NULIDADE DE SENTENÇA
CONVOLAÇÃO
ANULABILIDADE
COMPRA E VENDA
CONTRATO DE MÚTUO
Sumário

I - O vício de contradição que acarreta a nulidade da sentença ocorre em sede de raciocínio e argumentação lógica silogística que leva à decisão: há uma incompatibilidade entre a argumentação utilizada e a decisão tomada, o que não sucede no caso.
II – Não constitui causa de nulidade de sentença uma eventual abstenção por parte do tribunal em convolar “…factos dados como provados, isto é, a vontade das partes para celebração de contrato de mútuo e não de compra e venda, para o regime de nulidade ao invés da anulabilidade erradamente requerida pela Autora”.
III- O conjunto de factos que a parte tem de alegar como fundamento da sua pretensão não se reconduz a uma mera descrição factual e objectiva desprovida de qualquer significado jurídico que compita ao Tribunal atribuir-lhes.
IV - Os factos que a parte tem de alegar são aqueles que hão-de constituir a causa de pedir, a qual é conformada pelos factos jurídicos de que emerge o direito invocado pelo autor, vigorando no nosso ordenamento jurídico a teoria da substanciação pelo que não é lícito ao Tribunal proceder à convolação como pretende a recorrente.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:  
E… intentou a presente acção declarativa com processo comum contra T…, Ld.ª pedindo que seja declarada a anulabilidade do contrato de compra e venda de um imóvel de que era proprietária, ser ordenado o cancelamento do registo da compra a favor da Ré e ainda que seja declarado nulo o contrato de arrendamento celebrado entre a Autora e a Ré relativo ao mesmo imóvel.
Fundamentou a sua pretensão, em síntese, no facto de, por necessidades económicas, acordou com a Ré a concessão de um mútuo no montante de € 5.000, tendo como contrapartida a venda informal da sua habitação por € 12.000, ficando nela a residir como arrendatária pela renda mensal de € 300 e logo que liquidasse o empréstimo fariam nova escritura a passar a habitação em causa para a sua posse.
Mais alega que foi celebrada a escritura de compra e venda e contrato de arrendamento, tendo recebido a quantia de € 5.000, mas a sua situação económica degradou-se e verificou que a Ré apenas pretendeu explorar a sua situação de elevada necessidade e que obteve um benefício injustificável, sendo o negócio da compra e venda usurário, tendo participado os factos ao Ministério Público, o que originou um inquérito que, apesar de deduzida acusação, foi objecto de despacho de não pronúncia.
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Regulamente citada a Ré invocou a caducidade do direito da Autora em requerer a anulação da compra e venda fundada no instituto do negócio usurário e ainda que a mesma tinha perfeito conhecimento dos contornos do negócio, que aceitou, e que tinha direito de opção na compra do imóvel por € 5.000 acrescidos das despesas da Ré com a aquisição conforme declaração que lhe foi entregue.
Alegou igualmente que a Autora deixou de pagar as rendas, tendo a Ré interpelado a Autora para as pagar, o que a mesma não fez, tendo resolvido então o contrato de arrendamento por notificação judicial avulsa, o que originou este processo, que foi intentado no dia seguinte à notificação.
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Em resposta à caducidade a Autora alegou que só no momento em que a Ré foi acusada da prática de um crime de burla é que tomou consciência que se encontrava numa situação de inferioridade e de que a Ré se aproveitara dessa situação para obter benefício excessivo e que a actividade usurária da Ré se mantém até os dias de hoje, pelo que não se iniciou o prazo de caducidade.
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Foi proferido despacho saneador, que relegou a apreciação da caducidade para final, e fixados os temas da prova.
Realizou-se audiência de julgamento, tendo a final sido proferida Sentença onde se decidiu:
“Pelo exposto, julgo totalmente improcedente a presente acção intentada por E… contra T…, Ld.ª e, consequentemente, declaro extinto, por caducidade, o direito da Autora em requerer a anulação fundada em usura do contrato de compra e venda que celebrou com a Ré referente ao imóvel , a fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao primeiro andar C – quinto piso, destinado à habitação do prédio urbano sito … descrito na Conservatória do Registo Predial de …, afecto ao regime da propriedade horizontal, inscrito na matriz da União das Freguesias de …, sob o art. 117, absolvendo a Ré do pedido de anulação do contrato e cancelamento do registo da sua aquisição, bem como absolvo a Ré do pedido de declaração de nulidade do contrato de arrendamento referente ao mesmo imóvel.”
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Desta decisão recorreu a A., formulando as seguintes Conclusões:
“1. A Sentença recorrenda é nula por conter uma contradição insanável nos seus próprios termos, ao afirmar que a venda da fracção foi feita pelo preço de € 12.000,00 e simultaneamente por € 5.000,00.
2.  A Sentença é ainda nula por ter feito errada interpretação e aplicação do direito, ao não proceder à convolação dos factos dados como provados, isto é, a vontade das partes para celebração de contrato de mútuo e não de compra e venda, para o regime de nulidade ao invés da anulabilidade erradamente requerida pela Autora.
3.  O tribunal a quo devia ter aplicado o princípio da oficiosidade e consequentemente fazer a requalificação jurídica da pretensão deduzida pela Autora, por aplicação do art. 50, no 3, do CPC, e consequentemente conhecer da nulidade dos dois negócios jurídicos praticados pelas partes, designadamente a alegada venda da fracção e o respectivo contrato de arrendamento, usados apenas para camuflar a cobrança de juros sobre o mútuo celebrado entre as partes.
4. O tribunal ad quem tem competência para confirmar o valor da venda da fracção, através do respectivo cheque, na posse do Tribunal de Instrução Criminal da Comarca de Lisboa e tirar as respectivas consequências, por aplicação do princípio de oficiosidade do processo.”
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A R. veio contra-alegar e requereu a ampliação do objeto de recurso, Concluindo:
“i. Da leitura das respetivas alegações resulta claro que os argumentos utilizados pela Recorrente para fundamentar o seu recurso estão em clara oposição com a prova produzida, o que inquina as suas conclusões.
ii. Resulta das alegações um claro afastamento ao objeto do litígio no despacho saneador, e que não foi objeto de recurso ou de reclamação, e que aqui se reproduz: “O objeto do litígio consiste em apreciar se há fundamento para a anulação do contrato de compra e venda celebrado entre as partes e respetivas consequências.”
iii. O objeto do litígio nunca consistiu na apreciação de qualquer nulidade.
iv. O despacho saneador não mereceu qualquer reparo ou reclamação das partes.
v. Analisando o pedido formulado na Petição Inicial pela Autora.
vi. A Autora, aqui Recorrente, veio pedir a anulação de uma escritura de compra e venda realizada em 23 Dezembro de 2014, sustentada na usura,
vii. A Recorrente nas suas alegações não impugnou nenhum facto provado ou não provado pelo Tribunal a quo…
viii. Nem tão pouco veio apresentar qualquer argumento que afastasse o conhecimento da caducidade conhecida pelo Tribunal a quo.
ix. Na hipótese académica da não caducidade, sempre se diria que os elementos da usura não estão preenchidos, conforme se arguiu na Contestação, e que da matéria de facto provada e não provada não poderia resultar,
x. Veio a Recorrente recorrer da decisão do Tribunal a quo, pedindo ao Tribunal ad quem que encontre a motivação, ou o percurso jurídico para declarar a nulidade do negócio, quando não o fez.
xi. A Recorrente nunca arguiu a nulidade do negócio, nem tão pouco foi invocado qualquer facto para que o mesmo fosse declarado, quer na petição, quer no presente recurso.
xii. A decisão de declaração da caducidade não se encontra em oposição à matéria de facto provada, pois assenta em elementos objetivos e inequívocos, tais como a data de celebração da escritura pública de compra e venda, e a data de entrada da acção de anulação.
xiii. Não pode agora a Recorrente invocar que “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”
xiv. Diz a Recorrente que cometeu um erro ao motivar a anulabilidade do negócio com base na usura,
xv. Por outras palavras, a Recorrente está a afirmar que não houve usura…
xvi. Pretende a Recorrente que o Tribunal ad quem declare a nulidade do contrato de compra e venda, quando nem sequer o conhecimento da nulidade era objeto deste litigio.
xvii. A Recorrente não alegou nenhum vício do negócio para que o mesmo fosse declarado nulo, e muito menos formulou o pedido nesse sentido.
xviii. O negócio jurídico sub judice produziu efeitos, tendo havido de facto transmissão da propriedade do imóvel, conforme consta dos autos, inexistindo qualquer nulidade.
xix. Mesmo a Recorrente sustentando a nulidade com a divergência do preço pago com a compra do imóvel, dispõe o artigo 886.º do código civil que: “Transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço.”
xx. Razão pelo qual, salvo melhor entendimento, o Recurso interposto pela Autora não deverá proceder.
xxi. Vem a Ré, ora Recorrida, ampliando o objeto do recurso, requerer a eliminação da matéria de facto dada como provada no pontos O, P, Q e R.
“O. Em contacto com a D… foi feita à Autora a seguinte proposta pelo Sr. … como representante daquela: como contrapartida da concessão de um mútuo no montante de € 5.000, a Autora vendia ‘’informalmente’’ a sua habitação pelo preço € 12.000, ficando nela a residir, como arrendatária, pelo período de 1 ano, prorrogável por igual período, mediante o pagamento de uma renda de € 300 mensais, depositados numa conta do banco Millenium BCP e que logo que a Autora liquidasse o empréstimo de € 5.000, fariam nova escritura a passar a propriedade da habitação em causa novamente para a posse da mesma.
P. Foi ainda proposto pelo Sr. T… a inexistência de qualquer taxa de juro para o mútuo, bastando que a Autora fosse pagando a renda de € 300 mensais e, logo que liquidasse os € 5.000 de empréstimo, se celebraria nova escritura para passar a propriedade da casa novamente para o seu nome.
Q. Este acordo nunca foi reduzido a escrito.
R. Não foi a Autora que estipulou o preço da habitação”
xxii. Estes pontos da matéria de facto provada deverão ser retirados da sentença, pois não se encontram sustentadas em nenhuma prova, senão nas declarações de parte da Autora, que não deverão ser valoradas.
xxiii. Nunca foi combinado ou proposto nenhuma concessão de mútuo entre a Ré e a Autora!
xxiv. O Tribunal a quo não assenta em nenhuma prova esta matéria de facto provada, e que aqui se impugna,
xxv. Não devendo a mesma ser integrante da Sentença, devendo ser eliminada.
xxvi. No âmbito do seu objeto social, a Autora e a Ré acordaram realizar um contrato de compra e venda do referido imóvel, e de arrendamento com opção de compra, conforme consta dos autos.
xxvii. Ou seja, os contratos espelharam o que fora previamente acordado entre as partes, não podendo a Autora alegar o desconhecimento.
xxviii. Atente-se ao ponto I da matéria de facto provada: “I. Antes de celebrar os contratos referidos em A. e B., a Autora consultou uma advogada para a aconselhar.”
xxix. A Autora sabia, exatamente, qual era o negócio (compra e venda e posterior arrendamento com opção de compra) que estava a fazer.
xxx. A sociedade Ré pagou, no ato da escritura o preço acordado com a Autora, através de cheque bancário.
xxxi. Não foi, pois, acordado nem celebrado nenhum contrato de mútuo,
xxxii. A Autora praticou uma série de atos próprios de quem vende um bem imóvel, nomeadamente pediu o cancelamento de hipoteca junto do seu banco, e presenciou à vistoria no seu imóvel para obtenção do certificado energético.
xxxiii. Não se aceita, com o devido respeito, que o Tribunal a quo tenha dado como provados os pontos O, P, Q e R, devendo no entendimento da Ré e aqui também recorrente, serem retirados da sentença.
xxxiv. A Ré, aqui recorrida, arguiu na sua contestação que a Autora litiga em Abuso de Direito, que o Tribunal a quo se escusou de apreciar, em função do conhecimento prioritário da caducidade.
xxxv. Ora, na mera hipótese de o Recurso apresentado pela Recorrente proceder, do qual não se concede, mas por cautela e dever de patrocínio se equaciona, deverá o Tribunal ad quem conhecer a exceção do Abuso de Direito arguido na Contestação pela Ré,
xxxvi. Há manifesta contradição real entre a conduta da Autora que se vinculou perante a celebração dos contratos, e pela sua atuação subsequente perante a Ré, com o pedido formulado de anulação da escritura de compra e venda,
xxxvii. A conduta da Autora ao intentar a presente ação a pedir a declaração de anulabilidade do contrato de compra e venda em causa consubstancia um caso de "VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM", que se pretende conhecida, ainda que na condição hipotética das alegações da Recorrente proceder, e que uma vez mais, não se concede.
xxxviii. Andou bem o Tribunal a quo na sua decisão de absolver a Ré do pedido,
xxxix. Contudo, deverá a sentença ser reformulada, com a eliminação dos pontos O, P, Q e R da matéria de facto provada,
xl. E na mera hipótese de o Recurso apresentado pela Recorrente proceder, do qual não se concede, mas por cautela e dever de patrocínio se equaciona, deverá o Tribunal ad quem conhecer da exceção Abuso de Direito com as legais consequências.”
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O Recurso foi devidamente admitido, como efeitos e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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II. Questões a decidir:
Como resulta do disposto pelos artigos 5º; 635º, n.º 3 e 639º n.º 1 e n.º 3, todos do Código de Processo Civil (e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores) para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente.
Deste modo no caso concreto as questões a apreciar consistem em:
- Da nulidade da sentença por contradição ou porque o tribunal a quo devia ter aplicado o princípio da oficiosidade e consequentemente fazer a requalificação jurídica da pretensão deduzida pela Autora;
- Em caso de procedência do recurso, conhecer da requerida ampliação do recurso, com reapreciação de matéria de facto e conhecimento do invocado abuso de direito.
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III. Fundamentação de Facto.
Há que considerar a seguinte decisão sobre a Matéria de Facto proferida na 1ª Instância:
Factos provados:
“A. Por escritura pública datada de 23.12.2014, a Autora declarou vender à Sociedade Ré, representada no acto por L… e T…, que declarou compra, pelo preço de doze mil euros, a fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao primeiro andar C – quinto piso, destinado à habitação do prédio urbano sito … descrito na Conservatória do Registo Predial de …, afecto ao regime da propriedade horizontal, inscrito na matriz da União das Freguesias de …, sob o art. 117,, com o valor patrimonial de € 73.020,00, sobre o qual pendia hipoteca a favor da Caixa Geral de Depósitos, S.A., cujo cancelamento se encontra assegurado.
B. Por escrito particular, designado de “Contrato de Arrendamento para Habitação”, a Autora declarou ceder o gozo da fracção autónoma referida em A., à Autora, pelo prazo de um ano, com início em 1 de Janeiro de 2015, prorrogável por igual período, pelo valor de € 300,00 mensais.
C. Por carta datada de 12.07.2018, enviada pela Mandatária da Ré para a Autora, foi lhe solicitado o pagamento de rendas em atraso no valor de € 9.790,00 (nove mil setecentos e noventa euros).
D. Por declaração Judicial Avulsa, foi a Autora notificada, no dia 28.08.2018, da resolução do contrato referido em B., por parte da Ré.
E. Por escrito particular, datado de 23.12.2014, denominado de “Declaração Unilateral Para Opção de Compra de Imóvel”, a Ré declarou que “na vigência do contrato de arrendamento a arrendatária terá o direito de optar pela compra do locado pelo valor de 5.000,00 (cinco mil euros). Opção de compra só será validamente exercida se, se tiver verificado o pagamento mínimo de 12 (doze) rendas mensais, rendas essas que não são consideradas como pagamento do preço acima estipulado.”
F. Por despacho, datado de 19.01.2018 e proferido no processo de inquérito n.º…, o Ministério Público deduziu acusação contra as pessoas identificadas em A., imputando-lhes, entre outros, a prática de um crime de burla, pelos factos aí constantes.
G. Por despacho datado de 16.05.2018 no processo n.º…, foram as pessoas identificadas em A. despronunciadas dos crimes que lhe foram imputados.
H. A Ré pagou o certificado energético; imposto municipal de transmissões e imposto de selo; a escritura e os emolumentos registrais; registo de aquisição na respectiva Conservatória e procedeu registo do contrato de arrendamento nas finanças, pagando o respectivo imposto de selo.
I. Antes de celebrar os contratos referidos em A. e B., a Autora consultou uma advogada para a aconselhar.
J. Na sequência do contrato referido em A., a Ré pagou à Autora a quantia de € 5.000 (cinco mil euros).
K. A Autora tem dificuldades financeiras
L. Em meados de 2007 a Autora foi vítima da burla designada de “Cartas da Nigéria”.
M. A Autora procurou através da internet entidades que lhe concedessem um empréstimo.
N. Em Novembro de 2014 a Autora recebeu um e-mail de uma sociedade de nome D….
O. Em contacto com a D… foi feita à Autora a seguinte proposta pelo Sr. T… como representante daquela: como contrapartida da concessão de um mútuo no montante de € 5.000, a Autora vendia ‘’informalmente’’ a sua habitação pelo preço € 12.000, ficando nela a residir, como arrendatária, pelo período de 1 ano, prorrogável por igual período, mediante o pagamento de uma renda de € 300 mensais, depositados numa conta do banco Millenium BCP e que logo que a Autora liquidasse o empréstimo de € 5.000, fariam nova escritura a passar a propriedade da habitação em causa novamente para a posse da mesma.
P. Foi ainda proposto pelo Sr. T… a inexistência de qualquer taxa de juro para o mútuo, bastando que a Autora fosse pagando a renda de € 300 mensais e, logo que liquidasse os € 5.000 de empréstimo, se celebraria nova escritura para passar a propriedade da casa novamente para o seu nome.
Q. Este acordo nunca foi reduzido a escrito.
R. Não foi a Autora que estipulou o preço da habitação
S. A Autora participou os factos em causa nestes autos ao Ministério Público que deu origem ao processo com o n.º 4017/15.1TDLSB e que correu termos no Tribunal Judicial de Comarca de Lisboa, Juizo de Instrução Criminal, Juiz 3.”
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Factos não provados
“a. As dificuldades financeiras comprometem a capacidade de sustento da Autora.
b. Por ter sido vítima da referida burla, a Autora perdeu todas as suas poupanças, socorrendo-se de mútuos bancários com vista a suprir as suas necessidades mais básicas e a dos seus familiares que habitam consigo sem quaisquer rendimentos.
c. No referido período (2007), a Autora tinha um encargo mensal de aproximadamente € 800,00 para pagamento das dívidas que contraiu junto de várias instituições financeiras, nomeadamente Barclays, Cofidis, Cetelem e Caixa Geral de Depósitos.
d. As prestações mensais acima se referem eram as seguintes: Barclays € 375,00; Cofidis € 286,00; Cetelem € 241,00 e Caixa Geral de Depósitos 149,00.
e. Atendendo ao atraso generalizado no pagamento dos encargos acima mencionados, a Autora recorreu à DECO na procura de alguma solução para os seus problemas financeiros, tendo-lhe sido aconselhado o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento - PERSI.
f. A DECO elaborou, por conta e em nome da Autora, uma proposta de regularização de dívida que apresentou aos diversos credores desta, que veio a ser rejeitada.
g. A procura de entidades na internet para concessão de empréstimo efectuada pela Autora foi devido às suas dificuldades financeiras e à inviabilidade da proposta que foi apresentada às entidades credoras, e destinava-se à regularização das suas dívidas.
h. A Autora não efectuou qualquer pedido de contacto à D…
i. O primeiro contacto presencial ocorreu no mês de Novembro do mesmo ano, no escritório da D…, em Miraflores, em que estiveram presentes os respectivos representantes, Sr. J… e Sr. T… e a Autora, que se deslocou ao local sozinha.
j. Nesta reunião, a Autora transmitiu aos representantes da Ré a sua aflitiva situação económico-financeira.
k. A proposta apresentada por T… foi feita com conhecimento da situação financeira em que se encontrava a Autora.
l. A proposta apresentada por T… foi feita com conhecimento da situação financeira em que se encontrava a Autora.
m. A Autora encontrava-se, nesse momento, com os seus créditos vencidos e absolutamente desesperada para a resolução da sua situação financeira, razão pela qual, aceitou a proposta.
n. A Autora receava que lhe fossem penhorados todos os rendimentos e, nesse sentido, não conseguir suportar financeiramente as suas necessidades mais básicas e do seu agregado familiar.
o. A Autora não dormia a pensar em tais possibilidades.
p. A escritura publica em apreço não chegou a ser lida, tendo apenas sido perguntado pela Sr.ª Notária se todos se encontravam de acordo, não lhe tendo sequer sido entregue uma certidão ou cópia da mesma, apesar de ter sido pedido.
q. A Autora nunca tinha ouvido falar na Ré.
r. Logo após receber o dinheiro, a Autora utilizou-o para liquidar alguns dos seus mútuos já vencidos.
s. A habitação da Autora encontra-se avaliada em € 85.000,00.
t. Volvidos quase 4 anos da celebração da escritura, a Autora viu a sua situação financeira ainda mais degradada.
u. A Autora permanece sem conseguir regularizar a sua situação financeira.”
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IV. Da Nulidade da Sentença.
 A recorrente vem invocar a nulidade da sentença por entender que esta contém “…uma contradição insanável nos seus próprios termos, ao afirmar que a venda da fracção foi feita pelo preço de € 12.000,00 e simultaneamente por € 5.000,00.”
Entende ainda a recorrente que “A Sentença é ainda nula por ter feito errada interpretação e aplicação do direito, ao não proceder à convolação dos factos dados como provados, isto é, a vontade das partes para celebração de contrato de mútuo e não de compra e venda, para o regime de nulidade ao invés da anulabilidade erradamente requerida pela Autora.”
Sobre as causas de nulidade da sentença dispõe o art.º 615º do Código de Processo Civil nos seguintes termos:
“1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.”
Quanto à primeira das apontadas nulidades, quando a norma, no art.º 615º nº 1, al. c), refere contradição entre os fundamentos e a decisão, está a referir-se aos fundamentos jurídicos, aos elementos e passos do raciocínio jurídico que o juiz foi explanando na fundamentação da sentença. Isto é, o erro de contradição relevante reporta-se raciocínio que o juiz foi expondo na sentença: o julgador segue determinada linha de raciocínio que, em termos lógicos, aponta para uma determinada conclusão, mas, em vez de a tirar decide noutro sentido, oposto ou divergente - Cf. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, pág. 298.
Portanto, o vício de contradição ocorre em sede de raciocínio e argumentação lógica silogística que leva à decisão: há uma incompatibilidade entre a argumentação utilizada e a decisão tomada.
Tal vício não decorre da sentença recorrida; nem é esse o vício apontado pela recorrente, que entende haver uma contradição mas entre factos provados, o que se situa no âmbito não da nulidade mas do erro de julgamento.
No entanto e liminarmente, também este não se verifica, pois uma coisa é o que consta da escritura pública, como se assentou em: “A. Por escritura pública datada de 23.12.2014, a Autora declarou vender à Sociedade Ré, representada no acto por L… e T…, que declarou compra, pelo preço de doze mil euros, a fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao primeiro andar C – quinto piso, destinado à habitação do prédio urbano sito … descrito na Conservatória do Registo Predial de …, afecto ao regime da propriedade horizontal, inscrito na matriz da União das Freguesias de …, sob o art. 117,, com o valor patrimonial de € 73.020,00, sobre o qual pendia hipoteca a favor da Caixa Geral de Depósitos, S.A., cujo cancelamento se encontra assegurado”; ou seja, o que está declarado pelas partes no documento e cujo teor não foi objecto de qualquer impugnação, nem na 1ª instância nem neste recurso; outra coisa é a quantia em dinheiro que a R. entregou à A., como consta em “J. Na sequência do contrato referido em A., a Ré pagou à Autora a quantia de € 5.000 (cinco mil euros).”, facto que igualmente não foi posto em causa por nenhuma das partes.
A nulidade não se verifica.
Quanto à invocada nulidade por o tribunal não ter procedido proceder “…à convolação dos factos dados como provados, isto é, a vontade das partes para celebração de contrato de mútuo e não de compra e venda, para o regime de nulidade ao invés da anulabilidade erradamente requerida pela Autora”; para além de não prever a lei esta causa de nulidade da sentença, a verdade é que o tribunal a quo não podia efectuar tal convolação, como aliás consta da própria sentença, que apenas em jeito de escusada e pouco fundamentada “Nota final” veio referir: “Resulta evidente da matéria de facto dada como provada que, entre as partes, foi na verdade acordado um contrato de mútuo, sendo coberto por um contrato de compra e venda e um contrato de arrendamento. Atento o facto de a Autora não ter configurado a causa dessa forma, não sendo a causa de pedir o verdadeiro contrato celebrado entre as partes (o mútuo) mas sim os contratos simulados para encobrir o empréstimo ou mútuo, não pode o tribunal apreciar a situação por a mesma estar fora do objecto do processo.”
Dispõe o art.º 5º do Código de Processo Civil que:
“Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal
1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”
Como resulta da norma, compete às partes proceder à alegação dos factos que constituem a causa de pedir.
Este princípio do dispositivo é o princípio orientador do processo civil, não sendo o poder conferido ao juiz, patente no n.º 3 da norma, ilimitado.
O conjunto de factos que a parte tem de alegar como fundamento da sua pretensão não se reconduz a uma mera descrição factual e objectiva desprovida de qualquer significado jurídico que compita ao Tribunal atribuir-lhes.
Os factos que a parte tem de alegar são aqueles que hão-de constituir a causa de pedir, a qual é conformada pelos factos jurídicos de que emerge o direito invocado pelo autor. Que assim é, surpreende-se da leitura do art.º 581º, n.º 4 do Código de Processo Civil a propósito dos requisitos da litispendência e do caso julgado: “4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”
No caso a A. invocava a usura como causa de anulabilidade do negócio de compra e venda e subsequente nulidade do contrato de arrendamento celebrado.
Em lado nenhum a A. invocava a nulidade do contrato de compra e venda, ou qualquer causa da mesma, nomeadamente, que não tivesse querido proceder à celebração dos contratos em causa.
Como ensina Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, pág. 223, o autor há-de indicar os factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer ou negar, ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência afirma, que constituem a causa de pedir que corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido.
Segundo Mariana Gouveia, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, 2004, págs. 493 e 509, a causa de pedir é o facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge a pretensão deduzida, mas segundo o critério misto não pode deixar de prescindir de uma perspectiva material dos limites das normas e dos seus nexos, por referência ao direito substantivo. No mesmo sentido encontramos Teixeira de Sousa, Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, Scientia Iuridica 2013, tomo LXII, n.º 332, pp. 395 e ss.., pp. 401-402: “os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica.”
É especialmente elucidativo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/9/2018, Proc. n.º 1852/15.4T8PRT.S1, Relator Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt:
“Consistindo o pedido no efeito jurídico pretendido pelo impetrante, convém precisar que o mesmo se traduz no efeito prático-jurídico que o autor pretende obter com base no estatuído no quadro normativo aplicável ao litígio em causa. (…)
Por sua vez, a causa de pedir, legalmente definida (art.º 581.º, n.º 4, do CPC) como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se numa factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que não deve ser destituída de qualquer valoração jurídica, mas sim relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor[2]. É o que se designa por princípio da causa de pedir abertas. 
Nessa conformidade, a causa de pedir pode ser, analiticamente, configurada por dois vetores complementares:
a) – o seu perfil normativo, que a doutrina designa por causa de pedir próxima[3], traçado não em função da qualificação jurídica dada pelo autor, mas à luz do quadro das soluções de direito plausíveis que ao tribunal cumpre, a final, convocar, em função do efeito prático-jurídico pretendido;
b) – o seu substrato factológico, também designado por causa de pedir remota[4], o qual é preenchido, segundo um critério empírico-normativo, em função do tipo de factualidade desenhada, em abstrato, na factis species aplicável, tendo ainda em conta os critérios de repartição do ónus da prova formulados a partir do sobredito efeito prático-jurídico.
Sem necessidade de nos embrenharmos aqui nas conhecidas teorias da substanciação, da individuação e até da mais recente teoria da individuação aperfeiçoada[5], a orientação corrente vai no sentido de que o artigo 581.º, n.º 4, do CPC acolhe a doutrina da substanciação, segundo a qual a causa de pedir deve ser preenchida com os factos essenciais causantes do efeito jurídico pretendido.
Sintetizando tal orientação Abrantes Geraldes[6], escreve o seguinte:
«No art.º 498.º [atual art.º 581.º, n.º 4, do CPC] o legislador fez uma opção clara ente dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir. Ao primeiro bastaria a indicação do pedido, devendo a sentença esgotar todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica enunciada pelo autor, impedindo-se, após a sentença, a alegação de factos anteriores e que, porventura, não tivessem sido alegados ou apreciados. Já a opção pela teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objecto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada. Foi esta a opção a que aderiu o legislador (…)
Assim, a densificação da causa de pedir requer uma substanciação adequada à individualização da relação material controvertida, como singularidade ontológica, que, para além de oferecer garantia de base do contraditório, sirva de ulterior delimitação objetiva do caso julgado.
Todavia, importa distinguir, por um lado, os factos essenciais nucleares, estruturantes ou identificativos da causa de pedir; por outro lado, os factos complementares que, embora essenciais à procedência da pretensão deduzida, não relevam para identificação ou inteligibilidade daquela.
A par disso, tem-se entendido que, para delimitar determinada causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida.
Segundo Lebre de Freitas[7]:
«(…) embora a causa de pedir seja integrada por factos concretos, está hoje abandonada a ideia de que ela se possa delimitar segundo critérios meramente naturalísticos, o que a conduziria à impossibilidade de a circunscrever em termos jurídicos. Fora o caso de concurso de normas meramente aparente, dois complexos de factos, cada um dos quais integre a previsão duma norma jurídica constitutiva de direitos, só constituirão a mesma causa de pedir se o núcleo essencial das duas normas for o mesmo» 
Também Teixeira de Sousa[8] elucida que:
«A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico. É a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir.  (…)
Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais”, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica. Isto demonstra que o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstracto, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais.»   
Assim, embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o aludido quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é suscetível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos. Nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vetor normativo da causa de pedir.
Em suma, sendo o pedido e a causa de pedir conceitos de matriz e função processual, a sua densificação ou concretização, em termos de determinar em concreto cada causa de pedir, só poderá ser feita com base nas normas substantivas aplicáveis à situação litigiosa singular.
Será, pois, dentro destes parâmetros que se procurará traçar a identidade objetiva das ações em confronto para efeitos de configuração da exceção de caso julgado.”
Desta forma, vigorando no nosso ordenamento processual civil a teoria da substanciação  - o qual, para além das questões supra abordadas: o autor deverá alegar os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objecto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada; igualmente tem reflexos na proibição ínsita no art.º 265º, n.º 6 do Código de Processo Civil: “É permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida” - não é lícito ao Tribunal proceder à convolação como pretende a recorrente.
E ainda que se entendesse como possível conhecer oficiosamente de um vício de nulidade, o que não se concede e apenasse equaciona por mera hipótese, a verdade é que os factos provados, que a recorrente não impugnou em sede de recurso (e nem igualmente os factos não provados) não permitem essa conclusão sem dúvidas nestes autos.
Tal não obsta a que a recorrente, se assim o entender, instaure uma nova acção com outra causa de pedir, mas que aqui não é lícito conhecer.
Deste modo impõe-se concluir que o recurso improcede, mantendo-se a decisão proferida.
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V. Da Ampliação do Recurso.
Improcedente o recurso e observado o ganho de causa da R., fica prejudicado o conhecimento da ampliação do recurso, conf. art.º 629º, n.º 1 e 636º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
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VI. Das Custas do Recurso.
Vencida no Recurso, é a apelante responsável pelo pagamento das custas devidas, nos termos do art.º 527, n.º 1 do Código de Processo Civil.
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DECISÃO:
Por todo o exposto, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a decisão proferida pela 1ª Instância.
Custas do Recurso pela Recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 20/6/2024
Vera Antunes
Jorge Almeida Esteves - com Voto de Vencido infra
Gabriela de Fátima Marques
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Voto de vencido

Votei vencido porque entendo que, atendendo à factualidade provada, dela resulta a nulidade do negócio jurídico de compra e venda e, decorrentemente, do contrato de arrendamento.
Dos factos provados resulta que o contrato de compra e venda celebrado entre as partes teve uma função de garantia da quantia mutuada pela ré à autora. Sobre a questão (in)admissibilidade genérica dos contratos de alienação da propriedade em garantia seguimos a posição de Carlos Ferreira de Almeida. Num artigo dedicado especificamente a esta questão[1], este autor conclui no seguinte sentido:
O artigo 604.°, n.° 2 do Código Civil, que circunscreve as causas legítimas de preferência no pagamento aos credores, é um obstáculo intransponível para a criação negociai de garantias reais não tipificadas na lei. O preceito não cobre portanto a propriedade em garantia.
A invocação em contrário de alguns institutos (reserva de propriedade, venda a retro, lease-back, reporte) que reconhecem a aptidão da propriedade reservada ou adquirida para servir a função de garantia do credor como argumento para demonstrar que o sistema aceita em geral a propriedade em garantia não é convincente, porque (1,°) tais contratos ou cláusulas estão tipificados na lei; (2.°) não têm a natureza de contratos de garantia, são antes contratos de troca com função parcial ou eventual de garantia; (3.°) estão rodeados de cautelas mínimas que asseguram publicidade ou que, pelo menos, evitam a clandestinidade.
Em consequência, a chamada alienação fiduciária em garantia só é válida como garantia real nos casos previstos na lei, tal como sucede, com âmbito restrito, com os contratos de garantia financeira regulados pelo Decreto-Lei n.° 105/2004”.
O contrato de compra e venda em causa na situação sub judice teve exatamente como objetivo que o direito de propriedade constituísse uma garantia do mútuo que a ré concedeu à autora. Tal contrato, porque contrário à lei, mais especificamente à norma imperativa constante do artº 604º/2 do CCivil, é, nos termos do artº 280º/1 do CCivil, nulo.
A nulidade é, conforme disposto no artº 286º do CCivil, de conhecimento oficioso. Tal acontece porque as causas de nulidade transcendem o mero interesse das partes (para este âmbito a lei prevê o vício da anulabilidade, que depende de arguição), impondo ao tribunal a declaração da nulidade, independentemente de a mesma ter sido sequer invocada (e muito menos pedida). Basta que da factualidade provada resultem todos os factos que consubstanciam a causa da nulidade para que o tribunal a declare.
Como bem explica Miguel Teixeira de Sousa[2], “o art. 286.º CC estabelece que a nulidade pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal. No entanto, apesar da similitude entre o regime italiano e o regime português, a jurisprudência portuguesa orienta-se, pelo menos quando a nulidade opera como excepção peremptória, por uma solução diferente da acima referida como sendo a de alguma jurisprudência italiana. Parece ser indiscutível que, para a jurisprudência portuguesa, qualquer tribunal – seja de 1.ª instância, seja de recurso – pode conhecer oficiosamente de qualquer causa de nulidade e absolver o réu do pedido com base em qualquer causa dessa invalidade (cf. art. 576.º, n.º 3, CPC).
Esta solução vale tanto quando o réu não tenha alegado nenhuma causa de nulidade do contrato ou do acto jurídico invocado pelo autor, como quando o réu tenha excepcionado e alegado uma determinada causa de nulidade. Também neste caso, o tribunal pode considerar oficiosamente uma outra causa de nulidade, podendo mesmo acontecer que o tribunal julgue improcedente a nulidade excepcionada pelo réu e venha a absolver o réu do pedido com base numa outra causa de nulidade por ele conhecida ex officio. Por exemplo: o réu excepcionou a nulidade do contrato com fundamento no seu carácter simulado (cf. art. 240.º, n.º 2, CC); o tribunal pode considerar improcedente a simulação, mas vir a absolver o réu do pedido com fundamento no desrespeito da forma legalmente exigida (cf. art. 294.º CC). O único cuidado que o tribunal deve ter é o de evitar qualquer decisão-surpresa (cf. art. 3.º, n.º 3, CPC)”.
É certo que a recorrida veio suscitar a ampliação do recurso, pedindo que os factos constantes dos pontos O, P, Q e R sejam considerados não provados. Tais factos são exatamente aqueles que consubstanciam a alegada nulidade[3]. Sustenta a recorrida, para fundamentar esta sua pretensão, que “Estes pontos da matéria de facto provada deverão ser retirados da sentença, pois não se encontram sustentadas em nenhuma prova, senão nas declarações de parte da Autora, que não deverão ser valoradas”. Ou seja, a recorrida baseia a alegação unicamente no facto de entender que esses factos estão sustentados de forma exclusiva nas declarações de parte da autora, pelo que, por essa razão, não podem ser valoradas.
Acontece, porém, que o pressuposto da alegação não se verifica. É que, conforme resulta da fundamentação levada a efeito pelo tribunal recorrido, aqueles factos não se sustentam unicamente nas declarações da autora. Na sentença disse-se o seguinte:
Das declarações da Autora, bem como dos documentos juntos e que, no fundo, constituem a prova mais importante dos autos [destacado nosso], verifica-se que, claramente, as partes nunca pretenderam realizar qualquer compra e venda e arrendamento. Na verdade, desde logo se verifica que a Autora nunca pretendia vender o seu imóvel, mas sim pretendia obter uma quantia monetária a título de empréstimo e que, certamente por já não o conseguir por via de formas mais ortodoxas, procurou na internet outras formas, chegando assim à situação em causa nos autos. Ora, sendo intenção da Autora um empréstimo de quantia em dinheiro, verifica-se que, quer das quantias envolvidas, quer do tipo de contratos escolhidos, assim como a declaração de opção de compra, e de acordo com as regras de experiência comum, que a Ré emprestou a quantia de € 5.000, que a Autora recebeu, dando como garantia o imóvel e que as quantias devidas como “renda” seriam o pagamento de juros, podendo a Autora extinguir a garantia e reaver a posse e propriedade plena do seu imóvel mediante o pagamento da quantia mutuada. Aliás, situação idêntica e também com a Ré sucedeu à testemunha E…”.
Concordamos na íntegra com esta fundamentação. Os negócios que foram celebrados entre as partes, de tão estranhos que são, impõem obviamente uma devida explicação. A versão da ré de querer convencer que o que consta dos contratos constitui aquilo que as partes exclusivamente quiseram, não é, de todo, crível. Não se mostra sequer minimamente racional que a autora, que ainda por cima estava a passar por dificuldades financeiras, pretendesse vender o imóvel de sua propriedade, cujo valor patrimonial é de 73.020€, pelo montante de 12.000€. E depois celebrasse um contrato de arrendamento e ainda um acordo que lhe concedia o direito de adquirir novamente o imóvel por 5.000€. A racionalidade que tudo isto teria que ter resulta das declarações da autora, que se nos afiguram perfeitamente credíveis, estão devidamente circunstanciadas, pormenorizadas e, acima de tudo, enquadram de forma perfeitamente compreensível todos os mencionados negócios jurídicos. Não apresentando a ré uma explicação alternativa, procurando apenas que as declarações da autora não sejam valoradas (no fundo pretende uma invalidade das declarações, não porque não tenham sustentação, não sejam credíveis, mas unicamente por uma questão formal, ou seja, que desapareçam do quadro dos meios probatórios admissíveis porque se tratam de declarações de parte), fica o julgador perante as duas realidades em confronto: a da autora e a da ré. Sendo a da ré claramente absurda e sendo a da autora aquela que resulta das regras de experiência comum e se enquadra de forma compreensível com os negócios jurídicos celebrados entre as partes, o tribunal tem, necessariamente, de atender a esta última.
Assim, improcedendo a impugnação da matéria de facto pretendida pela ré em sede de ampliação do objeto do recurso, mantém-se na íntegra a factualidade que resulta da sentença e, portanto, também os factos que consubstanciam a nulidade acima exposta. Sendo o contrato de compra e venda nulo, o que é de conhecimento oficioso, também o é, por consequência, o contrato de arrendamento, na medida em que este teve por base o direito de propriedade da ré que havia sido adquirido por via daqueloutro contrato.

Jorge Almeida Esteves
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[1] Alienação da propriedade em garantia – uma perspetiva prudente” in Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, , vol. I, Revista de Direito e Justiça, Universidade Católica Portuguesa, 2011, págs. 311 a 328.
[2] In blogippc.glogspot.com/2015/02.
[3] Certamente que a questão da nulidade aqui exposta não é alheia à pretendia ampliação do objeto do recurso.