PRIVAÇÃO DE USO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Sumário

I. O art.º 41º, nº 1, al. c), da LSO (Decreto-lei nº 291/2007, de 21 de agosto, que estabelece o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidde civil automóvel) não revogou o nº 1 do art.º 566º do Código Civil, pelo que não é aplicável aos litígios em fase judicial, podendo ser encontrado um montante indemnizatório que se afaste do previsto naquele preceito, mesmo em caso de perda total do veículo.
II. Competindo ao lesado provar o dano da privação do uso, não é suficiente, para tanto, a prova da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efectiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante.
III. Porém, mesmo formulando a Autora um pedido por tal privação assente nas despesas tidas com a substituição do veículo, a ausência de prova destas apenas se repercute no quantum indemnizatório, deixando de configurar um danos emergente, mas sim uma indemnização com base na equidade.
IV. Logo, concluindo-se pela existência da ofensa ao direito de uso, dificilmente se poderá encontrar o valor exacto de tal prejuízo, e mesmo que este seja alegado, a ausência da prova de tal valor não determina a improcedência do direito à indemnização. Daí que se fale antes de atribuição de uma compensação, que deverá ser determinada por juízos de equidade, tendo em conta as circunstâncias concretas do caso.
 (Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
C…, Lda., intentou a presente ação de processo comum, contra Companhia de Seguros … SA, pedindo a condenação da Ré no pagamento de € 37.185,94.
Alega, em síntese, que no dia 28 de outubro de 2021, pelas 17h30, ocorreu um acidente de viação no IC2 Km 58,8 em Alcoentre, e em que foram intervenientes o veículo com matrícula … propriedade do A., e o veículo de matrícula …, propriedade de G…SA. Alega o A., que o veiculo de matricula … embateu no seu veículo, causado danos no mesmo e no condutor da sua viatura. Refere que a Ré é a seguradora da viatura de matrícula …, a qual foi quem causou o acidente.
Refere que teve danos no veículo nomeadamente perda total, tendo a Ré atribuído como valor de perda total deduzido de salvado a quantia de € 4.000,00. Sendo certo que o A., adquiriu um veículo semelhante pela quantia de € 10.000,00. A viatura sinistrada era um trator que tinha acoplada uma galera e por isso foi necessário substituir a peça que acopla o trator à galera no valor de € 107,01, e ainda o espelho retrovisor no valor de € 148,08. Despendeu ainda a quantia de € 375,15 de transporte da viatura até à oficina. Peticiona por isso o pagamento das referidas quantias, e ainda requer o pagamento da quantia de € 26.555,70, aludindo que o trator de matrícula …, como tinha menos danos ficou imobilizado entre a data do sinistro e o dia da sua reparação, sendo que cada trator está afecto a uma galera e a Autora não dispunha de mais nenhuma galera onde pudesse acoplar o tractor, e não só este não circulava sem a galera, como sem o seu motorista, sendo que a Autora possuí apenas um motorista para cada veículo.
Alegou ainda, com relevância para a presente decisão que:” 19º Neste sentido, viu-se a Autora forçada a contratar uma empresa de transportes para efectuar o serviço externo que o veículo acidentado realizava diariamente, facto que foi informado à Ré, desde o dia da reclamação de sinistro efectuada. – Conforme e-mail que se junta e cujo conteúdo aqui se dá como integralmente reproduzido no Doc. 11
20º Não obstante a Ré ter conhecimento de que a Autora necessitava que o processo se resolvesse na maior brevidade possível, a Autora só veio a ter conhecimento da assunção de responsabilidade pelo sinistro por parte da Ré, após dia 20 de Dezembro de 2021. – Conforme carta que se junta e cujo conteúdo aqui se dá como integralmente reproduzido no Doc. 12
21º Não obstante, não se dignou a efectuar qualquer proposta de regularização do sinistro, tendo a Autora sido obrigada interpelar a Ré, através da sua mandatária, enviando-lhe o valor suportado pela Autora referente a facturas de serviços de transporte contratados à empresa M…, Lda, faturas de reparação do trator, bem como a fatura do reboque, solicitando o pagamento de 31.037,86 € - Conforme comunicação que se junta e cujo conteúdo aqui se dá como integralmente reproduzido no Doc. 13
22º A Ré só se dignou responder a esta missiva em 31/03/2022, com uma proposta de regularização com base numa percentagem da tabela de indemnizações da ANTRAM, o qual não faz qualquer sentido, desde logo porque a Autora não é uma empresa de transportes de mercadorias e por esse facto não é associada da ANTRAM. - Conforme comunicação que se junta e cujo conteúdo aqui se dá como integralmente reproduzido no Doc. 14
23º Além de que, a Autora apresentou à Ré prejuízos concretos e directamente imputáveis ao sinistro da responsabilidade de regularização por parte da Ré.
24º Não estamos perante uma indemnização por eventuais prejuízos decorrentes de privação de uso, mas sim de um pedido de indemnização por danos concretos e directamente imputáveis à ocorrência do sinistro da responsabilidade da Ré.
Peticiona o pagamento à Ré, por ter sido transferida para si a responsabilidade civil pelo proprietário do veículo ….
Citada a Ré a mesma apresentou contestação. Referiu que o acidente se deveu a culpa do seu tomador de seguro, a viatura de matrícula …, e que foi aceite a responsabilidade por parte da Ré. Apenas discorda a Ré dos valores peticionados pela A.
No que respeita ao valor da perda total a Ré teve em atenção que o valor comercial da viatura seria de €5.250,00 e que deduzido o valor do salvado de € 1.250,00, atribuíram a quantia de € 4.000,00. Quanto aos valores relativos às reparações e deslocação à oficina a Ré, aceita os mesmos. No restante relativo à paralisação das viaturas a Ré propôs, o pagamento da quantia de € 329,60 pela imobilização do trator - referente a 2 dias ao custo diário de € 164,80 (o dia da peritagem, acrescido de 1 dia de reparação) e a quantia de € 1.582,08 pela imobilização da galera (desde a data do acidente até 02 de dezembro de 2021 data da comunicação de perda total – excluindo sábados, domingos e feriados oficiais, o que totaliza 24 dias de paralisação ao custo diário de € 65,92).
Pelo que pugna pela sua condenação apenas quanto aos valores que assume e propõe.
Foi realizada audiência prévia e proferido despacho saneador, fixou o objecto do litígio e temas da prova admitiu os requerimentos probatórios e agendou julgamento.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento e na sequência desta foi proferida sentença com o seguinte dispositivo decisório: “julgo a presente ação parcialmente procedente e, consequentemente, decido:
a) Condenar a Ré … Seguros SA, no pagamento à Autora da quantia de € 22.160,17, sendo € 630,17, a título de danos materiais na viatura da A., e transporte à oficina, € 8.750,00, a título de perda total da viatura e € 12.780,00, a título de privação do uso, acrescido de juros de mora à taxa de 4%, desde a prolação da sentença até integral pagamento.
b) Absolver a Ré do demais peticionado.
c) Condenar A. e Ré, nas custas do processo, na proporção do decaimento que se fixa, respectivamente em 41% e 59%.”
Inconformada veio a ré recorrer, quer de facto, quer de direito, concluindo que:
«1) Os motivos da discordância da Recorrente com a douta Sentença recorrida são de duas ordens, nomeadamente e em primeiro lugar entende-se que o Tribunal fez uma incorrecta apreciação da prova produzida, nomeadamente testemunhal e, bem assim, documental, traduzindo-se tal errada apreciação na decisão sobre determinados factos que pela sua relevância deveriam igualmente constar dos factos provados e não constam.
2) Em segundo lugar, porque se entende que do ponto de vista da decisão de direito, igualmente mal andou o douto Tribunal à quo.
3) Do elenco dos factos provados deveria constar um outro que a ali se encontrar, conduziria a decisão diferente daquela que o Tribunal tomou.
4) Assim o impõe as declarações da testemunha, L…, ouvido na sessão de Julgamento realizada no dia 28 de setembro de 2023, cujo depoimento se encontra gravado através de sistema informático em uso no Tribunal, com início às 16:07:38 horas e fim às 16:26:58 horas.
5) Como o testemunho de A…, ouvido na sessão de Julgamento realizada no dia 18 de outubro de 2023, cujo depoimento se encontra gravado através de sistema informático em uso no Tribunal, com início às 10:52:59 horas e fim às 11:05:57 horas.
6) Do depoimento conjugado destas testemunhas, entende a Recorrente que deveria figurar no elenco dos factos provados este outro:
“O valor de mercado do semi reboque da Autora danificado no sinistro era de € 5.250,00.”
7) Pugnando-se pela alteração à matéria de facto conforme supra se enunciou, a douta Sentença proferida peca pois por errar na decisão, nomeadamente, na extensão da condenação da Ré, já que a sua obrigação é de indemnizar a Autora pela sua perda, que no caso se cifra, atenta o facto de a reparação do veículo ser economicamente inviável, no valor venal do mesmo.
8) Nos termos do disposto no artº 41º do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de agosto, “1 - Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
(…) c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos. 2 - O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente”
9) Nos termos do nº 3 do mesmo artigo “O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.”
10) Esta a obrigação da Ré, até face ao disposto no artº 566º do Cód. Civil, “1. A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor. 2. Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos. (…)”
11) Face aos critérios legalmente fixados, facilmente se percebe que a condenação da Autora no pagamento da quantia de € 8.750,00, correspondente ao valor da aquisição do novo veículo - € 10.000,00, deduzido o valor do salvado - € 1.250,00 é manifestamente excessiva e potenciadora de ilegítimo enriquecimento.
12) A condenação da Ré a pagar à Autora, a quantia de € 12.780,00 a título de privação de uso do veículo viola, de forma clara e directa o disposto no artº 609º, tornando-a por isso nula.
13) O pedido da Autora nos Autos, não se baseia numa indemnização por privação de uso - artº 24º da P.I..
“Não estamos perante uma indemnização por eventuais prejuízos decorrentes de privação de uso, mas sim de um pedido de indemnização por danos concretos e directamente imputáveis à ocorrência do sinistro da responsabilidade da Ré.”
14) A Autora reclama uma indemnização concreta, devida por danos concretos, quais sejam, o valor do “…aluguer do transporte realizado em substituição dos veículos sinistrados” – cfr. artº 33º do petitório.
15) Nunca poderia a Autora peticionar a privação de uso e simultaneamente peticionar o valor de um veículo, alugado, supostamente para substituição daquele outro do qual se viu privada.
16) A Autora alegou, mas não provou ter tido necessidade de contratar uma terceira empresa para fazer por si os transportes cujo pagamento reclama nos Autos.
17) Ao condenar a Ré no pagamento do valor de € 12.780,00 a título de privação de uso, o Tribunal violou quanto dispõe o nº 1 do artº 609º do Cód. de Proc. Civil, “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.”
18) A condenação em objecto diverso do peticionado, torna a Sentença nula, nos termos da alínea e) do nº 1 do artº 615º do Cód. de Proc. Civil,
“É nula a sentença quando:…O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.”
19) Veja-se, a este propósito o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 11/05/2021 disponível em Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (dgsi.pt) - www.dgsi.pt de cujo sumário se extrai: “i) A sentença só é nula, por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art. 615º, nº 1, c), 1ª parte, do NCPC, se entre aqueles e esta houver contradição lógica; não se houver eventual erro de julgamento; ii) A sentença só é nula, nos termos da mencionada c), 2ª parte, quando não seja perceptível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou ela encerre um duplo sentido (ambiguidade), sendo ininteligível para um declaratário normal; iii) A sentença é nula, ao abrigo da e), do indicado art. 615º, nº 1, se condenar em objecto diverso do pedido.; esta pronúncia ultra petitum dá-se se o A. pede uma coisa e o tribunal condena noutra, por ex. se o A. pede a entrega de uma coisa e o juiz condena o R. a pagar uma indemnização;
20) Por tudo o que fica exposto, a condenação da Recorrente é manifestamente excessiva, impondo-se a alteração da douta Sentença nomeadamente no que toca à condenação no valor venal do veículo danificado e, bem assim, na absolvição da Recorrente no que toca ao pagamento do valor de € 12.780,00.
21) Assim, por tudo o que fica exposto, a douta Sentença recorrida violou, entre outros, quanto dispõem os artºs 41º do Decreto Lei 291/07 de 21 de agosto, artºs 566º do Código Civil e artº 609º do Cód. de Proc. Civil.».
A ré respondeu ao recurso, pugnando pelo seu indeferimento e em conclusão referiu que:
«a) A Recorrente apresenta as suas Alegações, começando desde logo por tentar ludibriar os Venerandos Juízes Desembargadores ao não efectuar a completa transcrição das declarações das testemunhas como lhe competia e muito menos colocou a menção de que as declarações transcritas estavam incompletas!…”
b) As declarações da testemunha foram as seguintes:
“Mandatário da Ré: E quanto é que era o valor, se tem ideia do valor comercial desta galera…
Testemunha: O valor comercial dessa galera não me recordo. Mas foi feita uma pesquisa a nível nacional e internacional e depois eu faço valores médios e indicativos porque a Supervisão é que valida ou não os valores que eu dei”(…)
c) E volta a reiterar mais adiante:
Testemunha: Esses valores são meramente indicativos e que eu envio para a minha supervisão e é assinado por eles. Os valores que estão aí são os que estão validados pela Supervisão!
d) Significa isto claramente que, não obstante seja a testemunha a fazer a pesquisa, esta ainda faz uma média das pesquisas que encontra, desconhecendo-se com que base a faz, se com recurso a veículos com as mesmas características ou não. E que além do valor da média que apresenta, a Supervisão pode ou não alterar o valor que o mesmo já apresenta mais baixo porque resulta de uma média… o que foi claramente o caso!!!
e) Acrescentou ainda a mesma testemunha:
Mandatário da Ré: E fez as pesquisas no mercado nacional e internacional.
Testemunha: (..) se fiz pesquisa no mercado internacional é porque não havia no mercado nacional, só vou ao internacional se não conseguir aqui em Portugal.
f) O que corrobora as declarações da testemunha … que afirmou que há muita procura deste tipo de e galeras e muita escassez de oferta, o que necessariamente faz empolar o preço!
g) Ademais resulta das regras de experiência comum que o valor comercial de um veículo no estrangeiro é muito mais barato que um veículo em Portugal pois há a acrescer os impostos legais de importação, ponderação esta que a Meritíssima Juiz do Tribunal “A Quo” efectuou.
h) O Tribunal a quo percebeu e bem o que se passou e isso fez constar da douta Sentença, mormente na motivação da matéria de facto quando afirma: “(…) No que respeita ao ponto 20, atendeu-se por um lado à fatura a fls. 23, aliado ao depoimento da testemunha L…, que referiu que tem uma oficina de reparações de veículos, já tendo reparado alguns veículos à A., e que demonstrou ter conhecimento do mercado das
galeras, e que já comprou algumas, tendo de forma simples e clara, explicado que neste tipo de viaturas de grandes dimensões, o ano de matrícula não altera muito o seu preço de venda, e que o mesmo se situa entre os € 10.000,00 a €12.000,00, tendo explicado ser um bem de difícil aquisição, aqui tendo sido corroborado pela testemunha A… que referiu ter de fazer pesquisas em sites estrangeiros para tentar obter valores daquele concreto veículo. Assim o mesmo apresentou-se como credível.”
i) Também não se verifica qualquer nulidade da Sentença por condenação em objecto diverso do pedido, por força do Artigo 609º do CPC!
j) Desde logo, a Autora veio requerer o pagamento de uma indemnização em dinheiro pelos danos por si sofridos e o Douto Tribunal condenou a Ré no pagamento de uma indemnização em dinheiro pelos danos sofridos pela Autora.
k) Não há aqui objecto diverso de condenação. Se a indemnização se chama “privação de uso” ou se chama indemnização “por danos sofridos”, não deixa de se tratar de uma indemnização.
l) E tal é evidente até no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 11/05/2021, disponível na dgsi e a que Recorrente tão bem transcreveu:
a) Afigura-se-nos que o douto recurso interposto pelos Recorrentes, não deve proceder.
b) Sendo certo que não demonstra a existência de qualquer vício na douta Sentença proferida pelo Tribunal Recorrido.
c) Pelo que o mesmo deve improceder na sua totalidade, com as legais consequências.
d) A douta Decisão do Tribunal “a quo” deve ser mantida na íntegra, assim se fazendo a costumada justiça
e) A douta Sentença proferida pelo Tribunal recorrido não merece qualquer reparo, uma vez que decidiu em conformidade com o direito, a Lei e a prova produzida.».
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- É de aditar um facto nos termos pretendidos pela recorrente, considerando-se a indemnização fixada excessiva quanto ao valor do veículo;
- Se verifica a nulidade da sentença por condenar em objecto diverso no tocante ao valor atribuído a título de privação do uso de veículo, quando a A. alegava prejuízos efectivos que não logrou provar, devendo absolver-se a ré de tal pedido.
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II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1. A Autora é uma empresa que se dedica à fabricação e venda de tijolos, realizando a pedido, o transporte desses mesmos produtos aos seus clientes.
2. No dia 28/10/2021, pelas 17h30, na estrada junto à entrada do IC2, ao KM 58.8, na localidade de Alcoentre, ocorreu um acidente de viação nas seguintes circunstâncias:
3. O veículo pesado de mercadorias propriedade da Autora, composto por cabine e reboque, com as matrículas … e L-…, encontrava-se devidamente estacionado fora da faixa de rodagem, no sentido sul/norte, ou seja, de Alcoentre para Asseiceira;
4. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo pesado de mercadorias composto por cabine e reboque, com as matrículas … e P-…, propriedade da empresa G…, S.A. deslocava-se nesse mesmo sentido sul/norte, ou seja, de Alcoentre para Asseiceira;
5. O veículo despistou-se e veio a embater com força contra o veículo propriedade da Autora, tendo inclusivamente causado ferimentos ao trabalhador da Autora, o qual ficou incapacitado para o trabalho desde o dia 29.10.2021 a 27.11.2021.
6. Para além do deficiente acondicionamento da carga, o veículo garantido pela Ré, era conduzido por E…, ao qual foi levantado um Auto de contraordenação na sequência do sinistro, porquanto o mesmo não estava habilitado a conduzir veículos com a tipologia do veículo seguro na Ré, pois não tinha a licença de condução com a categoria CE;
7. Ora, do embate, resultou a perda total da galera de matrícula L-…, que ficou absolutamente impedida de circular;
8. Esta galera, da marca SCHMITZ, modelo SO1, era do ano de 2004;
9. Em virtude de o trabalhador/condutor da Arguida ter sofrido danos corporais, o mesmo foi levado para o hospital, e foram chamadas as autoridades ao local, pelo que não houve lugar ao preenchimento da DAAA, mas mera reclamação da Autora junto da Companhia de Seguros contrária;
10. O veículo da Autora, porque se encontrava impossibilitado de circular, foi transportado até à oficina reparadora por reboque pela empresa Reboques …, Lda, transporte com o qual a Autora despendeu o valor de 375,15€;
11. Além dos danos causados ao reboque da Autora, veio a verificar-se que o próprio trator sofreu danos com o embate, mormente a peça que acopla o trator ao reboque e o espelho retrovisor, a qual determinaram um custo de 255,02€, para a Autora;
12. A apólice frota que segurava à data o veículo de matrículas … e P-…, era a apólice nº … da aqui Ré, pelo que a responsabilidade da empresa G…, S.A. pela reparação dos danos deste sinistro foi transferida para a aqui Ré;
13. A Ré, por carta remetida à A. datada de 20.12.2021, assumiu a responsabilidade pelo acidente;
14. A Ré por carta datada de 02.12.2021, remetida à A., informou que o custo de reparação da galera era de € 11.003,21, e por ser superior ao valor de mercado que indicaram ser € 5.250,00, apresentou proposta no valor de € 4.000,00 pela perda total da viatura, após dedução do valor do salvado de € 1.250,00;
15. A Autora possuía apenas 3 veículos pesados de mercadorias da mesma categoria do acidentado (incluindo o acidentado) para fornecimento dos materiais que vende aos seus clientes, na sua maioria para entregar em obras de elevada dimensão, cujos fornecimentos são efetuados de segunda a sábado;
16. O trator de matrícula …, como tinha menos danos ficou imobilizado entre a data do sinistro e o dia da sua reparação;
17. A Autora possuí apenas um motorista para cada veículo.
18. A Autora interpelou a Ré, através da sua mandatária, por e-mail remetido a 18 de janeiro de 2022 enviando-lhe o valor suportado pela Autora referente a faturas de serviços de transporte contratados à empresa M…, Lda., faturas de reparação do trator, bem como a fatura do reboque, solicitando o pagamento de 31.037,86 €;
19. A Ré, por e-mail datado de 31 de janeiro de 2022, respondeu com uma proposta de regularização com base numa percentagem da tabela de indemnizações da ANTRAM;
20. A Autora para substituição do veículo sinistrado e em perda total, adquiriu em 14.04.2022, um outro semelhante, nomeadamente o semi-reboque de marca Schmitz, modelo S01, do ano de 2008, com a matrícula C-…, com o qual despendeu o valor de 10.000,00€ (dez mil euros) acrescidos do IVA;
21. O valor de transporte de 28.500kg de tijolo por dia é de € 230,00 sem IVA;
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Foram considerados como não provados os seguintes factos:
a. Cada trator está afeto a uma galera e a Autora não dispunha de mais nenhuma galera onde pudesse acoplar o trator;
b. Deste modo, ainda que o trator pudesse circular, ficou durante todo o período imobilizado em virtude de não poder cumprir o seu propósito, em virtude de não existir outra galera disponível para a entrega de tijolo;
c. Neste sentido, viu-se a Autora forçada a contratar uma empresa de transportes para efectuar o serviço externo que o veículo acidentado realizava diariamente, facto que foi informado à Ré, desde o dia da reclamação de sinistro efectuada.
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Da impugnação da decisão de matéria de facto:
No âmbito da impugnação de facto vigora o artº 640.º do C.P.C. que dispõe que:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Refere Abrantes Geraldes (in, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª Ed., Almedina, 2017, pp. 158-159): «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)); b)   Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a));c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
Acresce que o S.T.J. «tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.»( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores).
Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objetivos que o art. 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.
Por fim, qualquer alteração pretendida pressupõe em comum um pressuposto: a relevância da alteração para o mérito da demanda.
Feito este enquadramento, haverá que aferir qual o ponto concreto que deve ser apreciado por este tribunal.
Sustenta a recorrente seguradora que das declarações da testemunha, L…, bem como da testemunha A…, deveria figurar no elenco dos factos provados o seguinte:
“O valor de mercado do semi reboque da Autora danificado no sinistro era de € 5.250,00.”.
Na apreciação de tal questão importa ter presente que se deu como provado que: “14. A Ré por carta datada de 02.12.2021, remetida à A., informou que o custo de reparação da galera era de € 11.003,21, e por ser superior ao valor de mercado que indicaram ser € 5.250,00, apresentou proposta no valor de € 4.000,00 pela perda total da viatura, após dedução do valor do salvado de € 1.250,00;”. Bem como que: “20. A Autora para substituição do veículo sinistrado e em perda total, adquiriu em 14.04.2022, um outro semelhante, nomeadamente o semi-reboque de marca Schmitz, modelo S01, do ano de 2008, com a matrícula C-…, com o qual despendeu o valor de 10.000,00€ (dez mil euros) acrescidos do IVA;”.
Na motivação de tais factos o Tribunal recorrido alude que “(o)s pontos 13 e 14, resultaram por um lado de aceitação da Ré, e por outro dos documentos juntos a fls. 20 e 14v. que dizem respeito às cartas remetidas pela Ré à A.”, e “(n)o que respeita ao ponto 20, atendeu-se por um lado à fatura a fls. 23, aliado ao depoimento da testemunha L…, que referiu que tem uma oficina de reparações de veículos, já tendo reparado alguns veículos à A., e que demonstrou ter conhecimento do mercado das galeras, e que já comprou algumas, tendo de forma simples e clara, explicado que neste tipo de viaturas de grandes dimensões, o ano de matrícula não altera muito o seu preço de venda, e que o mesmo se situa entre os € 10.000,00 a €12.000,00, tendo explicado ser um bem de difícil aquisição, aqui tendo sido corroborado pela testemunha A… que referiu ter de fazer pesquisas em sites estrangeiros para tentar obter valores daquele concreto veículo. Assim o mesmo apresentou-se como credível.”.
Da própria transcrição efectuada pela recorrente resulta, desde logo, a dúvida sobre o valor do mercado efectivo quanto ao veículo em causa, dada a aparente contradição entre um depoimento e o outro, quanto ás testemunhas indicadas. Logo, o acesso que a testemunha A… fez, perito que presta serviços à seguradora, no âmbito de pesquisa internacional, não nos permite por si só afirmar que o valor venal do veículo era o indicado pela testemunha e reproduzido pela seguradora na carta aludida em 14. Aliás, limitou-se a dizer que “é o que consta dos documentos”, ou seja, o feito no âmbito da peritagem, sem indicar nada de concreto ou específico no depoimento, dizendo quanto ao valor comercial averiguou a nível nacional ou internacional, mas dizendo que “não se recorda”, mas que seriam validados pela supervisão. Porém, acabou por falar na escassez de veículos do género, pelo que não podemos considerar totalmente certo o valor comercial que consultou, o que mais nos leva a considerar que esse valor pode ficar próximo do indicado pela anterior testemunha, e não nos termos do valor que a recorrente pretende em concreto.
Com efeito, no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
Do exposto, nada nos permite concluir nos termos pretendidos pela recorrente, mantendo-se quanto a esta matéria apenas os factos contidos em 14. e 20., improcedendo, nesta parte, o recurso.
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III. O Direito:
A questão a decidir prende-se essencialmente com os danos, quer os relativos ao valor encontrado a título de perda da viatura, quer ainda a indemnização devida a título de privação do uso.
Nos autos não está em causa aferir da dinâmica do sinistro, nem é objecto de controvérsia a imputação da responsabilidade, pois quanto a esta foi assumida pela ré enquanto seguradora do veículo interveniente e seguro na mesma. A questão prende-se apenas quanto à quantificação dos danos e comensurar ou o montante indemnizatório quanto a alguns dos danos,  ou sequer se é devido algum montante quanto a outro dos danos.
Segundo o princípio geral do dever de indemnizar, quem está obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se tal dano não se tivesse verificado (art.º 562º do Código Civil). E o art.º 566º do CC estabelece o princípio da reconstituição natural na reparação do dano, pelo que a indemnização só é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Com efeito, não há indemnização sem dano. Este é um dos pressupostos indispensáveis da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar (art.ºs 483º e seg.s e 562º e seg.s do Código Civil). O lesante ou a seguradora responsável, deve reparar o dano de modo a colocar o lesado na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão.
O prejuízo ou dano consubstancia-se num sacrifício, tenha ou não conteúdo económico, e uma das formas possíveis é a pessoa deixar de poder gozar de todo ou de que passa a ter um gozo mais reduzido ou precário ( Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra, 3ª edição, pág.s 326 e 327).
Logo, verificado o sinistro, o segurado ou o tomador, consoante a concreta situação ocorrida, têm o dever, ex bona fide, de minorar os danos ou de evitar a sua propagação (art.º 762º, nº 2, do Código Civil).( A. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina 2013, pág. 699).
A celeridade e a colaboração honesta e leal na resolução do sinistro, que se impõem entre a seguradora e o tomador, o segurado ou o beneficiário, são deveres que se justificam especialmente neste tipo de contrato por só assim se poderem tomar as medidas necessárias a minorar os prejuízos e a cumprir adequadamente os fins contratuais. Quanto mais depressa se encontre uma solução justa para o caso, tanto melhor. É, pois, com este fito que as partes devem colaborar na regularização dos acidentes, de preferência de forma amigável, devendo a boa fé estar presente nos contactos que estabeleceram entre a as mesmas.
A inconformidade da recorrente começa pelo valor atribuído ao veículo em termos indemnizatórios, pugnando pela aplicabilidade ao caso, considerando a prova do valor de mercado como sendo de € 5.250,00, o critério do artº artº 41º do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de agosto, concluindo que face a tais critérios, “facilmente se percebe que a condenação da Autora no pagamento da quantia de € 8.750,00, correspondente ao valor da aquisição do novo veículo - € 10.000,00, deduzido o valor do salvado - € 1.250,00 é manifestamente excessiva e potenciadora de ilegítimo enriquecimento”.
Como referimos supra não se alterou o facto no que diz respeito ao valor de mercado do veículo. Porém, mesmo que fosse considerado o valor venal do veículo, tal como foi feita a proposta de regularização plasmada no ponto 14. dos factos, entendemos que não lhe assiste razão, pois, tal como já defendemos no Acórdão de 2/12/2021, proferido no proc. nº Proc. nº 15557/20.1T8LSB.L1, como relatora, “o art.º 41º, nº 1, al. c), da LSO (Decreto-lei nº 291/2007, de 21 de agosto, que estabelece o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidde civil automóvel) não revogou o nº 1 do art.º 566º do Código Civil, pelo que não é aplicável aos litígios em fase judicial, podendo ser encontrado um montante indemnizatório que se afaste do previsto naquele preceito, mesmo em caso de perda total do veículo.”
Com efeito, a questão prende-se com o que se entende por excessiva onerosidade, nomeadamente considerando a interpretação que é levada a cabo do artº 566º nº 1 2ª parte do CC em conjugação com o artº 41º alínea c) do DL nº 291/2007.
A propósito do artº 566º do CC referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, 2ª edição, vol. I, pág. 506), “o fim precípuo da lei nesta matéria e o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes”. Defendem assim, que a excessiva onerosidade para o devedor ocorre quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável. O exemplo considerado por tais autores é com efeito a inutilização de um automóvel velho que vale 10, sendo necessário 20 para o substituir por um veículo novo. Seria injusta a substituição, onerando o devedor com um encargo superior ao prejuízo e beneficiando o credor com a substituição dum automóvel velho por um novo.
Também Menezes Cordeiro ( in Direito das Obrigações, 2º vol., AAFDL, 1980, pág. 401) considera que a excessiva onerosidade ocorre quando a indemnização específica, sendo possível, acarrete, no entanto, para o obrigado a indemnizar, um esforço que não tenha qualquer equivalência com a vantagem acarretada para o lesado, ou seja, quando a sua exigência atente gravemente contra o principio da boa fé.
No entendimento expresso no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.12.2007 (proc. 06B4219, in www.dgsi.pt) excessivamente oneroso não é apenas oneroso, ou até mais oneroso, mas flagrantemente desproporcionado o custo em relação ao interesse do lesado na reparação.
Ora, o art.º 41º, nº 1, al. c), da LSO estabelece que: “Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:(…)
c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.”
Todavia, a jurisprudência maioritária tem vindo a entender que aquele normativo não revogou o nº 1 do art.º 566º do Código Civil e que não é aplicável aos litígios em fase judicial. Pela sua inserção no contexto daquele decreto-lei nº 291/2007, no capítulo III, sob a epígrafe “Da regularização dos sinistros”, a par da proposta razoável para a regularização que a seguradora deve apresentar ao lesado, tal preceito dispõe para os procedimentos a adoptar pelas empresas de seguros na fixação de prazos com vista à regularização rápida de litígios e do estabelecimento de princípios base na gestão de sinistros. Visa-se ali a resolução simplificada, rápida e amigável dos litígios entre as seguradoras, os seus segurados e terceiros. Assim, mediante a apresentação de uma proposta razoável de indemnização apresentada pela seguradora, fundada nos critérios estabelecidos nesse diploma, pode o segurado ou o terceiro aceitá-la, resolvendo-se em definitivo o litígio. Mas se não houver acordo, e se houver necessidade de recorrer às vias judiciais, a determinação da espécie e do quantum da indemnização passam a ser regulados pelos regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, entre os quais avultam, de um lado, o princípio da reparação in natura e, de outro, o princípio da reparação integral do dano, ficando afastada a aplicação dos critérios previstos no Capítulo III do Decreto-lei nº 291/2007, designadamente o artigo 41º ( entre outros acórdãos da Relação do Porto de 7.09.2010 e de 10.4.2014, proc. 1942/12.6TJVNF.P1, bem como o recente da mesma Relação proferido no proc. nº289/19.1T8MCN.P1, datado de 28.05.2020, bem como desta Relação de 9.7.2014, proc. 3100/12.0YXLSB.L1-1, todos in www.dgsi.pt).
Importa ainda ter presente o decidido no Acórdão desta Relação e secção de 14-03-2013 (P.nº114/09.1TBRGR-A.L1-6- in www.dgsi.pt) no  qual se sumaria que:«1. Da conjugação dos art.ºs 562.º e 566.º/1 do C. Civil resulta prevalecer o princípio da reconstituição natural, ou seja, a lei manda reconstituir a situação hipotética não fora o facto determinante da responsabilidade, e só quando se revele impossível, não repare a totalidade dos danos ou for excessivamente onerosa para o devedor, permite a indemnização em dinheiro. 2. Com a expressão “excessiva onerosidade” pretende-se significar quando a restauração natural impuser ao devedor um encargo desmedido, desajustado, que ultrapasse manifestamente os limites impostos a uma legítima indemnização. 3. O valor a considerar para efeito de integração do conceito de “excessiva onorosidade” há de ser o valor patrimonial do veículo, o valor que o mesmo representa para o património do lesado, e não o seu valor venal. 4. De acordo com as regras do ónus da prova, compete ao lesado alegar e provar os danos sofridos no seu veículo e seu montante, i. é, a regra geral - restauração natural-, competindo ao lesante alegar e demonstrar a excepção – a excessiva onerosidade dessa reparação.5. Os procedimentos introduzidos no art.º 41.º Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto (anterior art.º 20.º-I, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de dezembro, aditado pelo Decreto-Lei n.º 83/2006 de 3 de maio) não pretendem afastar a aplicação das disposições do Código Civil, mas sim reduzir a conflitualidade existente entre as seguradoras e seus segurados e terceiros, mediante a introdução de regras e procedimentos a adoptar pelas empresas de seguros com vista à regularização rápida dos sinistros.».
Também tem sido entendido que na apreciação da excessiva onerosidade importa ter em atenção factores subjectivos, como os respeitantes ao devedor e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, bem como as condições do lesado, e o seu justificado interesse específico na reparação do objecto danificado.
Nesta sede, o valor a ter em conta é o valor patrimonial do veículo, correspondendo este ao valor que o veículo representa dentro do património do lesado, ou seja, o valor necessário para o lesado adquirir um veículo com as características do veículo sinistrado, adequado a satisfazer as mesmas necessidades e interesses. Como bem se conclui no Acórdão da Relação do Porto de 28.05.2020, aludido supra, «(t)al valor não é, então, o valor venal do veículo mas o valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado; o valor que ele tem efectivamente tal como estava antes do sinistro dentro do património do autor (e não o valor que ele obteria se naquele mesmo estado o vendesse)».
No caso concreto e face a tais princípios, nada nos permite afastar o juízo levado a cabo pelo Juiz a quo ao referir que: “Resultou dos factos provados que a viatura do Autor, sofreu perda total, tendo-se apurado o valor de salvado de € 1.250,00. Bem como que a viatura nova teve um custo de € 10.000,00 euros.
Peticiona o Autor o pagamento daquilo que pagou pela viatura.
Nos termos do n.º 2 art.º 41º do DL 291/2007 de 21.08: “O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.” E no seu n.º 3: “O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respetivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.”
Alegou e demonstrou o Autor o valor do veículo como sendo de € 10.000,00, não tendo a Ré, alegado nem demonstrado que tal valor não correspondia ao valor de mercado do veículo, deve o Tribunal calcular a indemnização com base nesse valor, e assim, nos termos do n.º 3 do art.º 41º do DL 291/2007, tal valor será de € 8.750,00, já com a dedução do salvado.”.
No caso a aquisição do veículo para substituir o sinistrado comportou em 10.000€, pelo que no termos do artº 566º do CC, será ao valor em causa deduzido o valor do salvado, tal como se concluiu na sentença recorrida, improcedendo o recurso nesta parte.
Resta aferir do valor em que a ré foi condenada a título de privação do uso.
No recurso defende a recorrente nas suas conclusões 16ª a 21ª que nunca poderia a Autora peticionar a privação de uso e simultaneamente peticionar o valor de um veículo, alugado, supostamente para substituição daquele outro do qual se viu privada.
Sustenta que quanto a esse pedido assentava a Autora o seu pedido na circunstância de ter tido necessidade de contratar uma terceira empresa para fazer por si os transportes, reclamando tal pagamento nos Autos. Conclui assim, que ao condenar a Ré no pagamento do valor de € 12.780,00 a título de privação de uso, o Tribunal violou quanto dispõe o nº 1 do artº 609º do Cód. de Proc. Civil, “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.”, assacando à decisão  a nulidade por condenação em objecto diverso do peticionado, nos termos da alínea e) do nº 1 do artº 615º do Cód. de Proc. Civil. Socorre-se em abono e tal pretensão no decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 11/05/2021 disponível em www.dgsi.pt de cujo sumário se extrai: “i) A sentença só é nula, por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art. 615º, nº 1, c), 1ª parte, do NCPC, se entre aqueles e esta houver contradição lógica; não se houver eventual erro de julgamento; ii) A sentença só é nula, nos termos da mencionada c), 2ª parte, quando não seja perceptível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou ela encerre um duplo sentido (ambiguidade), sendo ininteligível para um declaratário normal; iii) A sentença é nula, ao abrigo da e), do indicado art. 615º, nº 1, se condenar em objecto diverso do pedido.; esta pronúncia ultra petitum dá-se se o A. pede uma coisa e o tribunal condena noutra, por ex. se o A. pede a entrega de uma coisa e o juiz condena o R. a pagar uma indemnização.
Entende assim, a recorrente que deve ser absolvida de tal pedido indemnizatório que se fixou em € 12.780,00.
O Tribunal recorrido enunciou o pedido da Autora, ou seja, o pagamento de uma indemnização por privação de uso do veículo, assente no facto de a galera ter ficado destruída e não poder circular, obrigando a que a A. contratasse serviço de transporte, e por isso considerava que pelo período de privação deve ser indemnizado no valor total de € 26.555,70. De seguida, abordou o que se discute quanto à privação do uso, mormente no âmbito dos acidentes de viação, trazendo à colação que “Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel, danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar direta e concretamente prejuízos efetivos.” – cfr. Ac. TRC de 08.04.2014, proc.º 1091/12.7TJCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt. Para concluir que: “Assim, não é relevante saber se a Autora alugou ou não uma viatura ou se procedeu ao pagamento de um serviço de transporte, porque terá direito à indemnização pela simples perda do veículo.
A fixação da indemnização deve ser feita com recurso à equidade, e neste campo há que atender a que o Autor, utilizava o veículo para o transporte de tijolo, que estava incluído no fornecimento de tijolo, pelo que apenas para a atividade profissional desenvolvida.
No que respeita ao período de privação do trator desde o sinistro e até à sua reparação, o mesmo é indemnizável, porém não foi nem alegado nem demonstrado quando foi feita a reparação do aludido trator, pelo que é impossível quantificar tal privação de uso, sendo nesta parte improcedente o pedido da A.
No que respeita à privação de uso da galera, resultam dos autos os períodos de privação da mesma, porém não se apurou que nesse período tivesse efetivamente contratado serviço de transporte, para evitar os prejuízos da paragem. Sucede que a mera privação do uso da viatura é já em si um dano, em especial porque a A., a usava de segunda a sábado para proceder às entregas de tijolo, pelo que é um dano que merece a tutela do direito.
Resulta dos factos provados que o transporte de tijolo quando contratado tem um valor de cerca de € 230,00 por dia.
Ora não está em causa o valor do transporte já que a galera por si só não efetua o transporte, desconhecendo o valor de aluguer de uma galera, mas tendo em atenção o valor de mercado para aluguer diário de um veículo pesado de grandes dimensões, que se cifra em cerca de € 90,00, fixa-se esse montante.
Uma vez que a indemnização pela privação do uso deve ser paga até à reposição da indemnização pelo acidente, a aqui nos autos deveria fixar-se assim, porém uma vez que o Autor adquiriu já uma nova viatura pelo menos em 14.04.2022, deve a indemnização ser paga até essa data.
O referido montante deve fixar-se entre a data do acidente que ocorreu em 28.10.2021, e a data em que a A., adquiriu um novo, em 14.04.2022, por cada dia da semana, excluindo os domingos e feriados, o que perfaz 142 dias. Perfazendo o total de € 12.780,00.”
A privação do uso de veículo poderá constituir uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. Ela é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira a sua utilização, como é o caso, de exercer os poderes correspondentes ao seu direito (neste sentido, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2011, proc. 3922/07.2TBVCT.G1.S1 e de 08.05.2013, proc. 3036/04.9TBVLG.P1.S1, in www.dgsi.pt, citando-se, no segundo, outra jurisprudência, nomeadamente os acórdãos do mesmo Tribunal 5 de Julho de 2007, proc. nº 07B1849, e de 10 de Setembro de 2009, proc. nº 376/09.4YLSB, também publicados na referida base de dados.).
Esta posição, na jurisprudência, insere-se numa das duas correntes que vêm sendo seguidas nos tribunais, incluindo no Supremo Tribunal de Justiça, a que não tem sido alheia a influência de alguma doutrina, designadamente a que foi desenvolvida por Abrantes Geraldes (In “Indemnização do Dano da Privação do Uso”, Coimbra, Almedina, 2001), o qual preconiza que tendo em conta o disposto nos art.ºs 562º a 564º e 566º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente pode resultar:
a) Um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como seria o aluguer de outro veículo;
b) Um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa;
c) Um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no art.º 1305º do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender.
Pois entendemos que não há que assumir a outra posição que preconiza a essencialidade da alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo, de proceder à utilização do veículo e termos desta.
A questão suscitada pela apelante não se prende com a existência da privação de uso do veículo, entende a mesma sim que o pedido da Autora não se insere neste tipo de indemnização, mas sim apenas como dano emergente, assacando à sentença  a nulidade por condenar em objecto diverso do pedido.
A recorrida nas suas contra alegações contrapõe, no sentido de confirmar a decisão, concluindo que a Autora veio requerer o pagamento de uma indemnização em dinheiro pelos danos por si sofridos e o Tribunal condenou a Ré no pagamento de uma indemnização em dinheiro pelos danos sofridos pela Autora. Pelo que entende que não há aqui objecto diverso de condenação.
Acompanhamos a recorrida quando refere que o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 11/05/2021, invocado pela recorrente, permite sim um entendimento contrário ao ora defendido pela mesma, pois o objecto diverso consubstanciador da nulidade reportar-se-á à condenação concreta, como se alude em tal decisão “A sentença é nula, ao abrigo da e), do indicado art. 615º, nº 1, se condenar em objecto diverso do pedido.; esta pronúncia ultra petitum dá-se se o A. pede uma coisa e o tribunal condena noutra, por ex. se o A. pede a entrega de uma coisa e o juiz condena o R. a pagar uma indemnização”.
No caso dos autos, o que releva para a fixação de tal valor indemnizatório é a prova da impossibilidade de utilização do veículo na sequência do acidente, resultando ainda provada a sua utilização efectiva na actividade desenvolvida pela recorrida. Na verdade, a prova do dano ocorre, o que o Tribunal recorrido atentou foi o que determina a indemnização de tal dano, e aqui, circunscrevendo-se ou contendo-se no pedido indemnizatório/monetário, assentou que não não estará em causa os danos emergentes, os quais a existirem consumiriam por si só o que advém da privação do uso, mas sim este em concreto. Logo, a decisão condenatória não se afasta do pedido, subsume o direito à indemnização não com base na verificação do dano emergente nos termos quantificados pela Autora, mas sim na verificação concreta da privação do uso e a indemnização com recurso à equidade.
É certo que tem sido entendido, na esteira daquela última corrente enunciada, que o dano que advém da simples privação do uso do veículo é susceptível de indemnização calculada pelo recurso à equidade ( neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2005, doc. nº SJ200511290031227, in www.dgsi.pt). Trazendo ainda à colação acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.12.2003 ( in endereço da net aludido), a impossibilidade de dispor do veículo, mesmo para passear, constitui dano de lazer e, enquanto tal, dano susceptível, quando prolongada essa impossibilidade, de merecer a tutela do direito, devendo ser compensada.
Citando o Prof. Gomes da Silva, refere-se no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.2007 ( endereço da net aludido) que “o bem só interessa, quer económica quer juridicamente (...) pela utilidade, isto é, pela aptidão para realizar fins humanos”; e nos casos de perda ou deterioração de um bem, o dano consiste “no malogro dos fins realizáveis por meio do bem perdido ou deteriorado, isto é, consiste menos na perda do próprio bem do que em ser-se privado da utilidade que ele proporcionava”. No dano haverá sempre, portanto, a frustração de um ou mais fins, resultante de se haver colocado o bem, por meio do qual era possível atingi-los, em situação de não poder ser utilizado para esse efeito.
Nesta lógica de raciocínio, Abrantes Geraldes refere que “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização”( In “Indemnização do Dano Privação do Uso”, pág.s 39-41).
Actualmente, porém, sem prejuízo de serem conhecidas as dúvidas e os argumentos debatidos a este propósito, aderimos à tese que se nos afigura ter-se tornado maioritária na jurisprudência, segundo a qual: “competindo ao lesado provar o dano da privação do uso, não é suficiente, para tanto, a prova da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efectiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante.” (cfr. acórdão do STJ de 28-01-2021, Revista n.º 14232/17.9T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.).
Com efeito, conforme se refere no acórdão do STJ de 17-06-2021, Revista 879/17.7T8EVR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt., (citando Maria da Graça Trigo, in Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 60), “em paralelo com o aprofundamento do problema surgiu uma posição intermédia que parte da exclusão da reparação do dano em abstracto mas que, num segundo nível, admite como suficiente a prova da ocorrência de danos concretos com base numa presunção. Ao lesado pede-se apenas a prova que utiliza habitualmente a viatura na sua vida diária, presumindo-se que, da respectiva privação, derivem danos efectivos. Esta posição é hoje tendencialmente maioritária na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça”.
No caso presente, a autora fez prova da utilização do veículo, sendo este o instrumento de trabalho utilizado no desenvolvimento da sua actividade, pelo que ainda que se adira a tal tese intermédia, in casu está consubstanciado o direito a obter a indemnização pela privação do uso, sem necessidade de prova dos prejuízos efectivos que a mesma teve com tal privação, como defende a apelada.
É certo que a ter existido a indemnização por tal dano nos alegados prejuízos sofridos a indemnização pela mera “privação do uso” seria subsumida por este, porém, a aferição do valor indemnizatório não confere ao dano qualquer diferenciação, nem o facto de o tribunal ter condenado nesse valor constitui uma condenação em objecto diverso. O que ocorre é que relativamente ao mesmo dano, o direito indemnização não decorre da 1ª parte do artº 564º do CC e o correlacionado nº 1 do artº 566º, mas sim com base no nº 1, 2ª parte do artº 564º e o nº 3 do artº 566º. Logo, não se antevê a nulidade apontada à decisão, circunscrevendo-se a condenação no pedido formulado.
Na verdade, como já deixámos referido concluindo-se pela existência da ofensa ao direito de uso, dificilmente se poderá, na maior parte dos casos, encontrar o valor exacto de tal prejuízo, e mesmo que este seja alegado, a ausência da prova de tal valor não determina a improcedência do direito à indemnização. Daí que se fale antes de atribuição de uma compensação, que deverá ser determinada por juízos de equidade, tendo em conta as circunstâncias concretas do caso. O apelo a estes factos com vista a apurar o quantum devido resulta do disposto no n.° 3 do art.º 566.° do Código Civil.
Logo,  a decisão tomada na tese a que aderimos situa-se apenas nesse quantum, ou na determinação do valor do dano, e quanto a este ou se apura a concreta existência de despesas feitas pelo lesado em consequência dessa privação, ou se recorre à equidade caso não se apurem quaisquer gastos, mas sim que o lesado utilizava o veículo (para fins profissionais, familiares, lazer, etc.). Na primeira situação, o lesado terá direito à reparação integral dos gastos/custos que teve por via da dita privação. Já na segunda hipótese, a medida da indemnização terá que ser encontrada em função da impossibilidade do lesado utilizar o veículo nas suas deslocações diárias, profissionais, familiares, de lazer, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizá-lo pela falta de um veículo próprio que satisfaça as suas necessidades básicas ( cf. Ac. da Relação de Coimbra de 10.9.2013, proc. 438/11.8TBTND.C1, in www.dgsi.pt.).
Do exposto, é de confirmar o juízo levada a cabo pelo Tribunal a quo, nem a recorrente põe em causa o valor concreto encontrado em termos indemnizatórios, manifestamente inferior ao valor que a Autora alegava em termos de prejuízo, pelo que contido no pedido e encontrado com base em critérios de equidade.
Improcede, assim, a apelação, importando ainda as custas à apelante ( cf. artº 527º do Código de Processo Civil).
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IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Réu e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 20 de Junho de 2024
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas
Octávia Viegas