MEDIAÇÃO
IMPULSO PROCESSUAL
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário

É imprescindível, para operar a deserção, que a parte tenha ficado devidamente esclarecida que sobre ela incumbia o ónus do impulso, pois só depois desse esclarecimento se pode aferir da negligência, para efeitos do art.º 281.º CPC.

Texto Integral

Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

L, solteiro, maior, titular do Número de identificação Civil (NIC) …, Cartão de Cidadão válido até 2029/02/21, e do Número de Identificação Fiscal (NIF) …, residente na Rua …, Quinta da …, Alverca do Ribatejo;
Vem interpor e fazer seguir contra
Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML), associação sem fins lucrativos, titular do NIF …, com sede na Rua …, Edifício …, Celorico de Basto
AÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO EM PROCESSO COMUM
Pedindo a condenação do Réu no pagamento ao Autor da quantia de €5.006,67 (cinco mil e seis euros e sessenta e sete cêntimos), a título de compensação pelo dano patrimonial; e ainda no pagamento da quantia de €2.000,00 (dois mil euros), a título de dano não patrimonial, de natureza moral, com base em incumprimento do contrato de prestação de serviços.
Foi proferido despacho a julgar o tribunal de Lisboa territorialmente incompetente, por se entender caber a competência ao Tribunal de Celorico de Bastos.

Foi apresentada reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do art.º 105.º, 4 do CPC.
Sobre esta reclamação recaiu despacho que deferiu a reclamação.
O R. contestou, alegando a incompetência do tribunal, dado as partes terem acordado sujeitar os litígios, no âmbito do contrato, ao regime da mediação; defende-se por impugnação, alegando o cumprimento do contrato.
O A. respondeu à excepção alegando que o contrato é de adesão não admitindo a validade da cláusula de mediação, mas que está disposto a aceitar a mediação se for o entendimento do Tribunal, se opor à remessa dos autos para mediação.
Foi proferido despacho onde se conclui: “Verifica-se assim o pressuposto previsto no artigo 12.º, n.º 4, da citada Lei n.º 29/2013, pelo que, face ao requerido pelo Réu, suspendo a presente instância e remeto o processo para mediação.”
Em 25/9/2023 foi proferido o seguinte despacho: “Notifique as partes para, querendo, se pronunciarem quanto à eventual deserção da instância – cf. art.º 281.º, n.º 1 do CPC.
Prazo: 10 dias.”

A 24/10/2023 o A. apresentou o seguinte requerimento:
1. Em 2022/11/11 foi o Autor notificado de despacho que, por entender o Tribunal ter-se verificado o circunstancialismo previsto no nº 4 do artigo 12º da Lei 29/2013, de 19 de abril, suspendeu a instância e remeteu o processo para mediação;
2. Assim, o Autor ficou a aguardar nova notificação, desta feita por parte da Entidade Mediadora a quem tivesse cabido a mediação em causa, uma vez que seria o próprio Tribunal, e não as partes, a remeter o processo para esse fim;
3. Não obstante, tendo-se o Autor apercebido de já terem passado alguns meses sobre a data do despacho acima mencionado, tomou a iniciativa de contactar a Linha de Resolução de Litígios da DGPJ, entidade que faz a gestão dos Centros de Arbitragem;
4. Na referida linha de atendimento telefónico da DGPJ, viu o Autor confirmado que, nos casos previstos no atrás mencionado nº 4 do artigo 12º da Lei 29/2013, nos quais o Tribunal determina a suspensão da instância para remessa dos autos para mediação, é ao próprio Tribunal, nomeadamente à respetiva Secretaria, a quem cabe providenciar por tal diligência junto da Entidade Mediadora;
5. Ademais, decorre do próprio Despacho do Tribunal que reza: “suspendo a presente instância e remeto o processo para mediação”. O referido despacho não ordena às partes providenciar pela Mediação;
6. Assim sendo e visto que o Autor desconhece se a referida remessa foi concretizada, não se constatando a sua existência nos movimentos processuais, e considerando ainda que a deserção da Instância só se dá pela falta de iniciativa negligente das partes processuais, não parece aqui haver lugar a este último instituto;
7. Acresce ainda que o Autor sempre entendeu que a cláusula da Mediação, pelas razões já apontadas, não era válida, apenas tendo aceitado o recurso à Arbitragem se fosse esse o entendimento do Tribunal;
8. Dessa forma, não tendo ainda havido nenhuma diligência concreta de mediação, o Autor aguarda que a mesma aconteça e que o Processo retome assim o seu curso.

O R. respondeu a este requerimento terminando: verifica-se que na presente data decorreram mais de seis meses após o trânsito em julgado do “despacho que suspendeu a instância e remeteu o processo para mediação” sem que o Autor tenha dado impulso ao processo, pelo menos tempestivamente.

Foi proferida decisão a julgar deserta a instância.
Quanto à negligência do autor escreve-se na decisão assim:
“Já quanto à negligência das partes, vem o autor, na sequência de notificação para tanto, invocar, em síntese, que:
(i) Após o despacho que suspendeu a instância, o autor ficou a aguardar nova notificação, desta feita por parte da Entidade Mediadora a quem tivesse cabido a mediação em causa;
(ii) uma vez que seria o próprio Tribunal, e não as partes, a remeter o processo para esse fim;
(iii)tendo-se o Autor apercebido de já terem passado alguns meses sobre a data do despacho acima mencionado, tomou a iniciativa de contactar a Linha de Resolução de Litígios da DGPJ, entidade que faz a gestão dos Centros de Arbitragem;
(iv) a referida linha de atendimento telefónico da DGPJ, viu o Autor confirmado que, nos casos previstos no atrás mencionado nº 4 do artigo 12º da Lei 29/2013, nos quais o Tribunal determina a suspensão da instância para remessa dos autos para mediação, é ao próprio Tribunal, nomeadamente à respectiva Secretaria, a quem cabe providenciar por tal diligência junto da Entidade Mediadora;
(v) visto que o Autor desconhece se a referida remessa foi concretizada, não se constatando a sua existência nos movimentos processuais.
Em primeiro lugar, cumpre destacar que não foi demonstrada nenhuma das diligências alegadamente realizadas pelo autor junto da DGPJ.
Mas ainda que os factos enunciados estivessem cabalmente demonstrados, deles não só não se extrai um comportamento consentâneo com a actuação diligente da parte na condução do processo, como evidenciam, de forma cristalina, que a ausência da prática de actos processuais durante o período de quase um ano se deveu à inércia (negligente) do autor.
Vejamos:
É o próprio autor que, assumindo que tem acesso à plataforma informática, e desconhecendo se a remessa (que, como veremos, não é sequer obrigatoriamente impulsionada pelo Tribunal) foi concretizada, se limitou a «aguardar nova notificação»; alegando ter contactado uma entidade terceira, contacto esse que não situou no tempo, designadamente nos seis meses subsequentes à notificação do despacho de 09-11-2022.
Por outro lado, compulsado o regime da Lei n.º 29/2013, de 19 de Abril, em particular dos seus arts. 13.º, n.º 1 e 34.º, n.º 2, conclui-se que as partes podem solicitar directamente a mediação, independentemente de qualquer iniciativa oficiosa.
Ora, o dever de gestão processual conferido ao juiz, não eliminou o princípio da auto-responsabilidade das partes nos casos em que a estas cabe o ónus de impulsionar o andamento regular do processo (art.º 6.º, n.º 1 do CPC).
Estando ao dispor do autor o conhecimento informático de toda a actividade processual, cabe-lhe, como responsável pelo impulso da acção, diligenciar no sentido de promover o seu andamento célere e eficaz.
Entende-se, assim, que o dever de prevenção - uma das vertentes do dever de cooperação, previsto no art.º 7.º do CPC - não tem aplicação em caso de negligência das partes em promover o andamento do processo, sob pena de desresponsabilizarmos por completo a actividade processual que só a estas compete.
Sufraga-se a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual se «a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inacção se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência»; e, por isso, é “à parte onerada com o impulso processual (…) que incumbe (aliás à semelhança do que sucede no caso paralelo do justo impedimento, art.º 140º do CPCivil), e ainda como manifestação do princípio da sua auto-responsabilidade processual, vir atempadamente ao processo (isto é, antes de se esgotar o prazo da deserção) informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando assim a situação de negligência aparente espelhada no processo”, sendo ”em função desta actividade da parte que o tribunal poderá formular um juízo de não negligência» (Ac. do STJ, de 20-09-2016, proc. n.º 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1). Tendo em conta o exposto, o processo vertente esteve mais de seis meses parado, aguardando o impulso processual das partes, inexistindo, atentos os factos enunciados, qualquer justificação que possa afastar a qualificação desta conduta como sendo negligente.”
Declarou-se assim deserta a instância.

Deste despacho recorre o autor, alegando com as seguintes conclusões:
I. Em 2023/12/04, veio a Meritíssima Juiz julgar que a instância se encontra deserta e, como tal, extinta, condenando-se o autor em custas;
II. Ora, em 2022/11/11 fora o Autor notificado de despacho que, por ter entendido o Tribunal que estava verificado o circunstancialismo previsto no nº 4 do artigo 12º da Lei 29/2013, de 19 de abril, suspendeu a instância e remeteu o processo para mediação;
III. Embora do referido despacho conste a expressão: “suspendo a presente instância e remeto o processo para mediação.”, os Autos nunca chegaram à Instância Mediadora;
IV. A decisão recorrida considerou, porém, que a responsabilidade por essa falta era imputável ao Recorrente, facto com o qual este não se pode conformar;
V. Quando notificado da suspensão dos Autos e da sua remessa à Arbitragem, o Recorrente se colocou em posição de espera, a aguardar que fosse convocado para o início daquele procedimento, à espera de nova notificação, desta feita, por parte da Entidade Mediadora;
VI. Quando o Autor se apercebeu de já haverem passado meses sobre a data do despacho, tomou a iniciativa de contactar a Linha de Resolução de Litígios da DGPJ, Entidade que faz a gestão dos Centros de Arbitragem onde lhe foi confirmado que, nos casos previstos no atrás nº 4 do artigo 12º da Lei 29/2013, nos quais o Tribunal determina a suspensão da instância para remessa dos autos para mediação, é ao próprio Tribunal quem cabe providenciar por tal diligência junto da Entidade Mediadora;
VII. E não colhe a objeção de que o Autor Recorrente não fez prova desse contacto, porquanto com a afirmação não visa comprovar que foi diligente, mas apenas confirmar que a remessa era da responsabilidade do Tribunal;
VIII. Ademais, o próprio Despacho do Tribunal reza: “suspendo a presente instância e remeto o processo para mediação”. O referido despacho não ordena às partes providenciar pela Mediação;
IX. Embora tendo compulsado a tramitação eletrónica do processo, o Autor não encontrou a referida remessa, não se constatando a sua existência nos movimentos processuais, entendendo apenas que, no Tribunal não tinha ainda havido disponibilidade para providenciar a referida remessa;
X. Ora, como é natural, o então Autor tinha a expectativa de que o procedimento de mediação fosse enviado sem a sua intervenção, o que decorria expressamente dos termos do despacho proferido pela Mmª Juiz, quando utilizou a expressão “remeto o processo”;
XI. Considerando tratar-se de um Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, não seria de admirar que o espaçamento entre os atos processuais da responsabilidade da Entidade Judicial fosse de largos meses;
XII. Veja-se, por exemplo, que entre o requerimento de Resposta às exceções, a que deu entrada o Autor, e o despacho que alegava remeter os Autos à Mediação, decorreram aproximadamente oito meses;
XIII. Será que também por essa demora do Tribunal deveria o Autor ter-se posicionado, sob pena de ver considerada deserta a instância? Sendo ambas as situações consideravelmente semelhantes e no caso desta dilação o Tribunal não propôs que a instância fosse considerada deserta…
XIV. Mais, quando notificado veio o Recorrente esclarecer que a sua inércia no processo não se devia a falta de interesse na prossecução do mesmo, mas sim por estar na convicção, que mantém, de que não era sobre si que impendia o ónus de iniciar o processo de mediação;
XV. O Tribunal não teve em conta que este permanecia, como sempre permaneceu, de resto, com intenção de que os autos prosseguissem;
XVI. A propósito, atente-se ao Acórdão nº 543/18.0T8AVR.P1.S1, do Supremo Tribunal de Justiça, que diz: “A deserção da instância é um instrumento que o legislador faculta aos tribunais para se libertarem dos processos em que o autor, por qualquer razão, não tem mais interesse em prosseguir.”
XVII. Considerando que a deserção da Instância só se dá pela falta de iniciativa negligente das partes, não pode haver aqui lugar ao funcionamento deste instituto;
XVIII. Para que possa haver deserção da instância é forçoso que haja, também, o conhecimento, ou a obrigação desse mesmo conhecimento, da parte a quem impende o ónus de prosseguir com os autos, de que a sua falta levará, necessariamente, àquele resultado;
XIX. Neste caso, o Recorrente entende, que não era dele o ónus - daí não ter praticado o ato assumido pelo Tribunal -, continuando, no entanto, sempre com interesse no prosseguimento do processo;
XX. Acresce ainda que o Autor sempre entendeu que a cláusula da Mediação, pelas razões já apontadas, não era válida, apenas tendo aceitado o recurso à Arbitragem se fosse esse o entendimento do Tribunal;
XXI. Dessa forma, não tendo ainda havido nenhuma diligência concreta de mediação, o Autor aguarda que a mesma aconteça e que o Processo retome assim o seu curso;

O R. contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão.

Nada obsta ao conhecimento do recurso
Questão a decidir:
Saber se recaia sobre o A. o ónus de impulsionar o processo

Dispõe-se no Artigo 34.º da Lei 29/2013
Início do procedimento nos sistemas públicos de mediação
O início do procedimento de mediação nos sistemas públicos de mediação pode ser solicitado pelas partes, pelo tribunal, pelo Ministério Público ou por Conservatória do Registo Civil, sem prejuízo do encaminhamento de pedidos de mediação para as entidades gestoras dos sistemas públicos de mediação por outras entidades públicas ou privadas.

Como se vê, o impulso tanto pode ser dado pelo tribunal, como pelas partes.
O despacho onde se decide remeter o processo para mediação não esclarece, de forma alguma, a quem cabe dar impulso à mediação; se ao próprio tribunal se às partes.
É certo que o A. não deu impulso ao processo de mediação.
Mas é perfeitamente aceitável que, ao ser confrontado com despacho a remeter, sem mais, o processo para mediação, o A tenha ficado convencido que seria o tribunal a solicitar a mediação.
Se o julgador pretendesse que o impulso coubesse às partes tal haveria de ter deixado consignado, para obviar a dúvidas.
Nada dizendo, não vemos como censurar o comportamento do A., por não ter impulsionado o processo de mediação e ter aguardado que o tribunal solicitasse a mediação.
É imprescindível, para operar a deserção, que a parte tenha ficado devidamente esclarecida que sobre ela incumbia o ónus do impulso, pois só depois desse esclarecimento se pode aferir da negligência, para efeitos do art.º 281.ºCPC.
Veja-se sobre a questão da deserção: Ac. do TRL de 10/2/2022, proc.19390/10.0YYLSB.L1-2I – “O juízo de deserção da instância, como uma das causas de extinção desta – cf., art.º 277º, alín. c), do Cód. de Processo Civil – não prescinde da valoração ou apreciação (julgamento) da verificação dos pressupostos legais que a determinam, quais sejam o processo encontrar-se a aguardar o impulso processual imposto pela lei às partes, a omissão destas em impulsioná-lo, ser esta negligente, no sentido de lhes ser imputável ou atribuível, e ter decorrido prazo superior a 6 meses” e o Ac. STJ de 3/10/2019, proc. 1980/14.4TBVDL.L1.S: “Nas palavras do Acórdão do STJ, de 05.07.2018 (processo nº 105415/12.2YIPRT.P1.S1), são dois os pressupostos da extinção da instância por deserção, ao abrigo do art.º 281º, nº 1, do CPC: « um de natureza objetiva (falta de impulso processual das partes, máxime do A., para o prosseguimento da instância) e outro de natureza subjetiva (inércia imputável a negligência das partes) ».
E segundo este mesmo acórdão que, «para que se verifique o primeiro requisito é necessário que o prosseguimento da instância dependa de impulso da parte decorrente de algum preceito legal».
Significa isto que não releva, para efeitos de deserção da instância, que o processo esteja a aguardar o impulso processual da parte, por um período superior a 6 meses, se sobre a parte não recair, por força de algum preceito legal, o ónus específico de promoção da atividade processual, ou seja, se a parte não estiver, legalmente, onerada com o ónus de impulso subsequente, mediante a prática de determinados atos cuja omissão impeça o prosseguimento da causa.”
No contexto que se deixou descrito não se pode dar como assente que o ónus do impulso coubesse ao A., pois tal não consta do despacho.
Não resulta de forma clara e transparente quer do despacho, quer da legislação aplicável (uma vez que a mediação tanto pode ser desencadeada pela parte como pelo tribunal), que sobre o A recaía o ónus de impulsionar o processo, donde não se pode dizer que os autos se encontravam a aguardar o impulso do A.
Não se verifica assim o pressuposto de natureza objectiva supra mencionado no Ac. STJ.
Não podemos, assim, concordar com a decisão recorrida, quando entende que os autos aguardavam o impulso do A. e que este teve um comportamento negligente, pelo que se revoga o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro onde se dê andamento aos autos e se esclareça a quem cabe diligenciar pela mediação.

Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que dê andamento ao processo.
Custas pelo R.

Lisboa, 06-06-2024
Teresa Soares
Vera Antunes
Gabriela de Fátima Marques