PRESUNÇÃO DERIVADA DO REGISTO
ARRESTO
REGISTO DE ARRESTO
Sumário

I - Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 6º do Código do Registo Predial, o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes, com exceção das inscrições hipotecárias da mesma data, que concorrem entre si na proporção dos respetivos créditos.
II - O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
III - Embora o arresto seja registado sem o concurso da vontade do devedor, a inscrição do arresto funda-se no direito inscrito no registo automóvel a favor do devedor.
IV - O credor que obteve a inscrição do arresto a seu favor e a sociedade a quem, alegadamente, o veículo havia sido anteriormente vendido pelo devedor são terceiros para efeitos de registo, sendo que o registo prioritário a favor do credor sana a eventual ilegitimidade do tradens (artigo 5º, nº 4 do Código do Registo Predial), prevalecendo a aquisição primeiramente registada.

Texto Integral

Processo nº 811/20.0T8VLG.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 811/20.0T8VLG.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório[1]

Em 06 de março de 2020, com referência ao Juízo Local Cível de Valongo, Comarca do Porto Este, AA interpôs a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra A..., Lda.”, BB e CC pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre o veículo marca Volkswagen, matrícula ..-II-.. e o cancelamento do arresto que sobre ele incide, bem como a condenação do terceiro réu ao pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados, a liquidar em momento ulterior.

Para fundamentar as suas pretensões alegou, em síntese, que mediante compra adquiriu em 19 de janeiro de 2018 o veículo de matrícula ..-II-.. à sociedade A..., Lda., que por sua vez o havia adquirido a BB em 09 de maio de 2017; desde há mais de dois, quatro e dez anos, sempre o autor e antepossuidores utilizaram o veículo na satisfação das suas necessidades de transporte, cuidaram da sua manutenção e fizeram as reparações necessárias, tendo pago os impostos devidos por dele serem proprietários, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ininterruptamente, com a convicção de serem donos do aludido veículo, pelo que adquiriu o veículo por usucapião; o autor veio a tomar conhecimento que o veículo fora alvo de um arresto no âmbito de procedimento cautelar que CC intentou contra BB, não obstante saber que o veículo não pertencia a BB, o que lhe vem causando diversos danos patrimoniais e não patrimoniais.

Citados os réus, apenas CC contestou suscitando a sua ilegitimidade processual e alegou que promoveu o arresto dos bens que, à data, se encontravam em nome de BB, como era o caso do veículo em questão, concluindo pela sua absolvição da instância por ilegitimidade e, não se entendendo assim, pela sua absolvição do pedido.

Em 03 de outubro de 2020, fixou-se o valor da causa no montante de € 16 000,00, dispensou-se a realização de audiência prévia, proferiu-se despacho saneador que julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva do réu contestante, fixou-se o objeto do litígio, enunciaram-se os temas da prova, conheceu-se dos requerimentos probatórios das partes e designou-se dia para realização da audiência final.

Em 11 de novembro de 2020, a Sra. Advogada que patrocinou o réu contestante veio comunicar o seu falecimento, oferecendo cópia de certidão de óbito comprovativa do alegado decesso[2], sendo nessa sequência proferido despacho a declarar a suspensão da instância, dando-se posteriormente sem efeito a audiência final designada.

Em 10 de março de 2022 foi proferida sentença no incidente de habilitação de herdeiros a julgar habilitados como herdeiros de CC, DD e CC.

 Designou-se nova data para realização da audiência final.

Em 17 de agosto de 2022, o autor veio informar que o réu BB foi declarado insolvente no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, Comarca do Porto, no processo nº 2373/20.0T8VNG, estando nomeado Administradora da Insolvência, EE.

A audiência final realizou-se em 26 de setembro de 2022, decidindo-se deverem os autos prosseguir sem intervenção da Sra. Administradora da Insolvência no processo em que foi declarado insolvente o réu BB, deferiu-se a retificação de lapso de escrita na petição inicial, procedeu-se à produção da prova pessoal, tendo sido proferidas alegações orais, ficando os autos a aguardar a junção de diversa documentação.

Junta aos autos a documentação solicitada, em 22 de fevereiro de 2023, foi proferida sentença[3] que terminou com o dispositivo que na parte pertinente ao conhecimento do objeto do recurso se reproduz de seguida:

Em face do exposto e atentas as considerações que antecede, o Tribunal julga a ação parcialmente procedente por provada e, em consequência:

I – Declara que o autor é proprietário e legítimo possuidor do veículo automóvel identificado em 1 dos factos provados e condena os réus e os habilitados a assim reconhecer;

II – Determina o cancelamento da inscrição de arresto efetuada em 26/09/2017 sobre o

referido veículo;

III – Absolve os réus habilitados do pedido indemnizatório formulado pelo autor.

Em 06 de março de 2023 a Sra. Advogada FF constituída mandatária por DD veio declarar que renunciava ao mandato que lhe foi outorgado, renúncia que no dia 09 de março de 2023 foi notificada a terceira pessoa mediante carta registada com aviso de receção, tendo a notificada em 16 de março de 2023 requerido a junção aos autos de procuração forense datada de 10 de agosto de 2022, a favor da Sra. Dra. GG.

Em 20 de abril de 2023, inconformada com o dispositivo da sentença que precede, pugnando pela sua total revogação, DD interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1) o documento junto aos autos não se discorre de que forma é que os mesmos serviram para sustentar a convicção do Douto Tribunal no que à decisão de facto respeita.

2) Da certidão permanente resulta que, aquando do registo de propriedade a favor do Banco 1... e posteriormente a favor do aqui Apelado, já se encontrava arrestado o sobredito veículo no âmbito dos autos de arresto que correram seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Cível de Sintra, sob o nº 8565/18.4T8SNT-A.

3) O documento número 2 junto, não comprova a alegada aquisição em 19 de janeiro de 2028.

4) O documento número 2, é um mero documento particular, que não faz qualquer alusão a uma compra e venda e não comprova qualquer pagamento;

5) O documento nº3 não prova que o veículo foi adquirido com recurso a financiamento,

6) O documento junto sob o nº4 não é prova bastante para provar a celebração de um contrato de compra e venda.

7) A prova por depoimento de parte é exígua

8) O Tribunal «a quo» julgou erradamente os seguintes fatos:

(1.) No dia 19 de janeiro de 2018, o autor adquiriu o veículo automóvel da marca Volkswagen, matrícula ..-II-.. à ré “A..., Lda.”.

(2.) O autor pagou o preço devido pela aquisição dessa viatura, através de um financiamento obtido junto do “Banco 1..., S.A.”.

(4.) A ré “A..., Lda.” adquiriu a identificada viatura ao réu BB, em 9 de maio de 2017.

(6.) O autor utiliza o veículo na satisfação das suas necessidades de transporte, cuida da sua manutenção, à vista de todos, sem oposição de ninguém, com a convicção que não lesa os direitos de outrem, ininterruptamente e com exclusão de outrem, desde há mais de 2 anos, na convicção de que o mesmo lhe pertence.

9) O tribunal de 1ª instância descurou os elementos de prova constantes que, a terem sido globalmente apreciados, certamente conduziriam a diferente decisão e distinta subsunção ao direito.

10) O Tribunal «a quo» deveria dar como não provados os seguintes factos:

(1.) No dia 19 de janeiro de 2018, o autor adquiriu o veículo automóvel da marca Volkswagen, matrícula ..-II-.. à ré “A..., Lda.”.

(2.) O autor pagou o preço devido pela aquisição dessa viatura, através de um financiamento obtido junto do “Banco 1..., S.A.”.

(4.) A ré “A..., Lda.” adquiriu a identificada viatura ao réu BB, em 9 de maio de 2017.

(6.) O autor utiliza o veículo na satisfação das suas necessidades de transporte, cuida da sua manutenção, à vista de todos, sem oposição de ninguém, com a convicção que não lesa os direitos de outrem, ininterruptamente e com exclusão de outrem, desde há mais de 2 anos, na convicção de que o mesmo lhe pertence.

18- São os seguintes meios de prova que impunham decisão diversa:

- Documentos nºs 1, 2, 3 e 4 junto com a petição Inicial e certidão extraída do processo 8565/18.4T8SNT-A, do Juiz 1, Juízo central Cível de Sintra, Tribunal judicial da Comarca de Lisboa Oeste;

- Depoimentos de parte dos Gerentes da Ré, HH, depoimento prestado na audiência de discussão e julgamento, em 26/09/2022, gravado no suporte digital com inicio as 10:46 horas e términus às 11:14 hora; Depoimento de parte de II

depoimento prestado na audiência de discussão e julgamento, em 26/09/2022, gravado no suporte digital com inicio ás 11:15 horas e términus às 11:35 horas, e declarações de parte do habilitado CC, prestado na audiência de discussão e julgamento, em 26/09/2022, gravado no suporte digital com inicio às 11:35 horas e términus às 11:49.

19- O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a forma especial, podendo, por essa razão, ser meramente verbal.

20-Decorre do art. 5, nºs 1-a) e 2) do DL54/75, de 12-2, que o direito de propriedade sobre os veículos automóveis está sujeito a registo obrigatório

21- O art. 29 do DL54/75, de 12-2 determina serem aplicáveis ao registo de automóveis, com as necessárias adaptações, as disposições relativas ao registo predial (na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis).

22- Nos termos do art. 7º do Código de Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

23- Sendo certo que o registo automóvel, embora obrigatório, não tem natureza constitutiva, sendo antes de natureza declarativa ou publicitária (ver o art. 1º do DL 54/75, bem como o art. 1 do CRP), o certo é que aquando do registo do arresto, o veículo pertencia a BB e aquando do registo por parte da entidade Banco 1..., já o arresto se encontra registado e era público. E a ser assim, como nos parece ser, o facto sujeito a registo-arresto- produziu os seus efeitos quanto à entidade Banco 1... e, também, quanto ao aqui Apelado.

24- Nos termos do nº 1 do art. 5º do CRP – aplicável, por via do DL 54/75, de 12-2 - os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo.

25- O registo tem como função prioritária garantir, através da sua publicidade, a segurança do comércio jurídico.

26- Os terceiros não poderão alegar o desconhecimento ou a ignorância, uma vez que sempre tiveram a possibilidade de conhecer.

27- O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes.

28- O arresto registado a favor do falecido CC, porque registado em primeiro lugar, prevalece sobre o direito de propriedade de terceiro registado posteriormente.

29- Decidindo como decidiu, violou a sentença recorrida o disposto nos artigos 4.º, n.º 2, e 6.º, n.º 1, do CRP, e bem assim art. 5, nºs 1-a) e 2) do DL54/75, de 12-2, bem como o artigo 3º e artigo 463º do Código Processo Civil.

Não foram oferecidas contra-alegações.

Em 06 de junho de 2023 foi proferido despacho a não admitir o recurso de apelação interposto por DD e em virtude de esta não ter procedido ao pagamento da multa devida pela interposição da apelação no terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo.

Inconformada com a não admissão do recurso de apelação por si interposto, DD veio reclamar dessa decisão alegando e comprovando ter procedido ao pagamento da multa devida em 26 de abril de 2023.

Após comprovação do pagamento da multa devida, foi em 03 de julho de 2023 proferido despacho a retificar o despacho de não admissão do recurso, admitindo-se o recurso interposto como de apelação, com subida nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo, sendo a recorrente notificada para declarar se mantinha interesse na reclamação por si interposta.

DD veio declarar que não mantinha interesse na reclamação.

Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação do Porto.

Alterou-se o efeito do recurso na parte relativa à impugnação da decisão de cancelamento do registo do arresto de meramente devolutivo para suspensivo.

Colhidos os vistos dos restantes membros do Coletivo, cumpre agora apreciar e decidir.

2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da impugnação dos pontos 1, 2, 4 e 6 dos factos provados;

2.2 Da oponibilidade da inscrição do arresto ao direito de propriedade do bem arrestado registado posteriormente a favor de terceiro.

3. Fundamentos

3.1 Da impugnação dos pontos 1, 2, 4 e 6 dos factos provados

A recorrente impugna os pontos 1, 2, 4 e 6 dos factos provados, pugnando por que sejam julgados não provados.

Os pontos de facto impugnados têm o seguinte teor:

1. No dia 19 de janeiro de 2018, o autor adquiriu o veículo automóvel da marca

Volkswagen, matrícula ..-II-.. à ré “A..., Lda.”.

2. O autor pagou o preço devido pela aquisição dessa viatura, através de um financiamento obtido junto do “Banco 1..., S.A.”.

4. A ré “A..., Lda.” adquiriu a identificada viatura ao réu BB, em 9 de maio de 2017.

6. O autor utiliza o veículo na satisfação das suas necessidades de transporte, cuida da sua manutenção, à vista de todos, sem oposição de ninguém, com a convicção que não lesa os direitos de outrem, ininterruptamente e com exclusão de outrem, desde há mais de 2 anos, na convicção de que o mesmo lhe pertence.

Em resumo, a recorrente fundamenta a sua pretensão de impugnação da decisão da matéria de facto no que respeita estes pontos de facto, com as seguintes provas:

- Documentos nºs 1, 2, 3 e 4 junto com a petição Inicial e certidão extraída do processo 8565/18.4T8SNT-A, do Juiz 1, Juízo central Cível de Sintra, Tribunal judicial da Comarca de Lisboa Oeste;

- Depoimentos de parte dos Gerentes da Ré, HH, depoimento prestado na audiência de discussão e julgamento, em 26/09/2022, gravado no suporte digital com inicio as 10:46 horas e términus às 11:14 hora; Depoimento de parte de II

 depoimento prestado na audiência de discussão e julgamento, em 26/09/2022, gravado no suporte digital com inicio ás 11:15 horas e términus às 11:35 horas, e declarações de parte do habilitado CC, prestado na audiência de discussão e julgamento, em 26/09/2022, gravado no suporte digital com inicio às 11:35 horas e términus às 11:49.

Na decisão recorrida motivaram-se estes pontos de facto da forma que segue:

A convicção do Tribunal, no que à matéria de facto provada e não provada diz respeito, resultou da posição das partes assumidas nos respetivos articulados, bem como da prova por depoimento/declarações de parte produzida e documentos juntos, conjugados e valorados à luz das regras do ónus da prova, consagradas no artigo 342º e seguintes do Código Civil.

Assim, os factos provados sob os pontos 1 a 6 resultam dos depoimentos de parte dos legais representantes da primeira ré, HH e II, conforme assentada exarada em ata. Conquanto a confissão não seja eficaz contra os demais réus e habilitados (artigo 353º, nº 2 do Código Civil), as declarações prestadas pelos respetivos representantes legais consubstanciam um meio de prova livremente valorado.

Com efeito, os legais representantes da primeira ré prestaram depoimentos sérios, claros, coerentes e que são corroborados pelos documentos juntos com a petição inicial, documentos esses que, de resto, nem sequer foram impugnados pelo réu contestante.

De facto, decorre do documento nº 4 junto com a petição inicial, designado “Declaração” que o réu BB vendeu à ré “A..., Lda.” o veículo de matrícula ..-II-.., pelo preço de € 15.000,00, no dia 9 de maio de 2017, em ..., conforme por si declarado e assinado.

Os dois representantes legais da referida sociedade confirmaram a aquisição em maio de 2017 ao réu BB, e mais esclareceram que, à data, se certificaram que não havia ónus nem encargos sobre o veículo, embora sem guardar qualquer comprovativo.

Também admitiram que deveriam ter feito o registo do veículo em nome da sociedade, contudo, não o fizeram por “desleixo” e porque confiaram no vendedor, que o mesmo “era bancário, tinha muito bom aspeto”, referindo que têm “tendência para confiar nas pessoas, erradamente, as pessoas parecem muito bem”.

Mais declararam que, em janeiro de 2018, venderam o veículo ao autor – conforme resulta da fatura junta como documento nº 2 com a petição inicial – e que o negócio era “normal” até a Banco 2... os contactar a dar conta que não conseguia prosseguir com os registos por causa de um arresto. Mais afirmaram que, nessa altura, contactaram o autor a dar conta da situação e que este, até ao momento, não sabia de nada.

Em contraponto, não se produziu qualquer meio de prova capaz de abalar as declarações dos legais representantes da ré e os documentos juntos com a petição inicial.

De facto, apenas o habilitado CC prestou declarações de parte, através das quais esclareceu os fundamentos do arresto decretado sobre vários bens do réu BB, referindo que o seu pai CC foi vítima de burla pelo réu BB, que era bancário, em cerca de meio milhão de euros, pelo que foi requerido o arresto de vários veículos.

Nesta parte as suas declarações vão de encontro ao teor da decisão que decretou o arresto, pelo que foram positivamente valoradas.

No mais, referiu que o réu BB, em junho de 2017, ainda andava no ... (em causa nos autos) e, em 2018, numa ocasião que teve uma reunião, em março/abril de 2018, viu um veículo parecido, não viu a matrícula nem a cara do condutor, mas “certamente era ele”.

Contudo, nesta parte as suas declarações não são corroboradas por qualquer meio de prova e são, aliás, infirmadas pelos documentos de venda do veículo juntos aos autos e mesmo pelas declarações de II que afirmou que a ré despachou o veículo para os Açores, onde o autor reside e onde o mesmo tem circulado livremente.

Cumpre apreciar e decidir.

Uma vez que a recorrente observa suficientemente os ónus que impendem sobre quem impugna a decisão da matéria de facto com base em prova pessoal gravada, procedeu-se à análise crítica dos documentos nºs 1[4], 2[5], 3[6] e 4[7] oferecidos pelo autor com a sua petição inicial e bem assim a certidão extraída do processo nº 2373/20.0T8VNG pendente no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, Comarca do Porto[8] e ouviram-se os depoimentos produzidos na audiência final.

HH, sócio e gerente da sociedade ré A..., Lda. declarou não conhecer o autor, só o conhecendo se for cliente; quanto ao réu BB pensa que é a pessoa que lhes entregou dois veículos, um ... e um Volvo ... e que da sociedade recebeu um veículo, um Volvo ...; fizeram na ocasião dessa transação um documento como é habitual; o ... ficou em armazém e foi vendido em janeiro de 2018, crê; referiu que era habitual não se fazer o registo em nome da sociedade adquirente mas que nesse período já se devia proceder ao registo; o BB era bancário e tinha bom aspeto; a venda em janeiro de 2018 foi para um Sr. dos Açores, crê até que seria um GNR; só quando foram fazer o registo é que verificaram que havia um impedimento ao registo; não tem ideia se a pessoa que adquiriu o veículo recorreu ao crédito; quando foi feito o registo já tinha havido pagamento e contactaram o comprador tranquilizando-o; o comprador não os tem “chateado” muito; tinha a esperança que o assunto se resolveria; o carro foi para os Açores e presume que o comprador o esteja a usar; quando o BB vendeu o veículo não fez qualquer ressalva, tendo a venda sido feita sem ónus ou encargos; desconhece se o veículo foi apreendido; quando iam registar o veículo em nome do comprador é que se aperceberam do obstáculo; o comprador queixou-se da situação e ainda por cima pagou o carro na totalidade; disseram ao comprador que se ele tivesse que vender o carro assumiriam; o negócio com o BB foi feito em dois ou três dias, quatro no máximo; não conheceu o Sr. CC; depois de saber do arresto, seu filho contactou o BB e crê que terá dito que não sabia de nada; decidiram andar para a frente pois estavam seguros já que o negócio deles era anterior ao arresto.

 II, gerente da sociedade A..., Lda., filho da testemunha HH, declarou que conhece o autor e o réu BB por causa de um negócio com um ..., desconhecendo quem era CC e não recordando se estava presente quando foi feito o negócio, tendo mais tarde falado com o comprador do veículo; o ... vem de um negócio que fizeram com o BB, tendo este entregue à sociedade um Volvo ... e um ... e recebido um Volvo ...; inicialmente começou por dizer que nada receberam ou entregaram além dos veículos, referindo depois que a sociedade ainda pagou um valor ao referido BB; não registaram a aquisição do ... em nome da sociedade, não o fizeram por desleixo; na altura fez uma pesquisa por telefone a fim de averiguar da existência de ónus e nada existia; a entrega do ... foi em maio de 2017 e a venda do mesmo foi em janeiro de 2018; pensa que o comprador recorreu ao crédito, tendo sido feita reserva de propriedade sobre o veículo; crê que a sociedade recebeu a totalidade do preço através da financeira; foi a ... despachar o veículo para os Açores; instado para esclarecer se o comprador tem usado o veículo respondeu afirmativamente; não avisaram o comprador da existência de qualquer ónus sobre o veículo; o comprador tem feito a manutenção do veículo, tendo a sociedade vendedora, segundo pensa, pago uma fatura de um serviço feito no período da garantia, pensa que por causa de uma fuga de óleo; desconhece se o comprador tem pago os impostos relativos ao veículo e não tem conhecimento que o veículo tenha sido apreendido, tendo o negócio sido normal do princípio ao fim; só deixou de ser assim quando a Banco 2... comunicou que não podia prosseguir com a transferência de propriedade porque havia um encargo pendente; contactaram o comprador que até esse momento desconhecia essa situação; o comprador fez diligências junto deles para tentar resolver o problema; o BB entregou o ... sem qualquer encargo; referiu que o documento nº 4 é o que elaboram para apresentar na contabilidade.

CC, habilitado nestes autos na qualidade de filho e sucessor do réu CC, declarou que o réu BB, arrogando-se a qualidade de gerente do Banco 3..., convenceu seu pai a entregar-lhe o valor global de cerca de um milhão e meio de euros para colocação em investimentos alegadamente muito lucrativos, importâncias que não veio a devolver, o que levou a que tivesse sido pedido em agosto de 2017 o arresto dos bens do referido BB; não conhece o autor nem a sociedade A..., Lda.; em junho ou julho de 2017, presenciou uma visita do réu BB a seu pai, convencendo este a investir € 48 500,00 numa aplicação e € 49 500,00 noutra aplicação; nessa visita verificou que o réu BB se fazia transportar num ...; também o filho do depoente lhe disse que em julho de 2017 presenciou nova visita ao pai do depoente, verificando que o mesmo se fazia transportar num .... Referiu que um outro veículo apreendido no arresto, um Jaguar, também terá sido vendido para os Açores.

Rememorado o que de essencial resultou da produção da prova pessoal verifica-se que, ao invés do que o autor alegou, o negócio celebrado entre o réu BB e a sociedade A..., Lda. não foi uma compra e venda mas sim um contrato de troca e, fazendo fé no depoimento de II, seria um contrato misto de troca e compra e venda na medida em que este último afirmou que a sociedade A..., Lda. ainda terá entregue ao referido BB um valor que não foi capaz de precisar e isso porque os veículos que este entregou à sociedade tinham um valor superior ao veículo que a sociedade lhe entregou.

Não foi produzida qualquer prova documental da entrega dos dois veículos por parte da sociedade A..., Lda. ao réu BB, nem foi produzida qualquer prova da existência de fluxos financeiros da mesma sociedade para o mesmo réu.

No que respeita ao negócio celebrado com o autor, os depoentes HH e II foram concordes na afirmação de que o autor comprou o veículo de modelo ... objeto destes autos à sociedade A..., Lda. de que são gerentes. No entanto, a nenhum deles foi perguntado por que preço foi celebrado esse negócio, sendo certo que os parcos elementos documentais produzidos sobre essa matéria divergem. De facto, na fatura pretensamente emitida aquando da compra e venda em apreço, datada de 10 de janeiro de 2018, indica-se o preço de € 18 500,00 mas já na proposta de financiamento de parte do preço da mesma compra, datada de 22 de dezembro de 2017, é indicado o preço de € 17 500,00, sendo o valor do financiamento de € 10 000,00.

Contudo, desconhece-se se a proposta de financiamento se veio de facto a concretizar, pois não existe qualquer prova documental que comprove a celebração desse contrato formal.

Não foi produzida qualquer prova do pagamento do preço por parte do autor ou de uma entidade financiadora, nomeadamente, um recibo de pagamento ou extratos bancários comprovativos dos movimentos por que se processou esse alegado pagamento.

Os depoentes HH e II convergiram na afirmação do que o veículo de modelo ... foi despachado para os Açores, local onde o comprador alegadamente reside, presumindo o primeiro que o autor aí utilizará o referido veículo e referindo o segundo que o autor tem feito a manutenção do veículo e que a sociedade A..., Lda. de que é gerente até terá pago uma despesa dessas durante o período da garantia.

CC, de relevante para o objeto destes autos, apenas afirmou ter visto o réu BB usando o veículo ... em junho ou julho de 2017, numa visita de prospeção de capitais que fez a seu pai.

Este último depoente tem interesses divergentes dos outros dois depoentes, pois enquanto os primeiros, na qualidade de gerentes da sociedade vendedora, têm interesse no cancelamento do arresto, este último tem interesse em que esse meio de conservação da garantia patrimonial se mantenha, a despeito do seu exíguo valor face ao montante do crédito garantido.

Finalmente, importa ainda ter em atenção que todos estes negócios se processaram um pouco antes do começo do período suspeito que legalmente precede a declaração de insolvência do réu BB, período em que amiúde se verificam condutas tendentes seja à dissipação do património, seja à sua retirada de circulação a fim de os bens não serem apreendidos para a massa insolvente.

Expostas as notas críticas que precedem, debrucemo-nos agora sobre cada um dos pontos de facto impugnados.

No que respeita ao primeiro ponto de facto, embora a prova produzida não seja incisiva como seria desejável, atentos os depoimentos produzidos pelos dois gerentes da sociedade A..., Lda., conjugados com a fatura emitida por essa sociedade com data de 10 de janeiro de 2018 e ainda com o subsequente registo da aquisição a favor do autor em 19 de janeiro de 2018, afigura-se-nos que apenas pode ser dado como provado que no dia 10 de janeiro de 2018 o autor adquiriu o veículo automóvel da marca

Volkswagen, matrícula ..-II-.. à ré “A..., Lda.”.

De facto, na fatura que titula o negócio consta que o bem faturado foi entregue ao adquirente na data que na mesma está aposta e o dia 19 de janeiro de 2018 é a data em que foi inscrita a aquisição a favor do autor.

Anote-se que este registo, atenta a exigência do trato sucessivo, terá sido com grande probabilidade realizado com base em declaração de venda emitida pelo anterior titular inscrito[9], o réu BB.

Assim, face ao exposto, o ponto 1 dos factos provados passa a ter o seguinte conteúdo:

- No dia 10 de janeiro de 2018, o autor adquiriu o veículo automóvel da marca Volkswagen, matrícula ..-II-.. à ré “A..., Lda.”.

Apreciemos agora a impugnação do ponto 2 dos factos provados.

No que respeita este ponto de facto, as declarações prestadas pelos gerentes da sociedade A..., Lda. não foram suficientemente esclarecedoras nem foram corroboradas por elementos documentais como sejam recibos de pagamentos, comprovativos de transferências bancárias ou extratos de movimentos bancários.

Acresce ainda que nem sequer há a certeza de que o contrato de concessão de crédito se tenha vindo a concretizar, sendo certo que apenas foi junta aos autos uma proposta de financiamento que se refere a um preço inferior em mil euros ao que consta da fatura emitida para titular essa transação e para financiamento da quantia de dez mil euros.

A circunstância de ter sido registada uma reserva de propriedade a favor da entidade financiadora que constava da proposta de concessão de financiamento não é garantia suficiente de que o contrato visado por tal proposta se tenha vindo a celebrar, contrato que é formal, sendo a este propósito o depoimento do gerente II pouco claro quando se refere à comunicação da Banco 2... de que não podia prosseguir com a transferência de propriedade porque havia um encargo pendente.

Na normal contratação a entidade financiadora regista a reserva de propriedade antes da celebração do contrato de financiamento, assegurando-se da efetivação da garantia antes da entrega do capital financiado.

Uma reserva de propriedade de um veículo usado cujo valor é inferior a vinte mil euros, quando existe previamente inscrito o registo de um arresto para garantia do pagamento do montante de um milhão e quatrocentos e cinquenta e cinco mil euros é uma garantia sem consistência, podendo por isso duvidar-se seriamente que o contrato de financiamento se tenha efetivamente celebrado.

Por isso, tudo sopesado, o ponto 2 dos factos provados tem que se julgar não provado.

Dada a resposta negativa ao ponto 2 dos factos provados, em ordem a evitar contradições na decisão da matéria de facto, visto o disposto na alínea b) do nº 3 do artigo 662º do Código de Processo Civil, aplicado por identidade de razão, deve julgar-se não provado o ponto 3 dos factos provados.

Vejamos agora o ponto 4 dos factos provados.

No que respeita este ponto de facto, a dúvida reside, a nosso ver, na data em que se processou a aquisição do veículo.

De facto, no documento nº 4 oferecido pelo autor consta a data de 09 de maio de 2017. Porém, este documento, fazendo fé nas declarações dos gerentes da sociedade A..., Lda. contém dados que não corresponderão à verdade, como seja a venda do veículo ... pelo preço de quinze mil euros.

Por outro lado, não existe qualquer elemento que corrobore esta data, como por exemplo declarações similares quanto ao outro veículo recebido do réu BB, quanto ao veículo entregue pela ré sociedade a este réu, quanto à celebração de contrato de seguro e, sobretudo, quanto ao alegado pagamento que a sociedade ainda terá feito ao mesmo réu.

 Além disso, a testemunha CC depôs convincentemente no sentido de o réu BB ainda ter usado o referido veículo em junho ou julho de 2017, facto por si presenciado.

Neste circunstancialismo probatório, a resposta ao ponto 4 dos factos provados deve passar a ser a seguinte:

- A ré “A..., Lda.” adquiriu a identificada viatura ao réu BB.

E deverá passar para os factos não provados que a aquisição da referida viatura por parte da ré A..., Lda. ocorreu em 09 de maio de 2017.

Apreciemos agora a impugnação do ponto 6 dos factos provados.

No que respeita este ponto de facto, os gerentes da sociedade A..., Lda. não têm qualquer conhecimento direto dos factos pois que o veículo vendido terá sido despachado para os Açores, local de residência do comprador.

O depoente HH limitou-se a dizer que presumia que o autor usasse o veículo, enquanto seu filho fez referência ao pagamento de umas despesas referentes ao veículo, durante o período de garantia do veículo, afirmando ainda que o autor fazia a manutenção do veículo, mas sem dizer por que razão tinha essa convicção.

Não foi produzida qualquer prova relativa ao pagamento de impostos e do prémio de seguro do veículo e bem assim à realização de inspeção periódica ao mesmo veículo.

Neste circunstancialismo probatório, afigura-se-nos que não existe uma base de facto que de acordo com as regras da experiência comum e o que é normal suceder permita inferir a múltipla factualidade contida no ponto 6 dos factos provados, pelo que deve julgar-se não provada a matéria nele contida.

Assim, face ao exposto, a impugnação da decisão da matéria de facto procede parcialmente nos termos precedentemente enunciados.

3.2 Fundamentos de facto exarados na decisão recorrida, com as alterações decorrentes da parcial procedência da impugnação da decisão da matéria de facto e resultantes de documento com força probatória plena

3.1.1 Factos provados


3.1.1.1

No dia 10 de janeiro de 2018, o autor adquiriu o veículo automóvel da marca Volkswagen, matrícula ..-II-.. à ré “A..., Lda.”.

3.1.1.2

A ré “A..., Lda.” adquiriu a identificada viatura ao réu BB.

3.1.1.3

O veículo foi registado, pela primeira vez, na Conservatória do Registo Automóvel, no dia 10/11/2009, passando [a] circular com a matrícula ..-II-...

3.1.1.4

Pela Ap. ..., em 15/09/2015, a aquisição do veículo foi registada a favor do réu BB.

3.1.1.5

Por decisão de 08/09/2017, proferida no processo nº 15705/17.9T8SNT, que correu termos no Juízo Central Cível de Sintra - Juiz 5, foi decretado o arresto sobre o veículo identificado em 1 [3.1.1.1].

3.1.1.6

Em 26/09/2017, foi registado o arresto requerido por CC contra BB.

3.1.1.7

Pela Ap. ..., em 19/01/2018, foi registada a aquisição da propriedade do veículo a favor de “Banco 1..., SA”.

3.1.1.8

Pela ap. ..., em 19/01/2018, foi registada a aquisição do veículo a favor do autor AA e na mesma data, foi inscrita reserva do direito de propriedade sob o nº de ordem 0, a favor do “Banco 1..., S.A.”.

3.1.1.9

CC não promoveu a apreensão do veículo[10].

3.1.2 Factos não provados


3.1.2.1

A data de aquisição do veículo pelo autor à ré sociedade foi em 19 de janeiro de 2018.

3.1.2.2

O autor pagou o preço devido pela aquisição dessa viatura, através de um financiamento obtido junto do “Banco 1..., S.A.”.

3.1.2.3

Para garantia do cumprimento do financiamento concedido ao autor, foi constituída reserva de propriedade do veículo, em favor do Banco mutuante.

3.1.2.4

A aquisição pela ré “A..., Lda.” a BB da identificada viatura ocorreu em 9 de maio de 2017.

3.1.2.5

O autor utiliza o veículo na satisfação das suas necessidades de transporte, cuida da sua manutenção, à vista de todos, sem oposição de ninguém, com a convicção que não lesa os direitos de outrem, ininterruptamente e com exclusão de outrem, desde há mais de 2, 4 e 10 anos, na convicção de que o mesmo lhe pertence.

3.1.2.6

CC não promoveu a apreensão de veículo, porque bem sabia que o mesmo não pertencia a BB.

3.1.2.7

Estes factos causam ao autor estados psíquicos de medo e angústia de perder o veículo e ter de continuar a pagar o seu preço.

3.1.2.8

A esses sentimentos acrescem os de vergonha e humilhação por ter sido arrestado o seu veículo.

3.1.2.9

Desde que teve conhecimento do facto, há mais de um mês, o mal-estar do autor é uma constante.

3.1.2.10

O veículo identificado em 1 dos factos provados [3.1.1.1] tem um valor venal não superior a € 16 000,00.

4. Fundamentos de direito

Da oponibilidade da inscrição do arresto ao direito de propriedade do bem arrestado registado posteriormente a favor de terceiro

A recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida porque, na sua perspetiva, o registo do arresto inscrito sobre o veículo automóvel cuja aquisição do direito de propriedade se acha presentemente inscrita a favor do autor é anterior à aquisição do direito de propriedade a favor deste último pelo que atentas as regras da prioridade registral é oponível ao autor.

Na decisão recorrida, seguindo-se uma orientação jurisprudencial que na noção de terceiros para efeitos de registo apenas releva as transmissões voluntárias[11], sustentou-se, em síntese, que a inscrição do arresto a favor de CC não seria oponível ao autor em virtude de o título de aquisição do seu transmitente ser anterior ao referido arresto[12].

Cumpre apreciar e decidir.

O artigo 29º do decreto-lei nº 54/75 de 12 de fevereiro prescreve que são aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições do registo predial, mas apenas na medida do necessário ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas neste diploma e no respetivo regulamento.

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 6º do Código do Registo Predial, o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes.

“Excetuam-se da parte final do número anterior as inscrições hipotecárias da mesma data, que concorrem entre si na proporção dos respetivos créditos” (artigo 6º, nº 2, do Código do Registo Predial).

Finalmente, de acordo com o previsto no artigo 7º do Código do Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.

No caso dos autos, o autor goza da presunção legal iuris tantum de titularidade do direito de propriedade sobre o veículo automóvel de matrícula ..-II-.. por força da inscrição de aquisição do direito de propriedade a seu favor em 19 de janeiro de 2018, presunção que não foi ilidida.

No entanto, os herdeiros habilitados do réu CC beneficiam do registo do arresto sobre o mesmo veículo e para garantia do pagamento da quantia de um milhão quatrocentos e cinquenta e cinco mil euros, levado a efeito em 26 de setembro de 2017.

Neste contexto, deve ser reconhecido que o autor é titular do direito de propriedade do veículo automóvel de matrícula ..-II-.., direito sobre o qual impende o ónus inscrito em 26 de setembro de 2017, a favor de CC.

Não há qualquer fundamento legal para cancelamento do aludido registo do arresto (vejam-se os artigos 13º e 58º, nº 1, ambos do Código do Registo Predial).

Ainda que se tivesse provado que a ré A..., Lda. adquirira o direito de propriedade do veículo antes do registo do arresto a favor do falecido CC, porque aquela sociedade omitiu o registo dessa aquisição, a mesma não era oponível ao credor que levou a efeito o referido arresto, registando-o prioritariamente.

Na verdade, embora o arresto seja registado sem o concurso da vontade do devedor, a inscrição do arresto funda-se no direito inscrito no registo automóvel a favor do devedor, sendo o credor titular de um direito que onera um veículo do sujeito que vendeu o mesmo veículo à sociedade A..., Lda. Assim, o credor que obteve o registo do arresto a seu favor e a sociedade a quem o veículo foi vendido pelo devedor são terceiros para efeitos de registo, sendo que o registo prioritário a favor do credor sana a eventual ilegitimidade do tradens (artigo 5º, nº 4 do Código do Registo Predial), prevalecendo a aquisição primeiramente registada.

O recurso procede parcialmente, já que a recorrente pugnou pela total improcedência da ação, devendo revogar-se o segmento da sentença em que se determinou o cancelamento do registo do arresto, mantendo-se no mais a decisão recorrida.

As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente e do recorrido em partes iguais, pois que a recorrente sucumbiu parcialmente, enquanto o recorrido, apesar de não ter respondido ao recurso, ficou vencido, sofrendo um prejuízo na sua esfera jurídica, sendo também da sua responsabilidade as custas da ação na proporção de metade, sendo a metade restante a cargo dos réus habilitados como herdeiros de CC, já que o seu antecessor contestou e ficaram parcialmente vencidos (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). 

5. Dispositivo

Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por DD e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida proferida em 22 de fevereiro de 2023, na parte em que determinou o cancelamento da inscrição do arresto sobre o veículo de matrícula ..-II-.., com o número de ordem ..., datada de 26/09/2017, sendo sujeito ativo CC e sujeito passivo BB e para garantia do pagamento de um milhão quatrocentos e cinquenta e cinco mil euros (ponto II do dispositivo), mantendo-se no mais a sentença recorrida.

Custas do recurso a cargo da recorrente e do recorrido, na proporção de metade para cada um, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, sendo as custas da ação a cargo do autor, na proporção de metade e dos herdeiros do réu contestante na mesma proporção.


***

O presente acórdão compõe-se de vinte e duas páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.


Porto, 03 de junho de 2024
Carlos Gil
Ana Paula Amorim
Mendes Coelho
__________________
[1] Segue-se, com alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] Do referido documento resulta que CC faleceu em 06 de julho de 2020.
[3] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 23 de fevereiro de 2023.
[4] Trata-se de uma certidão narrativa emitida pela Oficial de Registos JJ, da Conservatória do Registo Predial e Comercial de Santo Tirso, na sequência de requisição em 14 de fevereiro de 2020 em que se certifica que a propriedade do veículo com a matrícula ..-II-.., marca Volkswagen, foi objeto dos seguintes registos: registo de propriedade com ap. ..., em 10/11/2009, a favor de : I. B... SA ... ... ...; II. Registo de propriedade com ap. ..., em 09/03/2010, a favor de: Banco 4... SA AV ... ... ... LISBOA; III. Registo de propriedade com ap. ..., em 07/02/2014, a favor de: C... SA RUA ..., ... ...; IV. Registo de propriedade com ap. ..., em 24/04/2014, a favor de: KK RUA ..., ... ...; V. Registo de propriedade com ap. ..., em 09/07/2015, a favor de: D... SA ESTRADA NACIONAL ... ... BRAGA; VI. Registo de propriedade com Ap. ..., em 15/09/2015, a favor de: BB ... ... ... PORTO; Registo de propriedade com Ap. ..., em 19/01/2018, a favor de: Banco 1..., S.A. RUA ..., ..., ..., ... ... LISBOA; Registo de propriedade com ap. ..., em 19/01/2018, a favor de: AA RUA ... ... .... Mais se certificou que sobre o referido veículo se encontravam registados e em vigor os seguintes encargos: ENCARGO – ARRESTO N. ORDEM – ... DATA – 26/09/2017 SUJEITO ACTIVO NOME – CC MORADA – RUA ... – ... COD. POSTAL – ... LOCALIDADE – ... SUJEITO PASSIVO NOME – BB MORADA – ... ... COD. POSTAL – ... LOCALIDADE – PORTO MONTANTE - **1 455 000,00 EUR ENTIDADE – TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA PROCESSO – 15705/17.9T8SNT ENCARGO – RESERVA N. ORDEM – 0 DATA – 19/01/2018 SUJEITO ACTIVO NOME – Banco 1..., S.A. MORADA – RUA ..., ..., ..., ... COD. POSTAL ... LOCALIDADE – LISBOA SUJEITO PASSIVO AA RUA ... COD. POSTAL –... LOCALIDADE – ....
[5] Cópia de segunda via de fatura nº ..., com o logotipo “...”, endereçada a AA Rua ..., nº ... ... ..., com data de 10 de janeiro de 2018, sendo o cliente identificado com o nº ..., com o número fiscal de contribuinte ..., referente a veículo de marca Volkswagen, modelo ..., de matrícula ..-II-.., do ano 2009, de cor preta, com o chassis nº ..., usado, a gasolina, ligeiro de passageiros, com 142.298 quilómetros, cilindrada de 1984 cm3, garantia de um ano de comum acordo, pelo valor de € 18 500,00, sem incidência de IVA e com as menções “Regime da margem de lucro – Bens em segunda mão Decreto-Lei nº 199/96, de 18 de Outubro” e de que “Os artigos facturados foram colocados à disposição do adquirente nesta data” e ainda que o motivo da isenção de IVA é o “Regime da margem de lucro – Bens em segunda mão”.
[6] Documento com o logotipo da “Banco 2...”, endereçado por Banco 1..., S.A., para A... LDA, com conhecimento a HH, datado de 22 de dezembro de 2017 sendo o assunto “Pré-Aprovação da Operação de Crédito Nº ...”, com o seguinte conteúdo: Exmo(os) Senhor(es), Remetemos-lhes as condições da pré-Aprovação da seguinte operação, que, desde já, agradecemos que sejam transmitidas ao(s) Proponente(s): Nome: AA Equipamento: Carro Usado de 4 a 8 anos Volkswagen ... DSG PVP Bem/Serviço: 17 500,00 € nº Mensalidades (período de reembolso do crédito): 48 Montante total de crédito: 10 000,00 € Comissão Bancária do Dossier 0,00 € (inclui os impostos legalmente devidos) Montante total imputado ao CLT 12 526,56 € Despesas de legalização: 0,000 € Custo total do Crédito: 2 526,56 € Comissão por processamento de prestação (inclui os impostos legalmente devidos): 3,50 € TAEG 12,1% Imposto de selo de utilização de crédito: 135,00 € Taxa de juro nominal (TAN): 10.382% x Fixa Mensalidade 48* 260,97 € Tipo de Prestação: Constante e postecipadas (O valor da 1ª mensalidade pode ser diferente das restantes, em virtude do ajustamento dos juros devidos em função da data de disponibilização dos fundos mutuados) O imposto de selo de abertura do crédito supra identificado é suportado pelo Banco Garantia(s) LIVRANÇA RESERVA PROPRIEDADE A FAVOR DO Banco 1... Informamos que as condições de pré-aprovação da operação de crédito supra mencionada em cima previstas, são válidas pelo período de 30 (trinta) dias. Relembramos, ainda, que a decisão agora comunicada é uma mera pré-aprovação, baseada na informação transmitida por V.Exas., estando a aprovação definitiva da operação de crédito sujeita a análise e APROVAÇÃO do Banco 1..., SA, após recepção de toda a documentação em baixo descrita. (…) Aproveitamos, ainda, para relembrar que: a) O(s) Cliente(s) deverá(ão) sempre apresentar os originais da documentação exigida para concretização da operação, devendo as cópias ser tiradas com base nos originais; b) O Contrato deverá ser assinado por todos os intervenientes na presença de V.Exas.; c) O(s) Cliente(s) deverá(ão) ser advertidos para colocar a data de assinatura do Contrato em local próprio no mesmo, caso a mesma não coincida com a data de emissão. Por último, agradecemos que informem o cliente que este só deverá assinar o Contrato depois de ter lido atentamente a FIN, e só se considerar que foi totalmente esclarecido de todas as condições comunicadas. Manifestamos a nossa total disponibilidade para prestar qualquer informação adicional que entendam necessária (…)”.
[7] Declaração datada em ... no dia 09 de maio de 2017, seguida de uma assinatura manuscrita em que é legível o nome “BB”, estando apostos à direita destes dizeres outros dizeres manuscritos ilegíveis (será a “picagem” contabilística?), tendo a dita declaração o seguinte conteúdo: “Eu Sr.(a) BB Morador em Rua ... Cp/Localidade ... Porto NIF ... Declaro que vendi a firma A..., LDA, NIF ..., a viatura Marca Volkswagen Modelo ... Matricula ..-II-.. Valor 15000,00 (Quinze mil euros) Eu, como vendedor da viatura acima referenciada declaro que esta livre de qualquer ónus ou encargo e toda a documentação referente à mesma se encontra conforme a lei. A partir desta data, multas ou outras infracções ao código da estrada serão da responsabilidade do actual proprietário. Entrega de documentos: Mod. 2/ Mod. Único; Livrete; Reg. Propriedade/Doc. Único; IPO; IUC; Fot BI/CC”. Anote-se que nesta declaração não se indica o número de quilómetros que o conta-quilómetros do veículo marcava na alegada data de emissão.
[8] Desta certidão extrai-se que a declaração de insolvência de BB foi requerida por CC, de ..., em 18 de março de 2020 e foi declarada em 26 de maio de 2020, tendo transitado em julgado em 16 de junho de 2020.
[9] Afigura-se-nos que a inscrição de aquisição do direito de propriedade do veículo a favor do Banco 1..., SA se deve a mero lapso já que no mesmo dia e sob o nº de ordem 0 é inscrita reserva de propriedade a favor da mesma entidade. Se se tratasse de uma verdadeira aquisição do direito de propriedade a favor da aludida entidade financeira, de quem teria esta entidade adquirido tal direito? Por outro lado, nada foi também referido quanto à existência de uma venda do veículo por parte dessa entidade financiadora ao autor. No entanto, pode também tratar-se de uma cautela face à jurisprudência que tem vindo a ser produzida sobre a validade da cláusula de reserva de propriedade estabelecida a favor da entidade financiadora. Porém, se assim é, muitos dados de facto foram omitidos nestes autos, seja quanto à aquisição da entidade financiadora, seja quanto à própria aquisição por parte do autor. Além disso, este procedimento pode não se conformar com o objeto social da entidade financiadora.
[10] Ao arresto, como é sabido, aplicam-se subsidiariamente as disposições da penhora (artigo 391º, nº 2, do Código de Processo Civil. Ora, a penhora de bens móveis sujeitos a registo é feita em regra com observância do disposto no artigo 768º do Código de Processo Civil e do artigo 168º do Código da Estrada, não havendo qualquer ónus do beneficiário da penhora de requerer a apreensão do bem penhorado ou dos seus documentos. Por isso, salvo melhor opinião, este facto é inócuo.
[11] Crítico relativamente a esta orientação e, com boas razões a nosso ver, leia-se Terceiros para efeitos de registo, da autoria do Sr. Professor Orlando de Carvalho, republicado in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora 2012, páginas 271 a 281 e especialmente nas páginas 280 e 281. Desenvolvidamente veja-se Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 126, páginas 374 a 384 e Ano 127, páginas 19 a 32, destacando-se especialmente as páginas 19 a 22 e 31, segunda conclusão, todas da citada Revista, Ano 127.
[12] No entanto, como já se referiu anteriormente, atentas as regras do trato sucessivo (veja-se o nº 1 do artigo 34º do Código do Registo Predial), não é líquido qual foi o título que serviu de base à inscrição da aquisição do direito de propriedade a favor do autor, pois que o título que tem provém de uma entidade que não tem qualquer inscrição de aquisição do direito de propriedade anterior à aquisição a favor do autor. De todo o modo, por força da alteração da decisão da matéria de facto, não se provou em que data se verificou a aquisição a favor da sociedade ré, causante do direito de propriedade a favor do autor.