EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
REGIME PROVISÓRIO
ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
DIVÓRCIO SEM O CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO
Sumário

I - A perícia constitui um meio de prova que recai, em regra, sobre factos para cuja análise, interpretação e valoração são necessários conhecimentos especiais de que os juízes não dispõem.
II - Requerida a perícia, o juiz verificará se a mesma é impertinente, por não respeitar aos factos da causa; ou, se é dilatória, por, não obstante respeitar aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não estarem em causa conhecimentos especiais que a mesma pressupõe.
III - Não pode ser considerada impertinente a perícia que tem por objeto a emissão de juízo técnico sobre a contabilidade da ré, para esclarecimento de factos alegados na petição inicial, que visam demonstrar a irregularidade das contas aprovadas pela deliberação social cuja anulação é requerida.

Texto Integral

Proc. n.º 5494/23.3T8VNG.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 4

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízes Desembargadores Adjuntos:

João Diogo Rodrigues

Rodrigues Pires

SUMÁRIO:

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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO

AA, intentou ação de Anulação de Deliberações Sociais contra a sociedade A..., Lda., pedindo que sejam declaradas anuladas as deliberações sociais tomadas sob os pontos um e quatro da ordem de trabalhos da assembleia geral realizada em 30 de Maio de 2023, que aprovaram os documentos de prestação de contas nela apresentados e, portanto, as contas nos mesmos consubstanciadas, bem como a proposta de aplicação de resultados, tendo por fundamento:

a. A irregularidade da convocatória (arts. 263º, nº 1 e 58º, nº 1, al. a) do CSC);

b. A violação do direito à informação mínima (arts. 263º, nº 1, 214º, nº 4 e 58º, nº 1, al. c) e nº 4, al. b) do CSC);

c. A aprovação de contas irregulares (art. 69º, nº 2 do CSC);

d. A irregularidade dos documentos de prestação de contas por contrariarem preceitos legais relativos à sua elaboração (art. 69º, nº 1 do CSC);

e. A violação do direito à informação (arts. 214º, nºs 1 e 2 e 58º, nº 1, al. a) do CSC).

Na p.i, a Autora, requereu a produção dos meios de prova que indica, entre os quais a realização de PERÍCIA, nos seguintes termos:

“Requer a realização de perícia colegial tendo por objeto a contabilidade da sociedade aqui Ré, e todos os documentos de suporte dos registos efetuados, declarações fiscais, correspondência, incluindo correspondência eletrónica, ou qualquer outra documentação que os peritos entendam pertinente, para o esclarecimento das seguintes questão de facto:

1. Após a deliberação tomada em assembleia geral de 13 de maio de 2022 (acta nº ...), a sociedade Ré procedeu à elaboração total de novas contas ou à sua reforma em pontos concretos, nos termos do disposto no artigo 68º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais?

2. As irregularidades contabilísticas mencionadas na acta nº ... invocadas como justa causa de destituição do então gerente das Ré, transcritas no artigo 28º desta petição Inicial, reportam-se a que exercícios?

3. Esses movimentos, transcritos no referido artigo 28º desta Petição, a serem efetivamente irregularidade que devessem ser corrigidas no sentido ali expresso, afetariam as contas do exercícios de 2021 e do exercício de 2022 e os resultados de cada um desses exercícios?

4. Em caso afirmativo, em que medida?

5. Tendo em consideração as contas não aprovadas do exercício de 2021 e as contas aprovadas do exercício de 2022, os saldos de abertura deste exercício correspondem aos saldos de encerramento do exercício de 2021?

6. Caso se procedesse à elaboração total de novas contas ou à sua reforma nos pontos concretos que na deliberação de destituição de gerente de 13/06/2022 foram considerados irregularidades contabilísticas, os saldos de encerramento das contas afetadas por tais movimentos considerados irregulares seriam os mesmos?

7. A sociedade Ré, durante o ano de 2022, fez compras a particulares? Em caso afirmativo, a quem e qual o seu valor?

8. Que margem bruta se verificava à data da 13/06/2022?

9. Qual a margem bruta que se verificou entre essa data e o encerramento do exercício?

10. Que concretos fatores se conseguem identificar como razão justificativa de tal margem no segundo semestre de 2022?

11. Qual a margem bruta no sector de atividade e em empresas concorrentes relevantes, no exercício de 2022?

Através da perícia pretende-se fazer a prova dos factos alegados nos artigos 19º a 21º, 24º, 25º, 29, 30º, 64º, 65º, 66º e 68º da Petição.”

Citada a Ré veio contestar, defendendo-se por exceção e por impugnação.

Veio a ser realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, e o tribunal após apreciar a exceção da caducidade, que julgou improcedente, fixou o objeto do processo e selecionou os seguintes temas da prova:

1) Dos elementos e documentos solicitados pela A. à R. em 15/2/2023 e 15/05/2023 e da resposta desta;

2) Da disponibilização aos sócios do relatório de gestão e os documentos de prestação de contas na sede da sociedade e durante as horas de expediente, a partir do dia em que foi expedida a convocação para a assembleia destinada a apreciá-los e do seu conhecimento pela A.;

3) Do certificado legal de contas e suas deficiências;

4) Do relatório de gestão e suas deficiências.

 De seguida proferiu despacho de admissibilidade das provas, tendo recaído o seguinte despacho sobre o requerimento de prova apresentado pela Autora na p.i, referente à prova pericial:

“A prova pericial requerida pela A. quanto aos pontos 1 a 6 extravasa claramente o objeto deste processo e não se mostra relevante para resposta a nenhum dos temas de prova supra enunciados.

De referir que o ponto 1 dos esclarecimentos a prestar pelos senhores peritos versa sobre factos ocorridos depois da assembleia geral de 13 de maio de 2022, portanto irrelevantes para a deliberação tomada nessa mesma assembleia.

Por outro lado, não estamos no âmbito de um inquérito judicial, processo em que eventualmente se poderia justificar o volume de informação pretendido, mas meramente perante a apreciação da validade de deliberações sociais.

Por não se revelar impertinente nem dilatória quanto aos pontos 7 a 11, admito a realização de perícia à contabilidade da R., com vista à prova do ponto 4 dos temas de prova.

A perícia será colegial.

Notifique a R. para se pronunciar quanto ao seu objeto e quanto à nomeação de perito.”

Inconformada a Autora, AA veio interpor recurso daquele despacho que proferido em audiência prévia que quanto ao objeto da perícia, indeferiu que o mesmo tivesse por objeto as questões de facto enunciadas pela Autora nos pontos 1 a 6 do seu requerimento para produção de prova pericial, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1. A indicação dos temas de prova deve prevenir qualquer tipo de excesso na vinculação temática do tribunal.

2. No que toca à definição da causa de pedir e das exceções, o tribunal está vinculado à alegação das partes.

3. O presente processo tem por objeto a invalidade das contas do exercício de 2022, pelas razões que constituem a causa de pedir e que se encontram expressas no próprio pedido formulado.

4. Uma de tais razões integradoras da causa de pedir é a da irregularidade das contas, subsumida à previsão do artigo 69º, nº 2 do CSC.

5. Sobre o despacho que enuncia os temas de prova, não se forma caso julgado formal.

6. Independentemente de quando o seja, o certo é que constatando-se que os temas de prova não abrangem todas as questões necessitadas de prova de que o tribunal tenha que conhecer na sentença, poderão ser eles aditados, ou ampliados, ou modificados.

7. Decorre do disposto no artigo 608º, nº 2 do CPC que na sentença o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.

8. Uma dessas questões é da apreciação da invalidade da deliberação social tomada de aprovação das contas, por estas serem irregulares.

9. Os factos cuja prova se visa com as questões enunciadas sob os nºs 1 a 6 do objeto proposto pela Autora para a perícia, são constitutivos do direito da Recorrente de obter a anulação das contas do exercício de 2022 com base na sua irregularidade que, a verificar-se é causa prevista na lei, de anulação da deliberação (artº 69º, nº 2 do CSC) e que, nos termos expostos, constitui questão da qual o tribunal tem que conhecer.

10. Ao não admitir a perícia para esclarecimento das questões de facto decorrentes de tal causa de pedir, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 5º, nº 1, 608º, nº 2 e 476º, nº 2 do CPC e 69º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais, devendo ser revogado e substituído por outro que, sem prejuízo do oportuno aditamento aos temas de prova do tema que decorre de tal concreto aspeto da causa de pedir, admita a perícia ao objeto proposto pela Recorrente.”

A Ré/recorrida A..., LDA, veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo nos seguintes termos:

“1.ª- O despacho recorrido, acha-se devidamente fundamentado, quer de facto, quer de direito e as questões suscitadas nos pontos 1 a 6 do objeto de perícia requerido pela recorrente não decorrem da causa de pedir da presente causa, nem se acham conexionados com os temas de prova enunciados pelo Tribunal a quo nos pontos 1. A 4..

2.ª- Assim, em termos de direito, não se vê como o despacho recorrido possa ter violado o artigo 5.º, n.º 1 do CPC, já que este preceito trata de factos essenciais que não se enquadra nos temas de prova enunciados pelo Tribunal a quo sob os pontos 1 a 3, nem mesmo com o objeto de litígio, extravasando-o, como bem refere o Tribunal a quo.

3.ª- O despacho recorrido também não violou o disposto no n.º 2, do artigo 608.º do CPC, já que o Tribunal a quo, no despacho saneador que proferiu, identificou o objeto do litígio, bem como os temas de prova, sendo que num e noutros estão presentes todas as questões controvertidas nos presentes autos em homenagem ao princípio do contraditório, não tendo sido subtraída nenhuma questão às partes e em particular à aqui recorrente, aliás a mesma só pretende a invalidade das contas do exercício de 2022.

4.ª- O despacho recorrido cumpriu com o preceito legal inscrito no n.º 2, do artigo 476.º do CPC, porque ordenando a realização da diligência requerida pela recorrente quanto ao seu objeto, apenas indeferiu questões que considerou não só inadmissíveis à luz dos temas da prova que enunciou, como considerou irrelevantes e desnecessárias para a justa composição do pleito.

5.ª- Nem se vê que o despacho recorrido tenha violado o disposto no n.º 2, do artigo 69.º do CSC se tivermos presente o disposto na parte final de tal preceito.

6.ª- Ante o exposto, o despacho recorrido deve-se manter no ordenamento jurídico, porque cumpre com todas as formalidades legais, não padecendo de qualquer vício que obste o conhecimento do mérito da causa.”

O recurso do despacho foi admitido como apelação. admite recurso, o Recorrente tem legitimidade (art. 629º n.º1 do Código de Processo Civil) e está em tempo (art. 638º, n.º 1), admito o recurso ora interposto, o qual é de apelação (art.644º, n.º 2, al. d)), sobe em separado (art. 645º, nº 2) e com efeito meramente devolutivo(art. 647º, nº 1).”

O recurso foi admitido como apelação com subida imediata e em separado, com efeito devolutivo.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a questão a dirimir, delimitada pelas conclusões de recurso, consiste unicamente em aferir o âmbito da perícia requerida pela autora, concretamente se o tribunal deveria ter ordenado a realização da perícia com o objeto que foi proposto pela requerente.

III-FUNDAMENTAÇÃO:

Dão-se aqui por reproduzidos os atos processuais supra mencionados no Relatório.

IV-APLICAÇÃO DO DIREITO:

A presente ação de anulação de deliberações sociais, tem por objeto analisar a validade das deliberações tomadas na Assembleia Geral da sociedade R., realizada no dia 30 de Maio de 2023, tendo em consideração os vícios invocados pela Autora.

Na audiência preliminar em que estiveram representadas ambas as partes, foram enunciados os seguintes Temas da prova:

1) Dos elementos e documentos solicitados pela A. à R. em 15/2/2023 e 15/05/2023 e da resposta desta;

2) Da disponibilização aos sócios do relatório de gestão e os documentos de prestação de contas na sede da sociedade e durante as horas de expediente, a partir do dia em que foi expedida a convocação para a assembleia destinada a apreciá-los e do seu conhecimento pela A.;

3) Do certificado legal de contas e suas deficiências;

4) Do relatório de gestão e suas deficiências.”

O Tribunal a quo, no despacho recorrido, admitiu a prova pericial requerida pela Autora, consistente na realização de perícia à contabilidade da Ré, mas não com a amplitude requerida, uma vez que, admitiu a mesma apenas quanto aos pontos 7 a 11, com vista à prova do ponto 4 dos temas de prova.

Já no que respeita os pontos 1 a 6, foi tal meio de prova indeferido, por se ter entendido que o mesmo “extravasa claramente o objeto deste processo e não se mostra relevante para resposta a nenhum dos temas de prova supra enunciados.”

Acrescentou-se ainda que, “De referir que o ponto 1 dos esclarecimentos a prestar pelos senhores peritos versa sobre factos ocorridos depois da assembleia geral de 13 de maio de 2022, portanto irrelevantes para a deliberação tomada nessa mesma assembleia.

Por outro lado, não estamos no âmbito de um inquérito judicial, processo em que eventualmente se poderia justificar o volume de informação pretendido, mas meramente perante a apreciação da validade de deliberações sociais.”

A Autora recorrente discorda desta limitação que foi imposta ao objeto da perícia.

Alega que a parte excluída visa fazer prova dos seguintes factos alegados na p.i:

“19º-As contas do exercício de 2021 não se encontram aprovadas (cfr. doc. nº 4, ponto “9º Considerações Gerais” e ata nº ... que, sob o doc. 9 se junta e aqui dá por integralmente reproduzida).

20º-A contabilidade obedece ao princípio da continuidade ou da solidariedade dos exercícios, pelo que os saldos de abertura do exercício de 2022 correspondem aos saldos de encerramento das contas de 2021. E os resultados do exercício são a consequência de todos os movimentos que para tal concorrem durante o exercício, considerados tais saldos iniciais.

24º-Não estando aprovadas as contas de 2021 não se encontram aprovados os saldos de encerramento de tal exercício nem, portanto, os saldos de abertura do exercício de 2022.

25º-A não aprovação das contas de 2021 pelos sócios titulares das supra identificadas três quotas representativas de 55% do capital social, teve por fundamento o que esses mesmo sócios identificaram como irregularidades contabilísticas (e até como infrações criminais) que disseram cometidas pelo então gerente BB, com direta implicação nas contas e no resultado do exercício.

29º-A indevida contabilização de faturas ou o perdão indevido de dívida a um cliente, ou a contabilização indevida de gastos, afetam o resultado do exercício e, naturalmente, afetam a regularidade das contas.

30º-A Ré não procedeu à correção das contas, não tendo efetuado qualquer regularização contabilística de qualquer das irregularidades que deliberou terem existido quer durante o exercício de 2021, quer durante o primeiro semestre (até 13 de Junho), do exercício de 2022.

64º-No entanto, não torna clara qual a razão para esse aumento de 40% da margem bruta do negócio relativamente ao ano anterior.

65º-No primeiro semestre de 2022, a margem bruta de lucro era de apenas 0,71%.

66º-Para atingir a margem bruta no final do ano, de 1,4%, a Ré teve que no segundo semestre obter uma margem de lucro bruta excecional, em princípio irrealizável no ramo de atividade em causa, dado que muito superior à margem das empresas concorrentes.

68º-A menos que a Ré tenha feito compras a particulares, por exemplo, o que poderia justificar em parte o aumento desproporcional da margem bruta de lucro.”

Defende que os factos cuja prova se visa com as questões enunciadas sob os nºs 1 a 6 do objeto proposto pela Autora para a perícia, são constitutivos do direito da Recorrente de obter a anulação das contas do exercício de 2022 com base na sua irregularidade que, a verificar-se é causa prevista na lei, de anulação da deliberação (artº 69º, nº 2 do CSC) e que, nos termos expostos, constitui questão da qual o tribunal tem que conhecer.

Vejamos.

A verdade, a proposição e a produção da prova em juízo visam demonstrar a realidade dos factos relevantes para o processo[1], e regras existem, para a balizar, de direito probatório material, de natureza substantiva, a regular a admissibilidade e força probatória, inseridas no Código Civil, e de direito probatório formal, a regular os procedimentos probatórios, e que têm sede no Código de Processo Civil.

O perito surge como intermediário entre a fonte de prova (pessoal ou real) e o tribunal quando, para a plena apreensão da prova, haja necessidade de conhecimentos especializados.

Como refere Luís Filipe Sousa,[2] “O traço definidor da prova pericial é, de facto, o de se chamar ao processo alguém que tem conhecimentos especializados em determinados aspetos de uma ciência ou arte para auxiliar o julgador, facultando-lhe informação sobre máximas de experiência técnica que o julgador não possui e que são relevantes para a perceção e apreciação dos factos controvertidos. Em regra, além de facultar ao julgador o conhecimento dessas máximas de experiencia técnica, o perito veicula a ilação concreta que se justifica no processo, construída a partir de tais máximas de experiência.”

Acontece que, requerida a prova pericial e sujeita a contraditório, cabe ao juiz apreciar a pertinência e o carater dilatório da diligencia requerida.

Com efeito, estabelece o art. 476º do CPC, que:

1 - Se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição.

2 - Incumbe ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respetivo objeto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.

Em face da norma citada, requerida a perícia, o juiz verificará se a mesma:

- é impertinente, por não respeitar aos factos da causa; ou,

- é dilatória, por, não obstante respeitar aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não estarem em causa conhecimentos especiais que a mesma pressupõe.[3]

O juiz verificará se a perícia é impertinente, por não respeitar aos factos da causa; ou, se é dilatória, por, não obstante respeitar aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não estarem em causa conhecimentos especiais que a mesma pressupõe.

Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa,[4] “A perícia é impertinente ou dilatória, quando não respeita a factos condicionantes da decisão final ou porque embora respeite a tais factos, o respetivo apuramento não depende de prova pericial, por não estarem em causa conhecimentos especiais que a mesma pressupõe”.

Por sua vez, o objeto proposto deverá reportar-se a questões de facto para cujo esclarecimento são necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem.

O tribunal deverá emitir sobre a perícia, como relativamente a todas as provas, um juízo, não só de legalidade, mas também de pertinência sobre o objeto: a prova dos factos que se propõe provar.

Por sua vez, tal como resulta do disposto no art.410º do C.P.C., “A instrução tem por objeto os temas da prova enunciados, ou quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova”.

A enunciação dos temas da prova, (art. 596º nº 1do CPC), constitui uma operação de geometria variável, em função da natureza e da complexidade do litígio e também condicionada pela posição assumida pelas partes nos articulados. Podendo assumir um cariz mais genérico ou mais concreto, os temas da prova delimitam o âmbito da atividade instrutória que terá como objeto mediato os factos em que se traduzem ou desdobram e sobre os quais incidirá o juízo probatório, nos termos   do art. 607º nºs 3 e 4.”[5]

O tribunal recorrido, no despacho impugnado, restringiu o objeto da prova pericial, excluindo do objeto do mesmo as seguintes questões, apresentadas pela requerente do meio de prova, que entendeu serem impertinentes por extravasarem o objeto da causa:

1. Após a deliberação tomada em assembleia geral de 13 de maio de 2022 (acta nº ...), a sociedade Ré procedeu à elaboração total de novas contas ou à sua reforma em pontos concretos, nos termos do disposto no artigo 68º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais?

2. As irregularidades contabilísticas mencionadas na acta nº ... invocadas como justa causa de destituição do então gerente das Ré, transcritas no artigo 28º desta petição Inicial, reportam-se a que exercícios?

3. Esses movimentos, transcritos no referido artigo 28º desta Petição, a serem efetivamente irregularidade que devessem ser corrigidas no sentido ali expresso, afetariam as contas do exercícios de 2021 e do exercício de 2022 e os resultados de cada um desses exercícios?

4. Em caso afirmativo, em que medida?

5. Tendo em consideração as contas não aprovadas do exercício de 2021 e as contas aprovadas do exercício de 2022, os saldos de abertura deste exercício correspondem aos saldos de encerramento do exercício de 2021?

6. Caso se procedesse à elaboração total de novas contas ou à sua reforma nos pontos concretos que na deliberação de destituição de gerente de 13/06/2022 foram considerados irregularidades contabilísticas, os saldos de encerramento das contas afetadas por tais movimentos considerados irregulares seriam os mesmos?

A necessidade de prova pericial afere-se, naturalmente, em função dos factos articulados pelas partes em cada concreto processo, sempre que à perceção ou apreciação desses factos sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, isto é, conhecimentos para além da ciência jurídica, sendo, por isso, necessária a cultura especial e a experiência qualificada do perito na matéria em causa.

Ora, com exceção da primeira questão indicada, relativamente á qual concordamos com o despacho recorrido, no sentido em que, pretendendo-se a anulação de deliberação datada de 30.5.2023, não interessam à decisão os atos praticados pela sociedade em data posterior à deliberação impugnada, pelo não se vislumbra qualquer utilidade na diligencia de prova requerida, os demais pontos pretendem esclarecer e demonstrar factualidade oportunamente alegada pela Autora, relativa ao pedido de anulação da deliberação impugnada, na parte em que aprovou as contas relativas ao exercício de 2022, quando o fundamento invocado, é o da irregularidade das contas, subsumida à previsão do artigo 69º, nº 2 do CSC., que dispõe que.

“(…)2 - É igualmente anulável a deliberação que aprove contas em si mesmas irregulares, mas o juiz, em casos de pouca gravidade ou fácil correção, só decretará a anulação se as contas não forem reformadas no prazo que fixar.”

Ora, a análise das contas societárias, constitui matéria de natureza técnica, para cujo esclarecimento são necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem.

Afigura-se-nos também que se trata de matéria com relevo para a decisão da causa, no sentido em que, tal como alega a ora apelante, os factos cuja prova se visa com as questões enunciadas sob os nºs 2 a 6 do objeto proposto pela Autora para a perícia, são constitutivos do direito da Recorrente de obter a anulação das contas do exercício de 2022 com base na invocada “irregularidade” que, a verificar-se é causa prevista na lei, de anulação da deliberação (artº 69º, nº 2 do CSC) e que, nos termos expostos, constitui questão da qual o tribunal tem que conhecer.

Um dos fundamentos invocados para a anulação da deliberação social é o da aprovação de contas irregulares (art. 69º, nº 2 do CSC).

As irregularidades invocadas na causa de pedir respeitam grosso modo a irregularidades cometidas anteriormente, com reflexo nas contas do exercício terminado em 31.12.2022, daí a relevância da perícia requerida, com o objeto indicado, para a discussão da causa.

Também não concordamos com o despacho recorrido, quando sugere que tal meio de prova apenas seria pertinente no âmbito dum “ inquérito judicial, processo em que eventualmente se poderia justificar o volume de informação pretendido, mas meramente perante a apreciação da validade de deliberações sociais.”, porque, como vimos, as questões colocadas mostram-se justificadas em face da causa de pedir.

Pensamos assim que, como exceção do ponto 1, pelos motivos  já adiantados, as razões invocadas pelo Tribunal a quo não podem, validamente, fundamentar a rejeição do objeto proposto à prova pericial, pois que, por um lado, estamos reconhecidamente perante factos que envolvem conhecimentos especializados para a sua compreensão e/ou apreciação e que reclamam, na verdade, conhecimentos técnicos especializados, não acessíveis ao julgador médio, sendo que só os Peritos, após realizar a diligência, se poderá pronunciar sobre o resultado atingido.

Por outro, trata-se de matéria de facto que respeita factos condicionantes da decisão final, atenta a causa de pedir.

Assim, porque o objeto proposto se mostra relevante para a decisão da causa  e a perícia requerida apresenta-se como o meio próprio para a prova dos factos invocados na causa pedir, relativas às irregularidades na contas aprovadas, na deliberação de 30 de Maio de 2023, impugnada nesta ação, impõe-se revogar o despacho recorrido, alargando-se o objeto da perícia requerida pela autora às questões 2 a 6, que foram rejeitadas no despacho sob recurso.

V-DECISÃO:

Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação em jugar parcialmente procedente o recurso e em revogar o despacho recorrido, na parte em que não admitiu a realização de perícia à contabilidade da R., com vista a obter resposta relativamente aos pontos 2 a 6.

Custas pela Recorrida (art. 527º do CPC).


Porto, 4 de junho de 2024.
Alexandra Pelayo
João Diogo Rodrigues
Rodrigues Pires
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[1] Ver Código Civil Anotado, Ana Prata, vol. I, 2017, Almedina, pág 420
[2] In Prova testemunhal, 3º ed., pg 175.
[3] Cfr. Lebre de Freitas I Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, 2017, pp. 325-326.
[4] In CPC anotado, vol I, pg 539.
[5] Mesmo loc, pg. 482.