EXTENSÃO DO CASO JULGADO
FACTOS INSTRUMENTAIS
PRESUNÇÃO JUDICIAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário

1.- Embora a fundamentação de facto de sentença judicial releve em sede de limites objetivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre a referida decisão não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, ou seja, os respectivos factos provados ou não provados não beneficiam da autoridade de caso julgado no âmbito de um outro processo judicial .
2. – Como decorre do artº 607º,nº4, do CPC, os factos “instrumentais” [ que são “ aqueles cuja ocorrência conduz à demonstração, por dedução, dos factos essenciais ] têm uma função probatória, servinfo fundamentalmente para formar a convicção do julgador sobre a ocorrência ou não dos factos essenciais.
3. – Não obstante o referido em 6.2., mostra-se vedado ao tribunal da Relação – e na sequência de pertinente impugnação da decisão de facto – recorrer a presunção judicial para julgar como provada factualidade essencial que em sede de decisão de facto foi julgada directamente como não provada.
4. - Para se reconhecer a obrigação de restituir sustentada no enriquecimento sem causa, não é suficiente que se demonstre a obtenção duma vantagem patrimonial, à custa de outrem, sendo exigível ainda exigível mostrar que não existe uma causa justificativa para concreta deslocação patrimonial;
5. - A falta de causa terá de ser não só alegada como provada ,de harmonia com o principio geral estabelecido o artº 342º, por quem pede a restituição”, não bastando para tal efeito que “não se prove a existência de uma causa de atribuição”;

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de LISBOA
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1.Relatório.       
A intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra B, peticionando que:
i) Seja o contrato de Doação, celebrado entre o R. e o A., anulado, por corresponder a um Negócio Usurário e ofensivo dos bons costumes, nos termos do art.282.º, com os efeitos previstos no art. 289.º do Código Civil ;
ou, subsidiariamente,
ii) Seja o contrato de Doação, celebrado entre o R. e o A., anulado, porque viciado por Incapacidade Acidental do A., nos termos do art. 257.º, com os efeitos previstos no art. 289.º, ambos do Código Civil ;
ou ainda, subsidiariamente,
iii) Seja reconhecida a ocorrência de uma deslocação patrimonial injustificada do património do A. para o património do R.
iv) Seja o R., nos termos do art. 473.º n.º 1 e 2 do Código Civil, condenado a restituir ao A. o referido imóvel doado por este àquele, anulando-se a respectiva doação, restituindo-se, consequentemente, a propriedade ao ora A.;
v) Seja, ainda, determinado, em qualquer dos casos, o cancelamento dos registos efectuados a favor do R. junto da Conservatória do registo predial relativamente ao imóvel e, bem assim, seja determinado a alteração do proprietário junto da A.T., relativamente ao imóvel em causa.
1.1. – Alegou o Autor,  para tanto e em síntese, que :
- O autor e o Réu conheceram-se em Dezembro de 2020 e, a 8 de janeiro de 2021 o Réu começou a viver na casa do Autor, que era propriedade do Autor ;
- Diariamente, e no inicio o Réu estava sempre, em casa, da parte da manhã, cozinhava e preparava a comida e cuidava das coisas de casa e,  logo começou a dizer ao A. que queria viver com o ele para o resto da vida e que adorava aquela casa, sempre demonstrando uma grande vontade e desejo de que a casa ficasse para ele, não por morte do A., ou seja, não através de um testamento a seu favor, mas em vida do mesmo;
- É assim que em Fevereiro de 2021 veio o A. a fazer a doação da sua casa ao Réu, ficando o A com o direito de usufruto, para tanto tendo o Réu preparado e tratado de todos os procedimentos, com a ajuda de uma advogada brasileira, sua conhecida;
- Sucede que é o Autor uma pessoa extremamente vulnerável, e , no período em que ocorreram os factos, estava a passar por uma fase pontualmente mais difícil, quer do ponto de vista físico, quer psicológico, deixando-se várias vezes enfraquecer quer devido a problemas do foro psiquiátrico de que padece há já muitos anos, quer por desgostos ou traições e vigarices de que é alvo e tem sido alvo ao longos dos anos, nomeadamente e mais recentemente, desde 2018, por debilidade física e psicológica que fez com que se sentisse carente, fragilizado e ainda mais ávido de companhia e amizade de alguém;
- Acresce que o A. padece de Perturbação Afectiva Bipolar desde 1998, o que dá origem a períodos longos de alteração cognitiva-afectiva graves, com expansão delirante do humor e consequentes perturbações no plano comportamental, redutoras de autocritica e do discernimento global e aumento da permeabilidade à influência de terceiras pessoas;
- É assim por demais evidente que o Réu se aproveitou e explorou a vulnerabilidade, fragilidade e dependência do A. que lhe toldam a personalidade e a vontade, sendo que, no caso, o negócio em causa ( uma doação de imóvel feita ao réu ) viola as regras dos bons costumes, tratando-se portanto, de um negócio Usurário conforme previsto no artº 282º do Código Civil ;
- Ademais, em face do quadro clinico mental do A., existe ainda a Incapacidade Acidental como meio idóneo para anular a declaração negocial do autor, incapacidade que no caso sub judice é permanente, revelando-se há já bastantes anos, sempre num contexto de carência ou no decurso de períodos de carência afectiva do A., resultantes de desgostos, abandonos e traições, etc.;
- Mas, caso assim se não entenda, o facto é que o ora Réu ficou com o seu património enriquecido à custa do empobrecimento do ora Autor, na medida do aumento do ativo patrimonial daquele, sendo que é princípio geral do nosso direito civil o da proibição do enriquecimento injustificado, sendo o mesmo, uma das fontes das obrigações.
1.2. – Citado o Réu, veio o mesmo CONTESTAR, fazendo-o essencialmente por impugnação motivada [ aduzindo v.g. que durante o mês de Dezembro Autor e Réu encetaram um namoro e viveram uma relação afectiva entre dois adultos, tendo inclusivamente chegado o autor a falar de casamento, tendo sido o autor que manifestou o interesse em fazer a doação do imóvel para o réu ], e ,concluindo por reconhecer a existência da doação, alegando que foi a mesma regularmente constituída, não sendo inválida, razão porque devem todos os pedidos formulados pelo Autor ser julgados improcedentes por não provados.
1.3. – Dispensada [  Nos termos do disposto pelos artigos 593º , nº 1 , e nº 2 , 596º , nº 1 , do C.P.C. ] a realização da audiência prévia , foi proferido despacho que fixou o valor da causa, identificando-se ainda o objecto do litígio e enunciando-se os temas da prova, não tendo havido reclamações.
1.4. - Por fim, chegado o dia designado [ dia 28/09/2022 ] para a AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO, à mesma se procedeu com observância do legal formalismo e, após o respectivo encerramento e conclusos os autos para o efeito, foi proferida a competente SENTENÇA, sendo o respectivo excerto decisório do seguinte teor:
“(…)
3. Decisão
Pelos fundamentos expostos, julgo a acção improcedente e, em consequência, absolvo o R. dos pedidos deduzidos pelo A.
Registe e notifique.
Custas pelo A.
Lisboa, 02 de Novembro de 2022.
1.5. - Notificado da sentença, da mesma discordando e inconformado, veio o Autor A da mesma interpor a competente apelação, sendo que, a justificar a alteração do julgado, aduziu o recorrente as seguintes conclusões  :
A- A sentença de que se recorre aprecia erradamente a prova testemunhal, produzida em juízo, quando no seu nº xi) declara como Não Provadoque o Réu não podia deixar de saber”, isto é, considera que não se provou que o Réu sabia da incapacidade que afectava a personalidade e vontade do A., à data da celebração da Escritura de Doação, e dessa forma põe em crise a apreciação feita da prova testemunhal que, no essencial, supra se transcreve, nomeada e principalmente na que se baseou no depoimento prestado por V…, amigo de longa data e muito próximo do A. e, também primo do Réu
B - Afigura-se-nos inequívoco que, as características de personalidade do A./recorrente, para além de serem perfeita e facilmente cognoscíveis por terceiros, num curto espaço de tempo, foram reveladas ao Réu, antes até, de este conhecer o A., como bem explica a testemunha V…, e portanto, antes da celebração da escritura de Doação.
C- Resulta, por isso, igualmente, inequívoco que esteve mal o Tribunal a quo, quando desconsiderou por completo a mencionada prova testemunhal e, portanto, impõe-se, desta forma que o mencionado facto deve ser dado como Provado.
D- Esteve mal, ainda, o Julgador a quo, com o devido respeito, ao considerar na sentença, o facto xi) como Não Provado: “...que quando subscreveu o original do documento cuja cópia se encontra de fls. 11-verso a 13-verso A., o estava incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração...”
Isto porque,
E- Em primeiro lugar, a decisão de que se recorre, começa por ser contraditória, ao considerar provado os factos constantes dos números 4, 5, 6, 7 e 8 da sentença de que se recorre (pág 3 a 6), que transcrevem o que foi decidido na sentença proferida na Acção do Maior Acompanhado, sobre a “doença do Maior Acompanhado (aqui A.) e sobre a necessidade de medidas de acompanhamento, desde 2014, e a seguir decide como não provado o constante do numero xi) dos factos Não Provados, ( mais precisamente, da sua 1ª parte), admitindo a hipótese de uma “improvável” lucidez aquando da prática de um facto pelo A. (Doação), em fevereiro de 2021.
Em segundo lugar, o Tribunal a quo, Erradamente, não extrai nem aproveita dos supra mencionados factos provados, nada de útil, em termos de prova, para a decisão da causa, como lhe é exigível.
Isto é, o julgador a quo Despreza totalmente, o que resulta da prova feita, demitindo-se completamente de uma exegese jurídica ( que lhe é exigida) à luz da prova por Presunção Judicial, não justificando, sequer, por que razão não o fez .
F- Por conseguinte, em caso de recurso com impugnação relativa à matéria de facto, como é o caso, pode e deve, a Relação lançar mão das presunções judiciais, seja para alterar os factos dados como provados e não provados, seja para desenvolver a matéria de facto dada como provada na 1.ªinstância, dando novos factos como provados com base em factos declarados provados no tribunal a quo
• Nesse sentido, nos elucida perfeitamente, o Ac STJ de 04-10-2018, Proc 588/12.3TBPVL.G2.S1, de que transcrevemos apenas:
“( …) Em sede de reapreciação da decisão de facto é conferido ao Tribunal da Relação o poder de se socorrer, mesmo oficiosamente, de todos os meios de prova constantes do processo bem como do uso de presunções judiciais, nos termos permitidos pelos artigos 349º e 351º,ambos do Código Civil.” (negrito nosso)
• No mesmo sentido, vai o Ac STJ de 19-01-2017, Proc 841/12.6TBMGR.C1.S1:
“(...) Face à competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto(art.º 662º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), é lícito à 2ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º4 do art.º 607º,aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil ”.
• O mesmo nos diz o Ac STJ de 09-12-2004, Proc 04B3526:
“(..) I - As instâncias podem tirar, através das chamadas presunções judiciais, ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, completando-a e esclarecendo-a ”;
G- A douta sentença recorrida violou também o artº 5º nº 2 e 3, e 607º nº 4 e 900º todos do C.P.C. tendo ainda feito má aplicação do artº 349º, 351º, 154º , 257º todos do Código Civil, nomeadamente ao descartar o que a lei coloca ao alcance do julgador na apreciação dos factos e decisão da causa, devendo ser revogada
H- Por fim, tendo em conta que, – o suposto e fugaz “relacionamento” entre A. e R., começou em Janeiro de 2021 e terminou pouco depois da data da Doação, (fevereiro de 2021), tendo o Réu deixado de viver na casa do A. a 8 de junho de 2021:
Entende-se, ainda, que, (tal como também foi pedido pelo A.), com a matéria de facto que se considera provada, estão preenchidos também, os requisitos para uma condenação, ainda que, subsidiariamente, sustentada nos fundamentos do Enriquecimento Sem Causa.
Não só porque uma pessoa obteve vantagem económica à custa de outra, mas, principalmente, porque se verifica a ausência de causa jurídica justificativa da deslocação patrimonial (sendo esta a situação de enriquecimento que aqui está em causa).
Sendo este conceito muito controvertido e difícil de definir ( Menezes Leitão, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, p. 891 e Galvão Telles, Direito das Obrigações, p. 199 ), em regra, a doutrina considera que o enriquecimento não terá causa justificativa quando, segundo os princípios legais não haja razão de ser para ele; quando, segundo o sistema jurídico, deve pertencer a outrem e não ao efetivo enriquecido.
Houve assim uma deslocação patrimonial a favor do Réu e à custa do Autor, que se traduz no enriquecimento daquele e no correspetivo empobrecimento deste e sem que a vantagem auferida pelo Réu tenha qualquer razão de ser, ou seja, qualquer motivo “aprovado ou consentido pelo direito, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, a justifique
Ou seja, no caso concreto, aquilo que podia explicar o motivo da Doação pelo A. ao Réu, -- uma relação sólida e duradoura,-- desmoronou-se logo assim que o Réu, conseguiu conquistar a confiança do A., e obteve gratuitamente a propriedade da sua casa de habitação.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V.Exª doutamente suprirá, requer-se que seja dado provimento ao Recurso, alterando a douta decisão recorrida nos termos pugnados nas presentes alegações, determinando a anulação da Doação, e o cancelamento dos registos efectuados a favor do Réu/Recorrido junto da Conservatória do Registo Predial relativamente ao imóvel, devendo para o efeito:
– considerar-se provado (por prova testemunhal),que a doença de que padece o A./Recorrente era notório e era conhecida do ora Réu/Recorrido, destinatário da Doação,
– considerar-se provado a incapacidade do A./Recorrente à data da Doação, com base na sentença proferida no processo de Maior Acompanhado, mediante o julgamento dos factos à luz da exigível prova por presunção judicial ao alcance e dentro dos poderes da presente instância
Por fim, e em alternativa, requer-se que seja dado provimento ao recurso, com fundamento no Enriquecimento sem Causa, pela verificação de uma deslocação patrimonial do A. para o R., sem causa justificativa.
1.6.- Tendo o apelado B, contra-alegado, veio o recorrido impetrar a confirmação do julgado, concluindo do seguinte modo :
A decisão proferida pelo tribunal a quo é, além de boa e justa, convincente e compreensível, cumprindo com as exigências de fundamentação adequadas ao caso, tendo em consideração a complexidade e qualidade da prova produzida.
Sendo que relativamente aos factos não provados as exigências de fundamentação deverão ser simplificadas (relativamente ao que sucede com os factos provados), podendo limitar-se a, de uma forma mais sucinta e menos exaustiva, indicar que os factos foram considerados não provados porque a prova produzida sobre os mesmos não foi considerada credível de todo ou por se ter relevado contraditória com a prova produzida (sendo que esta terá merecido maior credibilidade por parte do tribunal, pelas razões que deverão ter sido já apontadas mas motivação dos factos provados.
Pelo exposto, bem andou a sentença recorrida, que não merece qualquer censura e sobre a qual não há qualquer reparo a fazer.
Nestes termos e com o douto suprimento de V. Exas. deve ser negado provimento à apelação interposta, mantendo-se a sentença recorrida que não merece qualquer reparo ou censura.
Fazendo-se assim a acostumada JUSTIÇA.
1.7. – Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, e por Acórdão [ por maioria e c/voto de vencido ] proferido em 27/4/2023, veio a apelação a ser julgada improcedente, sendo confirmada a Sentença recorrida.
1.8. – Do Acórdão identificado em 1.7. interpôs de seguida o autor A a competente REVISTA, a qual, admitida e subindo os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, veio a ser julgada Procedente por douto ACÓRDÃO de 2/5/2024, sendo o respectivo excerto decisório do seguinte teor :
“ Pelo exposto, anula-se o acórdão recorrido respeitante à reapreciação da impugnação da decisão de facto dada como não provada na sentença ”.
1.9. – Regressando os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, e, enviados os autos à DISTRIBUIÇÃO [ para SUBSTITUIÇÃO da Exmª Juiz Desembargadora impedida ], IMPORTA novamente apreciar e resolver a apelação identificada em 1.5.
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Thema decidendum
2. - Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que , estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões [ daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal ad quem ] das alegações dos recorrentes ( cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho ), e sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, as questões a apreciar e a decidir  são as seguintes  ;
I) Se deve este Tribunal ad quem introduzir alterações/modificações na decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto, e em sede de julgamento de concreto ponto de facto impugnado pelo apelante, designadamente;
a) Se o ponto de facto com o nº 3.23. da motivação de facto do presente Ac. se impõe ser julgado “Provado”;
II - Se deve a sentença apelada, maxime em razão da alteração da decisão relativa à matéria de facto proferida pelo a quo e em consequência da impugnação do apelante, ser revogada, sendo a acção julgada procedente;
III - Se deve a sentença apelada, ainda que não seja a decisão de facto alterada, ser substituída por decisão que julgue procedente o pedido subsidiário deduzido com fundamento no instituto do Enriquecimento Sem Causa;
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3- Motivação de Facto.
Pelo tribunal a quo foi fixada a seguinte factualidade:
A) PROVADA
3.1.- Com data de 22 de Fevereiro de 2021, A. e R., como primeiro e segundo contraente, respetivamente, subscreveram a denominada “Doação”, junta a fls. 11v e 12 dos autos, pela qual o A. disse que “(…) doa ao segundo contraente, livre de ónus ou encargos, reservando para ele doador o usufruto vitalício, do seguinte imóvel : Fracção autónoma designada pela letra “A”, que corresponde ao rés-do-chão esquerdo, para habitação, com carvoeira no logradouro, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na D. …, número ……., na freguesia de Santa Isabel, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número …, da freguesia de Santa Isabel, aí registada a aquisição a favor do doador pela apresentação … de vinte e oito de Outubro de mil novecentos e noventa e sete, submetido ao regime da propriedade horizontal pela apresentação … de vinte de Maio de mil novecentos e noventa e sete e inscrito na matriz predial urbana sob artigo …, da freguesia de Campo de Ourique, com o valor patrimonial correspondente à fracção de 111 223,70 euros.
Que ele primeiro contraente tem setenta e nove anos de idade, pelo que dá a esta doação o valor de oitenta e oito mil novecentos e setenta e oito euros e noventa e seis cêntimos, que é o valor da nua propriedade (…).”.
3.2.- No dia 22.02.2021, foi celebrado pela advogada …… o “Termo de Autenticação”, junto a fls. 12v e 13, no qual A. e R., como primeiro e segundo outorgantes, respetivamente, declararam: “(…) Que para fins de autenticação me apresentaram o presente contrato de doação, que disseram haver lido e assinado e que o mesmo exprime as suas vontades, confirmando o conteúdo, instrumento esse que tem por objecto o seguinte imóvel: A raiz ou nua propriedade da fracção autónoma designada pela letra “A”, que corresponde ao rés-do-chão esquerdo, para habitação, com carvoeira no logradouro, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na D. …, número ……., na freguesia de Santa Isabel, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número …., da freguesia de Santa Isabel e inscrito na matriz predial urbana sob artigo …, da freguesia de Campo de Ourique. (…).”.
3.3. - Pela Ap. … de 2021/04/15 a aquisição da fracção id. foi registada a favor do Réu e o usufruto foi registado a favor do A.
3.4. - Com data de 23.08.2022, foi proferida decisão no processo n.º 14449/21.1T8LSB, a correr termos no Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 10, que determinou “a aplicação ao beneficiário A da medida de acompanhamento de representação especial, consignando-se que tal medida se tornou necessária desde 1 de Maio de 2014.
Em concreto, o maior acompanhado carece de representação para actos de disposição ou oneração do seu património.
Declaro ainda o maior acompanhado impedido de exercer os seguintes direitos pessoais:
a) tem impedimento dirimente absoluto para contrair casamento ( cfr. art.º 1601.º ,al. b) do C.Civil);
b)  é incapaz de testar (art. 2189.º al. b) do C.Civil);
d) é - lhe vedado o direito de perfilhar ou adotar (art. 1850.º n.º 1, do C.Civil). ”.
3.5.- Da sentença constam os seguintes factos provados:
1º. A nasceu a 8 de Fevereiro de 1942 e é divorciado.
2º. O beneficiário apresenta um défice cognitivo global ligeiro, com maior incidência na memória, na fluência verbal e na construção viso espacial, com impacto no funcionamento diário, com diminuição do desempenho em situações sociais mais exigentes, requerendo algum suporte ou supervisão.
3º. Foi seguido em consulta externa de psiquiatria do Hospital Júlio de Matos entre 17/11/1998 e 12/07/1999 por apresentar quadro de distimia.
4º. Nesse seguimento foi-lhe diagnosticada Perturbação Afetiva Bipolar.
5º. Observado em 13/09/2017, foi-lhe detetada a existência de períodos longos de alteração cognitiva-afectiva graves, com expansão delirante do humor e consequentes perturbações no plano comportamental, redutoras da autocrítica e do discernimento global e aumento da permeabilidade à influência de terceiras pessoas.
6º. O beneficiário sofre de uma credibilidade excessiva que o vulnerabiliza perante pessoas mal-intencionadas.
7º. Desde pelo menos maio de 2014, o beneficiário é recorrente em comportamentos de prodigalidade e má gestão do património.
8º. Entre 2014 e 2021 o beneficiário transmitiu a propriedade de vários imóveis a favor de ……., incluindo a sua casa de habitação, e emprestou-lhe €60.000,00, sem qualquer contrapartida.
9º. Atualmente o beneficiário está orientado no espaço e no tempo, auto e alo psiquicamente.
10º. Apresenta alterações da função executiva/visuo espacial ( prova do relógio : incapaz de desenhar números e ponteiros, incapaz de copiar cubo, incapaz de realizar sequência de números e letras).
11º. Sabe dizer quanto ganha de pensão.
12º. Consegue reconhecer o valor facial e patrimonial do dinheiro.
13º. É capaz de realizar trocos simples e complexos.
14º. É capaz de efetuar subtrações.
15º. É capaz de interpretar provérbios.
16º. Consegue relatar factos correntes do dia-a-dia.
17º. Apresenta noção da posse e das necessidades pessoais, bem como do património.
18º. O beneficiário é licenciado em Direito e foi advogado, encontrando-se reformado.
19º. Não tem filhos.
20º. Tem um irmão já falecido.
21º. Conta com o apoio das primas.
22º. Reside sozinho e tem uma empregada para limpeza da casa.
23º. Desloca-se sozinho.
24º. Aufere uma reforma e rendas de imóveis que arrenda.”.
3.6.- O A. foi seguido nas consultas externas do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa – Polo Júlio de Matos entre 17.11.1998 e 12.07.1999, por apresentar um quadro de distimia.
3.7.- O A. sofre de perturbação afectiva bipolar.
3.8.- Segundo a declaração médico-psiquiátrica junta a fls. 18: “ No curso evolutivo da doença do A. foi patente a existência de períodos longos de alteração cognitiva- afectiva graves, com expansão delirante do humor e consequente perturbação no plano comportamental, redutores da autocritica e do discernimento global e aumento da permeabilidade à influência de terceiras pessoas.”.
3.9.- A 8 de Janeiro de 2021 o R. começou a viver na casa do A., sita na Rua D. …, n.º …….., em Lisboa.
3.10. - O Réu permaneceu na casa do A. até 8 de Junho de 2021.
3.11. - A fracção sita na Rua D. …, n.º ……. , Lisboa, foi a casa de habitação permanente do Autor desde 1988.
3.12. - O A. aufere uma reforma e recebe rendas de imóveis que arrenda, em valores não apurados.
B) NÃO PROVADA
Na sentença recorrida, julgou-se “não provados os seguintes factos :
3.13. – (i) O  R. parecia querer cuidar do A., zelar pelas coisas e pela sua casa, mas afinal quem assegurava a limpeza e manutenção da casa, no dia a dia, era alguém contratado pelo A., só para o efeito, em alguns dias da semana.
3.14. – (ii) Desde o início que o Réu sempre quis que o A. lhe entregasse uma chave da casa, que lhe permitisse ter liberdade de sair e entrar, quando quisesse, tentando desde sempre, convencer o A. que ele queria viver com o ele para o resto da vida e que adorava aquela casa.
3.15. – (iii) Que o Réu  sempre demonstrou uma grande vontade e desejo de que a casa ficasse para ele, não por morte do A., através de um testamento a seu favor, mas em vida do mesmo.
3.16. – (iv) Que foi o Réu que preparou e tratou de todos os procedimentos – relacionados com a doação - , com a ajuda de uma advogada brasileira, sua conhecida, que, por sua vez o encaminhou para o escritório onde foi celebrada a escritura de Doação.
3.17. – (v) Que no período em que ocorreram estes factos, o A. estava a passar por uma fase pontualmente mais difícil quer do ponto de vista físico, quer psicológico, sendo isso do conhecimento do Réu.
3.18. – (vi) Que do ponto de vista psicológico o A. deixa-se várias vezes enfraquecer quer devido a problemas do foro psiquiátrico de que padece há já muitos anos, quer por desgostos ou traições e vigarices de que é alvo e tem sido alvo ao longo dos anos, nomeadamente e mais recentemente, desde 2018.
3.19. – (vii) Que a bipolaridade do A. acentuou-se a partir de 2003.
3.20. – (viii) Que como consequência do quadro clínico, o A. apresenta e revela várias fraquezas, nomeadamente, ao nível afectivo, demonstrando medo de ficar só, e a necessidade de alguém que cuide dele, levando-o ao ponto de quase querer “comprar” a sua companhia, mas de uma forma desequilibrada, injustificada, e altamente lesiva para o mesmo.
3.21. – (ix) Que o A. vive o seu dia a dia, afastado dos seu familiares mais directos, como sejam, irmão, sobrinhos e primas, não sendo, por isso, possível contar como acompanhamento de familiares, contava unicamente, com a ajuda de uma empregada doméstica que, entretanto, saiu.
3.22. – (x) Que o A. aufere uma pensão de cerca de €1500, possui conta bancária junto do banco CTT e no Novo Banco, e aufere, ainda, dos rendimentos provenientes do arrendamento de dois imóveis que possui no Campo Grande em Lisboa, no total de cerca de €1500.
3.23. – (xi) Que quando subscreveu o original do documento cuja cópia se encontra de fls. 11-verso a 13-verso, o A. estava incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração, o que o R., não podia deixar de saber.
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4.- Da impugnação pelo AUTOR [ A ] recorrente da decisão proferida pelo a quo e relativa à matéria de facto.
Compulsadas as alegações e conclusões do A/apelante, e no que à decisão relativa à matéria de facto proferida pelo tribunal a quo diz respeito, impugna o recorrente uma resposta da primeira instância dirigida a concreto ponto de facto controvertido julgado “ Não provado.
Analisadas as alegações e subsequentes conclusões recursórias, impõe-se reconhecer, observou e cumpriu o apelante, minimamente, as regras/ónus processuais a que alude o artº 640º, do CPC, quer indicando o concreto ponto de facto que considera ter sido incorrectamente julgado, quer precisando quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo de gravação nele realizada, que impunham/obrigavam a uma decisão diversa da recorrida, quer, finalmente , indicando qual a diferente resposta que deveria o tribunal a quo ter proferido.
E, ademais, porque gravados os depoimentos das testemunhas pelo apelante indicadas, procedeu também o recorrente à indicação, com exactidão, das passagens da gravação efectuada nas quais ancora a ratio da impugnação deduzida.
Destarte, na sequência do exposto, e porque verificados os requisitos a que alude o nº1, do artº 662º, do CPC, nada obsta, portanto, a que proceda este Tribunal da Relação à análise do “mérito” da solicitada/impetrada alteração das respostas aos pontos de facto indicados pelos apelantes.
4.1.- Se deve o ponto de facto com o nº 3.23. da motivação de facto do presente Ac. ser julgado “Provado”.
A justificar a alteração do julgamento dirigido para o ponto de facto nº 3.23. [ “Quando subscreveu o original do documento cuja cópia se encontra de fls. 11-verso a 13-verso, o A. estava incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração, o que o R., não podia deixar de saber ], aduz o apelante que incompreensivelmente menosprezou o julgador o depoimento testemunhal prestado por VS, que conhece o A. há cerca de 15 anos, é também primo do Réu, e é talvez a principal testemunha.
Para o apelante, e para além do referido depoimento, desconsiderou ainda – mas mal – o julgador o depoimento prestado pela testemunha CG , e , outrossim, não fez uso [ como podia e devia, em sede de formação da convicção ] um adequado das presunções judiciais.
Já o Exmº julgador, em sede de especificação da ratio da sua convicção, e no âmbito do cumprimento do disposto no nº4, do artº 607º, do CPC, aduziu designadamente os seguintes considerandos :
 “(…)
Nos presentes autos, A. e R. apresentaram duas versões diferentes sobre as circunstâncias que rodearam a celebração da doação que é objecto desta acção.
Em síntese, o A. alega que a doação foi celebrada num momento em que estava incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração, o que o R., não podia deixar de saber.
Por sua vez, o R. alega que a doação foi celebrada pelo A. num momento em que estava perfeitamente capaz de entender a sua declaração.
A prova produzida, em especial a prova testemunhal, não demonstra a versão do A.
Vejamos, em pormenor, os testemunhos prestados na audiência de julgamento:
- A testemunha VS, apresentou-se como amigo do A. há 15/16 anos e como primo do R.
Caracterizou o A. como correcto, dado e frágil. Como sendo bipolar e influenciável.
Esclareceu que há uns anos o A. teve problemas: “andou” com uma pessoa e ofereceu património. Depois, o A. arrependeu-se das doações e pediu à testemunha para obter ajuda de um advogado.
Sabe que o A. e o R. viveram juntos após Janeiro de 2021, desconhecendo se era uma relação de amor, uma vez que o A. não falava do que queria do R.
Antes, o A. andava deprimido e tinha alguém lá em casa que queria que saísse.
Como o R. passou a frequentar a casa do A., este ficou “mais forte” e o rapaz saiu lá de casa.
A testemunha não soube da doação até o A. manifestar que não estava satisfeito com o R. e que ia desfazer a doação.
Segundo a testemunha, o A. tinha falta de afectividade e por esse motivo procurava amizades.
(…)
- A testemunha CG, viveu em casa do A. 8 anos, segundo disse.
Não acompanhou a relação do A. e do R.
Apenas esteve numa ceia no Natal de 2021 em casa do A. com o R. Segundo lhe disse o A., estava com uma pessoa que lhe fazia companhia.
Soube da doação pelo A., que lhe disse que tinha sido um erro e que ia corrigir.
(…)
No essencial, as testemunhas depuseram de forma credível.
Nas declarações de parte prestadas na audiência, A. e R. reproduziram as versões dos factos que verteram nos articulados.
As declarações do A. revelaram que o mesmo está perfeitamente orientado no tempo e no espaço, respondendo de forma pronta e precisa às perguntas que lhe foram feitas. Manifestou perfeito conhecimento do litígio dos autos .
Ao longo das declarações que prestou, mostrou alguma alteração de humor, sendo evidente o seu desagrado com as perguntas feitas pelo Ilustre Mandatário do R.
O A. referiu várias vezes que durante a relação que teve com o R. esteve doente, mas nunca conseguiu explicar em concreto a que se referia.
De forma geral, falou da sua depressão e dos problemas de equilíbrio resultantes dos cristais do ouvido, que o levam a sofrer quedas.
Foi incapaz de explicar porque celebrou a doação, quando segundo diz não o pretendia fazer. Tendo sido advogado ao longo de décadas, maior é a estranheza que se retira das palavras do A.
O R. mostrou-se colaborante, manifestando uma vontade clara de esclarecer toda a relação que teve com o A., descrevendo em pormenor os meses que viveram juntos.
Recusou ter tido qualquer influência na decisão do A. em celebrar a doação.
A versão relatada pelo R. da relação que teve com o A. tem suporte nas mensagens e nas fotografias juntas aos autos, de onde decorre o ambiente íntimo e familiar que as partes viveram.
Por fim, a nomeada acompanhante do A., …, descreveu um pouco a vida do A., mas em relação ao período em relevo nestes autos pouco sabe, uma vez que o A. omitiu a relação que teve com o R. e a própria doação.
Assim sendo, os factos não provados descritos em i) e ii) resultaram da ausência de prova sobre a sua veracidade.
Os factos não provados descritos em iii), iv) e xi) resultaram da ausência de prova, sendo que o R. nas suas declarações negou veementemente tais alegações. Mais, a ideia da doação foi totalmente da cabeça do A., assim como os procedimentos para a concretizar.
Tendo sido o A. advogado durante a sua vida não é crível sequer o alegado.
Os factos não provados constantes de v) resultaram da ausência de prova credível.
Os factos não provados descritos em vi) a viii) não têm assento em qualquer elemento clínico que tenha sido junto aos autos. Cremos que as meras palavras do A. são insuficientes para fazer prova do alegado.
O constante de ix) foi afastado pelas palavras de MS, prima do A. e que acompanha a sua vida, na parte em que este o permite.
O constante de x) foi considerado não provado, uma vez que nenhum documento foi junto e que permita provar o alegado.
Em síntese, a conjugação da prova não permite dar como provados os factos alegados pelo A. As testemunhas revelaram, no geral, desconhecer os factos em causa ou negaram a sua veracidade.
Assim, impõe-se considerar não provados os factos acima descritos . ”
Percebida a ratio da convicção do tribunal a quo, e , bem assim, as razões da discordância do apelante, e ,sendo OBJECTO essencial e decisivo da apelação pelo autor interposta, aferir se a prova pelo apelante/impugnante indicada justifica/obriga a que o ad quem enverede por uma diversa/diferente convicção a ponto de alterar a decisão de facto nos termos reclamados, recorda-se o que a propósito da referida questão se escreveu no Acórdão prolatado por este Tribunal da Relação e de 27/4/2023 :
“(…)
Para o referido efeito, importa todavia começar por aduzir que , sendo pacífico que em sede de julgamento do mérito de impugnação de decisão de facto proferida pelo tribunal de primeira instância se exige ao ad quem que forme a sua própria convicção , o certo é que não cabe de todo ao Tribunal da Relação realizar um segundo ou um novo julgamento, antes é a sua competência residual, razão porque a impugnação  da decisão de facto “ não pode transformar o tribunal de segunda instância em tribunal de substituição total e pleno (1), anulando, de forma plena e absoluta, o julgamento que foi realizado por um tribunal a quem cabe, em primeira e decisiva linha, fazer uma aproximação, imediata e próxima, das provas que lhe são presentes.
Dir-se-á que, na referida matéria, resta à segunda instância proceder ao julgamento da impugnação da decisão de facto ( na parte impugnada ) “por forma a , tão só, corrigir erros de julgamento patentes nos tribunais de 1.ª instância, mas sempre dentro de limites que não podem exacerbar ou expandir-se para além do que a lei comina ” (2) (3) .
Consequentemente, e agora em face do princípio da imediação [ o qual não pode , é verdade, constituir obstáculo à efectivação do recurso da matéria de facto, a pretexto de, na respectiva decisão, intervirem elementos não racionalmente explicáveis (4) ] , o certo é que [ o que ninguém ousa questionar ] muito do apreendido pelo Julgador da primeira instância nunca chega - porque não é gravado ou registado - ao ad quem, sempre existindo inúmeros factores difíceis de concretizar ou verbalizar e que são importantes e decisivos em sede de formação da convicção , e ,consequentemente, no âmbito do julgamento da impugnação da decisão de facto, há-de o Tribunal da Relação evitar a introdução de alterações quando não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de um efectivo erro de apreciação da prova relativamente aos concretos pontos de facto impugnados .(5)
Depois , útil é também nesta sede recordar que, sendo certo que a prova tem por função a demonstração da realidade dos factos ( cfr. artº 341º, do CC), tal demonstração não exige de todo uma convicção assente num juízo de certeza lógica, absoluta, sob pena de o direito falhar clamorosamente na sua função essencial de instrumento de paz social e de realização da justiça entre os homens .(6)
É que, para o referido efeito, o que releva e é exigível é ,  tão só , que (7) em função de critérios de razoabilidade essenciais à aplicação do Direito, o julgador forme uma convicção assente na certeza relativa do facto , ou , dito de um outro modo, psicologicamente adquira a convicção traduzida numa certeza subjectiva da realidade de um facto, existindo assim um alto grau de probabilidade (mas suficiente em razão das necessidades práticas da vida ) da sua verificação.
Dito de uma outra forma (8), podendo o convencimento do julgador basear-se numa certeza relativa, histórico-empírica, dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida, certo é que “ Para a formação de tal convicção não basta um mero convencimento íntimo do foro subjectivo do Juiz”, antes deve o referido convencimento ser suportado “numa persuasão racional, segundo juízos de probabilidade séria, baseada no resultado da prova apreciado à luz das regras da experiência comum e atentas as particularidades do caso ”.
Por último, outrossim com pertinência para o julgamento do mérito de impugnação da decisão de facto, conveniente é ter presente que o grau de exigência ou standard de prova necessário para que concreta factualidade seja aceite pelo julgador como sendo verdadeira, não é sempre necessariamente o mesmo [ v.g. é compreensivelmente mais elevado no processo penal que no processo civil ], antes deve ele variar segundo a matéria concreta que esteja em litígio e em apreciação, designadamente em função dos bens ou direitos que se encontram em jogo, e em função a importância e necessidade de se obter uma decisão célere. (9)
Dir-se-á que, no essencial, pertinente é que o standard de prova deva ser mais exigente quanto maior for a improbabilidade do evento alegado (10), e ,por outra banda, quando na presença de factos constitutivos do direito alegado cuja prova é por regra difícil de obter, não deve o julgador – no âmbito da sua valoração/apreciação - utilizar um grau de exigência ao nível da generalidade dos demais casos, antes deve ajustar o standard de prova para um nível de exigência mais leve/baixo, maxime quando v.g. seja necessário apurar das intenções das partes ao outorgarem um negócio, caso em que os eventos de foro interno [ v.g. a determinação da vontade real do declarante ] podem/devem ser alcançados pelo julgador através da utilização das regras da experiência. (11)”.
Reiterando no presente Acórdão os considerandos acabados de transcrever, porque continuam a justificar-se ,mantendo-se actuais, mais se considerou no mesmo e referido Acórdão que o âmago da impugnação da decisão de facto incidia sobre a pertinência de se reconduzir ao elenco dos factos provados do item de facto nº 2.23, ou seja, se importava reconhecer/considerar que “quando subscreveu o original do documento cuja cópia se encontra de fls. 11-verso a 13-verso, estava o autor incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração, o que o Réu , não podia deixar de saber”, sendo que, no âmbito da aludida indagação, justificava-se dividir o respectivo conteúdo em dois pontos de facto diversos, sendo um reportado à respectiva primeira parte [ “quando subscreveu o original do documento cuja cópia se encontra de fls. 11-verso a 13-verso, estava o autor incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração] e, o outro , integrando a parte restante [  “o que o Réu , não podia deixar de saber].
Porque também o referido procedimento continua a justificar-se, será o mesmo mantido outrossim neste Acórdão.
Prosseguindo.
Com vista a indagar da pertinência da alteração da convicção formada Pelo Primeiro Grau, iniciou este tribunal a análise da prova testemunhal pelo autor/apelante invocada [ os depoimentos de VS  e CG ], vindo a considerar-se que se revelava a mesma prima facie como inofensiva e incapaz de infirmar a aludida convicção formada pelo tribunal a quo.
A amparar a apontada “incompetência” da prova testemunhal, importava à partida atentar nos conhecimentos e profissão de ambas as testemunhas [ o VS é gerente de um alojamento local e, a testemunha  CG é cozinheiro ], sendo que, em razão das regras da experiência e do senso comum, não é de atribuir grande credibilidade às referidas duas testemunhas quanto à análise/opinião transmitida quanto ao estado mental e de cognição do autor em períodos próximos da data da outorga do contrato visado nos autos, e , para todos os efeitos, certo é  qualquer das testemunhas não esteve sequer presente aquando da aludida outorga.
Ademais, qualquer das referidas testemunhas [ VS  e  CG ] não apenas não chegou a ter conhecimento da outorga [ e do momento em que a mesma ocorreu ] da doação, como nada explicitaram/esclareceram [ e com razão de ciência fundamentada, sustentada e credível ] a propósito do estado físico e psíquico/mental do autor no período que imediatamente antecedeu e/ou se seguiu à referida outorga , isto é, se no período e data em causa se mostrava realmente o autor A afectado na sua capacidade de percepção, compreensão, discernimento e entendimento, estando seriamente incapaz de formular um acto de vontade livre e esclarecido.
Tendo-se analisado igualmente o teor dos exames/relatórios médicos e elementos clínicos juntos aos autos, outrossim do respectivo conteúdo não emergiram elementos que, com assertividade e firmeza , apontem com segurança para a existência de uma qualquer debilidade física e psíquica do autor, respectiva dimensão e consequências, maxime idóneos para atestarem padecer o recorrente [ aquando da outorga no dia 22/2/2021 do contrato de doação identificado em  2.2. ] de um qualquer déficit e/ou incapacidade de apreender/entender o sentido e consequências da sua declaração.
Neste conspecto, não se menosprezando a declaração médica de 23/5/2021 [ do Dr. LL ….. , médico psiquiatra ] e o ponto de facto nº 2.7. , e , sendo verdade que da mesma consta que padece o autor de doença Bipolar [ a qual pode dar origem a períodos de depressão que podem desembocar na prática de actos de prodigalidade ], não é porém a mesma ( declaração ) assertiva no sentido de inserir o acto outorgado em 22.02.2021 no âmbito de um acto prodigalidade causado/explicado por um período de depressão e/ou descompensação psíquica do autor/outorgante.
Da mesma “insuficiência” padece ainda a declaração médico-psiquiátrica da autoria do Dr. AT ……., desde logo porque datada de 13/9/2017, ou seja, cerca de 4 anos antes da outorga no dia 22/2/2021 do contrato de doação.
Ou seja, não se concebe que da conjugação – por si só – dos elementos de prova atrás escalpelizados - porque para todos os efeitos não peremptória e categórica -, se justifique concluir que subjacente ao julgamento negativo do Primeiro Grau e dirigido para o ponto de facto pelo apelante A impugnado está uma incorrecta e desadequada avaliação da prova produzida.
Mas, a alicerçar a discordância do apelante em relação ao ponto de facto impugnado, de outros argumentos se socorre o autor A, designadamente aduzindo que subjacente ao julgamento negativo do referido ponto de facto se encontra um incorrecto e praticamente inexistente uso do julgador do Primeiro Grau de presunções judiciais.
Por outra banda, e no seguimento agora do douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 2/5/2024 [ identificado em 1.8. e publicado em www.dgsi.pt ], importa outrossim aferir se, em razão da factualidade [ de natureza instrumental ] provada e inserta nos pontos de facto nºs 3.4. e 3.5., e na qualidade/função de elementos probatórios, tudo conjugado [ com os demais meios de prova produzidos e acima escalpelizados ], não será de considerar justificar-se um julgamento POSITIVO  dirigido para o/s ponto/s de facto em apreciação.
Neste conspecto, recorda-se que nos termos do nº 4, do artº 607º, do CPC, “ Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
Acresce que, sendo pacífico que os factos dados como provados na acção identificada em 3.4. não têm força de caso julgado extra processualmente, porque os efeitos do caso julgado reportam-se à própria decisão, não aos respectivos fundamentos [ como assim o considera igualmente o STJ no Acórdão de 2/5/2024 e identificado em 1.8. ], tal não os torna de todo irrelevantes, sendo “ factos instrumentais, probatórios,de indiscutível importância para a prova dos factos essenciais”, exigindo-se portanto que sejam avaliados e conjugados com todo o material probatório carreado para os autos, criticamente, nos termos previstos no nº4 do art. 607º do CPC, de forma a que fique claramente definido se a situação se integra ou não na previsão do art. 257º do Cód. Civil – cfr. ainda a fundamentação inserta no Acórdão de 2/5/2024 e identificado em 1.8..
Vejamos, pois, de seguida, da pertinência/relevância das presunções judiciais e/ou da factualidade de natureza instrumental para a reclamada alteração do julgamento de facto impugnado.
Começando pelas denominadas presunções judiciais [ que “são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”, sendo “ admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal”- artºs 349º e 351º, ambos do CC ] , pacífico é que o respectivo “funcionamento” deve operar logo na decisão sobre a matéria de facto [ cfr. artº 607º,nº4, do CPC ], servindo portanto para fundar a convicção do julgador.
É que, consubstanciando as mesmas “raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além da hipótese a que respeitem, permitem eles muitas vezes atingir continuidades, imediatamente, apreensivas nas correlações internas entre factos, conformes à lógica, sem incongruências para o homem médio e que, por isso, legitimam a afirmação de que dado facto é a natural consequência de outro, surgindo com toda a probabilidade forte, próxima da certeza, sem receio de se incorrer em injustiça. (12)
Porém, para o referido efeito,  e porque a utilização de uma máxima da experiência e/ou presunção judicial desencadeia a “ligação” ou sequência/nexo lógico entre um facto-base e o facto presumido [ sendo o apenas o primeiro o conhecido], qual relação lógica de causa-efeito,  deve a sua utilização estar reservada para as situações em que existe uma probabilidade qualificada  entre ambos (13), ou seja, deve sempre qualquer generalização derivada do id quod plerumque accidit ser utilizada com especiais cuidados, devendo pautar-se por critérios de racionalidade (14), e , sobretudo, estar o seu aproveitamento condicionado a uma aplicação prudente e sensata , logo, isenta de excessivo voluntarismo. (15)
Aplicando os referidos cuidados/cautelas a questões de facto controvertidas e próximas das dos presentes autos, compreensível é assim que, aquando na presença de uma doença [ que tenha sido diagnosticada a uma parte outorgante e em período muito anterior à celebração de um negócio jurídico ] que no “plano clínico e cientifico está comprovada a degenerescência evolutiva e paulatina das condições de percepção, compreensão, raciocínio, gestão dos actos quotidianos e da sua vivência existencial, aptidões de pensamento abstracto e concreto, discernimento das opções comportamentais básicas e factores de funcionamento das relações interpessoais e sociais”, possa e deva o julgador presumir que aquando da prática de um acto jurídico pelo portador de uma tal doença/patologia anteriormente diagnosticada não se encontrava o outorgante em cauda capaz de entender o sentido e consequências da sua declaração . (16)
É que, provado o referido estado de morbidez incapacitante, será de presumir com pertinência e segurança, à luz da ciência e da experiência comum, que as referidas situações não se compatibilizam com períodos de lucidez ou compreensão (normal) das situações vivenciais, logo, mostra-se pertinente o recurso a uma presunção judicial  em sede de julgamento de facto de concreto ponto de facto , considerando-se v.g. como Provado que o outorgante ( e em face de padecer de tal doença ), aquando da “doação” estava incapaz de querer e entender o acto praticado. (17)
Dito de uma outra forma, e exemplificando, dir-se-á que resultando v.g. provado que “a testadora sofria de doença do foro psíquico, em contínua actividade e progressão, como a demência, é de presumir que, no momento da feitura do testamento, aquela se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária, incumbindo à beneficiária do testamento fazer a prova de que, na data da feitura deste testamento, apesar da situação demencial, a testadora se encontra num momento de lucidez e capaz de querer, expressar e entender o sentido da sua declaração ”. (18)
Postas estas breves considerações, e tendo presente toda a factualidade provada [ à excepção, por ora, da vertida em 3.4. e 3.5. , que será apreciada mais adiante ] , estamos em crer que não integra a mesma um qualquer ponto de facto que confirme padecer [ em momento anterior à outorga da doação ] o apelante de um qualquer estado de morbidez incapacitante, evolutivo e insusceptivel de regressão e/ou de quaisquer momentos/intervalos de lucidez  .
Ao invés, e designadamente da declaração médica de 23/5/2021 [ da autoria do Dr. LL ….., médico psiquiatra ], o que resulta atestado é que padece o autor de doença Bipolar que pode dar origem a períodos de depressão que podem desembocar na prática de actos de prodigalidade ,  que [ item de facto nº 3.6. ] “ foi seguido nas consultas externas do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa – Polo Júlio de Matos entre 17.11.1998 e 12.07.1999, por apresentar um quadro de distimia” e que [ item de facto nº 3.7 ] “sofre de perturbação afectiva bipolar ”.
Referindo-se à prodigalidade, afirma v.g. o Prof. MANUEL de ANDRADE (19) que a mesma consiste prevalentemente - ou até exclusivamente – num defeito da vontade ou do carácter : é a tendência para a dissipação, para malbaratar o próprio património, gastando-o em despesas desproporcionadas, ao mesmo tempo que improdutivas e injustificáveis; pródigo é aquele que “desordenamente gasta e destrói sua fazenda” ( Ordenações, livro 4º, n.º 6), aquele que por meio de dissipações loucas destrói o seu património.
Mais recentemente, HEINRICH EWALD HÖRSTER (20), trata a prodigalidade como um vício, considerando estar em causa “um comportamento originado por um defeito da vontade ou do carácter, que se define por gastos desproporcionados em relação à situação patrimonial do inabilitado, sendo os gastos improdutíveis e injustificáveis
Já a distimia , no essencial, configura um estado/tipo de depressão crônica e incapacitante, podendo apresentar sintomas leves a moderados de tristeza [ sendo o doente por regra uma pessoa melancólica ,pessimista, passiva, apática, introvertida , e, a perturbação afectiva bipolar , caracteriza-se por episódios de alteração do humor que podem oscilar entre mania (euforia, irritabilidade ,hostilidade ) e depressão, podendo também ocorrer episódios mistos. (21)
Perante o acabado de expor, não se mostra assim prima facie pertinente e arrazoado censurar o Tribunal a quo em sede de julgamento de facto e com o argumento do não uso pelo Emº julgador de pertinentes  presunções  judiciais,  podendo e conduzindo as mesmas forçosamente a uma diversa decisão de facto  .
É que, em rigor, desprovida se mostra a decisão de facto de factualidade relevante [ rectius factos-base ] que justifique a utilização de uma máxima da experiência e/ou presunção judicial, porque idónea e credível em sede de estabelecimento de um nexo lógico entre o facto-base e o facto presumido, qual relação lógica de causa-efeito.
Em suma, não “obriga” a factualidade provada que se aplique aqui a regra id quod plerumque accidit , o que se justificaria v.g. com pessoa em situação de demência, de forma permanente , irreversível a paulatinamente agravada com o mero decurso do tempo.
4.1.1. – Do observância do determinado no Ac. do STJ de 2/5/2024.
Finalmente e por último, resta apreciar a factualidade assente em 3.4. e 3.5., maxime indagar se os factos instrumentais em ambos os referidos pontos de facto vertidos não “obriga” igualmente à forçosa recondução ao elenco dos factos provados da primeira parte do ponto de facto nº 2.23 [ julgado “não provado” ] , apreciação esta de resto determinada pelo Ac. do STJ de 2/5/2024.
Vejamos
Reportando-se o facto inserto em 3.4. de uma decisão  judicial proferida em 23.08.2022 [ prima facie em processo judicial especial de acompanhamento de maiores, regulado nos artºs 891º, e segs. do CPC ], importa de imediato atentar que consubstancia jurisprudência uniforme sobre a matéria [ ainda que relacionada com o conteúdo do artº 150º, do CC, com a redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto – diploma que aprovou o regime jurídico do maior acompanhado - , mas que se mantém actual em face do disposto no disposto no artº 154º, nº 3, do CC , rezando ele que “ Aos actos anteriores ao anúncio do início do processo aplica-se o regime da incapacidade acidental ” ] a que considera que “em sede de reconhecimento de uma situação de incapacidade acidental aquando de acto de celebração de negócio jurídico,revela-se insuficiente que a data do início da incapacidade decretada na sentença de interdição, por anomalia psíquica, seja anterior à daquele acto”. (22)
Ou seja, e em rigor, a declaração judicial, constante da sentença que decretou a interdição, sobre a data do início da incapacidade, não constitui mais do que uma mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência, da incapacidade, à qual pode ser oposta contraprova, nos termos do art. 346.º do CC, constituindo tal declaração judicial apenas um indício de prova da incapacidade, mas que carece sempre de ser completada por outra prova, para se ter como demonstrada a incapacidade acidental. (23)
O referido entendimento, como se explicita em recente Acórdão do Tribunal da Relação de Évora e de 11/1/2024, é também aquele que v.g. no âmbito da doutrina é defendido por GABRIELA PÁRIS FERNANDES (24) , ao dizer que «…, na vigência do Código Civil de 1966, a doutrina e a jurisprudência têm atribuído a tal declaração judicial um valor meramente indiciário: não de uma presunção legal (iuris et iure ou iuris tantum), mas o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do acto – ónus que impende sobre quem pede a anulação .
No seguimento do acabado de expor, e em face da análise [ no item nº 4.1. deste Acórdão ] por nós já efectuada quanto à valia da demais prova produzida  nestes autos ,a saber, à reconhecida reduzida influência da mesma a ponto de contribuir para aferir do verdadeiro estado do autor quando da outorga do acto identificado em 3.1. [ rectius, de faltar, ou não, ao outorgante A, um livre – consciente e esclarecido - exercício da vontade aquando da outorga da escritura de doação  ], resta de seguida aferir da pertinência e valia dos “factos” extraídos do Processo identificado no item de facto nº 3.5. para o mesmo efeito e enquanto factos “instrumentais” [ que são “ aqueles cuja ocorrência conduz à demonstração, por dedução, dos factos essenciais: a sua função é probatória, porquanto servem fundamentalmente para formar a convicção do julgador sobre a ocorrência ou não dos factos essenciais ” ] .(25)
Neste conspecto, como se assinala no douto Acórdão do STJ de 2/5/2024 e identificado em 1.8, não são os referidos factos irrelevantes, antes “ São factos instrumentais, probatórios, de indiscutível importância para a prova dos factos essenciais, que deviam ter sido avaliados e conjugados com todo o material probatório carreado para os autos, criticamente, nos termos previstos no nº4 do art. 607º do CPC, de forma a que fique claramente definido se a situação se integra ou não na previsão do art. 257º do Cód. Civil, e não no instituto do enriquecimento sem causa que patentemente não se verifica, pela razão simples de o enriquecimento do Réu ter uma causa, o contrato de doação .”
Apreciemos, portanto, a referida factualidade.
Para começar, pertinente [ porque não pode deixar de relevar para efeitos da respectiva apreciação/avaliação ] é todavia atentar que os factos ( a se ) vertidos no item de facto nº 3.5. não resultaram da discussão da presente causa [ nos termos do artº 5º,nº2, alínea a), do CPC ], antes resultaram da discussão ocorrida no processo n.º 14449/21.1T8LSB, a correr termos no Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 10 [ o que em rigor resultou da discissão da presente causa é tão somente que correu termos em Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 10, um processo com o n.º 14449/21.1T8LSB, no âmbito do qual foi proferida SENTENÇA que julgou provados concretos factos ].
Outrossim conveniente é não olvidar que os factos insertos na SENTENÇA proferida no processo com o n.º 14449/21.1T8LSB [ processo no qual o Réu dos presentes autos não é parte , não tendo no mesmo podido portanto exercer o contraditório e defender os seus interesses ] não se mostram obviamente cobertos pelo caso julgado, possuindo os mesmos mera  eficácia «inter partes» , e , ademais, não pode e não deve igualmente o réu da nossa acção ser considerado em relação à sentença – e factos na mesma julgados provados - proferida no aludido processo com o n.º 14449/21.1T8LSB como um terceiro juridicamente indiferente , antes é um terceiro juridicamente interessado, porque o caso julgado é susceptível de causar um prejuízo de índole jurídica , afectando designadamente a validade dos seus direitos, razão porque se mostra igualmente afastada a  eficácia reflexa que o caso julgado também comporta , pois desencadeia a mesma um potencial sacrifício para os interesses do réu/terceiro. (26)
Acresce que a sentença identificada em 3.4. e 3.5. emana de processo de acompanhamento de maior, ao qual se aplica, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária [ no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes  - cfr. artº 891º,nº1, do CPC ], ou seja, ao invés do que sucede com processos de jurisdição contenciosa, não existe nele um efectivo conflito de interesses [ o que prima facie justifica uma diminuição do standard de prova ou exigência probatória , não sendo de estranhar a parca justificação – quanto aos factos provados – inserta na sentença identificada em 3.4.  ], mas um só interesse a regular, muito embora possa haver um conflito de representações ou opiniões acerca do mesmo interesse .
Por último, relevante e pertinente [ para efeitos da respectiva apreciação/avaliação/ponderação  ] é também não olvidar que o processo com o número 14449/21.1T8LSB foi intentado pelo próprio requerente/beneficiário da medida, o autor dos presentes autos A – nos termos da primeira parte do artº 141º, nº1, do CC .
Avisados das aludidas especificidades que moldam os actos instrumentais a apreciar, vejamos , um por um, da respectiva relevância em sede de formação da nossa convicção , nos termos e para efeitos da decisão a julgar a impugnação da decisão de facto.
Começando  pelos factos vertidos nos artigos nºs 1º, 2º, 10º, 13º, 14º,15º, 16º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º e 24º, todos do item de facto nº 3.5., é manifesta – para nós e com todo o respeito por entendimento contrário -  a irrelevância dos mesmos para, na qualidade de “factos instrumentais”, conduziram à demonstração, por dedução, do/s factos essenciais vertidos em 3.23.
Na verdade, os factos referidos estão longe [ em razão da respectiva inocuidade ] de, através de uma presunção judicial/natural, inferir o/s facto/s, essenciais insertos em 3.23 – e no pressupostos de que os indicia - , justificando-se considera-los provados
Já os factos instrumentais vertidos nos artigos nºs 3º, 4º, e 5º, todos do item de facto nº 3.5, porque no essencial correspondem/coincidem com os factos essenciais provados e vertidos em 3.6, 3.7 e 3.8 da decisão de facto, a respectiva relevância [ ou ausência da mesma ] probatória para os efeitos agora em análise foi já esmiuçada em 4.1., razão porque revela-se inútil voltar a fazê-lo.
Seguindo-se os factos instrumentais vertidos nos artigos nºs 9º, 11º, 12º, 17º e 18º, todos igualmente do item de facto nº 3.5, se alguma relevância têm quanto à questão ora em análise é a de infirmarem [ qual contra-prova – cfr. artº 346º, do cc ] a verificação do/s factos essenciais vertidos em 3.23..
Na verdade, sabendo o autor “dizer quanto ganha de pensão”, conseguindo “reconhecer o valor facial e patrimonial do dinheiro”,  apresentando “ noção da posse e das necessidades pessoais, bem como do património”, sendo licenciado em Direito”, tendo sidoadvogado” e, encontrando-se reformado, suscita alguma – no mínimo e  segundo as regras da experiência e do senso comum – “perplexidade” a veracidade da factualidade inserta em 3.23.
Por último, restam os factos instrumentais vertidos nos artigos nºs 6º [ “O beneficiário sofre de uma credibilidade excessiva que o vulnerabiliza perante pessoas mal-intencionadas” ] , [ Desde pelo menos maio de 2014, o beneficiário é recorrente em comportamentos de prodigalidade e má gestão do património ], e   [ “ Entre 2014 e 2021 o beneficiário transmitiu a propriedade de vários imóveis a favor de …, incluindo a sua casa de habitação, e emprestou-lhe €60.000,00, sem qualquer contrapartida” ],  “factos” que, a  merecerem uma tal “qualificação”, prima facie suscitam à partida, é verdade, uma “inquietação e preocupação”, ou mesmo um “alerta”.
Mas, analisando-os um a um, e com o necessário afastamento/distanciamento que sempre  se impõe/exige, estamos em crer que a respectiva e aparente “gravidade” se acaba por se esvaziar, deixando de “impressionar”/“alarmar”.
Vejamos o porquê.
Começando pelo artº nº 6 [ O beneficiário sofre de uma credibilidade excessiva que o vulnerabiliza perante pessoas mal-intencionadas ], e enquanto facto instrumental, importa reconhecer que com ligação ao facto instrumental agora em análise existem diversos factos essenciais que foram articulados pelas partes e, tendo os mesmos sido objecto da prova produzida nos autos, foram todos eles julgados não provados [ v.g. os vertidos nos itens de faco com os nºs 3.13 a 3.16 ], sendo que, podendo tê-lo feito, não impugnou o autor as respectivas respostas.
Destarte, pecará no mínimo por algum excesso de voluntarismo cogitar/conjecturar que se tratará o réu de uma “pessoa mal intencionada ” [ nos termos do facto instrumental ora em análise ] e, ademais, como bem se decidiu em Acórdão do STJ de 24/5/2007 (27) “Podem as Relações, no uso da sua competência em matéria de facto, recorrer a presunções judiciais, instituto previsto nos art.ºs 349º e 351º do Cód. Civil, inclusive para com base nelas desenvolverem a matéria de facto fixada na 1ª instância declarando provado algum facto por ilação de algum outro facto dado por provado, ou para reforçarem a fundamentação da decisão recorrida, mas não lhes é lícito, por essa forma, dar como provado o que nas respostas ao questionário ou à base instrutória foi considerado não provado ou por outra forma contrariar as respostas sobre a base instrutória, isto é, não podem, somente com base em presunções judiciais, ilididas na 1ª instância mediante prova testemunhal, alterar as respostas, positivas ou negativas, aos pontos da base instrutória, que só podem ser alteradas quando se verifique alguma das situações previstas no art.º 712º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.”
Pelas razões aduzidas, não pode assim no nosso “modesto” entendimento o facto instrumental do artº 6º [ do ponto de facto nº 3.5. ] relevar no âmbito da formação da convicção deste Tribunal.
Seguindo-se o facto instrumental do artº 7º, e não olvidando o respectivo carácter conclusivo [ apenas aceitável no âmbito de um processo de jurisdição voluntária ] , certo é que  a respectiva 2ª parte  mostra-se de alguma forma nada consentânea com o facto julgado provado nestes autos e que informa que o autor recebe rendas de imóveis que arrenda, em valores não apurados [ item de facto nº 3.12], a que acresce que, recorda-se também , no âmbito da doação teve o autor o cuidado/discernimento de “reservar para si/doador o usufruto vitalício, do imóvel [ como explica ANTÓNIO VITORINO (28), “o grau de probabilidade da afirmação presumida diminui na medida em que outros factos justificam um juízo de probabilidade maior que inviabiliza a prova do facto presumido ] .
Merece, assim, o facto instrumental do artº 7, a mesma “valia” do precedente artº 6 [ do ponto de facto nº 3.5. ].
Por fim, o facto instrumental do artº 8 [ outro que, com o devido respeito, é apenas “aceitável” no âmbito de um processo de jurisdição voluntária ], considerado isoladamente, sem a identificação das subjacentes e necessárias escrituras, e sem a alusão sequer a elementos de identificação/proximidade – existentes ou não existentes – do identificado  ……. em relação ao autor [ para se perceber se existe, ou não existe, alguma explicação/justificação para os actos praticados ] , igualmente não deve relevar a ponto de desencadear uma convicção apta a suportar uma resposta positiva ao ponto de facto nº 3.23.
 Aqui chegados, tudo visto e ponderado, temos portanto como inevitável concluir que da conjugação dos diversos elementos de prova pelo apelante invocados e, não olvidando os factos instrumentais insertos nos itens de facto nºs 3.4. e 3.5., tudo devidamente conjugado e sopesado , não decorre com segurança que ao julgar Não Provado o ponto de facto nº 2.23 ( primeira parte ) incorreu o Primeiro Grau em erro de julgamento [ erro que  este Tribunal da Relação deva corrigir, com base em diversa convicção ] por incorrecta avaliação da prova produzida.
Destarte, a factualidade inserta no ponto de facto nº 3.23 , primeira parte , não se impõe ser reconduzida ao elenco dos FACTOS PROVADOS e, consequentemente, e a fortiori, igualmente não pode/deve factualidade inserta no ponto de facto nº 3.23, segunda parte [ porque correlacionada com a primeira parte, e pressupondo uma resposta afirmativa à mesma ] , fazer parte do rol dos factos provados.
Acresce que, relativamente à factualidade inserta no ponto de facto nº 3.23, segunda parte , recorda-se que existe um específico ponto de facto que integra a subjacente factualidade essencial , o nº 3.17, o qual, tendo sido objecto da prova produzida nestes autos, foi julgado não provado e, para todos os efeitos, não foi o mesmo pelo autor impugnado.
Em conclusão, a impugnação da decisão de facto improcede in totum.
***
5 - Motivação de direito.
5.1. - Se deve a sentença apelada ser revogada/alterada , maxime e em razão da alteração da decisão relativa à matéria de facto proferida pelo tribunal a quo – no seguimento da impugnação do apelante - decidindo-se pela procedência da acção.
Percorrida a sentença apelada, constata-se que todos os pedidos na acção deduzidos [ o  principal - ser o contrato de Doação, celebrado entre o R. e o A., anulado, por corresponder a um Negócio Usurário e ofensivo dos bons costumes, nos termos do art. 282.º, com os efeitos previstos no art. 289.º do Código Civil - e subsidiáriosi) ser o contrato de Doação, celebrado entre o R. e o A., anulado, porque viciado por Incapacidade Acidental do A., nos termos do art. 257.º, com os efeitos previstos no art. 289.º, ambos do Código Civil ; ii) ser reconhecida a ocorrência de uma deslocação patrimonial injustificada do património do A. para o património do R e, consequentemente, ser o R., nos termos do art. 473.º n.º 1 e 2 do Código Civil, condenado a restituir ao A. o referido imóvel doado por este àquele, anulando-se a respectiva doação, restituindo-se, consequentemente, a propriedade ao ora A ] pelo autor/apelante foram desatendidos, tendo a Acção sido julgada improcedente.
A sustentar a decisão referida, recorda-se, alinhou o Primeiro Grau, no essencial, os seguintes fundamentos :
Primus – o pedido principal deduzido com fundamento em pretenso negócio usurário não podia proceder, porque não provados os necessários pressupostos/requisitos.
Na verdade, dos factos provados não resultava  que o R. tenha explorado qualquer situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter do A e, outrossim, que tenha existido uma concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o Réu ;
SecundusO pedido subsidiário de anulação do contrato de Doação, celebrado entre o R. e o A., porque viciado por Incapacidade Acidental do A., nos termos do art. 257.º, com os efeitos previstos no art. 289.º, ambos do Código Civil, impunha-se improceder também por falência da prova dos necessários factos integrantes da causa de pedir.
Mais exactamente, não logrou o autor provar que : i) No momento da prática do acto, o declarante/Autor estivesse incapaz de entender o sentido da sua declaração ou não tivesse o livre exercício da sua vontade ; ii) Que a referida incapacidade acidental fosse notória ou conhecida do declaratário/réu.
Tertius – Por último, também o segundo pedido subsidiário fundado no instituto do enriquecimento sem causa e nos termos do art. 473.º n.º 1 e 2 do Código Civil, importava improceder porque outrossim não provados os necessários pressupostos , maxime o alusivo à falta de causa justificativa do enriquecimento.
É que – diz-se na sentença recorrida - , no caso dos autos, a deslocação patrimonial em apreço tem uma causa bem definida: foi o contrato de doação celebrado entre A. e R. Ora, porque a doação não é inválida, pelo é assim válida a deslocação patrimonial, logo, não estão preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa.
Ora, discordando o apelante do sentenciado pelo Primeiro Grau, constata-se que circunscreveu [ nos termos do nº 4, do artº 635º, do CPC ] o recorrente o OBJECTO da apelação à decretada improcedência de ambos os pedidos subsidiários  [ o de anulação do contrato de Doação, porque viciado por Incapacidade Acidental do A., nos termos do art. 257.º, e o de anulação do mesmo contrato de Doação com fundamento em deslocação patrimonial injustificada do património do A. para o património do R., nos termos do art. 473.º ,n.º 1 e 2 do Código Civil ].
Isto dito, e como decorre com clareza das conclusões recursórias do Apelante dirigidas para a sentença recorrida, manifesto é que a pretendida alteração do julgado no que ao primeiro pedido subsidiário concerne [ ser a sentença da primeira instância substituída por Acórdão que decretasse a anulação do contrato de Doação celebrado entre o R. e o A., porque viciado por Incapacidade Acidental do A., nos termos do art. 257.º, com os efeitos previstos no art. 289.º, ambos do Código Civil ], assentava e exigia, como de “pão para a boca”, a modificação/alteração da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo.
Porém, como vimos supra, e em razão dos fundamentos aduzidos nos itens nºs 4. , 4.1. e 4.1.1., todos do presente acórdão, considerou este tribunal da Relação não existirem motivos pertinentes e relevantes para se introduzirem quaisquer modificações nas respostas que foram dadas pela primeira instância ao concreto ponto de facto impugnado pelo apelante/recorrente, ou seja ao ponto de facto nº 3.23 e que pelo tribunal a quo foi julgado “Não provado”.
Destarte, e incidindo sobre o Autor/apelante o ónus de prova [ cfr. artº 342º, nº 1, do CC ] de factualidade susceptível de integrar a previsão do artº 257º, nº 1, do CC [ “A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrar acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário” ], normativo este que como é consabido tem por objecto as chamadas incapacidades naturais [  que não reflectem uma situação permanente do declarante, existindo apenas nos momentos em que se verificam as suas causas ], manifesto é que não pode a apelação proceder quanto ao primeiro pedido subsidiário, sobremaneira porque improcede a impugnação do recorrente dirigida para o ponto de facto nº 3.23.
Resta, de seguida, aferir da pertinência de a factualidade provada justificar a procedência do segundo pedido subsidiário fundado no instituto do enriquecimento sem causa e nos termos do art. 473.º n.º 1 e 2 do Código Civil.
Neste conspecto, é nossa convicção que a questão não pode ser resolvida com a simplicidade como o fez o Primeiro Grau, e com o fundamento de que, pressupondo a actuação do disposto no artº 473º, do CC a prova ( a cargo do pretenso empobrecido ) da falta de causa justificativa do enriquecimento, certo é que in casu a deslocação patrimonial mostra-se suportada em causa bem definida, a saber, o contrato de doação celebrado entre A. e R., doação que não é inválida, logo, não se mostra provado um dos pressupostos da atinente causa petendi.
É que, dispondo o nº 2, do artº 473º, do CC, que “A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”, pacífico é que a  obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, não tem apenas lugar nos casos em não existe uma qualquer causa a suportar o enriquecimento, como , ademais, igualmente existirá em casos em que existe ab initio uma causa , mas, posteriormente, deixou a mesma de existir.
Na verdade, da enumeração exemplificativa que consta do referido nº2, do artº 473º, do CC, pacífica é a enumeração pelo legislador de três situações especiais que equivalem – todas elas - a um enriquecimento desprovido de causa : a condictio in debiti ( repetição do indevido ), condictio ob causam finitam ( enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir ) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto). (29)
Destarte, como assim o entende consensualmente a Doutrina e a Jurisprudência (30), o elemento constitutivo do instituto do artº 473º, do CC e relacionado com a falta de causa justificativa pode resultar da circunstância de nunca ter existido ou, tendo existido, entretanto, se ter perdido, ou seja, a causa do enriquecimento pode resultar do fim imediato da prestação e do fim típico do negócio, donde, se a obrigação não existiu ou se o fim do negócio falhou, deixou de haver causa para a prestação e a obrigação resultante do negócio, importando ainda saber, em cada caso concreto, “se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se portanto acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve”.
A referida “modalidade” da obrigação de restituir, recorda-se, é  precisamente aquela que vem sendo  ( enquanto fonte de obrigação, ficando o enriquecido obrigado a entregar ao empobrecido o valor do beneficio alcançado – artº 479º, do CC ), apreciada, discutida e aplicada no âmbito de atribuições patrimoniais ocorridas na constância do matrimónio e após o divórcio entre os cônjuges e, outrossim no âmbito e após ruptura de relações de união de facto [ a  união de facto, tal como decorre do artigo 1º, nº 2 da Lei 7/2001 de 11 de Maio, corresponde à “ situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos” ]. (31)
Dir-se-á que, designadamente  no âmbito de ruptura de relações de união de facto , e , em sede de actuação do instituto do ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA na modalidade da “conditio ob causam finitam”, poderá a prestação [ do empobrecido ] justificar-se em face da existência de uma situação jurídica de união de facto entre o empobrecido e o enriquecido, podendo dizer-se que o fim visado com a prestação vem a ser obtido, sucedendo porém que posteriormente vem a verificar-se o desaparecimento da referida causa jurídica, em termos que legitimam o surgimento de uma prestação dirigida à restituição do enriquecimento.
Isto dito, rezando o nº 1, do art. 473º do Código Civil , que “ Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”], pacífico é que a actuação/concretização do referido instituto pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: a) que haja um enriquecimento; b) que o enriquecimento careça de causa justificativa; c) e que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição. (32)
Incontroverso é igualmente que – como de resto é doutrina (33) e jurisprudência (34) consensuais nesta matéria - , “para se reconhecer a obrigação de restituir sustentada no enriquecimento, não é suficiente que se demonstre a obtenção duma vantagem patrimonial, à custa de outrem, sendo exigível ainda exigível mostrar que não exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, importando anotar que a falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito à restituição, impondo-se, assim, ao demandante que reclama a restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da demonstração dos respectivos factos constitutivos que contém a falta de causa justificativa desse enriquecimento.
Ou seja, e como outrossim o concluiu o STJ em acórdão de 4/7/2019 (35), “Para se reconhecer a obrigação de restituir sustentada no enriquecimento, não é suficiente que se demonstre a obtenção duma vantagem patrimonial, à custa de outrem, sendo exigível ainda exigível mostrar que não exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, importando anotar que a falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito à restituição, impondo-se, assim, ao demandante que reclama a restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da demonstração dos respectivos factos constitutivos que contém a falta de causa justificativa desse enriquecimento”.
Em termos concludentes, e socorrendo-nos de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (36), “A falta de causa terá de ser não só alegada como provada ,de harmonia com o principio geral estabelecido o artº 342º, por quem pede a restituição”, não bastando para tal efeito que “não se  prove a existência de uma causa de atribuição” .
Ora, não obstante o acabado de expor, certo é que a única factualidade que se mostra provada e suscetível de alicerçar a procedência do pedido subsidiário amparado no instituto do enriquecimento sem causa é a que se mostra inserta nos itens de facto nºs 3.9. [ A 8 de Janeiro de 2021 o R. começou a viver na casa do A., sita na Rua D. …, n.º … , em Lisboa ] e 3.10. [  O Réu permaneceu na casa do A. até 8 de Junho de 2021].
Logo, porque claramente insuficiente e incapaz de alicerçar [ com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa e na modalidade da  “conditio ob causam finitam”] o mérito do segundo pedido subsidiário, nenhum reparo é assim merecedor o sentenciado pelo tribunal a quo ao absolver o apelado do mesmo.
Destarte, tudo visto e ponderado, a apelação, improcede in totum.
***
6.  - Em conclusão ( cfr. artº 663º, nº7,  do CPC)
6.1.- Embora a fundamentação de facto de sentença judicial releve em sede de limites objetivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre a referida decisão não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, ou seja, os respectivos factos provados ou não provados não beneficiam da autoridade de caso julgado no âmbito de um outro processo judicial .
6.2. – Como decorre do artº 607º,nº4, do CPC, os factos “instrumentais[ que são “ aqueles cuja ocorrência conduz à demonstração, por dedução, dos factos essenciais ] têm uma função probatória, servinfo fundamentalmente para formar a convicção do julgador sobre a ocorrência ou não dos factos essenciais.
6.3. – Não obstante o referido em 6.2., mostra-se vedado ao tribunal da Relação – e na sequência de pertinente impugnação da decisão de facto – recorrer a presunção judicial para julgar como provada factualidade essencial que em sede de decisão de facto foi julgada directamente como não provada.
6.4. - Para se reconhecer a obrigação de restituir sustentada no enriquecimento sem causa, não é suficiente que se demonstre a obtenção duma vantagem patrimonial, à custa de outrem, sendo exigível ainda exigível mostrar que não existe uma causa justificativa para concreta deslocação patrimonial;
6.5. - A falta de causa terá de ser não só alegada como provada ,de harmonia com o principio geral estabelecido o artº 342º, por quem pede a restituição”, não bastando para tal efeito que “não se  prove a existência de uma causa de atribuição” ;
***
7. -  Decisão.
Em face do supra exposto,
acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, em , não concedendo provimento à apelação do A. A ;
7.1. - Não alterar  a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo;
7.2. - Manter  e confirmar a sentença apelada.
Custas a cargo do apelante.
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(1) Cfr. Cfr. Ac. do STJ de 1/7/2014, proferido no Proc. nº 1825/09.7TBSTS.P1.S1, in www.dgsi.pt.
(2) Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2010, 3ª Edição, pág. 309.
(3) Cfr. Ac. do STJ de 1/7/2014, Proc. nº 1825/09.7TBSTS.P1.S1, in www.dgsi.pt.
(4) Cfr. Ac. do STJ de 8/6/2011, Proc. nº 350/98.4TAOLH.S1, in www.dgsi.pt.
(5)  Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, ibidem, pág. 318.
(6) Cfr. Prof. Antunes Varela e outros, in Manual de Processo Civil, 1984, págs. 420 e segs.
(7)  Cfr.  Prof. Antunes Varela e outros, ibidem.
(8) Cfr. Tomé Gomes, in “Um olhar sobre a demanda da verdade no processo civil” , in Revista do CEJ, 2005, nº 3, 158.
(9) Cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova Por Presunção no Direito Civil, 2012, Almedina, pág. 148..
(10)  Luís Filipe Pires de Sousa, ibidem, pág. 149.
(11)  Cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, ibidem, pág. 224.
(12) Cfr. o Ac. do STJ de 14/10/2012, proferido no Processo nº 152/19.6T8VRL.G1.S1, sendo Relator Vieira e Cunha e in www.dgsi.pt..
(13) Cfr. Sánchez de Movellán, apud Luís Filipe de Sousa , in Prova por Presunção no Direito Civil, 2012, Almedina, pág. 45.
(14) Cfr. Luís Filipe de Sousa , in Prova por Presunção no Direito Civil, 2012, Almedina, pág. 82.
(15) Cfr. Ac. do TRL, proferido no Processo  nº 2155/2003-7, sendo Relator ABRANTES GERALDES e in www.dgsi.pt.
(16) Vide Ac. do STJ de 11-04-2013, proferido no Processo nº 1565/10.4TJVNF.P1.S1, sendo Relator Gabriel Catarino, e em www.dgsi.pt.
(17)  Vide Ac. do STJ de 24-04-2011, proferido no Processo nº 4936/04.1TCLRS.L1.S1, sendo Relator MARQUES PEREIRA, e em www.dgsi.pt.
(18) Cfr. Ac. do TRC de 20-02-2024, proferido no Processo nº 5376/21.3T8CBR.C1, e em www.dgsi.pt.
(19) Citado em Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13/9/2016, proferido no Processo nº 2382/09.0TBFIG.C2 e em www.dgsi.pt.
(20) Em A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina ,pág. 343.
(21) Cfr. Enciclopédia Medica MERCK SARP & DOHME, VOL 6.
(22) Cfr. , de entre outros, os Acs. do STJ de 22/1/2009 [ proferido no Processo nº 08B3333, sendo Relator SANTOS BERNARDINO ] , de 22/2/2018 [ proferido no Processo nº 8319/09.9TBMAI.P1.S1, sendo Relator HELDER ALMEIDA ] e de 6/4/2021 [ proferido no Processo nº 2541/19.7T8STB.E1.S1, sendo Relator FERNANDO SAMÕES ], todos em www.dgsi.pt.
(23) Cfr. Ac. do STJ de 8/6/2017 [ proferido no Processo nº 1852/08.1TBSCR.L1.S1, sendo Relator OLINDO GERALDES ] e em www.dgsi.pt.
(24) Em Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 332.
(25) Cfr. Ac. do STJ de 30/11/2022 [ proferido no Processo nº 23994/16.0T8LSB-F.L1.S1, sendo Relator ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS] e em www.dgsi.pt.
(26) Cfr. Ac. do STJ de 12/4/2018 [ proferido no Processo nº 622/08.1TBPFR-A.P1.S1,sendo Relator ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA] e em www.dgsi.pt.
(27) Proferido no Processo nº 07A979,sendo Relator SILVA SALAZAR e em www.dgsi.pt.
(28) Em Probabilidade e Prova, FDUL,1990,pág. 27, apud Luís Filipe Pires de Sousa, ibidem, pág. 97.
(29) Cfr. o Prof. Mário Júlio de Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, página 505.
(30) Cfr. o Ac. do STJ de 04-07-2019 [ proferido no Processo nº 2048/15.1T8STS.P1.S1, sendo Relator OLIVEIRA ABREU ] e em www.dgsi.pt.
(31)  Cfr. o Ac. do STJ de 24-10-2017 [ proferido no Processo nº 3712/15.0T8GDM.P1.S1, sendo Relatora ANA PAULA BOULAROT ] e em www.dgsi.pt.
(32) Cfr. v.g. PIRES DE LIMA  e ANTUNES VARELA, em CC anotado, 2ª EDIÇÃO, VOLUME I, pág. 399.
(33) Cfr. v.g. ANTUNES VARELA, em Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, 482 e 483, nota 1 e  ALMEIDA COSTA, em Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 501, nota 1 .
(34) Vide v.g. os Acs. do STJ, de 4 de Julho de 2019, proferido no Proc. nº 2048/15.1T8STS.P1.S1, sendo Relator OLIVEIRA ABREU , de 24 de Março de 2017, proferido no Proc. nº 769/12.5TBCTX.E1.S1, sendo Relator ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA e de 29 de Abril de 2014, proferido no Proc. nº 246/12.9T2AND.C1.S1, sendo Relator HÉLDER ROQUE , todos  in www.dgsi.pt.
(35) Proferido no Proc. nº 2048/15.1T8STS.P1.S1, sendo Relator OLIVEIRA ABREU e  in www.dgsi.pt.
(36) Em CC anotado, 2ª EDIÇÃO, I VOLUME , pág. 401.
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LISBOA, 20/6/2026
António Manuel Fernandes dos Santos
Nuno Luís Lopes Ribeiro        
Eduardo Petersen Silva