INSOLVENTE
DESOCUPAÇÃO DA CASA DE HABITAÇÃO DO INSOLVENTE
DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
Sumário

I - É aplicável aos insolventes singulares o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos arts. 864º e 865 do Cód. do Proc. Civil, por força da remissão operada nos arts. 150º, nº 5 do CIRE e 862º do Cód. do Proc. Civil.
II – Se o insolvente não apresenta qualquer prova documental comprovativa da factualidade que alega, a qual envolve, designadamente, o estado de saúde de pessoas que integram o seu agregado familiar, a composição deste e as suas condições económicas e sociais, e também não a junta na sequência de notificação que lhe foi feita para esse fim pelo tribunal, sem que tenha justificado essa omissão, não lhe pode ser concedido o benefício por si requerido de diferimento da desocupação da casa de habitação.

Texto Integral

Proc. nº 606/20.1 T8STS-C.P2

Comarca do Porto – Juízo do Comércio de Santo Tirso – Juiz 1

Apelação

Recorrente: AA

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadoras Maria da Luz Teles Menezes de Seabra e Márcia Portela

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

Em 29.1.2021 a Sr.ª Administradora da Insolvência veio juntar relatório de liquidação do ativo, tendo exposto o seguinte:

“1. Após ter-se procedido ao registo de apreensão [d]a totalidade do imóvel a favor da M.I. irá dar-se início [à] liquidação do mesmo, após a pronúncia do credor hipotecário sobre o valor base e modalidade de venda.

2. Além disso, as chaves do imóvel ainda não foram entregues pela insolvente, pelo que se procedeu à sua notificação para (…) proceder à entrega do imóvel livre de pessoas e bens.”

Em 17.12.2021 o imóvel foi adjudicado ao proponente BB, pela quantia de 109.352,89€, após licitação no âmbito de venda em leilão eletrónico.

Em 11.1.2022 foi determinada a notificação da insolvente para no prazo máximo de 60 dias proceder à entrega do imóvel e respetivas chaves, livre de pessoas e bens.

Em 10.3.2022 a Sr.ª Administradora da Insolvência apresentou a seguinte informação:

“1) Desde o início do Leilão, em que ao 4º dia de abertura as licitações já tinham atingido o valor mínimo fixado para venda, que a insolvente tem conhecimento de que o imóvel seria vendido.

2) Já que a ora signatária no dia 19/11/2021 notificou a insolvente da venda em leilão, tendo-a, também, advertido, de que a venda do imóvel era já inevitável já que ao 4º dia as licitações já tinham atingido o valor mínimo fixado para venda. cfr. doc. 1 e 2

3) Após o encerramento do leilão, a 27/12/2021 notificou-se novamente a insolvente do resultado do leilão, e para no prazo de 60 dias proceder à entrega do imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens. cfr. doc.3 e 4

4) Idêntica notificação foi solicitada ao tribunal, nos relatórios de liquidação de 19/11/2021 (refª 40524032), de 17/12/2021 (refª 40775649) e requerimento de 17/12/2021 (refª 40781228),

5) Tendo o Tribunal notificado a insolvente para esse efeito, pessoalmente e na pessoa da sua I. Mandatária, a 11 de Janeiro de 2022, mas sem qualquer resultado prático.

6) Assim, decorridos que estão 3 meses (só faltam 4 dias) desde o encerramento do leilão, e apos todas as notificações para entrega do imóvel a insolvente não entregou o imóvel,

7) E continua a levar a sua vida sem nunca sequer ter dado qualquer justificação do seu incumprimento na entrega do imóvel.

8) Numa atitude de total desrespeito com o tribunal, com a A.I.,

9) Atuação que lesa gravemente os interesses dos credores e os fins processuais, que coarcta a prossecução regular do processo, nomeadamente o encerramento da liquidação, numa atitude que revela um sentimento de total impunidade.

10) Assim, de modo que seja tomada a posse do imóvel e permitir a sua transmissão livre de pessoas e bens, e a não protelar, mais, a liquidação do activo:

Requer-se a V. Exa., que COM CARÁTER DE URGÊNCIA, se digne autorizar o RECURSO Á FORÇA POLICIAL PARA APREENSÃO COM RECURSO A ARROMBAMENTO do imóvel apreendido - Fracção autónoma designada pela letra “AA”, destinado a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sita na Travessa ..., nº ..., do 3º andar esquerdo, lugar de ..., freguesia ... (...), concelho de Matosinhos, inscrito na matriz predial da união de freguesias ... e Sra. da Hora sob o artº ..., descrito na CRP sob o nº ....

Ou caso V. Exa. assim não entenda,

Desde já se requer se digne V. Exa. ordenar o que tiver por conveniente que permita à ora signatária dar cumprimento á notificação de adjudicação do imóvel (de 17/12/2021) e concretização da transmissão do mesmo livre de pessoas e bens.”

Em 11.3.2022 a insolvente veio requerer que se autorize o diferimento da desocupação do imóvel em causa, pelo prazo mínimo de 90 dias, com as legais consequências, tendo alegado o seguinte nesse sentido:

“1º De acordo com o n.º 1 alín. b) do art.º 863º do NCPC., « A Execução suspende-se se... o executado requerer o diferimento da desocupação do local arrendado para habitação motivada pela cessação do respectivo contrato, nos termos do art.º 864º.»

2º Ora o aludido art.º 864º, no seu n.º 2 indica expressamente os fundamentos que poderão estar na base do referido diferimento:

- Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do executado, o que se presume relativamente ao beneficiário do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;

- Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.

3º Ora, salvo melhor opinião, a requerente preenche todos os fundamentos.

4º Com efeito,

Em primeiro lugar é indiscutível que a desocupação imediata do local causa à requerente um prejuízo muito superior à vantagem conferida à exequente.

5º A requerente vive com a mãe, já bastante idosa e doente, a filha e os netos pequenos,

6º Estando atualmente em desespero com toda a situação.

7º Com efeito, até ao momento não conseguiu a requerente arranjar qualquer habitação, não obstante já tenha feito inúmeros esforços nesse sentido.

8º Com efeito, não obstante a boa vontade da segurança social, facto é que não passa da intenção, não dispondo de qualquer alternativa,

9º Ora, a execução imediata da presente Entrega, colocará inevitavelmente esta família em sérias dificuldades, uma vez que se verão na «rua» sem qualquer lugar onde possam acolher-se.

10º Por outro lado, não tem a requerente qualquer capacidade financeira que lhe permita alojar-se provisoriamente em qualquer estabelecimento dessa natureza,

11º Pelo que o resultado neste momento é a «rua»!

12º Ora, tendo em conta a situação Pandémica em que se encontra o nosso País e o Mundo,

13º Tendo em conta que a mãe idosa, ainda está a recuperar da infecção por Covid19,

14º É por demais evidente que o ato de entrega do imóvel é susceptível de causar prejuízo à subsistência da executada, que vive, como se referiu com a mãe idosa e doente, a filha e netos pequenos, sendo certo que a suspensão da prática do referido acto não causa prejuízo grave à subsistência dos credores nem um prejuízo irreparável.

15º Com efeito,

A insolvente encontra-se a passar muitas dificuldades.

16º Com uma idosa doente e 2 menores a cargo,

17º Correndo esta família mesmo risco de subsistência.

18º Vivendo da ajuda de amigos e família.

19º Como se conclui, foi efetivamente por falta de meios financeiros, e pela sua vida, nos últimos anos ter vindo consideravelmente a piorar, que a executada não conseguiu cumprir com as suas obrigações.

20º Acresce que a insolvente se encontra doente, com uma Depressão,

21º Tendo crises constantes que são despoletadas em períodos de maior nervosismo ou excitação.

22º Na verdade, a existência do presente processo, originou muita ansiedade, preocupação e movimentação,

23º Sentida pela aqui requerente,

24º Ficando a mesma muito alterada, ao saber que vai ser despejada.

25º Encontrando-se numa verdadeira luta contra o tempo.

26º Esta situação de angústia e desespero originou a que a requerente tivesse novas crises,

27º Estando neste momento sob medicação mais forte.

28º E a idosa verdadeiramente aflita, pois infelizmente, embora a filha a tente poupar ao máximo, ela vai-se apercebendo.

29º Principalmente por este motivo, necessita imperiosamente a requerente de mais algum tempo para conseguir arranjar uma habitação, para o que necessitará de um período mínimo de 90 dias.

30º Permitindo à mesma, fazer uma transição com um pouco mais de tranquilidade,

31º Que é a única forma de salvaguardar a pouca saúde da mesma.

32º É evidente que nestas circunstâncias a desocupação imediata, como se começou por dizer, causa à requerente um prejuízo muito superior à vantagem que os credores terão com a casa entregue livre de pessoas e bens.

33º O facto da casa lhes vir a ser entregue um pouco mais tarde que «no imediato» ainda que possa significar um prejuízo para os credores,

34º É um prejuízo que em muito é ultrapassado pelo da ora requerente, com o despejo imediato.

35º O propósito da requerente não é adiar o inevitável,

36º Nem tão pouco entorpecer o processo,

37º Até porque está de boa-fé,

38º Todavia, não possui a requerente, como já se referiu, imediatamente outra habitação;

39º Tem um agregado constituído pela própria, mãe idosa bastante doente, filha e dois netos pequenos,

40º Dispondo de uma condição financeira precária.

41º Desta forma, entende-se estarem preenchidos todos os requisitos constantes do art.º 864º do N.C.P.C., o qual deve ser aplicado à situação em apreço.”

Arrolou duas testemunhas, a apresentar.

Em 7.4.2022 foi proferido o seguinte despacho judicial:

“Resulta dos autos que o imóvel vendido é casa de morada de família da insolvente.

Assim, nos termos do artigo 6º-E/7/b) da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 13-B/2021, de 05 de abril, encontram-se ainda suspensos os atos a realizar em sede de processo de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.

Assim, neste momento, por imperativo legislativo, está o tribunal impedido de determinar a entrega do imóvel ao adquirente.

Notifique.


*

O incidente previsto no artigo 150º/5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não é aplicável enquanto se mantiver a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19, como se prevê no nº 1, do artigo 6-E da Lei nº 1-A/2020, sendo antes aplicável a suspensão da entrega da casa de morada de família tal como previsto na alínea b) do nº 7 do citado artigo 6-E – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.09.2021, disponível in WWW.dgsi.pt.

Notifique.

(…)”

No dia 20.12.2022 foi proferido o seguinte despacho judicial:

“Face à cessação das medidas de combate à pandemia da doença COVID-19, decretada pelo Dec. Lei nº 66-A/2022, de 30 de setembro, concede-se à insolvente o prazo de 30 [trinta] dias para entregar o imóvel.

Desde já e caso não seja entregue o imóvel voluntariamente, nos termos do disposto no artº 757º, nº 4, do C. P. Civil, aplicável ex vi do disposto no artº 17º, nº 1, do CIRE, autoriza-se a requisição do auxílio da força pública, procedendo-se à apreensão do imóvel, após certificação que se trata do local, com arrombamento de portas, se necessário.

Notifique.”

Em 23.1.2023 a insolvente veio requerer que continue suspensa a entrega do imóvel onde habita o seu agregado familiar.

Em 15.2.2023 a Mmª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho:

“Na senda do despacho proferido aos 20-12-2022, entendemos efetivamente que, como exposto pelo(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência, “as normas do art.º 6.º- E são normas temporárias, para vigorar enquanto se mantiver a “situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”. As normas temporárias não carecem de revogação expressa.

Conforme referiu Oliveira Ascenção, (O Direito Introdução e Teoria Geral, Gulbenkian, 2.ª edição, pág. 258), podemos dizer que a caducidade se dá quando a lei previr um facto que leve à cessação da sua vigência. Esse facto pode ser meramente cronológico, ou de outra ordem. É exemplo desta última situação, “o caso da lei estabelecida para condições especiais resultantes de certa epidemia. Também aqui o termo da lei é nela previsto.”

Deste modo, entendemos também que a norma do artº 6º-E, nº 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei nº 13-B/2021, de 5 de abril, caducou por força da cessação da situação de alerta, com a consequente cessação da situação de suspensão aí prevista.

Destarte, indeferindo-se o requerido pela insolvente aos 23-01-2023, concede-se um prazo adicional de 20 [vinte] dias para proceder à desocupação total do imóvel em causa e à entrega das chaves.”

A insolvente veio interpor recurso deste despacho, sendo que por decisão sumária da Relação do Porto datada de 25.7.2023 a instância recursiva foi julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, em virtude da entrada em vigor da Lei nº 31/2023, de 4.7.

Em 21.9.2023 a Sr.ª Administradora da Insolvência veio expor e requerer o seguinte:

“1) Como resulta dos autos, o único bem apreendido, foi colocado em venda em leilão electrónico que decorreu entre 15/11/2021 e 14/12/2021- REFª- LO853282021 – com um valor mínimo de aceitação de propostas de 54.194.00€ encerrou com licitações muito superiores a este valor - a melhor licitação foi de 109.352.89€.

2) Ou seja, uma licitação superior em mais de 100% ao valor mínimo fixado, tendo em conta que o imóvel ainda se encontra ocupado pela insolvente e familiares, facto este de que foi dado conhecimento quer no anúncio do leilão, quer a todos os interessados que visitaram o imóvel.

3) Contudo, face à resistência da insolvente em entregar o imóvel livre e devoluto de pessoas e bens, com base na legislação excecional que vigorou na sequência do COVID-19,

4) Até esta data, o imóvel continua na posse da insolvente que ali permanece a habitar.

5) Contudo, na sequência da decisão proferida pelo tribunal da Relação do Porto sobre o último recurso interposto pela insolvente resulta que a lei excepcional invocada pela insolvente para permanecer a habitar no imóvel foi revogada com efeitos a partir de 03 de Agosto de 2023 como se lê no próprio acórdão.

6) Assim, o prazo agora fixado - 45 dias- para concretizar a venda do imóvel - é manifestamente insuficiente, tendo em conta que:

a) O imóvel poderá de ter de ser colocado novamente em venda em leilão eletrónico, caso o licitante do 1º leilão já não esteja interessado em concretizar a proposta de aquisição.

b) Para isso, irá proceder-se á notificação do licitante para que no prazo de 10 dias informe se mantêm ou não interesse na aquisição do imóvel pelo preço da sua licitação.

c) Caso manifeste desistência da sua proposta então o imóvel será recolocado em venda.

d) Além disso, procedeu-se nesta data à notificação da insolvente para que, no prazo de 15 dias a contar da recepção da notificação, proceda á entrega das chaves e do imóvel, devoluto, de pessoas e bens. - doc.1

7) A antiguidade do processo e a falta de concretização a venda do único bem apreendido não se devem á falta de diligência na desocupação e colocação em venda do imóvel, como resulta documentado nos autos.

Pelo que,

FACE AO EXPOSTO, SE REQUER A V. EXA.:

1º) Se digne ordenar a notificação da insolvente para que, no cumprimento dos seus deveres de colaboração, proceda à entrega do imóvel, livre e desocupado de pessoas e bens no prazo de 15 (quinze) dias a contar da notificação, de modo a salvaguardar os direitos da insolvente, mas também a não lesar os direitos dos credores nem dos licitantes/proponentes nas suas legítimas expetativas.

2º) Além disso, de modo a que seja tomada posse do imóvel e o mesmo seja colocado em venda livre de pessoas e bens, e a não protelar, mais, a liquidação do activo do insolvente, requer-se a V. Exa., se digne autorizar o RECURSO Á FORÇA POLICIAL PARA APREENSÃO COM RECURSO A ARROMBAMENTO do imóvel apreendido - Fracção autónoma designada pela letra “AA”, destinado a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sita na Travessa ..., nº ..., do 3º andar esquerdo, lugar de ..., freguesia ... (...), concelho de Matosinhos, inscrito na matriz predial da união de freguesias ... e Sra. da Hora sob o artº ..., descrito na CRP sob o nº ....”

Em 26.9.2023 a Mmª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho:

“Face ao exposto pelo(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência, não tendo ainda sido entregue o imóvel, notifique-se a insolvente para, no prazo de 15 [quinze] dias, proceder à entrega do imóvel, livre e desocupado de pessoas e bens.

Desde já e caso não seja entregue o imóvel voluntariamente, nos termos do disposto no artº 757º, nº 4, do C. P. Civil, aplicável ex vi do disposto no artº 17º, nº 1, do CIRE, autoriza-se a requisição do auxílio da força pública, procedendo-se à apreensão do imóvel, após certificação que se trata do local, com arrombamento de portas, se necessário.

Prorroga-se o prazo para concretização da venda em 60 [sessenta] dias.

Notifique.”

Em 11.10.2023 a insolvente apresentou o seguinte requerimento:

“Por requerimento de 11.03.2022, a insolvente requereu o competente Diferimento da Desocupação do locado, tendo em conta que o imóvel em causa é casa de morada de família onde habita não só a insolvente, como a sua mãe com mais de 90 anos e doente, bem como filha e netos.

Por douto Despacho de 07 de Abril de 2022, foi suspensa a entrega do locado nos termos da alin. b) do n.º7 do art.º 6ºE da Lei 1-A/2020, todavia nunca foi analisado o aludido requerimento de Diferimento.

Ora, a realidade é que, de acordo com o art.º 150 n.º 5 do CIRE …« À desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil.»

A verdade é que todos os pressupostos e circunstâncias fáticas descritas no requerimento de diferimento de desocupação do locado oportunamente apresentado, se mantém, saindo ainda reforçadas, uma vez que a mãe da insolvente se encontra acamada.

Assim, e reiterando o teor do aludido requerimento de diferimento de desocupação do locado, requer-se muito respeitosamente a V. Exa. se digne autorizar o mesmo, pelo menos por 60 dias, permitindo que esta família possa fazer a transição de forma a preservar a saúde e dignidade do agregado.”

Em 16.10.2023 foi proferido o seguinte despacho judicial:

“Face ao alegado há mais de 1 ano e ao exposto no requerimento em epígrafe, por a factualidade apenas por prova documental pode ser dada como provada, notifique-se a insolvente para, no prazo de 10 [dez] dias, juntar atestado da junta de freguesia a comprovar a composição do agregado familiar que reside no imóvel, certidões de nascimento de todos os membros do agregado e atestado médico a comprovar o alegado estado de saúde da progenitora.”

Em 26.10.2023 a Sr.ª Administradora da Insolvência apresentou o seguinte requerimento:

“1. Que em complemento aos documentos mencionados no douto despacho de 16.10.2023 se notifique a insolvente para, no mesmo prazo que consta do douto despacho juntar, ainda:

a) Comprovativo de morada fiscal de cada um dos elementos que menciona no requerimento de 11/10/2023 como fazendo parte do seu agregado familiar.

b) Que venha informar os autos se é a única descendente (filha) da sua progenitora e caso existam outros descendentes da sua progenitora, deverá informar os autos do(s) nome(s) e moradas de cada um deles.”

Em 7.11.2023 a Mmª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho:

“Concede-se um novo prazo de 10 [dez] dias, tendo ainda de serem remetidos os documentos e elementos requeridos pelo(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência - requerimento com refª 46941118 -, sob pena de indeferimento do pedido formulado.”

Em 23.11.2023 a insolvente veio requerer a prorrogação do prazo por período não inferior a cinco dias, para que possa reunir os documentos em falta.

Em 5.2.2024 a Sr.ª Administradora da Insolvência apresentou o seguinte requerimento:

“Até ao momento, a insolvente não facultou à A.I. nenhum dos documentos/informações em falta.

Face ao exposto e pelos motivos que resultam dos próprios autos, requer-se a V. Exa. se digne ordenar a notificação da insolvente para que proceda à entrega imediata do imóvel, livre de pessoas e bens, uma vez que sobre o seu requerimento de 11/10/2023 na qual requereu um prazo de 60 dias para entrega do imóvel, completam-se a 11/02/2024 120 dias, num arrastar indefinido da situação desde 2020.”

Em 21.2.2024 a Mmª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho:

“Aos 11-10-2023, a insolvente veio expor que, por requerimento de 11-03-2022, requereu o diferimento da desocupação do locado, tendo em conta que o imóvel em causa é a sua casa de morada de família, mas também da sua mãe, com mais de 90 anos e doente, filha e netos.

Expôs que por despacho de 07-04-2022, foi suspensa a entrega do locado nos termos da alínea b) do nº 7 do artº 6º- E da Lei 1-A/2020.

Renovou o pedido de diferimento da desocupação do locado, arguindo que a situação exposta em março de 2022 se mantém e solicitando um prazo de 60 dias para entrega do imóvel.

Aos 16-10-2023, foi proferido o seguinte despacho:

“Face ao alegado há mais de 1 ano e ao exposto no requerimento em epígrafe, por a factualidade apenas por prova documental pode ser dada como provada, notifique-se a insolvente para, no prazo de 10 [dez] dias, juntar atestado da junta de freguesia a comprovar a composição do agregado familiar que reside no imóvel, certidões de nascimento de todos os membros do agregado e atestado médico a comprovar o alegado estado de saúde da progenitora.”

O(A) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência veio requerer ainda junção dos seguintes documentos:

“a) Comprovativo de morada fiscal de cada um dos elementos que menciona no requerimento de 11/10/2023 como fazendo parte do seu agregado familiar.

b) Que venha informar os autos se é a única descendente (filha) da sua progenitora e caso existam outros descendentes da sua progenitora, deverá informar os autos do(s) nome(s) e moradas de cada um deles.”

A insolvente veio pedir a prorrogação do prazo, tendo, por despacho proferido aos 07-11-2023, sido concedido um novo prazo de 10 [dez] dias, com a cominação de serem remetidos os documentos e elementos requeridos pelo(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência, sob pena de indeferimento do pedido formulado.

Até ao momento, e decorrido mais de 120 dias da renovação do pedido de diferimento da desocupação, a insolvente nada juntou, pelo que se impõe retirar a consequência anunciada no despacho proferido aos 07-11-2023 e indeferir liminarmente tal pedido.

Assim, face à postura da insolvente, indeferindo-se o pedido de desocupação, terá de entregar o mesmo ao(à) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência no prazo de 15 [quinze] dias, livre e desocupado de pessoas e bens.

Desde já e caso não seja entregue o imóvel voluntariamente, nos termos do disposto no artº 757º, nº 4, do C. P. Civil, aplicável ex vi do disposto no artº 17º, nº 1, do CIRE, autoriza-se a requisição do auxílio da força pública, procedendo-se à apreensão do imóvel, após certificação que se trata do local, com arrombamento de portas, se necessário.

Notifique.”

Em 11.3.2024 a insolvente, inconformada com este despacho, dele veio interpor recurso tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

I - O Douto Despacho não faz a correcta aplicação do direito aos factos.

II - O art. 15º-N n.º 1 NRAU permite ao arrendatário, no caso de despejo de imóvel arrendado para habitação, diferir a desocupação por razões sociais imperiosas, devendo, nomeadamente, ponderar-se a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas (nº 2 do art. 15º-N NRAU).

III - Ora, vivendo a insolvente, entre outros, com a sua mãe, doente acamada, e atravessando a mesma atualmente dificuldades económicas, a verdade é que a execução imediata da presente Entrega, colocará inevitavelmente a aqui insolvente e agregado familiar em sérias dificuldades, uma vez que se verão na «rua» sem qualquer lugar onde possa acolher-se, tendo sido efetivamente por falta de meios financeiros, e pela sua vida, nos últimos anos ter vindo consideravelmente a piorar, que a insolvente se atrasou no pagamento das prestações.

IV - Tal como já se referiu oportunamente, não tem a requerente e agregado composto não só pela mãe doente, filha e netos pequenos, qualquer capacidade financeira que lhe permita alojar-se provisoriamente em qualquer estabelecimento dessa natureza, ao que acresce o seu próprio estado de saúde débil, visto que a mesma tem várias crises de asma.

V - Neste contexto factual nenhumas dúvidas temos em dar por verificados os requisitos a que alude o nº 2 do artigo 864º do CPC, sendo que nada emerge da matéria de facto que permita concluir que a requerente está de algum modo a agir em violação dos princípios que balizam as relações entre um senhorio proprietário do locado objeto de resolução contratual por falta de pagamento de rendas e locatários que usando de artifícios substantivos ou processuais tenha como única finalidade retardar a entrega do locado, violando assim o direito de propriedade dos requeridos que merece acolhimento constitucional – artigo 62º da CRP; artigos 1305º e 1311º do CC.

VI - Neste confronto entre a compressão do direito de propriedade que afeta o proprietário do locado, e o direito dos arrendatários a terem uma habitação digna – artigo 65º da CRP – o legislador optou pela criação já em 2006 – Lei nº 6/2006, de 27.2 – de um quadro jurídico que embora comprima o direito de propriedade, acaba por conferir aos arrendatários carenciados uma moratória máxima de 10 meses, contados a partir do trânsito em julgado do incidente de diferimento da desocupação – nº 5 do artigo 930ºD do CPC – para que encontre uma solução habitacional, assumindo o Estado – que somos todos nós – o pagamento das rendas reportadas ao período do diferimento, solução que não tem outra finalidade que não a de mitigar os prejuízos que o senhorio tem por via do diferimento da desocupação e de não «atirar» para o meio da rua uma pessoa que vive da ajuda do Estado, e que afeta parte desse parco rendimento ao tratamento das suas maleitas.

VII - Que a requerente e família não pode sem mais ir para a rua é uma realidade, que o senhorio tem direito à devolução do locado é inquestionável, então que mecanismos é que nos habilita a lei na fixação do prazo de desocupação que pode ir até 6 meses?

VIII - Deve também refletir-se enquanto modulador de um prazo de diferimento de desocupação, o facto da requerente não estar a viver uma situação nova ou que de algum modo os tenham apanhado de surpresa, na medida em está demonstrado que deixou de pagar há algum tempo, o que já sucedia por não ter meios financeiros que lhe permitissem proceder ao seu pagamento, o que levaria, inevitavelmente, a verem-se mais dia menos dia despejados do locado, impondo-se no ínterim a busca de uma solução habitacional que lhe permitisse entregar o locado ao menos após a prolação de sentença que resolvesse o contrato de arrendamento com o fundamento na falta de pagamento de renda.

IX - Todos e neste particular o requerido deve dar uma resposta humanizada, mas tal resposta não pode desresponsabilizar quer a requerente, quer os familiares mais próximos, se os houvesse, quer o Estado ou a Autarquia Local na procura de uma solução habitacional que satisfaça as necessidades do requerente.

X - Por tal motivo, entendemos que o prazo de 90 dias requerido para resolver a sua questão habitacional é justo e adequado à sua situação.

XI - Com efeito, a requerente tem o dever de procurar uma solução, cabendo ao senhorio, contribuir para a resolução de um problema de cariz social e humanitário e que passa por esperar pelo decurso do prazo de diferimento de 90 dias para que veja a sua propriedade de volta.

XII - Ora, o mercado imobiliário atualmente está impossível, com rendas muito inflacionadas, estando em causa a satisfação do comando constitucional de a todos assegurar o direito a uma habitação (art. 65º da CRP).

XIII - De facto, ponderando os prejuízos com o protelamento da situação até ao prazo requerido para diferimento, o prejuízo da requerente com a entrega imediata, superará em muito o do Proprietário, e assim estar-se-á a dar cumprimento aquele desígnio constitucional.

XIV - A recorrente, cumpriu todas as formalidades: alegou de forma pormenorizada e concisa os fundamentos plasmados no nº 2 do artigo 864º do CPC, que preenche na totalidade e arrolou testemunhas.

XV - Pelas razões alegadas, se a desocupação suceder, a aqui recorrente cairá numa dessas situações, uma vez que, entre outras coisas, carece de rendimentos, não tendo ninguém que a possa auxiliar.

XVI - Perante todo o cenário desolador do ponto de vista económico e social que ficou descrito nas alegações, está de todo justificado o diferimento da entrega do local em causa.

XVII - Tal diferimento deverá ser por um período não inferior a 90 dias, para se dar oportunidade à requerente de encontrar uma nova habitação e refazer a sua vida, sem o risco máxime de cair na desgraça.

XVIII - Tal diferimento, não afeta o direito fundamental à habitação do proprietário, na medida em que este não carece da habitação para sua residência.

XIX - O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto no art.º 864º n.º2 CPC e 65º CRP.

Nestes Termos, deve ser dado provimento ao recurso e revogado o douto despacho recorrido.

Não foi apresentada resposta.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

Cumpre então apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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A questão a decidir é a seguinte:

Apurar se a decisão recorrida que indeferiu o pedido de diferimento da desocupação do imóvel habitado pela insolvente foi acertada.


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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do antecedente relatório.

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Passemos à apreciação de mérito.

1. A insolvente, em via recursiva, insurge-se contra a decisão recorrida que indeferiu o pedido que formulou no sentido do diferimento da desocupação do imóvel onde habita, entendendo que esse diferimento lhe deveria ser concedido por período não inferior a 90 dias.

Vejamos então se lhe assiste razão.

2. Uma vez proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que tenham sido arrestados, penhorados, apreendidos, detidos ou objeto de cessão aos credores, excetuados os que tenham sido apreendidos por virtude de infração de caráter criminal ou de mera ordenação social – cfr. art. 149º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE). 

Por regra, os bens devem ser imediatamente entregues ao administrador da insolvência, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados – cfr. art. 150º, nº 1 do CIRE. 

Sem prejuízo da apreensão, o nº 5 do art. 150º do CIRE estatui que “à desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862º do Código de Processo Civil”.

Dispõe-se neste preceito que “à execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições anteriores do presente título, com as alterações constantes dos artigos 863º a 866º”.

Desta norma, bem como da epígrafe do art. 864º[1] e da redação do seu nº 1, resulta que o procedimento de diferimento da desocupação se refere a situações de arrendamento para habitação. Com efeito, nesse nº 1 estabelece-se que “no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três”.

Contudo, ao remeter para este procedimento, através do nº 5 do art. 150º atrás citado, o CIRE não está a pressupor a existência de um contrato de arrendamento, mas simplesmente a determinar que, com as devidas adaptações, se deve seguir aquele regime, numa perspetiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo ao insolvente, tal como se permite, no processo executivo para entrega de coisa certa, ao arrendatário habitacional, usar de um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação, tendo designadamente em vista manter as condições de habitação enquanto o necessitado, num prazo definido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, mediante a verificação de requisitos legalmente estabelecidos (como sejam os dos nºs 1 e 2 do art. 864º), procura novo espaço habitacional.

Trata-se pois de uma manifestação de salvaguarda de direitos fundamentais de ordem social e familiar (o direito à habitação – art. 65º da Constituição da República), à semelhança do que o CIRE, por exemplo, prevê quanto ao denominado “rendimento de exclusão” no instituto da exoneração do passivo restante, sob o art. 239º, nº 3, ou o processo executivo sob o art. 738º, pela impenhorabilidade de determinados rendimentos como forma de garantir o mínimo indispensável à satisfação das necessidades básicas do devedor e da sua família.

Quis assim o legislador do CIRE que, no essencial, o insolvente – presumivelmente, numa situação de maior gravidade do que a do executado – beneficiasse dos direitos concedidos aos inquilinos de habitação nos termos dos arts. 863º a 866º do Cód. do Proc. Civil por remissão do art. 862º do mesmo diploma – cfr. Ac. da Rel. do Porto de 14.6.2016, proc. 277/14.4TBMCN-E.P1, disponível in www.dgsi.pt..

Por conseguinte, há a concluir ser aplicável aos insolventes singulares o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos arts. 864º e 865 do Cód. do Proc. Civil (neste sentido, cfr. também o Ac. da Rel. de Guimarães de 15.5.2014, proc. 327/12.9TBPVL-G.G1, disponível in www.dgsi.pt.).

3. O insolvente, proprietário de casa de habitação apreendida para a massa insolvente, pode assim requerer o diferimento da desocupação dessa habitação, por razões sociais imperiosas, com um dos seguintes fundamentos: carência de meios (que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima garantida, ou de rendimento social de inserção) ou se for portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% - cfr. art. 864º, nº 2, als. a) e b) do Cód. do Proc. Civil.

Na apreciação que faça do pedido deve o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância do insolvente não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas – cfr. art. 864º, nº 2, 1ª parte, do Cód. do Proc. Civil.

4. Retornando ao caso dos autos verifica-se que a insolvente no seu requerimento de 11.3.2022, que depois renovou em 11.10.2023, alegou que vive com a mãe, bastante idosa e doente, com a filha e os netos pequenos, não tendo conseguido, apesar dos esforços que tem desenvolvido, arranjar qualquer habitação.

Alegou também a insolvente que vive da ajuda de amigos e da família e que ela própria se encontra doente, com uma depressão, tendo crises constantes que são desencadeadas em períodos de maior nervosismo ou excitação e que impõem mais medicação.

Contudo, não juntou qualquer documentação comprovativa, limitando-se a indicar duas testemunhas a apresentar.

Em 11.10.2023 alegou ainda que a sua mãe se encontra doente e acamada, mas uma vez mais não apresentou qualquer documentação que o comprovasse.

Por esse motivo, a Mmª Juíza “a quo”, em 16.10.2023, assinalando que a factualidade alegada carece de ser provada documentalmente, ordenou a notificação da insolvente para juntar aos autos, em 10 dias:

- Atestado da junta de freguesia a comprovar a composição do agregado familiar que reside no imóvel;

- Certidões de nascimento de todos os membros do agregado;

- Atestado médico a comprovar o estado de saúde da progenitora.

E depois, em 7.11.2023, na sequência de requerimento apresentado pela Sr.ª Administradora da Insolvência, a Mmª Juíza “a quo” veio conceder à insolvente um novo prazo de 10 dias para juntar aos autos, para além destes documentos, ainda os seguintes:

- Comprovativo de morada fiscal de cada um dos elementos que menciona no requerimento de 11.10.2023 como fazendo parte do seu agregado familiar;

- Informação sobre se a insolvente é a única descendente (filha) da sua progenitora e caso existam outros descendentes da sua progenitora, informação sobre os nomes e moradas de cada um deles.

Acrescentou a Mmª Juíza “a quo”, neste despacho, que a não junção destes documentos importaria o indeferimento do pedido formulado.

Acontece que nenhuma documentação foi junta pela insolvente e, por esse motivo, em 21.2.2024 foi proferido despacho que indeferiu o pedido que formulara no sentido do diferimento da desocupação do imóvel dos autos.

Não se nos afigura que a decisão recorrida possa merecer censura.

Com efeito, não se pode ignorar que, exigindo o essencial da factualidade alegada pela insolvente nos seus requerimentos de 11.3.2022 e de 11.10.2023 a apresentação de prova documental que a comprovasse, esta nada juntou aos autos.

Nem um único documento!…E isto apesar do tempo que teve para proceder a essa junção e de estar advertida de que da sua inércia resultaria o indeferimento da pretensão que formulara.

Acresce que as razões de saúde que invocou, relativas a si própria no requerimento de 11.3.2022 (quadro depressivo) e à sua mãe no requerimento de 11.10.2023 (doente e acamada), sem a mínima concretização da respetiva situação médica, são vagas e difusas e não merecem, por essa vacuidade e pela ausência da correspondente prova, que o tribunal lhes confira seriedade.

5. A insolvente, nas suas alegações, alude ainda ao art. 65º da Constituição da República, onde se estabelece que «[t]odos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.»

Ora, não se nos afigura que a decisão de, neste caso, indeferir o pedido de diferimento da desocupação do imóvel possa ofender a norma constitucional onde se prevê o direito à habitação, que, aliás, este incidente visa proteger, sem que, todavia, o respeito por esse direito imponha a sua indiscriminada e sistemática concessão.

É que, na situação “sub judice”, não podemos ignorar que o imóvel foi adjudicado ao proponente BB em 17.12.2021 e que, em 1.1.2022, foi determinada a notificação da insolvente para no prazo máximo de 60 dias proceder à entrega do imóvel e respetivas chaves, livre de pessoas e bens.

Significa isto que entretanto transcorreram quase dois anos e meio sem que o imóvel tenha sido entregue pela insolvente, sem embargo de numa parte deste período temporal essa entrega ter estado suspensa por força da legislação temporária relativa à situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19.

Porém, na linha do que já atrás se expôs, há a referir que a insolvente não apresentou, ainda que notificada para esse efeito, qualquer elemento documental que comprovasse a composição do seu agregado familiar que habita no imóvel ou que atestasse a sua situação de doença ou da sua mãe.

Tal como não alegou a realização de qualquer diligência concreta com vista a encontrar um outro local para residir, designadamente junto de entidades, públicas ou privadas, relacionadas com a segurança ou a solidariedade social.

Confrontamo-nos assim com uma situação em que, de forma evidente, se vai protelando a entrega do imóvel e que é provocada pela própria insolvente, donde na prática resulta, desde logo, um diferimento da sua entrega por um período temporal superior àquele que a própria lei consagra.

Manifesto é que a insolvente procura atrasar ainda mais essa entrega, quando até vai protelando a apresentação de documentos que, no caso de retratarem a realidade, seriam de fácil obtenção.

Assim, não tendo a insolvente feito acompanhar o seu pedido de diferimento de desocupação do imóvel de prova documental que confirmasse o aí alegado, nem tendo apresentado essa prova quando foi instada pelo tribunal a fazê-lo, sem nada invocar para justificar essa omissão, não pode, a nosso ver, beneficiar desse diferimento.

Até porque a prova testemunhal, estando em causa factualidade alegada que se relaciona com o estado de saúde da insolvente e/ou da sua mãe ou com as condições económicas e sociais do agregado, não poderá suprir a ausência de prova documental cuja junção há muito se aguarda por parte da insolvente, inclusive, com cominação de indeferimento.

Por essa razão, sendo manifestamente improcedente o pedido formulado pela insolvente (cfr. art. 865º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil), há que confirmar a decisão recorrida, com o consequente inêxito do recurso interposto.[2]


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela insolvente AA e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas, pelo seu decaimento, a cargo da recorrente.

Porto, 4.6.2024
Rodrigues Pires
Maria da Luz Seabra
Márcia Portela
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[1] “Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação”.
[2] Cfr. também, relativamente a casos de improcedência do pedido de diferimento da desocupação, os Acórdãos da Relação do Porto de 14.5.2020, p. 3910/06.8TBSTS-L.P1 e da Relação de Guimarães de 8.2.2018, p. 164/13.3TBCBT-E.G1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.