PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
PRAZO
CONTRADITÓRIO
Sumário

I – Não fixando a norma do artigo 1088.º, n.º 2, do CPC, qualquer prazo para o credor deduzir a reclamação do seu crédito no processo de inventário, afigura-se adequado sujeitá-la ao prazo de 30 dias previsto no artigo 1104.º para a dedução de qualquer meio de defesa por parte de algum interessado directo.
II – O prazo para o exercício do contraditório relativamente a esta reclamação é o previsto no artigo 1105.º, n.º 1, do CPC, ou seja, 30 dias, pois não se vislumbra qualquer razão válida para sujeitar a discussão do passivo a prazos distintos consoante o mesmo é relacionado pelo cabeça-de-casal ou reclamado pelo próprio credor.
III – O referido regime processual visa regular a dedução de qualquer meio de defesa por parte de qualquer interessado directo, em total coerência com a estruturação do processo de inventário em fases processuais relativamente estanques e, sobretudo, com o princípio de concentração, na fase de “oposições e verificação do passivo”, de todas as impugnações, reclamações e meios de defesa, aí se incluindo a aprovação/impugnação do passivo relacionado ou reclamado, em coerência ainda com as cominações e preclusões a associadas a esta nova estrutura do processo de inventário.

Texto Integral

Processo n.º 2778/13.2TMPRT-E.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

No processo especial de inventário para partilha dos bens comuns do casal que AA moveu contra BB, no qual foi nomeada cabeça-de-casal a requerida, veio o requerente, por requerimento apresentado em 28.08.2021, reclamar da relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal, alegando, para além do mais, que falta relacionar duas dívidas do casal para com a mãe do requerente, nos valores de 6.505,21 € (5.000,00 € mais juros) e 10.000,00 € (cfr. artigos 70.º a 74.º).

A cabeça-de-casal respondeu em 29.09.2021, alegando que aquelas dívidas foram pagas há muitos anos (cfr. art. 32.º).

Tendo a cabeça-de-casal apresentado duas novas relações de bens, tendo em vista dar cumprimento à determinação do Tribunal para que a referida relação obedecesse à ordem prevista no artigo 1098.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), o requerente reiterou integralmente a sua reclamação.

Por determinação do tribunal foi ainda junta aos autos uma quarta relação de bens, na qual foi aditada uma dívida hipotecária, tendo o requerente apresentado nova reclamação, onde mantém integralmente a inicialmente apresentada e se pronuncia quanto ao aditamento agora introduzido.

Produzida a prova, em 22.09.2023 foi proferido despacho de saneamento, nos termos previstos no artigo 1110.º, n.º 1, do CPC, no qual foi decidido, a respeito das duas dívidas acima mencionadas e de uma outra dívida à Caixa de Previdência de Advogados e Solicitadores, que «[c]ompete aos credores, se assim o entenderem, reclamar os seus créditos, para o que serão citados para os termos do inventário».

Citada a herança aberta por óbito da mãe do reclamante para os referidos efeitos, por requerimento apresentado em 04.11.2023, veio este, na qualidade de cabeça-de-casal daquela herança, reclamar: um crédito de 5.000,00 €, proveniente de um mútuo, acrescido de juros, que afirma ascenderem a 1.961,64 €, embora apenas reclame um total de 6.505,21 €; um crédito de 10.000,00 €, proveniente de outro mútuo.

Em 27.11.2023 o tribunal proferiu o seguinte despacho:

«(…)

Atendendo a que o crédito reclamado pela herança aberta por óbito da mãe do reclamante não foi impugnado pela cabeça-de-casal, julgo o mesmo verificado, no montante de € 16.505,21

(…)».

Em 06.12.2023, veio a cabeça-de-casal, ao abrigo do disposto no artigo 1105.º do CPC, responder à reclamação de créditos apresentada em 04.11.2023, afirmando que mantém a posição de não reconhecimento desses créditos expressa na resposta à reclamação da relação de bens, acrescentando que a mãe do interessado nunca fez qualquer empréstimo ao casal, impugnando a veracidade das assinaturas apostas nos documentos de reconhecimento/confissão de dívida juntos com a reclamação dos créditos e arguindo a prescrição dos juros referentes a períodos anteriores aos últimos cinco anos.

Por requerimento de 18.12.2023 veio o reclamante responder à referida impugnação da veracidade das assinaturas e pedir a condenação da cabeça-de-casal como litigante de má-fé.


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Por requerimento de 19.12.2023, a cabeça-de-casal veio interpor recurso de apelação do despacho de 27.11.2023, na parte acima transcrita, ao abrigo do disposto no artigo 1123.º, n.º 2, al. b), do CPC, juntando a alegação e as respectivas conclusões, que se transcrevem:

«1.ª- O requerimento apresentado pelo interessado AA, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de sua mãe, CC, por este intitulado “reclamação de créditos”, na sequência de despacho ordenando a sua citação para os termos do presente inventário e ainda para, querendo e em 10 dias, reclamarem eventuais créditos e, ainda, da notificação “para os termos do Inventário e ainda para, querendo em dez dias, reclamar eventuais créditos ao processo supra identificado”, requerimento no qual é reclamada a existência de um crédito de € 16.505,21, constitui uma reclamação à relação de bens, nos termos do disposto no artigo 1.104.° do Código de Processo Civil.

2.ª- A resposta a tal reclamação estava sujeito ao prazo de 30 dias, conforme dispõe o artigo 1.105.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

3.ª- Notificada, via CITIUS, de tal reclamação, no dia 04/11/2023 (data de elaboração no sistema CITIUS) e tendo apresentado a respectiva resposta no dia 06/12/2023, pela mesma via, fê-lo dentro do prazo legalmente assinalado (não tendo, como não poderia ter sido assinalado, judicialmente, prazo diverso), tendo, portanto, a cabeça de casal impugnado, validamente, o crédito reclamado pela herança aberta por óbito da mãe do reclamante.

4.ª- Tendo o crédito sido validamente impugnado, não poderia ter sido julgado verificado por falta de impugnação.

5.ª- Deve, pois, o despacho recorrido ser revogado, sendo apreciada a impugnação e tomado o seu conteúdo em conta na decisão relativa à aceitação ou não da reclamação do crédito.

6.ª- O douto despacho recorrido viola o disposto nos artigos 1.104.º e 1.105.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

7.ª- O despacho recorrido, ao decidir, ilegalmente, da existência de um crédito reclamado, no valor de € 16.595,21, decide sobre o saneamento do processo e a determinação dos bens a partilhar, afectando, pelo seu considerável valor, a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados, pelo que deve ser atribuído ao presente recurso efeito suspensivo, nos termos do disposto no artigo 1.1.23.º, n.º 2, b) e n.º 3, do Código de Processo Civil».

Não foi apresentada qualquer resposta a esta alegação.


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II. Fundamentação

A. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do CPC, não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).

Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, importa apenas decidir se a impugnação do crédito reclamado pela herança aberta por óbito da mãe do interessado AA foi apresentada pela cabeça-de-casal em tempo e se, por conseguinte, o tribunal a quo não podia julgar aquele crédito verificado por falta de impugnação.

B. A questão a decidir afigura-se de linear clareza, sendo manifesto que assiste razão à recorrente.

Está em causa a verificação do passivo do património comum a partilhar.

Cabe ao cabeça-de-casal relacionar as dívidas e outros encargos desse património, como prevê o artigo 1097.º, n.º 3, al. d), do CPC, e é corroborado pelo disposto nos artigos 1088.º, n.º 1, e 1104.º, n.º 1, al. e), do mesmo código, ficando tal relacionação sujeita ao contraditório dos demais interessados.

Não o fazendo o cabeça de casal, seja porque desconhece a dívida, porque não a reconhece ou porque pura e simplesmente a omite, o respectivo credor pode reclamá-la no processo de inventário até à conferência de interessados, conforme prevê o já citado artigo 1088.º, n.º 1, ficando essa reclamação sujeita ao contraditório dos demais interessados.

Em todo o caso, incumbe ao tribunal ordenar a citação das pessoas que se arroguem ou possam arrogar-se a titularidade de algum crédito sobre o património a partilhar, para que o reclamem, querendo, sob pena de ficarem inibidos de exigir o seu cumprimento através dos meios judiciais comuns, em conformidade com o disposto no n.º 2, do mesmo artigo 1088.º, devendo o cabeça-de-casal impulsionar essa citação.

Tal como assinalam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[1], a norma não fixa qualquer prazo para o credor deduzir a sua reclamação, pelo que se afigura «adequada a sujeição ao prazo de 30 dias que consta do art. 1104.º relativamente à dedução de qualquer meio de defesa por parte de algum interessado directo».

No caso concreto, como vimos, a cabeça-de-casal não só não relacionou as dívidas agora reclamadas, como se opôs à reclamação do interessado AA no sentido da sua relacionação, não tendo sequer impulsionado a citação da suposta credora, nos termos e para os efeitos do artigo 1088.º, n.º 2, do CC. Não obstante, o próprio tribunal ordenou essa citação.

Porque o representante da herança credora é o próprio interessado AA, tal citação acabou por ser substituída por notificação ao mandatário deste, efectuada em 26.10.2023, nos seguintes termos: «Fica notificado, na qualidade de Mandatário do cabeça de casal de herança aberta por óbito da mãe do requerente, para os termos do Inventário e ainda para, querendo em dez dias, reclamar eventuais créditos ao processo supra identificado». Verifica-se, assim, que esta notificação não contemplou a advertência prevista no artigo 1088.º, n.º 2, do CC, nem respeitou o prazo que julgamos aplicável.

Não obstante, na sequência da mesma, em 04.11.2023 foi apresentada a reclamação dos créditos em causa neste recurso, tendo então sido cumprido o disposto no artigo 221.º do CPC, pelo que a notificação desta reclamação ao mandatário da cabeça-de-casal se presume feita no dia 07.11.2023, em conformidade com o disposto no artigo 255.º do mesmo código.

Na sequência do que vimos explanando, temos como certo que o prazo para o exercício do contraditório relativamente a esta reclamação é o previsto no artigo 1105.º, n.º 1, do CPC, ou seja, 30 dias. Na verdade, não se vislumbra qualquer razão válida para sujeitar a discussão do passivo a prazos distintos consoante o mesmo é relacionado pelo cabeça-de-casal ou reclamado pelo próprio credor. Dito de outro modo, seria injustificável e violador da igualdade das partes consagrado no artigo 4.º do CPC conceder 30 dias para quer interessado impugnar o passivo relacionado pelo cabeça-de-casal, mas reduzir esse prazo a 10 dias (como parece ter entendido o tribunal a quo, presumindo-se que com fundamento no artigo 149.º do CPC) quando esse passivo foi reclamado pelo próprio credor.

No mesmo sentido, os autores antes citados escrevem o seguinte (cit., p. 572): «Quer nos casos em que as dívidas e encargos sejam relacionados pelo cabeça-de-casal, quer quando sejam reclamados pelos credores, de forma espontânea ou provocada, os demais interessados diretos poderão exercer o contraditório, no prazo de 30 dias, invocando todos os meios de defesa que a caso se ajustarem, desde a impugnação à invocação de qualquer exceção».

Acresce que a única norma que prevê o cominatório decorrente da falta de impugnação das dívidas da herança (no caso, do património comum a partilhar) está consagrada no artigo 1106.º, n.º 1, do CPC relativamente às dívidas relacionadas pelo cabeça-de-casal, pelo que seria, no mínimo, incongruente, aplicar esta norma às dívidas reclamadas pelo credor, mas sem aplicar igualmente o restante regime processual que precede este cominatório, regulado nos precedentes artigos 1104.º e 1105.º do CPC. De resto, o referido regime processual visa claramente regular a dedução de qualquer meio de defesa por parte de qualquer interessado directo, em total coerência com a estruturação do processo de inventário em fases processuais relativamente estanques e, sobretudo, com o princípio de concentração, na fase de “oposições e verificação do passivo”[2], de todas as impugnações, reclamações e meios de defesa, aí se incluindo a aprovação/impugnação do passivo relacionado ou reclamado, em coerência ainda com as cominações e preclusões a associadas a esta nova estrutura do processo de inventário[3].

Voltando ao caso concreto, presumindo-se que a cabeça-de-casal foi notificada da reclamação do passivo apresentada pela herança aberta por óbito da mãe do requerente no dia 07.11.2023, o prazo para exercer o contraditório relativamente a essa reclamação terminava apenas no dia 07.12.2023.

Tendo apresentado a sua oposição em 06.12.2023, a cabeça-de-casal fê-lo tempestivamente. Ao concluir em 27.11.2023 que o crédito reclamado não foi impugnado e, com esse fundamento, ao julgar verificado tal crédito, o tribunal a quo pronunciou-se prematuramente, o que redundou na desconsideração de uma oposição plenamente tempestiva.

Por conseguinte, a referida decisão é nula, nos termos do disposto no artigo 195.º do CPC, por preterição do contraditório.

Ao sistema processual civil português repugnam, desde logo por imposição constitucional, todas as decisões judiciais tomadas à revelia de um dos interessados, surgindo o contraditório como um dos princípios basilares do ordenamento processual, visto que os interesses das partes merecem a mesma protecção e só assim o Tribunal logra uma visão completa da situação em litígio.

O artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece que todos têm direito a que qualquer causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante um processo equitativo, em conformidade com o que estabelecem normas constantes de textos internacionais, designadamente o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e o artigo 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU, que há muito consagraram o “fair trial” como um direito fundamental internacional ou como um princípio de direito internacional. O princípio da igualdade de armas, fundado no princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) e no processo equitativo, está estreitamente relacionado com o princípio do contraditório, enquanto direito de ser ouvido e de influenciar a decisão final, com controle da admissibilidade e da produção de prova da parte contrária. Exige a igualdade de tratamento das partes que se assegure uma igual e efetiva possibilidade de sucesso na lide, o que implica uma igual oportunidade de exposição de razões e argumentos. Por isso, só excepcionalmente se admitem compressões ou restrições a estes princípios, os quais encontram expressa consagração nos artigos 3.º e 4.º do CPC.

Assim, novamente nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[4], «[s]ó depois de se estabelecer o confronto entre as posições assumidas pelo cabeça-de-casal, pelos interessados directos e pelos credores, o juiz estará em condições de apreciar a matéria relacionada com o passivo da herança, nos termos dos artigos 1105.º e 1106.º».

No caso em apreço, a violação deste princípio do contraditório é ostensiva, visto que o tribunal a quo proferiu decisão sobre o passivo reclamado sem aguardar o decurso do prazo para os demais interessados se pronunciarem sobre tal reclamação.

Acresce que esta irregularidade influiu na decisão da causa, pois conduziu à aplicação do cominatório previsto na lei para a falta de impugnação das dívidas relacionadas ou reclamadas.

Nestes termos, impõe-se anular a decisão recorrida e determinar o prosseguimento da fase de “oposições e verificação do passivo” tendo em conta a oposição tempestivamente apresentada pela cabeça-de-casal, sem prejuízo das demais consequências que se imponham, por força do disposto no artigo 195.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.

Na total procedência da apelação, as respectivas custas serão suportadas pela recorrida (cfr. artigo 527.º do CPC).


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III. Decisão

Pelo exposto, os Juízes da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto julgam totalmente procedente a apelação e, consequentemente, anulam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento da fase de “oposições e verificação do passivo” tendo em conta a oposição tempestivamente apresentada pela cabeça-de-casal, sem prejuízo das demais consequências que se imponham, por força do disposto no artigo 195.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.

Custas pela recorrida.

Registe e notifique.


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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

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Porto, 4 de Junho de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Rodrigues Pires
Maria Eiró
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[1] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª ed., Almedina, 2022, p. 571.
[2] Que, juntamente com a fase inicial (cfr. artigos 1097.º e seguintes), constitui o que podemos denominar de fase dos articulados.
[3] Sobre estas questões, vide Lopes do Rego, A recapitulação do inventário, Julgar Online, Dezembro de 2019.
[4] Cit., p. 572.