daqueles atos, viciada por erro sobre os motivos e por dolo do declaratário (a referida DD) e, em virtude dessa anulação, seja reaberto o processo e apreciado o litígio que aqui estava em discussão, litígio esse pelo qual a Autora, ora recorrente, pretende afastar a paternidade presumida e investigar a paternidade efetiva.
Funda-se, pois, o recurso de revisão da sentença homologatória da desistência do pedido no fundamento consagrado na al. d), do art. 696º, sendo que este recurso, não se trata de um recurso ordinário, mas de recurso extraordinário, por estar em causa a revogação de uma decisão já transitada em julgado. Trata-se, como refere o Tribunal a quo, de recursos que: “renovam a instância já extinta (assim Cf. João de Castro Mendes, in Direito Processual Civil Volume III, p. 51 e 52). Estes últimos, visam obter uma reparação, uma nova decisão que substitua, por meio da repetição do julgamento, a decisão inicial já transitada em julgado que se encontrava ferida de erros ou vícios que colocaram em causa a justiça do julgado”.
Quanto a este último, como se lhe referia o Prof. Alberto dos Reis in Código de Processo Civil anotado, reimpressão, Coimbra editora 1981, vol. VI, pág. 335, “apresenta, à primeira vista, o aspecto duma aberração judicial: o aspecto de atentado contra a autoridade do caso julgado. Há uma sentença transitada em julgado, cercada, portanto, de força, de prestígio e de respeito que merecem as decisões que atingiram tal grau de segurança”, mas acrescenta, “… o julgado tem todos os requisitos de sentença real. O que sucede é que há razões excepcionalmente graves para o fazer cair. Bem consideradas as coisas, estamos perante uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza” e, verificando-se essas razões, pode ser de aconselhar “fazer prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da segurança”[12].
E, como decidiu o Tribunal a quo, sendo o objeto do recurso de revisão uma decisão judicial, é inadmissível, no âmbito do presente recurso, o primeiro pedido formulado pela recorrente - o de anulação do acordo celebrado entre a recorrente e DD no dia 28 de março de 2018, acordo extrajudicial esse não objeto da sentença de homologação. Apenas foi homologado, por sentença de 16 de abril de 2018, transitada em julgado, e que extinguiu a instância da ação principal, o requerimento de desistência do pedido, apresentado na ação principal no dia 5 de abril de 2018, apenas dessa anulação se podendo, pois, apreciar, e apenas esta estando em causa no âmbito do recurso de revisão, a ela se limitando, também, o presente recurso.
Estatui, taxativamente, o art. 696º:
“A decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando:
a) Outra sentença transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções;
b) Se verifique a falsidade de documento ou ato judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objeto de discussão no processo em que foi proferida;
c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;
d) Se verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transação em que a decisão se fundou;
e) Tendo corrido o processo à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que:
i) Faltou a citação ou que é nula a citação feita;
ii) O réu não teve conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável;
iii) O réu não pode apresentar a contestação por motivo de força maior;
f) Seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português;
g) O litígio assente sobre ato simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude.
h) Seja suscetível de originar a responsabilidade civil do Estado por danos emergentes do exercício da função jurisdicional, verificando-se o disposto no artigo seguinte” (negrito nosso).
Assim, “O recurso extraordinário de revisão visa combater um vício ou anomalia processual de especial gravidade, de entre um elenco taxativamente previsto. É no dizer de Palma Carlos, Dos recursos cit., ps 271-272, um recurso de reparação. (…) Os recursos extraordinários estão estruturados no nosso direito em duas fases: a fase rescindente, destinada a afastar ou “rescindir” a decisão transitada em julgado; a fase rescisória, que se segue à anulação ou rescisão da decisão transitada e visa retomar o processo e aí obter uma decisão que substitua a rescindida ou anulada”[13].
Deste modo, no caso de o recurso de revisão ser julgado procedente, termina a fase rescindente do recurso, com a revogação da decisão impugnada e inicia-se a fase rescisória, no caso da al. d) do art. 696º, com despacho a ordenar que se sigam os termos necessários para a causa ser instruída e julgada, aproveitando-se a parte do processo que o fundamento de revisão não tenha prejudicado.
O recurso extraordinário de revisão, delimitado, como vimos, nos fundamentos, abarca os referidos, uns respeitantes ao tribunal, outros às partes, ao objeto e outros, ainda, à prova, distinguindo-se errores in procedendo e errores in iudicando[14].
O fundamento de invalidade consagrado na alínea d), invocado in casu, tem de ser conjugado com o artigo 291.º, do CPC, segundo o qual a confissão, a desistência e a transação podem ser declaradas nulas ou anuladas como os outros atos da mesma natureza, e não pode deixar de ser considerado que nos fundamentos de invalidade se encontram, também, englobadas todas as causas de nulidade dos referidos atos, tendo de ser visto o fundamento da al. d), também, no confronto com as disposições conjugadas dos artigos 289º, do CPC, que regula “Limites objetivos da confissão, desistência e transação” e o artigo 294º, do CC, que, com a epígrafe “Negócios celebrados contra a lei”, consagra a nulidade como regime-regra da invalidade em direito civil.
Assim, e ao contrário do entendido pelo Tribunal a quo, arguida a nulidade da desistência, não pode deixar de ser conhecida a questão da inadmissibilidade da desistência do pedido na ação, face ao seu objeto, relativo a estado de filho - impugnação e de investigação da paternidade -, por estarem em causa direitos indisponíveis, como, efetivamente, resulta da alegação efetuada no recurso de revisão estarem, não podendo limitar-se o direito da Autora de impugnar a paternidade presumida, que sabe ser falsa, e de investigar a sua paternidade, como afirma pretender.
Não estamos perante qualquer “questão nova”, suscitada no recurso para este Tribunal, mas perante questão que se levanta dos factos, fundamento dos autos, questão essa a que aludiu o Tribunal a quo, sobre ela se pronunciando, e suscitada se mostra pela recorrente, no recurso de revisão, a nulidade da desistência do pedido na ação de impugnação e investigação da paternidade, sendo o Tribunal, quer o de 1ª instância quer o de recurso, livre na subsunção jurídica que efetua dos factos que densificam a causa (nº3, do art. 5º).
O fundamento do recurso de revisão, não sendo a anulabilidade por erro sobre os motivos e o alegado dolo, mas o constante da al. d) do art. 696º, a incluir, por isso, a nulidade da desistência do pedido que a decisão apreciou, homologando-a, tem de ser conhecido com a essa amplitude, mais abrangente, nele contida. E, na apreciação do invocado vício, não pode deixar de se considerar que o mesmo se verifica.
Vejamos.
O artigo 289º, que regula “Limites objetivos da confissão, desistência e transação” consagra no nº1:
“1. Não é permitida confissão, desistência ou transação que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis”.
O que dita se a desistência do pedido é ou não válida é se a ação tem por objeto direitos disponíveis ou, ao invés, se se funda em direitos indisponíveis.
Direitos disponíveis são aqueles de que a parte pode livremente dispor e direitos indisponíveis os de que a parte não pode renunciar, aqueles em que a vontade das partes não pode manifestar-se de forma válida, que estão subtraídos ao domínio da vontade das partes, podendo assim suceder quer por existir determinação legal expressa quer pela natureza da relação jurídica.
São, assim, impostos limites ao princípio da autonomia da vontade, a observar tanto no processo como fora dele “no campo da indisponibilidade objetiva das situações jurídico-privadas”, cabendo ao direito substantivo “a determinação das situações jurídicas objetivamente indisponíveis e, designadamente, a distinção entre aquelas que o são em absoluto (estando vedado qualquer dos negócios de autocomposição do litígio) e as que apenas o são relativamente (permitindo a realização de algum ou alguns deles)”[15].
Não é, pois, permitida confissão, desistência ou transação a importar a afirmação da vontade das partes em qualquer matéria em que ela se não possa manifestar validamente[16]. “Há efetivamente relações jurídicas chamadas indisponíveis, isto é, sobre as quais não exerce influência o princípio da autonomia da vontade; se a parte não pode, por ato seu, dispor da relação jurídica substancial, é claro que não pode desistir do pedido… Entendeu a lei que a confissão desistência e a transação não podem ser admitidas quando levarem a um resultado que as partes não puderem obter por meio de um negócio jurídico abertamente destinado a tal efeito.”[17]. E os direitos podem estar subtraídos ao domínio da vontade das partes pela sua própria natureza ou por disposição expressa da lei.
Sendo o direito da família terreno fértil em situações jurídicas indisponíveis, com diversos institutos relativos ao estado das pessoas[18], consideramos que, como o faz Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, da irrenunciabilidade do estado civil se extrai a inadmissibilidade da desistência do pedido nas ações de investigação da paternidade quanto à pretensão de constituição do estado de filho[19], o caso, embora em questões relacionadas com efeitos patrimoniais emergentes do estado de filho seja admissível tal desistência.
A desistência do pedido sobre o próprio estado ou sobre os efeitos pessoais da investigação da paternidade é nula (v. art. 294º do Código Civil), pois que o estado é irrenunciável, tanto o já constituído como o a constituir, sendo direitos que, pela sua própria natureza, não podem ser objeto de renúncia[20].
Assim, a indisponibilidade do direito constitui um limite formal à validade da desistência do pedido[21], gerando-se a sua nulidade, a inquinar a sentença homologatória.
Bem esclarece Alberto dos Réis a sua posição e a da Doutrina maioritária - Vaz Serra, Cunha Gonçalves, Simões Correia e Vítor Nunes -, como se passa a citar com as respetivas notas no local próprio, para melhor perceção:
“Quanto à desistência do pedido, a doutrina pronuncia-se geralmente no sentido da nulidade[22].
E o Prof. Andrade observa: pode dizer-se nesse sentido que tal desistência imporia a perda dum direito, estando a posição jurídica subtraída à sua disponibilidade, e de que portanto o autor não poderia demitir-se através dum negócio extra-processual directamente encaminhado a tal efeito. O estado de filho … é, na verdade, irrenunciável”.
Cita posição, minoritária, no sentido da validade da desistência, que refuta, dizendo que o Prof. Andrade, e o próprio Prof. Alberto dos Reis, consideram tal conclusão desacertada, pois “Pelo facto de o filho ter o poder de propor ou deixar de propor a ação de investigação de paternidade… não se segue que, tendo-a proposto, lhe seja lícito desistir livremente do pedido. (…) A questão há-de ser posta noutro pé e é este: será válido o negócio jurídico pelo qual o filho renuncie ao direito de investigar a paternidade…? (…) O estado é irrenunciável, tanto o estado já constituído, como o estado a constituir.
Mais irrefragável nos parece a doutrina da nulidade da desistência quando a acção seja proposta, em nome do filho menor, pelo seu representante legal, em regra a mãe[23]” (negrito nosso).
Entendemos que, na verdade, sendo livre a decisão de propor ação já não pode ser exercida livremente a vontade de desistir de ação proposta por implicar, definitiva, extinção de direito, irrenunciável. E, como a ora relatora teve já oportunidade de se pronunciar “O atual regime jurídico do estabelecimento da filiação procura conformar o princípio da correspondência entre a verdade biológica e a verdade jurídica, na consideração da existência de um direito de cada um à identidade pessoal, abrangido pelo direito à sua própria historicidade pessoal, que tem ínsito o conhecimento dos progenitores biológicos” e “Os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao estabelecimento da paternidade do investigante reclamam intensa tutela, conducente a alcançar a Certeza, a Verdade e a Justiça, que sempre o Homem, os Cidadãos, os Tribunais e o Estado visam alcançar, e a extrair os devidos efeitos jurídicos em matéria de filiação, no momento em que o filho se sinta disposto a ir ao encontro do que sempre lhe devia ter sido proporcionado”[24].
Questão diversa é a relativa a direitos patrimoniais, em relação aos quais por se tratar de direitos disponíveis admitem, sempre, desistência do pedido e transação e, como bem observa Alberto dos Réis, também nada obsta à desistência da instância, mesmo nas ações que não comportam desistência do pedido, pois que a mesma não extingue o direito[25], que pode ulteriormente vir a ser exercido. O que é inadmissível é que, em matéria relativa a direitos indisponíveis, se permita a extinção do direito.
Revertendo para o caso, estamos, como vimos, perante uma desistência do pedido de impugnação da paternidade presumida e de investigação de paternidade, não comportando a ação desistência do pedido, por esta extinguir os direitos que a Autora se apresentou a atuar e de direitos irrenunciáveis se tratar. Tem, efetivamente, a sentença homologatória da desistência do pedido de ser revogada por padecer do vício de nulidade.
Sendo certo que a recorrente declarou nos autos principais que desistia do pedido e que tal desistência foi homologada por sentença, a mesma é nula, pois viola disposição imperativa (cfr. nº1, do art. 289º, do CPC, e art. 294º, do CC), caindo-se no fundamento de revisão convocado pela recorrente – o consagrado na al. d), do art. 696º -, procedendo, pois, o recurso.
Apresentando a desistente recurso extraordinário de revisão de sentença homologatória de desistência do pedido de impugnação da paternidade do marido da mãe e de investigação de paternidade do progenitor, arguindo a nulidade desta, cabendo, desde logo, apreciar da invalidade de tal desistência face ao objeto da mesma, e sendo nula, como se decidiu ser, prejudicado fica, dada a nulidade já verificada, o conhecimento substancial dos invocados vícios da vontade e, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto.
Neste conspecto, na procedência do recurso pela razão acabada de conhecer e prejudicada ficando a apreciação dos demais vícios invocados, cabe passar à reapreciação da decisão sobre responsabilidade processual.
Consagrando o legislador o direito de acesso aos Tribunais, a lei não reserva tal acesso aos detentores da razão, aos que fazem a adequada subsunção jurídica dos casos, estabelecendo, contudo, entraves à introdução em juízo de pretensões e cominando certas atuações como litigância de má-fé.
E, na verdade, “não deve confundir-se a litigância de má-fé com:
a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo;
b) A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
c) A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor (RP 2-3-10, 6145/09)[26].
Assim, mesmo, até, resultando não ter a parte razão, não se segue, como consequência necessária, a condenação como litigante de má-fé.
A condenação de uma parte como litigante de má-fé traduz um juízo de censura sobre a sua atitude processual, visando alcançar o respeito pelos Tribunais, a moralização da atividade judiciária e o prestígio da justiça.
Segundo o dever da boa-fé processual estabelecido no artigo 8.º do Código de Processo Civil, as partes têm o dever de, conscientemente, não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade, não requerer diligências meramente dilatórias.
A violação deste dever dá lugar a sanção pecuniária: indemnização e multa.
Analisemos da responsabilidade processual da Recorrente, por litigância de má-fé, atentando na sua conduta processual, para se aquilatar da sua atuação de má-fé.
Impendendo sob as partes o dever de pautar a sua atuação processual por regras de conduta conformes à boa-fé - cfr. art. 8º, do Código de Processo Civil -, caso não o observem podem incorrer em responsabilidade processual.
O instituto da má-fé processual, regulado nos artigos 542º a 545º, de tal diploma legal, visa sancionar a parte que preencha, com a sua atuação processual, a respetiva previsão.
Ao contrário do que sucedia antes da revisão do Código de Processo Civil operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, atualmente as condutas passíveis de integrar má-fé não têm de ser, necessariamente, dolosas, já que o instituto passou a abranger, também, a negligência grave. Atingiu-se uma maior responsabilização das partes. Como resulta do preâmbulo do referido diploma, o atual Código de Processo Civil, com a nova filosofia de colaboração que lhe está ínsita, consagrou "expressamente o dever de boa-fé processual, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos". Na reforma processual introduzida por este DL houve uma substancial ampliação do dever de boa-fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má-fé processual - quer a substancial quer a instrumental -, tanto na vertente subjetiva como na objetiva. A condenação por litigância de má-fé pode agora fundar-se em negligência grave, para além da situação de dolo já anteriormente prevista.
Alberto dos Reis distinguia, em matéria de conduta processual das partes, quatro tipos de lide: lide cautelosa (aquela em que a parte esgota todos os meios para se assegurar de que tem razão e apesar disso vê inviabilizada a sua pretensão (ou oposição)), lide imprudente (aquela em que a parte comete imprudência leve ou levíssima), lide temerária (aquela em que a parte, embora convencida que tem razão, incorre em culpa grave ou erro grosseiro, indo a juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas (de facto ou de direito) que devia empregar para desfazer o seu erro, comprometendo a sua pretensão) e lide dolosa (aquela em que a parte, apesar de ciente de que não tem razão, litiga e deduz pretensão (ou oposição) conscientemente infundada)[27].
Ao sancionar, atualmente, a litigância com negligência grave a lei está a proibir, para além da lide dolosa, a lide temerária, a qual pressupõe culpa grave ou erro grosseiro[28].
Na verdade, de acordo com o nº2, do art. 542º, do CPC, “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
“Segundo o nº2, constituem atuações ilícitas da parte: a dedução de pretensão ou oposição com manifesta falta de fundamento, por inconcludência ou inadmissibilidade do pedido ou da exceção (alínea a)); a apresentação duma versão dos factos, deturpada ou omissa, em violação do dever de verdade (alínea b)); a omissão do dever de cooperação (alínea c)); em geral, o uso reprovável do processo ou de meios processuais, visando um objetivo ilegal, o impedimento da descoberta da verdade, o entorpecimento da ação da justiça ou o protelamento, sem fundamento sério, do trânsito em julgado da decisão (alínea d))”[29].
“Visa entorpecer a ação da justiça a parte que atua usando meios dilatórios”[30] – cfr exemplos citados in ob e pag. cit..
“Visa apenas protelar o trânsito em julgado da decisão a parte que recorre ou reclama sem fundamento sério, conseguindo assim atrasar o momento do trânsito em julgado e da exequibilidade da decisão”[31].
Destarte, a lei tipifica as situações objetivas de má-fé, exigindo-se, simultaneamente, um elemento subjetivo (dolo ou negligência grave) - cfr. referido nº2 - já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico.
O juízo de censura que enforma o instituto radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa-fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo”, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil. Litiga de má-fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado e prudência, bem assim com o dever de indagar a realidade em que funda a pretensão[32] ou em que sustenta a defesa.
Distingue-se entre má-fé material ou substancial e má-fé processual ou instrumental. A primeira tem a ver com o mérito da causa, a segunda com a conduta processual[33]. Na primeira “a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má-fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo portanto o vencedor da ação ser condenado como litigante de má-fé” [34].
A má-fé a se reportam as supra referidas als. a) e b) é a má-fé material ou substancial, aquela que se refere à relação jurídica material[35]; as restantes alíneas contendem com a má-fé instrumental[36].
A litigância de má-fé surge como um instituto processual, de tipo público, com um sistema sancionatório próprio, especialmente regulado, não se tratando de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem através de atuações processuais. A responsabilidade por litigância de má-fé está sempre associada à verificação de um ilícito puramente processual e constitui o “tipo central da responsabilidade processual”[37].
Atualmente, “considera-se sancionável a título de má-fé, a lide dolosa, tal como preconizava A. Reis, in Código de Processo Civil anotado, II volume, pg.280, e, ainda, a lide temerária baseada em situações de erro grosseiro ou culpa grave.
Como refere Menezes Cordeiro “alargou-se a litigância de má-fé à hipótese de negligência grave, equiparada, para o efeito, ao dolo.” (in “Da Boa-fé no Direito Civi”, Colecção Teses, Almedina ).
No dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida – dolo directo – ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial – dolo indirecto; no dolo instrumental faz-se dos meios e poderes processuais um uso manifestamente reprovável (v. Menezes Cordeiro, obra citada, pg.380).
Verifica-se a negligência grave naquelas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das desaconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida (Maia Gonçalves, C.Penal, anotado, pg.48).
O dever de litigar de boa-fé, com respeito pela verdade é corolário do princípio da cooperação a que se reporta o art.º 266º do Código de Processo Civil, e vem consignado no art.º 266º-A, do mesmo diploma legal.
Em qualquer caso, a conclusão pela actuação da parte como litigante de má-fé será sempre casuística, não se deduzindo mecanicamente da previsibilidade legal das alíneas do art.º 456º do Código de Processo Civil e a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça”[38].
A questão da má-fé material não pode ser vista de forma linear, sob pena de se limitar o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil, com foros de garantia constitucional, tendo de ser feita uma apreciação casuística, não cabendo a análise do dolo ou da negligência grave no processo civil em estereótipos rígidos.
A má-fé processual não opera no domínio da interpretação e aplicação das regras do direito, mas tão só no domínio dos factos. A sustentação de posições jurídicas, mesmo que desconformes com a correta interpretação da lei, não basta à conclusão da litigância de má-fé de quem as propugna.
Acresce, também, que, a conclusão no sentido da litigância de má-fé não se pode extrair, mecanicamente, da simples alegação de factos pessoais que não se provaram ou da negação de factos pessoais que vieram a provar-se. Na “base da má-fé está este requisito essencial, a consciência de não ter razão. Não basta pois o erro grosseiro ou a culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição infundada"[39].
O que importa é que exista uma intenção maliciosa (má-fé em sentido psicológico) e não apenas imprudência (má-fé em sentido ético), não bastando a imprudência, o erro, a falta de justa causa, é necessário o querer e \o saber que se está a actuar contra a verdade ou com propósitos ilegais.
A condenação por litigância de má-fé, em qualquer das suas vertentes – material e instrumental – pressupõe sempre a existência de dolo ou de negligência grave (art. 456º, nº2, do CPC) pelo que se torna necessário que a parte tenha procedido com intenção maliciosa ou com falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida”[40].
Emergente dos princípios da cooperação, da boa-fé processual e da probidade e adequação formal, a figura da litigância de má-fé pretende cominar quem, dolosamente ou com negligência grave, põe em causa tais princípios, que a eles tem subjacente a boa administração da justiça.
Quanto à sua aplicabilidade, é quase unânime entre a jurisprudência e a doutrina mais avisada, a exigência de um comportamento doloso e consciente no sentido de pôr em causa a boa administração da justiça, vindo aquela a ser restritiva na admissão da litigância de má-fé.
Esta interpretação impõe-se por ser a mais razoável e a que melhor compreende a realidade subjacente a um processo em que as partes estão em desacordo: não é humanamente exigível que elas sejam absolutamente objetivas, pois são elas que sentem os problemas e o litígio. O inadmissível surge apenas quando a parte, sabendo embora não ter razão, recorre ao processo (o que é ainda mais grave tratando-se de factos pessoais): provado isto, haverá litigância de má-fé. Esse é o limite à compreensão e aceitação, relativamente à posição vivida pelas partes.
O ensinamento do Prof. Alberto dos Reis que, quanto a esta matéria, vem incluído no CPC Anotado, é lapidar, assim escrevendo Não obstante o dever geral de probidade, imposto às partes, a litigância de má-fé pressupõe a violação da obrigação de não ocultar ao tribunal ou, melhor, de confessar os factos que a parte sabe serem verdadeiros. Não basta, pois, o erro grosseiro ou culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada, de tal modo que a simples proposição da ação ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmarem um direito que não possuem ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que a Autora faça um pedido que conscientemente sabe não ter direito, e que o Réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir[41].
Exige-se para a condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a atuação dolosa ou gravemente negligente da parte, demonstrando-se nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, litigando de modo desconforme ao respeito devido ao tribunal e às partes[42].
À litigância de má-fé não se basta a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta. Exige-se ainda que a parte tenha atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, que soubesse da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição e que se encontrasse numa situação em que se lhe impusesse esse conhecimento e um dever de agir em conformidade com ele. A aplicação do instituto da litigância de má-fé, à semelhança do instituto do abuso de direito, traduz uma aplicação do princípio da boa-fé no domínio processual civil, tendo de se ter em conta a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente, através da análise global dos factos provados e não provados, e não apenas de um segmento desses factos[43].
Ora, vista a Doutrina e a Jurisprudência tendo-se em atenção a lição assim colhida, que em nosso entender plasma a interpretação mais avisada da figura jurídica do litigante de má-fé, e analisando a conduta processual da Autora não podemos deixar de considerar que a mesma não pôs em causa os seus deveres como litigante, não se justificando qualquer condenação como litigante de má-fé. Bem resulta a inexistência de qualquer facto que permita concluir que a Autora litigue como tal.
Condenou o Tribunal a quo a recorrente em multa e indemnização à parte contrária considerando “no caso sub judice, foram ultrapassados os limites da “litigiosidade séria”, isto é, aquela que “dimana da incerteza”, assim se verificando os pressupostos da condenação da recorrente, nos termos e para os efeitos dos artºs 542º e 543º do CPCivil (cfr. o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/09/2007 disponível para consulta in em www.dgsi.pt
Estão assim reunidos os pressupostos exigidos pelo art. 542º, n.º 2 do Código de Processo Civil para que deva ser condenada como litigante de má-fé, uma vez que a sua conduta integra a dedução de pedido cuja falta de fundamento não ignorava e ademais a alteração da verdade dos factos”.
Ora, entendemos inexistirem elementos que permitam subsumir a atuação processual da Recorrente aos quadros da litigância de má-fé, não se podendo concluir pelo preenchimento dos requisitos da litigância de má-fé supra analisados, que se têm por não verificados.
Com a tipificação das situações objetivas de má-fé - nº2, do art. 542º, do CPC -, a figura da litigância de má-fé pretende cominar quem, dolosamente ou com negligência grave (elemento subjetivo), põe em causa os princípios da cooperação, da boa-fé processual, da probidade e adequação formal, que estão subjacentes à boa administração da justiça. Para a sua aplicabilidade, é exigido que resulte demonstrado nos autos que a parte agiu de forma reprovável e conscientemente ao pôr em causa a boa administração da justiça. Tal não resulta no caso, em que o recurso de revisão procede, com a revogação da sentença homologatória da desistência do pedido e o imposto prosseguimento dos ulteriores termos do processo para o exercício do direito indisponível de impugnação da paternidade presumida do marido da mãe e estabelecimento da efetiva paternidade, justificado por interesses particulares e públicos.
Procedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não podendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores