NULIDADE DE SENTENÇA
NULIDADE PROCESSUAL
CONTRADITÓRIO
PERSI
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
Sumário

I- Existe atualmente uma clivagem na jurisprudência, incluindo a do STJ, quanto à natureza do vício decorrente da omissão do contraditório prévio, havendo dois entendimentos distintos: um no sentido de se tratar de uma nulidade processual, prevista no artº 195º/1 do CPC, seguida pela jurisprudência mais recente, e outro no sentido de se tratar de uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, nos termos do artº 615º/1, al. d) do CPC.
II- Uma vez que se trata de uma questão meramente formal, mesmo que se considere que estamos perante uma nulidade processual – a arguir perante o tribunal que proferiu a decisão – é de admitir a respetiva invocação em sede de recurso de apelação, nos termos do artº 615º/4 do CPC, pois não deve a parte ser prejudicada quando baseia a sua conduta processual em entendimentos que têm sustentáculo em vária jurisprudência do STJ e das Relações.
III- O artº 3º/3 do CPC, que consagrou o princípio do contraditório prévio, incluindo nele as questões de conhecimento oficioso, impõe que qualquer questão, seja relativa ao mérito da causa, seja meramente processual, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, antes de as partes serem convidadas a sobre ela se pronunciarem, desde que se trate de uma questão nova e de que as partes não pudessem, razoavelmente, contar com a respetiva apreciação.
IV- Se estamos perante uma questão relativamente à qual era exigível, no quadro jurídico-processual suscetível de ser aplicado à causa, que a parte contasse com a respetiva apreciação, aí já não estamos perante uma decisão surpresa.
V- Sendo o regime do Dec. Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, que consagrou o procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), obrigatório para as instituições de crédito, tinha a autora, que é uma instituição de crédito, de contar com o controle judicial da respetiva aplicação em sede de apreciação das questões suscetíveis de impedirem o conhecimento do mérito da causa, pelo que a decisão de absolvição da instância fundada na falta de integração do réu no âmbito do PERSI, não constitui uma decisão surpresa.
VI- A não integração do devedor no referido procedimento constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, devendo o autor invocar na petição inicial que cumpriu previamente à ação esse procedimento.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores que compõem este Coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Recorrente: C, S. A.
Recorridos: RC
A autora instaurou ação de condenação, sob a forma comum de declaração, formulando o seguinte pedido: ser o R. condenado a pagar ao A. a importância de € 38.608,54 acrescida de € 1.145,46 de juros vencidos até ao presente – 29/12/2022 - e de € 45,82 de imposto de selo sobre estes juros e, ainda, os juros que sobre a dita quantia de € 38.608,54 se vencerem, à taxa anual de 11,90%, desde 30/12/2022 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que à referida taxa de 4% sobre estes juros recair.
Para fundamentar o pedido a Autora invocou que no exercício da sua atividade comercial, celebrou com o réu, no dia 04/01/2022, um contrato de crédito pessoal no montante de € 35.000,00, com juros à TAEG de 11,90% ao ano; autora e réu acordaram que o referido capital e juros, bem como o prémio do seguro, a comissão de abertura, o imposto de selo de abertura de crédito e imposto de selo sobre tais juros seriam pagos em 84 prestações, mensais e sucessivas, cada uma no valor de € 643,84, vencendo-se a primeira no dia 05/02/2022 e as seguintes no dia 5 dos meses subsequentes; o réu não procedeu ao pagamento de qualquer prestação, tendo sido interpelado para o efeito, por carta registada com aviso de receção datada de 09/09/2022; a autora, face ao reiterado incumprimento do réu, procedeu à resolução do contrato com efeitos em 30/09/2022, data em que o montante em dívida pelos réu se cifrava em € 38.608,54.
O réu foi regularmente citado e não contestou.
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 Foi proferida sentença[1] cujo trecho decisório é o seguinte:
Tudo visto e ponderado, decido absolver a ré da instância por verificação de excepão dilatória inominada.
Custas a cargo da autora (artigo 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC)”.
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Inconformada com o decidido, apelou a autora, tendo apresentado alegações e as seguintes conclusões:
i) A sentença recorrida, ao absolver o R. da instância com fundamento na pretensa verificação de uma excepção dilatória inominada de falta de integração do mesmo no âmbito do PERSI, é nula, ex vi o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil
ii) Antes da prolação da sentença recorrida, a matéria relacionada com a pretensa verificação de tal excepção não foi em momento algum suscitada nos autos pela recorrente, pelo recorrido ou pelo Tribunal
iii) Ao decidir da forma como o fez, a sentença recorrida proferiu a chamada “decisão-surpresa”, tendo violado de forma manifesta o princípio do contraditório plasmado no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, conforme aliás entendido e decidido já pelo Tribunal da Relação do Porto, em acórdão proferido aos 02/12/2019 no processo 14227/19.8T8PRT.P1, consultável em www.dgsi.pt;
v) Cabia ao Tribunal a quo, caso tivesse fundadamente dúvidas sobre a integração do recorrido no âmbito do PERSI, ter notificado a ora recorrente para que esta se pronunciasse relativamente a tal facto, designadamente mediante a junção dos documentos comprovativos de tal facto
vi) Caso assim não se entenda, o que por mera cautela se admite, sempre se dirá que a sentença será em todo o caso nula nos termos do disposto no artigo 195.º do Código de Processo Civil.
vii) Na verdade, conforme também entende a doutrina, a própria sentença poderá padecer da nulidade geral aplicável aos actos processuais caso viole directamente a Lei, o que é nitidamente o caso.
viii) É na verdade totalmente incompreensível o motivo pelo qual o Tribunal a quo profere a sentença recorrida, em violação grosseira do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, pois não facultou em nenhum momento à ora recorrente a possibilidade de se pronunciar quanto à verificação de tal excepção e, bem assim, de a suprir comprovando nos autos a integração do R. no âmbito do PERSI.
ix) Foi aliás este o entendimento do Tribunal da Relação do Porto em Acórdão proferido pela 5.ª Secção no processo 2129/21.2T8PNF.P1, em questão totalmente idêntica à dos presentes autos, e que ao diante se junta cópia por se desconhecer a respectiva publicação (doc. n.º 1).
x) Numa acção como a dos presentes autos, a ora recorrente não estava obrigada a alegar, aquando da instauração da acção, a factualidade referente ao PERSI, uma vez que a mesma não se enquadra no acervo dos factos essenciais para a causa de pedir;
xi) A factualidade referente ao PERSI consubstancia um facto instrumental, que apenas carecia de ser alegado pela ora recorrente se o recorrido tivesse contestado e invocado tal fundamento – o que não sucedeu – ou se o Tribunal a quo a tivesse notificado para o efeito – o que também não sucedeu, conforme antes referido;
xii) Ao decidir o contrário, e sem prejuízo da nulidade invocada, a sentença recorrida violou também o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e, ainda, o disposto no artigo 342.º do Código Civil, porquanto impôs à ora recorrente o ónus de prova de um facto negativo.
xiii) Deve assim revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por Acórdão que julgue a acção inteiramente procedente e provada.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
FUNDAMENTAÇÃO
Colhidos os vistos cumpre decidir.
Objeto do Recurso
O objeto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:
- nulidade da sentença por violação do contraditório prévio previsto no artº 3º/3 do CPC;
- (in)admissibilidade do conhecimento oficioso da exceção dilatória inominada de falta de integração do incumprimento por parte do réu no âmbito do PERSI.
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Factualidade tida em consideração pela 1ª Instância
Na sentença recorrida foram considerados provados os factos alegados na petição inicial, tendo-se remetido para tal peça processual esse elenco factual.
Atento o objeto do recurso, revela-se desnecessário estar a indicar aqui tais factos, bastando a descrição sumária efetuada supra.
Fundamentação jurídica
A primeira questão a apreciar é, naturalmente, a da invocada nulidade da sentença, que a recorrente fundamentou na preterição do contraditório prévio.
A sentença recorrida, na parte que constitui o cerne da ratio decidendi, fundamentou da seguinte forma a decisão de absolvição do réu da instância:
As instituições de crédito estão obrigadas a “proceder com diligência e lealdade, adoptando as medidas adequadas à prevenção do incumprimento de contratos de crédito e, nos casos em que se registe o incumprimento das obrigações decorrentes desses contratos, envidando os esforços necessários para a regularização das situações de incumprimento em causa” (cfr. artigos 3º, alínea e) e 4º, n.º 1, do DL n.º 227/2012). A verificar-se uma situação de incumprimento, a sua regularização deve assim processar-se forçosamente no âmbito de um procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (cfr. artigo 12º do DL n.º 227/2012), o qual integra uma fase pré-judicial em que se visa a composição do litígio por mútuo acordo, entre credor e devedor, mediante um procedimento que comporta três fases: a fase inicial; a fase de avaliação e proposta; a fase de negociação (cfr. artigos 14º, 15º e 16º, do DL nº 227/2012). No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de intentar acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito (cfr. artigo 18º, n.º 1, alínea b), do DL n.º 227/2012). É jurisprudência consensual e uniforme nesta matéria, que a omissão e ou violação pelas instituições de crédito das obrigações que para as mesmas decorrem do DL n.º 227/2012, configura para todos os efeitos um vício entendido como verdadeira excepção dilatória inominada e de conhecimento oficioso, aplicando-se-lhe o regime decorrente dos artigos 576º, n.º 1e 2, e 578º do CPC. Ora, no caso concreto, a autora não demonstrou ter integrado o réu em PERSI.
Incumbia à autora integrar a ré em PERSI quanto ao saldo devedor do contrato sub judice, notificar o réu dessa integração e cumprir as restantes formalidades exigidas pelo DL n.º 225/2012, antes de instaurar ação judicial, o que não sucedeu. Em suma, perante tudo o acima exposto, por falta de preterição da integração do réu em PERSI quanto ao contrato em discussão nos presentes autos e respetivo incumprimento, é forçoso decretar a absolvição da instância do réu, por verificação de excepção dilatória inominada”.
Como se referiu acima, o réu foi citado e não contestou. A decisão foi proferida após o decurso do prazo para contestar, ou seja, não foi, conforme invocado pela recorrente, dada oportunidade à autora de se pronunciar sobre o entendimento que determinou a absolvição do réu da instância.
Quanto à natureza jurídica da omissão do contraditório prévio imposto pelo artº 3º/3 do CPC, a jurisprudência tem-se dividido, incluindo a do STJ. Há duas posições distintas sobre esta temática.
Uma considera que se trata de uma nulidade processual, integrando-a no artº 195º do CPC, tratando-se da omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei impõe, que conduz à nulidade porque tal irregularidade é suscetível de influir no exame ou na decisão da causa. A arguição da nulidade processual faz-se na própria instância em que é cometida, salvo o disposto no artº 199º/3 do CPC, de imediato ou no prazo geral de 10 dias.
A outra posição entende que se trata de uma nulidade da sentença decorrente de um excesso de pronúncia, prevista no artº 615º/1, al. d) do CPC, devendo ser arguida em sede de recurso de apelação, desde que o processo o admita (artº 615º/4 do CPC).
No primeiro sentido temos o seguinte acórdão do STJ (in www.dgsi.pt):
- Acórdão de 04.04.2024 (procº nº 5223/19.6T6STB.E1.S1            , Maria da Graça Trigo), assim sumariado na parte que para o caso importa:
I- A decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é nula por aplicação do n.º 1 do art. 195.º do CPC, sendo que o meio processual próprio para arguir a nulidade é a reclamação para o tribunal onde ela foi cometida, salvo na hipótese prevista no n.º 3 do art. 199.º do CPC”.
No segundo sentido temos o seguinte acórdão também do STJ:
- Acórdão de 05.07.2022 (procº nº1258/19.7T8LSB.L1.S1,            Ricardo Costa), assim sumariado na parte que para o caso importa:
IV- Sendo a alegada nulidade processual absorvida e consumida, a final, como nulidade de decisão ou julgamento (enquanto “excesso de pronúncia” pela falta do contraditório na tramitação processual inerente à audiência prévia e ofensa ao princípio da proibição de decisões surpresa, de acordo com o art. 3º, 3, do CPC, sancionada nos termos do art. 615º, 1, d), 2ª parte, CPC), a apreciação desta última não se encontra precludida, como se fosse decisão definitiva por sanação anterior do vício, pelo regime da nulidade processual e do seu eventual caso julgado, que, neste caso de coincidência de fundamento erigido em fundamento recursivo, não se constituiu como tal à luz do art. 620º, 1, do CPC.
V- Se esta qualificação (nulidade de decisão) é a que melhor se adequa à falta de exercício de alegação e contraditório pelas partes na tramitação processual e possa e deva ser conhecida e apreciada com competência funcional própria pelo tribunal de recurso, como vício autónomo e próprio à luz do catálogo do art. 615º, 1, do CPC, ao invés (e independentemente) de ser reclamada no tribunal recorrido, onde a alegada nulidade teria sido cometida, como deveria ser se apenas fosse vista como nulidade processual, então não estava o tribunal de 2.ª instância impedido (por esgotamento de poder jurisdicional) de apreciar o vício como nulidade da sentença, uma vez invocada por via do recurso interposto dessa decisão”.
Nas Relações existem também divergências quanto à natureza do vício, citando-se a título de exemplo os seguintes acórdãos (todos in www.dgsi.pt):
TRL (desta 6ª secção) de 26.09.2019 (procº nº 6141/17.8T8ALM.L1.L1-6 Nuno Lopes Ribeiro)
A. A arguição de nulidade de decisão final, por violação do princípio do contraditório, apenas pode ser efectuada em sede de recurso (sendo este admissível) e não em incidente próprio, perante o tribunal que proferiu aquela decisão, nos termos do art. 615º, nºs 1, d), in fine e 4 do Cód. Proc. Civil.
TRE de 14.08.2021 (procº nº 2334/12.2TBPTM-B.E1, Cristina Dá Mesquita)
4 – A decisão que julga procedente a arguição da falta de citação da executada sem prévia audição da exequente, constitui, por conseguinte, uma decisão-surpresa, e, nessa medida, é uma decisão nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC), porquanto, através dela, o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria.
TRC de 03.04.2021 (procº nº 1250/20.9T8VIS.C1, Moreira do Carmo)
i) Proferida decisão-surpresa, com violação do princípio do contraditório, em desrespeito pelo estatuído no art. 3º, nº 3, do NCPC, incorre-se numa nulidade processual, nos termos do art. 195º, nº 1, do mesmo diploma, e não numa nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, do art. 615º, nº 1, c), do referido código”.
TRP de 08.10.2018 (procº nº 721/12.5TVPRT.P1, Ana Paula Amorim)
I - Suscitada a título oficioso a apreciação de uma questão de direito, o exercício do contraditório, nos termos do art. 3º/3 CPC dependerá sempre da verificação de uma nova abordagem jurídica da questão perante o objeto do litígio, que não fosse perspetivada pelas partes, mesmo usando da diligência devida.
II - A omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar “decisões-surpresa”, configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º/1 d) CPC.
TRP de 29.01.2024 (procº nº 2803/19.3T8PNF-B.P1, Germana Ferreira Lopes)
V – A inobservância do contraditório com prolação de uma decisão surpresa constitui uma omissão grave relacionada com o direito de defesa, representando uma nulidade processual sempre que tal seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, podendo a invocação do vício em causa ser feita pela via do recurso desde que a coberto de uma decisão judicial.
TRL de 22.06.2021 (procº nº 9796/19.5T8LRS.L1-7, Isabel Salgado)
5.Não tendo as partes conhecimento prévio que o julgador projecta conhecer da excepção peremptória da prescrição, dispensada a audiência prévia, de juro constituto, ocorre nulidade determinante no destino da causa, reconduzível à previsão do artigo 195º, nº1, do Código de Processo Civil, com a consequente anulação do saneador-sentença proferido.
 6.A igual conclusão se chegará, ao rastrearmos a situação à luz da nulidade da sentença tipificada no artigo 615º n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil, perante uma decisão-surpresa, que conheceu de mérito da causa, sem observância do contraditório e, ao arrepio do estabelecido nos artigos 3º, nº 3, 591º, nº 1, al. b), e 593º, nº 1, do mesmo diploma legal”.
As consequências de seguir uma ou outra posição seriam diferentes, pois, como se expôs supra, tratando-se de nulidade processual teria de ser arguida perante o tribunal a quo, ao passo que as nulidades da sentença são invocadas em sede de recurso de apelação. No entanto, como se constata de alguma jurisprudência acima citada, admite-se que, mesmo considerando que estamos perante uma nulidade processual, a parte possa invocá-la em sede de recurso.
No caso concreto, estamos perante a situação em que a parte considerou a priori que se tratava de uma nulidade da sentença e por isso apenas a invocou em sede de recurso de apelação. Entendemos que, independentemente da tomada de posição sobre a mencionada clivagem jurisprudencial, ainda que se considerasse que estamos perante uma nulidade processual, a questão pode ser apreciada em sede de recurso de apelação. Tal decorre também da circunstância de considerarmos a parte não deve ser prejudicada, vendo a sua pretensão recursiva desatendida por questões meramente formais, quando atua de acordo com interpretações que têm a chancela da mais alta instância judicial, para além de diversa jurisprudência das Relações.
Vejamos então se ocorre ou não o vício de nulidade que a recorrente imputa à decisão recorrida.
Com o artº 3º/3 do CPC, pretendeu-se ampliar o âmbito do princípio do contraditório, consagrando mais uma garantia de discussão entre as partes no desenvolvimento de todo o processo, consagrando de forma ampla o direito a exprimir posição para influenciar a decisão, abrangendo agora também as questões que são de conhecimento oficioso e não apenas as que eram suscitadas pelas partes nos respetivos articulados.
Idêntico escopo esteve na base do disposto no artº 591º/1, al. b) do CPC, segundo o qual uma das finalidades da audiência prévia é a de “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”.
Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida a decisão a proferir de sobre ela se pronunciar, dando-lhe a possibilidade de influir na decisão. Qualquer questão, seja relativa ao mérito da causa, seja meramente processual, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, antes de as partes serem convidadas a sobre ela se pronunciarem, desde que se trate de uma questão nova e de que as partes não pudessem, razoavelmente, contar com a respetiva apreciação. Trata-se do princípio da proibição das chamadas decisões surpresa. A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo ou com o sentido da decisão em si, mas antes com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com cuja apreciação se não estava a contar. Se se trata de uma questão relativamente à qual era exigível, no quadro jurídico-processual suscetível de ser aplicado à causa, que a parte contasse com a respetiva apreciação, aí já não estamos perante uma decisão surpresa, mas unicamente com a mera surpresa da parte com a decisão, que não tem qualquer relevância jurídica, mormente anulativa da decisão.
A decisão recorrida, como resulta da fundamentação transcrita supra, fundou-se no procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), instituído pelo Dec. Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro.
De referir desde já que, no que toca à materialidade dos fundamentos da sentença, o decidido pelo tribunal recorrido é o que constitui jurisprudência claramente maioritária, citando-se, exemplificativamente, os seguintes acórdãos[2]:
- TRP de 08.06.2022 (4204/20.1T8MAI-A.P1)
I - O procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), instituído pelo Dec. Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, tem aplicação, obrigatória, quando o cliente bancário consumidor incorre numa situação de incumprimento de obrigações resultantes de contratos de crédito, constituindo um instrumento extrajudicial de proteção daquele, imposto às instituições bancárias, impeditivo de, antes do seu decurso, serem desencadeados procedimentos judiciais com vista à satisfação desses mesmos créditos.
II - O recurso a tal procedimento extrajudicial (com a integração em PERSI e a comunicação de extinção de tal procedimento, persistindo o incumprimento), funciona como condição de admissibilidade da ação judicial (declarativa ou executiva) pela qual a instituição bancária peticiona o pagamento. Na omissão de cumprimento, pela instituição bancária, dessa obrigação prévia (falta de PERSI), verifica-se exceção dilatória inominada, insuprível, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição da instância (art. 18º, nº1, al. b) do referido diploma).
III - Destarte, se previamente a ação para cobrança de um concreto crédito (procedimento judicial) não tiver havido integração em PERSI, com vista à obtenção de pagamento do mesmo (prévio procedimento extrajudicial), verifica-se tal exceção dilatória conducente à absolvição da instância.
IV - E a comunicação de integração no PERSI, bem como a de extinção do mesmo, ao cliente/devedor tem de ser feita, pela instituição bancária, em suporte duradouro, isto é, tem de estar materializada em instrumento que possibilite a sua integral e inalterada reprodução (documento - cfr. art. 362.ºdo CC).
V - Sendo condição de admissibilidade da ação judicial, incumbe ao banco/exequente, que pretende lançar mão do procedimento judicial, o ónus da prova do envio (por si) e da receção (pelo cliente) de tais declarações recetícias, cabendo-lhe demonstrar, para além da sua existência e envio, a receção pelo cliente, não constituindo a mera junção aos autos de simples cartas de comunicação prova quer do seu envio quer da sua receção e, não demonstrada esta, ocorre exceção dilatória, insuprível, que determina a extinção da instância executiva.
- TRE de 28.06.2018 (2791/17.0T8STB-C.E1)        
1 - Uma das garantias que é atribuída aos clientes bancários na situação comtemplada pelo Dec. Lei 227/2012 é a proibição de sobre eles serem intentadas ações judiciais, proibição esta que impende sobre o credor, para a satisfação do seu crédito, entre a data da integração do devedor no PERSI e a sua extinção – cfr. artigo 18.º, n.º 1, alínea b).
2 - A preterição de sujeição do devedor ao PERSI, por parte do Banco credor, consubstancia incumprimento de norma imperativa, a qual constitui, do ponto de vista adjetivo - com repercussões igualmente no domínio substantivo -, uma condição objetiva de procedibilidade da própria pretensão, que deve ser enquadrada com as necessárias adaptações, no regime jurídico das exceções dilatórias.
3 - O regime das exceções dilatórias, quer elas sejam nominadas ou inominadas, no que respeita ao seu conhecimento oficioso só tem as exceções indicadas expressamente na lei, conforme decorre do disposto no artº 578º do CPC, sendo, por tal, na generalidade, de conhecimento oficioso.
4 – A preterição de sujeição do devedor ao PERSI é de conhecimento oficioso, e como tal a sua invocação pela parte, ou a sua apreciação oficiosa, está subtraída ao prazo concedido para apresentação da defesa, regendo, por isso, a última parte do n.º 2 do artº 573º do CPC, que descarta a aplicação do princípio da preclusão.
- TRC de 07.02.2023 (171/20.0T8VLF-C.C1)
I– Não há que conhecer de questões apenas arguidas nas alegações de recurso e que não se mostrem de conhecimento oficioso, visto que os recursos servem para reapreciar questões apreciadas na instância recorrida.
II – Já as questões de conhecimento oficioso invocadas pelos reclamados apenas nas alegações de recurso, como sucede relativamente à falta de observância pela exequente/reclamante dos procedimentos a que obriga o PERSI antes da instauração da  execução,   devem ser apreciadas, desde que os autos contenham elementos para tanto e que essas questões não tenham sido objecto de decisão transitada.
- TRL de 02.03.2023 (65/22.4T8SNT-A.L1-2)
III) Tendo o contrato de compra e venda com mútuo e hipoteca dos autos sido contraído com a finalidade de o imóvel se destinar a habitação própria permanente da mutuária/executada e ocorrendo mora, no domínio de aplicação e vigência do regime do PERSI, ainda que o contrato dos autos tenha sido celebrado em data anterior à de entrada em vigor (01-01-2013) desse regime jurídico, a instituição de crédito deveria promover as diligências necessárias à implementação do PERSI, relativamente a tal cliente bancário, que tem a feição de consumidor, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 3.º, al. a) e c), e 12.º e ss. do D.L. n.º 227/2012, de 25 de outubro, na redação originária deste diploma.
IV) A falta de integração obrigatória do cliente bancário no PERSI, quando reunidos os pressupostos para o efeito, constitui impedimento legal a que a instituição de crédito, credora mutuante, intente acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito – cfr. artigo 18.º, n.º 1, al. b) do D.L. n.º 227/2012, de 25 de outubro – pelo que, estando o crédito em incumprimento sujeito ao âmbito de aplicação do diploma que aprovou o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), o credor não pode instaurar execução para obter a satisfação do seu crédito sem previamente instaurar e tramitar este procedimento.
V) A instauração de acção executiva sem que se mostrem verificada a referida condição objectiva de procedibilidade, que deverá ser sedimentada sempre em “suporte duradouro” – que, no caso, se mostra inexistente - gera a verificação de uma excepção dilatória inominada, que conduz à absolvição da instância (cfr. artigos 576.º, n.ºs. 1 e 2, 577.º e 578.º do CPC).
- TRL de 15.12.2022 (23116/16.7T8SNT-C.L1-8)
I. O cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da acção executiva cuja ausência se traduz numa excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância.
II. E como tal a sua invocação pela parte, ou a sua apreciação oficiosa, está subtraída ao prazo concedido para apresentação da defesa, regendo, por isso, a última parte do nº 2 do art.º 573º, do NCPC que descarta a aplicação do princípio da preclusão.
- TRP de 08.06.2022 (9290/20.1T8PRT-A.P1, in diariodarepublica.pt)
I - A integração em PERSI e a comunicação de extinção do procedimento funcionam como uma condição de admissibilidade da ação, declarativa ou executiva, constituindo a sua falta exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância [art. 18.º, nº 1 al. b) do DL 227/2012 de 25 de Outubro].
Como resulta da resenha jurisprudencial supra, com a qual concordamos na íntegra, a integração dos devedores no procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), instituído pelo Dec. Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, é obrigatório para as instituições de crédito quando o cliente consumidor incorre numa situação de incumprimento de obrigações resultantes de contratos de crédito, sendo impeditivo de, antes do seu decurso, serem instauradas ações judiciais com vista à condenação no pagamento das quantias em dívida. A não integração do devedor no referido procedimento constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, devendo o autor invocar na petição inicial que cumpriu, previamente à ação, esse procedimento.
Assim, em termos de conteúdo material da sentença, nada há a apontar à decisão recorrida, improcedendo, portanto, desde logo, as conclusões x, xi e xii das alegações da recorrente.
Constitui tal decisão uma decisão surpresa? Consideramos que não. A autora, como instituição de crédito que é, sujeita ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei N.º 298/92, de 31 de dezembro, tem obrigação de conhecer todas as normas que regem a sua atividade profissional. Não obstante se tratar de uma questão nova – até porque a ação não foi contestada – não constitui de forma alguma uma questão que a autora, como instituição de crédito que é, não devesse, razoavelmente, contar com a respetiva apreciação, muito antes pelo contrário. Sendo o regime do Dec. Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, obrigatório para as instituições de crédito, tinha a autora de contar com o controle judicial da respetiva aplicação em sede de apreciação das questões suscetíveis de impedirem o conhecimento do mérito da causa.
O recurso, tem, pois, e de forma manifesta, de improceder.
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DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem este coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente (artº 527º/1 e 2 do CPC).

Lisboa, 20jun2024
Jorge Almeida Esteves
Eduardo Petersen Silva
Nuno Lopes Ribeiro
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[1] Não foi cumprido o disposto no artº 567º/2 do CPC, tendo o tribunal a quo invocado o seguinte fundamento para a omissão dessa formalidade: “Uma vez que a autora alegou de facto e de direito na petição inicial, não se afigura determinante a sua notificação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 567º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o que se decide ao abrigo do princípio da economia e celeridade processuais (artigo 6º, n.º 2, do Código de Processo Civil)”.
[2] Todos in www.dgsi.pt, à exceção do último.