ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
APRESENTAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA
REJEIÇÃO
Sumário

I–Tendo sido comunicada pelo tribunal a quo uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação/pronúncia, ao abrigo do nº 1 do artº 358º do CPP, têm os arguidos o direito processual de indicar os meios de prova no âmbito do respetivo direito de defesa, ainda que se tratem de meios de prova já pertinentes e que poderiam ter sido requeridos na contestação;

II–Isto significa que, no domínio do direito de defesa em consequência de uma comunicação da alteração factual não substancial efetuada pelo tribunal, a disciplina da sua admissibilidade não é tendencialmente tão restritiva como o seria se o requerimento probatório fosse apresentado na audiência de julgamento sem qualquer justificação para a sua apresentação naquele momento.

III–Haverá assim que distinguir se o requerimento probatório foi apresentado no decurso da audiência de julgamento sem que haja razão alguma para tal daqueloutra situação em que tal é efetuado ao abrigo do nº 1 do artº 358º do CPP.

IV–Nesse âmbito, os meios de prova apresentados apenas deverão ser rejeitados se for notório que são irrelevantes ou supérfluos, inadequados, de obtenção impossível ou muito duvidosa, ou com intuito meramente dilatório (nº 4 do artº 340º do CPP);

V–Não sendo tal notório, deverão ser deferidos;

VI–Com a revogação da al. a) do nº 4 do artº 340º do CPP pela Lei nº 94/2021, de 21.12. (de aplicação imediata por força do artº 5º do CPP), deixou de ser possível indeferir os requerimentos probatórios com o argumento de que as provas poderiam ter sido requeridas em momento anterior (na acusação ou contestação).

(Sumário da responsabilidade do relator)

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO


No âmbito do proc. comum singular nº 251/09.2IDFUN, que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Ponta do Sol, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, em que, além do mais, são arguidos AA, BB e CC, com sinais identificadores nos autos, no decurso da audiência de julgamento, pelo tribunal a quo foi proferido o seguinte despacho (cfr. ata com a refª 50148738), cujo teor se transcreve:

«DESPACHO
Produzida a prova na presente audiência de julgamento verifica-se a suscetibilidade de resultar provada a seguinte factualidade, distinta daquela que constava da acusação:
8.–Neste sentido, o arguido AA após ter contactado com pessoa(s) de identidade não concretamente apurada, acordaram com este(s) último(s) que o(s) mesmo(s) lhe(s) forneceria(m) faturas pertencentes à sociedade “...”, identificada em 5., conforme sucedeu, as quais serviriam, nos termos do plano ora sob evidência, como faturas falsamente emitidas pela mesma dando conta de falsos serviços prestados à sociedade arguida pela sociedade “...” como forma de simular custos dedutíveis inexistentes de molde a extrair daí as respetivas vantagens fiscais, como igualmente se verificou.
10.–Desta feita, em concretização do referido plano gizado pelo arguido AA e BB conjuntamente com pessoa(s) de identidade não concretamente apurada, e com o objetivo atrás referido em 7. e 8., foram pelos arguidos AA e BB registadas e contabilizadas como custos na contabilidade da sociedade arguida, e indevidamente deduzidas, quer em sede de I.V.A., quer em sede de I.R.C., as seguintes faturas com emissão aparentemente efetuada pela sociedade “...” relacionadas com pretensas transações e serviços prestados na área da construção civil:
[…]
12.–Tais faturas foram correspondentemente preenchidas pelo punho de pessoa(s) de identidade não concretamente apurada, ou por alguém sob a determinação destes, que previamente acordaram com o arguido AA, as datas e os valores que deveriam constar das mesmas, sendo certo que pelo fornecimento das faturas em questão foi recebida, por todos aqueles que nessa operação intervieram uma contrapartida monetária correspondente a uma percentagem variável do valor das mesmas.
13.–Com efeito, sucedeu que, em momento não concretamente apurado, mas seguramente anterior ao registo e integração na contabilidade da sociedade arguida das faturas em questão nos termos referidos em 10. e à sua declaração como custos à Administração Fiscal nos termos indicados em 11., pessoa(s) de identidade não concretamente apurada entrou/entraram na posse de várias faturas em branco da sociedade “...”, e onde constava o carimbo da mesma, o que fez/fizeram de forma não concretamente apurada.
14.–Desta forma, pessoa(s) de identidade não concretamente apurada logrou/lograram negociar e concretizar com o arguido AA o plano descrito em 7. e 8..
15.–As referidas faturas, devidamente descritas em 10., não correspondem a quaisquer serviços prestados à sociedade arguida pela sociedade “...”, nem tão pouco a quaisquer transações realizadas entre esta última e a sociedade arguida, tanto mais que:
-Não existe qualquer suporte documental de contractos realizados entre a sociedade arguida e a sociedade “...”, bem como de autos de medição do material adquirido ou utilizado, ou mesmo orçamentos associados às alegadas transações;
-A sociedade “...” era, aquando da ocorrência dos factos, como ainda continua a ser, uma sociedade não declarante em termos fiscais pois não procedeu à apresentação de qualquer declaração de rendimentos de I.V.A. ou I.R.C. para o exercício de 2005, ou mesmo da declaração anual de informação contabilística e fiscal (I.E.S.) para o mesmo ano;
-A sociedade “...”, apesar do conteúdo do seu objeto social indicado em 5., não dispôs de qualquer alvará de construção emitido pelo Instituto Nacional de Construção e Imobiliário até 15.08.2005;
16.–Sem embargo, e apesar das faturas supra descritas constarem na contabilidade da sociedade arguida e nas declarações fiscais pela mesma emitidas como estando associadas a um meio de pagamento documentalmente confirmado, neste caso o uso de cheques emitidos à ordem da sociedade “...”, aconteceu que nenhum dos cheques às mesmas associados e a seguir descritos foi alguma vez recebido, levantado ou depositado pela sociedade supostamente beneficiária dos mesmos, a “...”, nem por ninguém à mesma diretamente ligado, tendo, ao invés, todas quantias correspondentes aos pretensos pagamentos das faturas retornado ao poder dos arguidos AA e BB, que as despenderam em interesse e proveito próprio e da sociedade arguida, ou sido encaminhados para pessoa(s) de identidade não concretamente apurada, ocorrendo depois entre todos eles os ajustes de pagamentos das contrapartidas mencionadas em 12..
17.–Com efeito, a relação entre os cheques mencionados em 16. - emitidos pela sociedade arguida, assinados pelo arguido AA por outra pessoa de identidade não concretamente apurada e utilizados para simular os pagamentos à sociedade “...” - e as faturas falsamente emitidas pertencentes a esta mesma sociedade, bem como os concretos destinos de cada um dos títulos de crédito em questão foram os seguintes:
[…]
*
Tais factos consubstanciam numa alteração não substancial, com relevo para decisão da causa, pelo que se comunica aos arguido nos termos e para efeitos do n.º 1 do art.º 358.º do CPP.
*
Comunicada a alteração não substancial dos factos, pelo Ilustre Defensor dos arguido foi requerido o prazo de 10 dias para preparação da defesa.
*

De seguida, pelo(a) Mmº(ª) Juiz foi proferido o seguinte:
DESPACHO
Nos termos do art.º 358.º do CPP o Tribunal concede o prazo de 10 dias para apresentação de defesa dos factos agora descritos.
[…].»
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Nessa sequência, pelos arguidos BB e AA foi apresentado o seguinte requerimento, que deu entrada nos autos sob a refª 4232226 (transcrição):
«BB e AA, Arguidos nos Autos acima identificados, vêm apresentar a respectiva defesa na sequência do Despacho proferido na audiência de julgamento do dia 11/06/2021, nos seguintes termos:
Foi proferido Despacho na audiência de julgamento do dia 11/06/2021, alterando os factos pelos quais os Arguidos vinham pronunciados, com o entendimento expresso pelo Tribunal de que estaria em causa uma alteração não substancial de factos.
Para assim decidir, rigorosamente nada foi fundamentado pelo Tribunal.
O Tribunal, na verdade, limitou-se a comunicar os factos que entendia alterar, os quais indicou consubstanciarem uma alteração não substancial, e conferindo prazo de defesa aos Arguidos.
Em termos de respectiva fundamentação, reitera-se, nada consta do Despacho em causa.
Não se desconhece que há entendimento, designadamente jurisprudencial, no sentido de que este tipo de Despacho não carece de fundamentação, como se decidiu no douto Ac. do TRL de 14-01-2014, CJ, 2014, T1, pág.136: “O despacho de comunicação de alteração não substancial dos factos constitui um juízo provisório e condicional, que não se encontra sujeito ao dever de fundamentação.”
Esse, contudo, não é, salvo o devido respeito e salvo melhor entendimento, uma interpretação conforme à Constituição e à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no que respeito ao princípio do direito a um processo equitativo.
Tal como sucede com a Acusação, o direito de defesa, a ser substantivo, e não meramente formal, impõe que seja dado o devido conhecimento dos factos e, bem assim, dos meios de prova em que se estriba.
Não deverá ser diferente em relação ao Despacho que comunica uma alteração de factos que o Tribunal entende como não substancial: além da comunicação dos factos alterados, tem necessariamente de ser comunicado em que se estriba o julgador para a dita alteração, sob pena, reitera-se, de violação do princípio do direito a um processo equitativo.
Aliás, a alteração de factos, mesmo a que seja entendida como não substancial, tem necessariamente de resultar do decurso da audiência (cfr. art. 358º, nº 1, do CPP, sendo o sublinhado nosso: “Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”).
O que seja que tenha ocorrido no decurso da audiência, reitera-se, que tenha determinado a dita alteração, tem, sob pena de violação do direito de defesa, e inerentemente do direito a um processo equitativo, de expressamente fundamentar a dita alteração.
Nesta sequência, é desde já arguida expressamente a inconstitucionalidade do art. 358º do CPP quando interpretado no sentido de permitir a consideração de alteração de factos, ainda que não substancial, na Sentença, que não tenha sido antes comunicada, quer quanto aos factos alterados, quer quanto ao que tenha ocorrido no decurso da audiência que tenha supostamente determinado essa alteração, por violação do princípio constitucional das garantias de defesa e do direito a um processo equitativo, em última análise decorrentes do princípio do Estado de direito.
No caso concreto, não só falece essa devida comunicação quanto ao segundo aspecto, sendo o Despacho proferido em audiência de 11/06/2021 totalmente omisso em termos de fundamentação, como, ainda, e na verdade, aquele Despacho carece in totum de qualquer fundamento.
Na verdade, o que possa ocorrer no decurso do julgamento que determine um alteração, ainda que não substancial, dos factos, tem necessariamente de resultar desde logo da prova então produzida.
Esta é que terá, então, de determinar o novo sentido dos factos a considerar, é que estará, então, na origem da respectiva alteração.
Já não poderá resultar do absoluto fracasso da prova em relação à factualidade que integra a acusação.
Noutra perspectiva, integrando a acusação – no caso concreto, mais propriamente a pronúncia – uma descrição de um conjunto de factos, complexos, com envolvência de diversos responsáveis e intervenientes, todos com diversas responsabilidades imputadas, não pode resultar uma alteração não substancial de factos aquilo que, muito simplesmente, resulta da não prova objectiva da quase generalidade dessa factualidade.
No caso concreto, as pretendidas alterações, por um lado, reconduzem-se ao remeter para “pessoa(s) de identidade não concretamente apurada”, varrendo todos os supostos responsáveis, aliás na sua maior parte já absolvidos, para tudo acabar por imputar ao AA .
O Tribunal, ainda que com as respectivas prerrogativas, designadamente em termos probatórios, e bem assim em termos de alteração, ainda que não substancial de factos, não as pode usar como tentativa de salvar uma acusação naufragada nos seus elementos essenciais.
O Tribunal, sob pena de afronta ostensiva da sua própria imparcialidade, inclusivamente susceptível de integrar incidente de recusa de juiz, não pode desenvolver, por meio do recurso ao mecanismo do art. 358º do CPP, a remoção da factualidade essencial integrada na acusação e que, pura e simplesmente, naufragou, alterando para a alusão evasiva de suposta factualidade relativa a “pessoa(s) de identidade não concretamente apurada”.
Pior: a factualidade então resultante não passa de mera especulação, não tem qualquer fundamento e, mais uma vez, põe em causa a imparcialidade do Tribunal,.
Ninguém identificou qualquer dos Arguidos que remanescem aludidos após a pretendida alteração.
Ninguém sequer mencionou qualquer dos Arguidos.
Ninguém sequer demonstrou conhecer ou jamais se relacionar com qualquer dos Arguidos.
Ninguém relatou qualquer actuação dos mesmos.
Ninguém relacionou qualquer dos mesmos com qualquer dos documentos juntos aos Autos.
Ninguém aludiu a qualquer contacto com qualquer dos mesmos.
Nem uma única das testemunhas ouvidas.
Nem uma só.
Nada.
A alteração pretendida, ao contrário do que permite o disposto no art. 358º do CPP, não resultou indiciada da factualidade apurada em sede de julgamento.
Resultou, bem pelo contrário, reitera-se, do absoluto fracasso da prova da acusação, na sua narrativa essencial, removendo-a, e substituindo-a por meras especulações, porque nada do que as integra foi sequer aludido no julgamento.
Essa actuação do Tribunal, salvo o devido respeito, é tanto mais lamentável, quanto, reitera-se, põe objectivamente em causa a sua própria imparcialidade, apreciado do ponto de vista do cidadão comum.
Como, na verdade, compreender, nessa perspectiva, a alteração de facto constante do ponto 8 quando ninguém, rigorosamente ninguém aludiu a qualquer actuação do AA?
Que contacto?
Por que meio?
Quando?
Porquê ele, e não qualquer um dos restantes gerentes?
E dos restantes intervenientes?
O mesmo se diga quanto ao suposto plano aludido no ponto 10 da pretendida alteração.
O mesmo se diga quanto ao suposto acordo aludido no ponto 12 da pretendida alteração.
O mesmo se diga quanto à suposta negociação e concretização aludida no ponto 14. da alteração.
O mesmo se diga quanto às supostas entregas aludidas no ponto 16 da pretendida alteração.
Tudo relacionado com pessoas de identidade não apurada, que ninguém mencionou em julgamento, tal como não foram mencionados os Arguidos.
Nem um segundo só da gravação da audiência de julgamento integra qualquer tipo de alusão ou menção aos mesmos.
O Tribunal ainda se permite afirmar que os cheques foram assinados pelo AA e pessoa não identificada: mais uma vez nada, rigorosamente nada, assim o permite afirmar, nenhuma prova complementar aos cheques tendo sido produzida a esse respeito.
Das diversas assinaturas, todas diferentes, e diferentes até entre os cheques em causa, constantes dos cheques em causa, nenhuma foi confirmada ou esclarecida por quem quer que seja – nem por prova pericial, prova pericial essa não realizada, apesar de entendida por necessária pela própria Instrutora do processo em causa junto da Autoridade Tributária.
Mais uma vez está em causa uma mera especulação do Tribunal, sem alicerce probatório.
Nesta sequência, expressamente se argúi a inconstitucionalidade do art. 358º do CPP, por violação dos mesmos princípios acima aludidos, quando interpretado no sentido de permitir a alteração, ainda que não substancial, de factos, em resultado da falta de prova sobre elementos essenciais da narrativa de origem da acusação, sem que, por outro lado, os novos factos resultantes da alteração resultem da prova produzida em julgamento.
Por outro lado, mais importa referir que o resultado deste labor do Tribunal nem sequer corresponde, em rigor, a uma alteração não substancial de factos.
A alteração constante do Despacho proferido na audiência de 11/06/2021 esvaziando a acusação de factualidade essencial à respectiva narrativa, coloca os Arguidos na posição, impossível, de se defender de factos que deixam de estar concretizados, sendo substituídos pela alusão – sem nome, sem data, sem lugar, sem contexto – a meros fantasmas, as ditas pessoas não concretamente identificadas.
Não há como se defender, nem contraditar, meros fantasmas.
E, pior, em compensação, na alteração em causa o Tribunal vem a erigir como Deus ex maquina de tudo o AA.
Já se referiu que, nessa alteração, não só o Tribunal nada fundamentou, como ainda nenhum fundamento tem.
Mas, para além disso, acresce que há aí uma manifesta alteração, substancial, da acusação.
Está em causa um notório agravamento da imputação dirigida ao AA.
E já nem sequer está em causa qualquer actuação que respeite à Arguida sociedade, na certeza de que esta, à evidência, não era, não podia, nem nunca foi ou pôde ser representada apenas por aquele.
Como doutamente se refere no douto Acórdão do STJ de 21-03-2007: “«Alteração substancial dos factos» significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa.”
É o que aqui sucede.
Sem prejuízo de todo o acima alegado, e de todas as consequências daí advenientes, ainda assim, à cautela sempre assiste aos Arguidos requerer os respectivos meios probatórios sobre a matéria da alteração.
Nesta sequência, vêm os mesmos requerer a produção dos seguintes meios probatórios:
I–Notificação ao IMPIC para informar se para a sociedade ..., NIF ..., foi detentora do Título de Registo nº. ..., no período compreendido entre .../.../2005 e .../.../2010, que lhe permitia o exercício da actividade de construção em trabalhos e obras, enquadradas nas habilitações de armaduras para betão armado, alvenarias, rebocos e assentamento de cantarias.
II–Prova pericial sobre o seguinte objecto, a título de amostra, dada a extensão da prova documental em causa – protestando juntar as cópias dos documentos em causa, já juntos aos Autos, mas de modo a permitir a sua melhor e devida identificação:
1–É do punho de algum dos Arguidos a letra e assinatura do cheque de fls. 53 que acompanha a remessa para pagamento das facturas nºs. … e …, no valor de € 46.420,40, sacado sobre o ...?
2–É do punho de algum dos Arguidos a letra do lançamento contabilístico que ali consta?
3–É do punho de algum dos Arguidos a rúbrica do respectivo documento de pagamento?
4–É do punho de algum dos Arguidos a letra e assinatura do cheque de fls. 52 que acompanha a remessa para pagamento das facturas nºs. … e …, no valor de € 16.434,72, sacado sobre o ...?
5–É do punho de algum dos Arguidos a letra do lançamento contabilístico que ali consta?
6–É do punho de algum dos Arguidos a rúbrica do respectivo documento de pagamento?
7–É do punho de algum dos Arguidos a letra e assinatura do cheque de fls. 51 que acompanha a remessa para pagamento da factura nº. …, no valor de € 17.132,50, sacado sobre o ...?
8–É do punho de algum dos Arguidos a letra do lançamento contabilístico que ali consta?
9–É do punho de algum dos Arguidos a rúbrica do respectivo documento de pagamento?
10–É do punho de algum dos Arguidos a letra e assinatura do cheque de fls. 45 que acompanha a remessa para pagamento da factura nº…, no valor de € 9.039,53, sacado sobre o ...?
11–É do punho de algum dos Arguidos a letra do lançamento contabilístico que ali consta?
12–É do punho de algum dos Arguidos a rúbrica do respectivo documento de pagamento?
III– Arrola a seguinte testemunha:
- DD, a notificar junto da sede da CC.
Pede Deferimento».
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Em face do requerido, a 02.07.2021 o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho, inserido na ata com a refª 502267148 (transcrição):

«DESPACHO
Antes de mais, consigna-se que o Ilustre Mandatário dos arguidos pessoas singulares não compareceu à presente audiência de julgamento, fundamentando a sua não comparência, com um requerimento que deu entrada nos presentes autos no dia de ontem, às 23h59m, no facto de o Tribunal não ter proferido despacho quanto às diligências probatórias requeridas.
Em primeiro lugar, cumpre referir que o despacho pretendido seria proferido na presente sessão de audiência de julgamento, inexistindo qualquer obrigação do Tribunal de proferir tal despacho em momento anterior.
Em segundo lugar, a ausência do referido despacho não é fundamento para a não comparência do Ilustre Mandatário na presente sessão da audiência de julgamento, sendo, por isso, a sua falta injustificada.
Na verdade, os sujeitos processuais devem comparecer a todas as diligências judicias para as quais se encontram devidamente notificados, exceto em caso de falta justificada, o que, conforme se referiu, não é o caso.
No que concerne ao requerimento apresentado pelo Ilustre Mandatário em 25.06.2021, na sequência da comunicação da alteração não substancial de factos, realizada na sessão da audiência de julgamento de dia 11.06.2021, vieram os arguidos BB e AA invocar, em suma:
a)-A falta de fundamentação do despacho referente à comunicação da alteração não substancial de factos;
b)-A inconstitucionalidade do artigo 358.º, do Código de Processo Penal.
Analisaremos, de seguida, cada uma das questões suscitadas pelos arguidos.
A.Da falta de fundamentação do despacho referente à comunicação da alteração não substancial de factos
No que concerne à falta de fundamentação do despacho referente à comunicação da alteração não substancial de factos, determina o artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que: «[s]e no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.»
Ora, resulta deste normativo legal que o Tribunal tem de comunicar uma alteração.
O despacho em que o Tribunal procede à referida comunicação de uma alteração não substancial dos factos, não consubstancia um despacho decisório.[…]
Na verdade, com tal despacho o Tribunal apenas dá conhecimento de uma determinada realidade, que é nova para os sujeitos processuais para que estes possam, nomeadamente os arguidos, exercer o seu direito de defesa.
Não sendo um despacho decisório o mesmo não carece de ser fundamentado ou exaustivamente fundamentado, ou seja, não é necessário que especifique cada um dos meios de prova que suportam o juízo provisório do Tribunal.
Com efeito, «[o] despacho que comunica a alteração não substancial dos factos ao arguido não é um ato decisório, consistindo numa alteração à peça acusatória do processo bastando-se a fundamentação com a referência feita de forma genérica de que tal alteração proveio da discussão da causa, sem curar de estabelecer qualquer correspondência entre cada facto e cada prova.»[…]
A propósito desta questão, o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 216/2019, relator Conselheira Catarina Sarmento e Castro, processo n.º 558/18, decidiu «não julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 358.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, no sentido de que a comunicação de alteração não substancial dos factos, efetuada no decurso da audiência de julgamento, não carece de ser acompanhada de referência especificada aos meios de prova indiciária em que se fundamenta.»[…]
No presente caso,
Analisado o despacho proferido na sessão de 11.06.2021, a fls. 2226 a 2229, verifica-se que é mencionado que «produzida a prova na presente audiência de julgamento, verifica-se a suscetibilidade de resultar provada a seguinte factualidade distinta da acusação», indicando-se de seguida, os factos.
Ora, apesar de, conforme referem os arguidos invocando o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-01-2014, CJ, 2014, T1, pág.136, no sentido de que o despacho de comunicação de alteração não substancial dos factos não se encontrar sujeito ao dever de fundamentação, a verdade é que o Tribunal referiu, ainda que de forma genérica, que tal alteração proveio da discussão da causa.
Assim sendo, atendendo à jurisprudência supra indicada e sem necessidade de maiores considerandos, verifica-se que ao contrário do invocado pelos arguidos, o Tribunal comunicou a alteração e fundamentou a mesma, ainda que, repete-se, de forma genérica (sendo certo que não tinha tal dever de fundamentação ou a tê-lo, o mesmo basta-se com a referência feita de forma genérica de que tal alteração proveio da discussão da causa, o que se verificou no caso).
Notifique.
*
B.Da inconstitucionalidade do artigo 358.º, do Código de Processo Penal
Invocam os arguidos a inconstitucionalidade do artigo 358.º, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de permitir a consideração de alteração de factos, ainda que não substancial, na sentença, que não tenha sido antes comunicada, quer quanto aos factos alterados, quer quanto ao que tenha ocorrido no decurso da audiência que tenha supostamente determinado essa alteração, por violação do princípio constitucional das garantias de defesa e do direito a um processo equitativo, em última análise decorrentes do princípio do Estado de Direito.
Invocam, igualmente, a inconstitucionalidade do mesmo normativo, com fundamento nos mesmos princípios, quando interpretado no sentido de permitir a alteração, ainda que não substancial, de factos, em resultado da falta de prova sobre elementos essenciais da narrativa de origem da acusação, sem que, por outro lado, os novos factos resultantes da alteração resultem da prova produzida em julgamento.
Refere-se, desde já, que no entender do Tribunal inexiste qualquer inconstitucionalidade nem violação dos princípios invocados.
Na verdade, com vista a salvaguardar tais princípios o legislador impôs no artigo 358.º, do Código de Processo Penal, que se comunicasse a alteração ao arguido e se lhe conceda prazo estritamente necessário para a preparação da defesa.
Conforme se explana no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 216/2019 «Esta exigência ou necessidade de comunicação surge, essencialmente, por dois motivos: desde logo porque, vigorando o princípio do acusatório, qualquer alteração à acusação deve ser comunicada ao arguido, no sentido de esclarecê-lo que, para além dos factos que já constam da acusação, o tribunal apreciará ainda mais os que se traduzirem em tal alteração; em segundo lugar porque vigora também o princípio do contraditório, segundo o qual assiste ao arguido o direito de contestar e impugnar não só os factos iniciais já conhecidos mas também quaisquer outros que surjam e que o tribunal pretenda levar em consideração, de modo a que o arguido não seja condenado por factos dos quais não se defendeu, por não estar alertado para a possibilidade de lhe serem imputados, ou seja, de modo a evitar que seja sujeito de uma decisão surpresa.»
Ora, o Tribunal procedeu à comunicação da suscetibilidade de alteração, que é o que a lei impõe, respeitando os princípios invocados.
Quanto à impossibilidade de alteração de factos, que é no fundo, o que é pretendido pelos arguidos quando invocam a referida inconstitucionalidade, a mesma carece de fundamentação.
Crê-se não fazer sentido não se poder alterar factos, de forma não substancial, quando da prova produzida verifica-se essa suscetibilidade.
Ao não ser assim, tal levaria a uma multiplicidade de processos, pois o Tribunal apenas poderia dar como provados ou não provados, de forma estanque, os factos que constavam na acusação, quando, na realidade, por vezes, da prova produzida, a dinâmica dos factos é ligeiramente diversa, não agravando a situação processual do arguido.
Pelo exposto, crê-se que inexiste qualquer inconstitucionalidade.
Notifique.
*

C. Quanto às diligências probatórias requeridas
Os arguidos requerem, ainda, a produção dos seguintes meios de prova, na sequência da alteração:
a)-Notificação do IMPIC para informar se a sociedade ... foi detentora do título de registo n.º …, no período compreendido entre ........2005 e ........2010, que lhe permitia o exercício da atividade de construção em trabalhos e obras, enquadrados nas habilitações de armaduras para betão armado, alvenarias, rebocos e assentamento de cantarias;
b)-Prova pericial à letra, assinatura, rúbrica constantes dos cheques de fls. 53, 52, 51 e 35.
c)-Inquirição da testemunha DD.
O pedido de produção de meios de prova, na sequência da comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, tem de ser acompanhado da respetiva justificação, para os efeitos do artigo 340.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.[…]
Com efeito, determina tal normativo que: «[o]s requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a)-As provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa;
b)-As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c)-O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d)- O requerimento tem finalidade meramente dilatória.»
No presente caso,
Verifica-se que os arguidos não explanam qualquer razão pela qual vêm requerer, nesta sede, os referidos meios de prova, sendo certo que os mesmos já poderiam ter sido requeridos em momento anterior, não decorrendo, salvo melhor entendimento, de qualquer alteração que tenha sido comunicada pelo Tribunal.
Com efeito, no que respeita à prova pericial solicitada, verifica-se que, neste âmbito, que já constava da acusação a referência à assinatura pelos arguidos dos cheques em causa, sendo que o Tribunal não procedeu a qualquer alteração no sentido de imputar a quem não constava na acusação como autor de tal ato.
Pelo que, se entende, quanto a esta diligência probatória que a mesma já poderia ter sido requerida em momento anterior, sendo que o Tribunal não considera que a mesma seja indispensável para a descoberta da verdade e boa decisão da causa tendo em consideração toda a demais prova junta aos autos, nomeadamente, a informação bancária referente às pessoas autorizadas a emitir cheques e a cópia das respetivas fichas de assinatura.
Quanto à inquirição da testemunha DD, não foi explicitado porque razão se tornou necessária a inquirição da mesma nesta sede, sendo certo que nenhuma testemunha se referiu a esta pessoa, pelo que, se entende, igualmente, que esta inquirição já poderia ter sido requerida, não advindo a necessidade da sua inquirição de qualquer alteração.
Por fim, quanto ao ofício ao IMPIC, verifica-se que o mesmo já se encontra junto aos autos, a fls. 1168, e, igualmente, a mesma.
Por todo o exposto, indeferem-se as diligências probatórias requeridas, por já puderem ter sido requeridas em momento anterior e por, em parte, já constarem dos autos e não se revelarem necessárias nem indispensáveis para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa.
Notifique.»
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Entretanto, na sequência de pedido de retificação do requerimento probatório já referenciado, a 06.07.2021 o tribunal a quo proferiu ainda o seguinte despacho junto aos autos sob a refª 50286878 (transcrição):
«Compulsados os autos, verifica-se que, por lapso, o Tribunal não se pronunciou, aquando da última sessão da audiência de julgamento, relativamente à retificação solicitada pelos arguidos BB e AA relativamente ao seu requerimento probatório, no requerimento apresentado em ........2021.
Pelo que, cumpre, antes de mais, sanar tal situação.
Com efeito, os arguidos vêm requerer a retificação do requerimento probatório no sentido de ser junta aos autos cópia de todo o respetivo procedimento administrativo, incluindo o requerimento inicial e documentos instrutórios.
Antes de mais, cumpre dizer, que não se está perante uma retificação, mas sim perante um pedido novo de diligências novas.
A retificação traduz-se numa correção de um determinado lapso, sendo que no caso, os arguidos não procedem a qualquer correção, mas vêm pedir, na verdade, uma nova diligência probatória.
Acontece que, tal pedido é manifestamente extemporâneo, considerando o prazo de defesa que foi requerido e concedido aquando da sessão da audiência de julgamento de 11.06.2021.
Para além disso, ainda que assim não se entendesse, a verdade é que a diligência probatória pretendida, a par das demais, já podia ter sido requerida, não explanando os arguidos qualquer razão pela qual só agora tais elementos documentais se tornaram relevantes, não advindo a necessidade de junção dos mesmos de qualquer alteração que tenha sido comunicada (ou a sê-lo, tal não foi explicitado pelos arguidos).
Assim, a par do já decidido quanto às demais diligências probatórias, indefere-se a mesma, quer por ser extemporânea, quer por ser notório (como as demais) que tal diligência já podia ter sido requerida em momento anterior e não se revelar necessária nem indispensável para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, nos termos do artigo 340.º, n.º 4, alínea a), do CPP.
Notifique.»
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Inconformados com tais despachos (apenas no segmento que indeferiu os meios de prova arrolados), dele recorreram os arguidos AA e BB (cfr. a refª 4324984), apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da motivação (transcrição):
«II–Das conclusões

O Tribunal a quo rejeitou todos os meios de prova apresentados pelos Arguidos, por no respectivo ver infundados, quando a respectiva fundamentação é a que integra, de modo inequívoco, o respectivo requerimento 24/06/2021.

Significativo é desde logo a recusa da testemunha arrolada, por não haver sido mencionada no curso da audiência de julgamento – quando, diversamente, o Tribunal a quo não retirou à evidência qualquer ilação do facto de o mesmo ter sucedido quanto a ambos os Arguidos, isto é, também não terem sido em momento algum sido sequer mencionados no curso da audiência de julgamento.

Considerando especificamente a questão das assinaturas imputadas, e em relação às quais se requeria a respectiva perícia, é designadamente dito pelos Arguidos:
“O Tribunal ainda se permite afirmar que os cheques foram assinados pelo AA e pessoa não identificada: mais uma vez nada, rigorosamente nada, assim o permite afirmar, nenhuma prova complementar aos cheques tendo sido produzida a esse respeito.
Das diversas assinaturas, todas diferentes, e diferentes até entre os cheques em causa, constantes dos cheques em causa, nenhuma foi confirmada ou esclarecida por quem quer que seja – nem por prova pericial, prova pericial essa não realizada, apesar de entendida por necessária pela própria Instrutora do processo em causa junto da Autoridade Tributária.
Mais uma vez está em causa uma mera especulação do Tribunal, sem alicerce probatório.”

Ainda que a prova em causa competisse ao M.P., e não tenha sido de todo realizada, face à alteração dos factos promovida pelo Tribunal a quo no indicado sentido, apenas restava aos Arguidos, naqueles termos, requererem eles próprios a dita prova grafológica.

A questão da necessidade e pertinência de tal tipo de prova já havia sido até colocada pelos Arguidos, no respectivo Recurso apresentado sob a refª. 29704656, com ganho de causa, tendo sido entendido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que: “mas se como vimos a prova documental em causa – cheques – não suporta a conclusão de que todos os cheques foram assinados pelos arguidos, a experiência comum permite ao intérprete mediano aperceber-se da existência de um juízo arbitrário”.

Aliás, em conformidade com o que consta a fls. 859 dos autos, a testemunha EE, sempre referiu, no respectivo depoimento, ter entendido ser necessária ao esclarecimento dos factos, daí a ter proposto, prova grafológica quanto às assinaturas em causa – diligência essa que nunca chegou a ser realizada.

Assim, não só estavam devidamente fundamentados os requerimentos probatórios apresentados, como ainda mais se justificavam objectivamente.

Ainda que se entendesse não devidamente esclarecidos os fundamentos dos requerimentos probatórios apresentados, sempre se impugna notificar os Arguidos para virem aos Autos suprir essa falta – o que o Tribunal a quo não fez;

Com efeito, “Se os arguidos não tiverem esclarecido as razões que justificavam a produção de cada uma das provas por eles requeridas, o dever de cooperação, consagrado no n.º 1 do artigo 266.º do Código de Processo Civil, impõe que o tribunal, antes de decidir, solicite aos requerentes os necessários esclarecimentos, só depois podendo pronunciar-se sobre eles.” (cfr. Ac. do TRP de 13-03-2013, proc. 33/01.0GBCLD.L1-3).
10º
O entendimento e interpretação acabados de referir quanto ao disposto no art. 266º, nº. 1, do CPC, são os que decorrem do princípio constitucional do direito a um processo equitativo.
11º
Assim se pugna no sentido de que deve ser, para todos os efeitos, dado integral provimento ao presente Recurso.»
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O recurso foi admitido a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo (refª 50930184).
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O Ministério Público junto do tribunal onde foram proferidos os despachos recorridos apresentou contra-alegações (refª 4545465), concluindo do seguinte modo (transcrição):
«III.–CONCLUSÕES
1.–Os arguidos interpuseram recurso dos doutos despachos proferidos pela Mma. Juiz do Tribunal a quo a 02.07.2021 e 06.07.2021, alegando, em suma, que os mesmos padecem de i. falta de fundamentação e ii. falta de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do disposto no artigo 266.º, nº 1, do CPC.
2.–Desde já se consigna que o Ministério Público entende que bem andou o tribunal a quo nas suas decisões.
3.–A fundamentação da decisão consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido (fundamentaram) a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289).
4.–Assim, a fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: por um lado, em projecção exterior, como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; por outro lado, a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão.
5.–Não obstante o supra exposto, apenas a ausência absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação escassa, deficiente, ou mesmo medíocre, é geradora da nulidade das decisões judiciais.
6.–Acresce ainda que, in casu, ambos os despachos recorridos referem expressamente os motivos pelos quais indeferem os meios de prova requeridos pelos arguidos.
7.–“O princípio do processo equitativo, na dimensão de "justo processo" é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual; os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.09.2003, disponível em www.dgsi.pt..
8.–Os Recorrentes não podem, sem mais, lançar mão de normas previstas num outro código de processo, sem que para tal se verifique uma verdadeira lacuna na lei.
9.–No caso concreto, o legislador processual penal não previu nas diferentes normas do Código de Processo Penal qualquer convite ao aperfeiçoamento para esta situação em concreto, não por dela se ter olvidado, mas propositadamente, fazendo recair sobre os arguidos o ónus de explicitarem, ainda que de forma sucinta, os motivos que os levam a apresentar determinados meios de prova, no seguimento de um despacho de alteração não substancial dos factos.
10.–Face ao supra exposto, bem andou o Tribunal a quo ao indeferir os requerimentos probatórios apresentados, motivo pelo qual devem os respectivos despachos ser integralmente mantidos.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Excias. doutamente suprirão, não padecendo as decisões proferidas de qualquer vício, devem as mesmas ser mantidas na íntegra, assim se fazendo a habitual
JUSTIÇA!»
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa, por seu turno, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de acompanhar a argumentação da resposta ao recurso em apreço, pugnando assim pela sua improcedência (refª 18152991).
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Notificado nos termos do disposto no nº 2 do artº 417º do CPP, os arguidos/recorrentes não apresentaram resposta.
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Todavia, neste Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho com a refª 18299231, decidiu-se que o recurso interposto subiria com o recurso da decisão que viesse a pôr termo à causa, pelos que os autos foram devolvidos à 1ª instância.
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Entretanto, a 30.03.2023 foi proferida sentença (refª 53370354), com o seguinte dispositivo (transcrição):
«VIII.–DISPOSITIVO
Perante o exposto, julga-se a acusação procedente, por parcialmente provada e, em conformidade, decide-se:
a)-Condenar a sociedade CC pela prática, como coautora material, na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, 12.º, n.º 2, 103.º, n.ºs 1 a 3 e 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), todos do RGIT, na pena de 500 (quinhentos) dias de multa à taxa diária de 10,00 € (dez euros), num total de 5.000,00 € (cinco mil euros).
b)-Condenar o arguido AA, pela prática, como coautor material, na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 3, 103.º, n.ºs 1 a 3 e 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias (de ora em diante apenas RGIT) e artigo 26.º, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
c)-Condenar o arguido BB, pela prática, como coautor material, na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 3, 103.º, n.ºs 1 a 3 e 104.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias (de ora em diante apenas RGIT) e artigo 26.º, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
d)-Suspender a execução da pena de prisão aplicada aos arguidos AA e BB pelo mesmo período da pena de prisão a que foram condenados, ou seja, de 2 (dois) anos e 1 (um) ano e 6 (seis) meses, respetivamente, nos termos do artigo 50.º, n.º 1 e 5, do Código Penal;
e)-Subordinar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada aos arguidos AA e BB ao acompanhamento de regime de prova assente num plano de reinserção social, elaborado e executado, com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, pelos serviços de reinserção social, devendo o mesmo conter, além do mais, as regras de conduta para o plano de readaptação e aperfeiçoamento da responsabilidade das arguidas, nos termos dos artigos 53.º e 54.º, do Código Penal;
f)-Condicionar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA à obrigação de, durante o período de suspensão, proceder à entrega da quantia de 2.000,00 € (dois mil euros), a uma Instituição Particular de Solidariedade Social, à sua escolha, sediada na …, fazendo prova disso nos autos;
g)-Condicionar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido BB a à obrigação de, durante o período de suspensão, proceder à entrega da quantia de 1.000,00 € (mil euros), a uma Instituição Particular de Solidariedade Social, à sua escolha, sediada na …, fazendo prova disso nos autos;
h)-Condenar os arguidos CC, AA e BB no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC, acrescida dos encargos a que a atividade das arguidas houver dado lugar, nos termos dos artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9, 16.º e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais ex vi artigo 524.º, do Código de Processo Penal.
[…]»
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Inconformados com a sentença proferida, dela recorreram os arguidos AA, BB e CC (cfr. refª 5641556), apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da motivação (transcrição):
«IV– Conclusões

A Sentença ora recorrida agrava as penas em que foram condenados os Arguidos ora recorrentes em relação à Sentença anteriormente proferida em 07/06/2018, e que foi revogada por douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, em Recurso interposto exclusivamente pelos Arguidos.

A Sentença ora recorrida integra, como tal, violação da proibição de reformatio in pejus, em conformidade com o disposto no art. 409º, nº. 1, do CPP, sendo certo que: “o tribunal inferior, diz-se, não há-de ter poderes mais amplos do que o tribunal superior; a proibição de reformatio se limita o tribunal superior, por maioria de razão há-de limitar o inferior, atenta a cadeia hierárquica que se estabelece entre ambos e a íntima conexão entre o decidido nas instâncias, dada a decorrência lógica entre a solução a alcançar”; e ainda “sempre que o titular da acção penal não manifesta discordância, não se concebe que o Estado, através dos seus órgãos de administração da justiça, sobrepondo-se ao arguido, lhe possa impor uma reacção penal mais severa do que a cominada do antecedente.” (cfr. douto Ac. do STJ, de 14/09/2011 proferido no processo nº. 138/08.6TALRA.C1.S1, 3ª Secção).

Interpretação divergente da acolhida e expressa nesse douto Acórdão do STJ, como seja no sentido de que o princípio da reformatio in pejus se aplica ao Tribunal superior, que decida o recurso, mas já não assim ao Tribunal inferior, em caso de anulação ou reenvio, mostra-se desconforme ao princípio do direito a um processo equitativo, ínsito ao princípio do Estado de direito, ambos constitucionalmente garantidos.

Em segundo lugar, e como resulta dos Autos, verifica-se que a Inspecção Tributária, em vez de em devido tempo proceder à constituição dos Arguidos como tal, antes os notificou e ouviu no processo, induzindo-os à apresentação de documentos e à prestação de declarações.

Todas as declarações prestadas pelos Arguidos em causa, à margem do quadro legal aplicável, não podem servir de prova, por força do respectivo direito constitucionalmente garantido ao silêncio e à não auto-incriminação, e ainda por não estarem esclarecidas nem asseguradas as condições em que terão sido prestadas.

E já quanto aos documentos nessa sequência carreados para os Autos, faz-se apelo ao entendimento sufragado no douto Acórdão do Tribunal Constitucional nº. 298/2019, ou seja, verifica-se a insusceptibilidade da respectiva valoração como prova contra os Arguidos.

Assim, a douta Sentença ora recorrida não podia considerar, como considerou (cfr. págs. 23 e 24), além das ditas declarações dos Arguidos, ainda os seguintes elementos documentais: - ii. Elementos contabilísticos, extratos de contas, procuração e recibos da sociedade arguida, a fls. 120 a 142 e 461 a 483; - vi. Auto de apreensão de faturas e recibos a fls. 177 a 202; - vii. Informação bancária a fls. 214 a 226, 312 a 324, 575 a 588, 736 a 474, 982 a 990 e 995 a 999; - viii. Extrato contabilístico da conta corrente da sociedade arguida, a fls. 361; ix. Notas de lançamento, a fls. 362 a 373; - x. Relatório inspetivo e documentação de suporte (cheques, faturas, notas de lançamento), a fls. 402 a 458 e 926 a 936, 1954 a 2012.

Em terceiro lugar, são diversas as incongruências patenteadas pela douta Sentença recorrida, desde logo ao se alicerçar nos depoimentos dos funcionários da AT-RAM, EE, FF e GG – quando nenhum destes demonstrou qualquer conhecimento além do que simplesmente respeita à sua própria intervenção no exercício das respectivas funções enquanto funcionários da AT-RAM.

A testemunha GG, tal como antes já havia resultado da primeira audiência de julgamento, nada de concreto e factualmente se recordava.
10º
A testemunha FF, tal como antes já havia resultado da primeira audiência de julgamento, em nada alterou o relatório da inspecção tributária, da sua autoria, e o qual se mostra, além do mais, objectivamente contaminado pela consideração ilícita dos meios probatórios acima referidos.
11º
A testemunha EE, tal como antes já havia resultado da primeira audiência de julgamento, em nada alterou o respectivo parecer, da sua autoria, instrumento mais jurídico-técnico do que probatório, e, do mesmo modo, contaminado nos termos sobreditos pela consideração ilícita dos meios probatórios acima referidos.
12º
Já no primeiro julgamento realizado, e tal como então expresso pelo Tribunal a quo, o respectivo depoimento não teve grande relevância – nada sendo diferente, anos volvidos, antes pelo contrário.
13º
Ainda assim, teve essa testemunha a oportunidade de referir que se recordava de ter sido de opinião que devia ter sido realizada uma perícia às diversas assinaturas, o que nunca foi realizado.
14º
Já as testemunhas HH, II e JJ, de concreto, e em relação à matéria dos Autos, nada esclareceram, antes parecendo resultar da consideração do conjunto dos respectivos documentos que a matéria em causa se concentrava no dito KK, que era contabilista, representante e portador das facturas da ....
15º
Este não foi ouvido, e, quanto aos ditos HH, II e JJ rigorosamente nada concretizaram quanto aos Arguidos AA e BB.
16º
Ou seja: nem uma única testemunha identificou ou referiu, em concreto, o que quer que seja em relação a tais Arguidos, pessoas individuais – e, inerentemente, também não o fez em relação à Arguida sociedade.
17º
Tampouco foi feita prova, seja quanto à assinatura, seja quanto às circunstâncias da assinatura dos cheques em causa.
18º
Para além de não ser a simples assinatura ou rubrica de cheque só por si penalmente relevante, nenhuma prova foi efectuada sobre quem tenha realmente assinado os cheques em causa – evidenciando-se da mera leitura das assinaturas que dos mesmos constam que as mesmas não coincidem: em nenhum dos cheques aparenta constar o nome do Arguido, condenado, BB; o nome do Arguido, condenado, AA, não consta em todos os cheques; e, inclusivamente, chega a constar o nome de terceiros em relação ao universo dos arguidos nos presentes autos – desde logo o referido a referida LL.
19º
Do Acórdão do TRL de 03/07/2019 já resultava, designadamente, que, nos seguintes termos: “(…) se como vimos a prova documental em causa – cheques – não suporta a conclusão de que todos os cheques foram assinados pelos arguidos a experiência comum permite ao intérprete mediano aperceber-se da existência de um juízo arbitrário, afirmando-se assim como notório o erro na apreciação da prova”.
20º
Não se vislumbra que os vícios considerados nesse douto Acórdão tenham sido supridos pelo Tribunal a quo na respectiva Sentença ora recorrida, bem pelo contrário.
21º
Aliás, ao contrário do considerado pelo Tribunal a quo, existe prova nos autos, não contraditada, da existência de actividade da sociedade ..., da existência de trabalhadores seus, e da execução de trabalhos e prestação de serviços a favor da sociedade CC.
22º
Na verdade, constam elementos no processo, que não são postos em causa, nomeadamente as facturas em causa nos Autos relativas designadamente a fornecimento de pedra (cfr. e.g. fls. 7) e a horas de servente (cfr. fls. 9); bem a certidão extraída do processo nº 7169/16.0T8FNC, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, da qual consta a identificação do alvará (doc. autêntico) da sociedade ... e dos 18 trabalhadores que à data integravam o respectivo quadro de pessoal (cfr. fls. 1670 a 1673).
23º
Assim, é errado o pressuposto conclusiva e infundadamente assumido na douta Sentença recorrida de que a sociedade ... não poderia ter prestado os serviços titulados pelas facturas sub judice à CC, por não ter quaisquer meios para o efeito, e como tal se referindo que não possuía nem trabalhadores nem alvará.
23º
Em suma, por absoluta falta de suporte probatório, deve a matéria dos pontos 3 (na parte referida quanto ao Arguido BB) e dos pontos 4 a 27 (mormente no que respeita às imputações dirigidas aos Arguidos) ser removida da matéria de facto dada como provada.
24º
Ao decidir do modo que decidiu, o Tribunal a quoviolou objectivamente o princípio in dubio pro reo, o que os Arguidos invocam expressamente e para todos os efeitos.»
*
Nessa peça processual, tendo presente o disposto no nº 3 do artº 407º do CPP, os arguidos manifestaram ainda o interesse em que este tribunal aprecie o recurso do despacho de 02.07.2021.
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Tal recurso foi admitido a subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito suspensivo (cfr. refª 54949817).
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A ele respondeu o Ministério Público junto do tribunal de 1ª instância (cfr. refª 5759794), concluindo do seguinte modo (transcrição):
«§3.– Pelo exposto e em conclusão:
a)-Se o recurso versa matéria de direito e a reapreciação da matéria de facto e o recorrente, na motivação e nas conclusões, omite a indicação “[d]as normas jurídicas violadas”, “[d]os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, “[d]as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” e “[d]as provas que devem ser renovadas”, o recurso deve ser rejeitado por violação do disposto no artigo 412.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
b)-A proibição de reformatio in pejus deve ser entendida não apenas como sendo dirigida aos tribunais de recurso (o que corresponde ao enunciado do nº 1 do artigo 409º do CPP) mas também aos tribunais de reenvio, em casos de novos julgamentos a que se procedesse em virtude de anulação de julgamentos anteriores, decidida em sequência de recurso apenas interposto pelo arguido.
c)-Os documentos e elementos validamente recolhidos pela Administração Fiscal junto dos contribuintes ao abrigo de um dever geral de colaboração ou na sequência de deveres de informação que a estes são impostos, mesmo sem que haja constituição dos visados como arguidos prévia ou concomitante aos actos inspectivos, não constituem prova proibida por violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare e poderão ser tomados em consideração no processo criminal em que venham a ser arguidas as pessoas que entregaram esses elementos.
d)-Os elementos assim recolhidos podem ser sempre amplamente contraditados no âmbito do processo criminal que venha a ser instaurado, nele operando, com integral amplitude, todas as garantias de defesa.
e)-Os deveres de informação e de colaboração a cargo dos contribuintes são instrumentos indispensáveis para o funcionamento efetivo e eficaz da máquina fiscal, e assim imprescindível à prossecução de interesses também constitucionalmente protegidos, e nessa medida constituem uma restrição do princípio da não auto-incriminação, posto, naturalmente, que se não tenha ultrapassado o ponto de compressão dos direitos de defesa constitucionalmente consagrados, encontrado na salvaguarda do direito a não prestar depoimento contra si próprio, núcleo essencial do direito à não auto-incriminação e conteúdo do direito ao silêncio.
f)-O tribunal apreciou livremente as provas e formou prudente convicção sobre a falta de verosimilhança e credibilidade do que lhe foi transmitido pelo arguido; convicção que fundamentou no que lhe transmitiram as regras da experiência comum e a restante prova, quer a documental constante dos autos, quer a produzida em audiência; isto em nada contende com os direitos de defesa do arguido ou com o princípio do «in dubio pro reo», já que a sentença não exprime dúvidas a respeito do que se apurou.
Termos em que o recurso deverá ser rejeitado por falta do cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
Caso assim, não se entenda, deverá o recurso ser julgado parcialmente procedente e, em consequência, ser a pena aplicada aos arguidos reduzida para a que primeiramente lhes foi aplicada, mantendo-se no mais a decisão recorrida nos exactos termos em que foi proferida.»
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Neste tribunal, por seu turno, quanto ao recurso interposto da sentença, o Exmº Sr. PGA limitou-se a apor um “visto”, pelo que inexiste faculdade de resposta pelos arguidos (cfr. o nº 2 do artº 417º do CPP).
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Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do mérito dos recursos interpostos, pelo menos de modo a merecer decisão sumária de rejeição total.
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FUNDAMENTAÇÃO

I–Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso
Tendo presente que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal  ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso [quanto a vícios da sentença recorrida, a que se refere o artigo 410º, n.º 2, do CPP (cfr. o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR I Série de 28.12.1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum; a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito legal) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379º, n.º 2, do CPP)], as questões que se colocam são as seguintes:

a)–Quanto ao recurso interlocutório:
i)-Saber se o despacho em causa é decisório e se padece de vício de falta de fundamentação e, em caso afirmativo, qual (nulidade/irregularidade);
ii)-Saber se a alteração factual comunicada é substancial ou não substancial em relação aos factos constantes da acusação/pronúncia;
iii)-Saber se, atentos os fundamentos aduzidos, deveriam ter sido indeferidos, como foram, os meios de prova arrolados pelos arguidos/recorrentes;

b)–Quanto ao recurso da sentença de 30.03.2023:
i)- Saber se o tribunal a quo socorreu-se de prova proibida para fundamentar a sua convicção;
ii)- Saber se o tribunal a quo avaliou corretamente a prova produzida, violando o princípio do in dubio pro reo, no pressuposto de que os recorrentes cumpriram todos os ónus atinentes à impugnação ampla da matéria de facto;
iii)- Saber se foi violado o princípio da reformatio in pejus.
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II–Apreciação das questões acima enunciadas
a)-Com vista à apreciação das questões acima enunciadas, importa ainda ter presente o seguinte:
i)-A acusação deduzida nos autos 18.06.2015 sob a refª 43229689 tem o seguinte teor (transcrição na parte relevante):
«[…]
-1º-
A sociedade arguida “CC” (doravante designada por CC), N.I.P.C. ..., é uma sociedade comercial por quotas que se encontra colectada para o exercício da actividade de “extracção de saibro, areia, pedra britada, construção civil, fabricação e comercialização de produtos derivados do cimento e betão, comercialização de materiais de construção civil e representação e comercialização de máquinas e equipamentos industriais”, com a C.A.E. (Classificação de Actividades Económicas) 08121 – R3.
-2º-
A referida sociedade foi constituída em ... de ... de 1980, tendo a sua sede localizada na ..., e sempre foi sujeito passivo de I.V.A. enquadrado no regime normal de tributação com periodicidade mensal e de I.R.C. no regime de tributação geral, com contabilidade organizada e por exigência legal informatizada.
-3º-
Desde a data da constituição da sociedade arguida “CC”, em 1980, e pelo menos até 04 de Fevereiro de 2004, BB e LL foram sempre os únicos sócios e gerentes da mesma no plano jurídico, cabendo, no entanto, neste período, em termos práticos e de facto, apenas ao arguido BB a direcção do destino da mencionada sociedade.
-4º-
Porém, sucedeu que, desde 04 de Fevereiro de 2004 até, pelo menos, Setembro de 2012, embora as duas pessoas atrás referidas se tenham mantido como únicos sócios da sociedade arguida e gerentes da mesma no plano formal e jurídico, e o arguido BB tenha, sem embargo, continuado a acompanhar e a intervir na actividade da sua empresa, quem assumiu a gestão efectiva e de facto da referida sociedade foram os arguidos BB, AA e MM, filhos dos dois supra indicados sócios da empresa, tendo-lhes cabido essencialmente a eles, no período acima assinalado, a verdadeira responsabilidade pela representação da sociedade arguida e pela direcção dos seus destinos, assim como a última decisão quanto às escolhas a realizar no dia-a-dia, nomeadamente no concernente à contratação de pessoal, contactos com fornecedores, compra de mercadorias e ainda no tocante às orientações quanto ao cumprimento dos normativos fiscais associados à actividade da empresa.
-5º-
A sociedade “...” (doravante designada por ...) é uma sociedade comercial por quotas, com o N.I.P.C. ..., com enquadramento em I.V.A. no regime normal de tributação com periodicidade trimestral, e em sede de I.R.C. no regime geral de tributação, cujo objecto social se prende com a “construção de edifícios (residenciais e não residenciais)”, à qual corresponde a C.A.E. 041200, tendo tido como único sócio-gerente, desde a data da sua constituição, em 2005, até 12 de Setembro de 2007, JJ, e desde 12 de Setembro de 2007 até à actualidade, NN.
-6º-
Com efeito, no âmbito do período temporal delimitado em 4., mais precisamente no ano de 2005, os arguidos BB, AA e MM, no seu próprio interesse e, bem assim, no da sociedade arguida por eles então efectivamente gerida, decidiram praticar operações tributáveis, conforme efectivamente aconteceu.
-7º-
Deste modo, os referidos arguidos, estando cientes da possibilidade de daqui vir a resultar inevitável sobrecarga fiscal dos moldes lucrativos em que a sociedade arguida desenvolvia a sua actividade económica, e pretendendo evitá-la, decidiram, no seu interesse, bem como no da sua sociedade, recorrer aos expedientes que se revelassem necessários em ordem a privar a administração fiscal dos tributos que resultariam da aplicação da lei, nem que isso implicasse, como sucedeu, ficcionar custos mediante a utilização de meios que anteviram como idóneos em ordem a concretizar tal propósito.
-8º-
Neste sentido, os arguidos BB, AA e MM, após terem contactado com os arguidos II e KK, acordaram com estes últimos que os mesmos lhes forneceriam facturas pertencentes à sociedade “...”, identificada em 5., conforme sucedeu, as quais serviriam, nos termos do plano ora sob evidência, como facturas falsamente emitidas pela mesma dando conta de falsos serviços prestados à sociedade arguida pela sociedade “...” como forma de simular custos dedutíveis inexistentes de molde a extrair daí as respectivas vantagens fiscais, como igualmente se verificou.
-9º-
Os arguidos BB, AA e MM transmitiram o seu plano e os passos nesse sentido já encetados ao arguido BB que, na qualidade de representante legal da sociedade arguida e seu sócio gerente, concordou com o mesmo inteiramente e a ele aderiu sem reservas, contribuindo daí em diante para a sua execução.
-10º-
Desta feita, em concretização do referido plano gizado pelos arguidos BB, AA, MM e FSS conjuntamente com os arguidos II e KK, e com o objectivo atrás referido em 7. e 8., foram pelos arguidos BB, AA, MM e FSS registadas e contabilizadas como custos na contabilidade da sociedade arguida, e indevidamente deduzidas, quer em sede de I.V.A., quer em sede de I.R.C., as seguintes facturas com emissão aparentemente efectuada pela sociedade “...” relacionadas com pretensas transacções e serviços prestados na área da construção civil:
[…]
-11º-
As correspondentes declarações fiscais referentes a tais impostos (I.V.A. e I.R.C.), remetidas à Administração Fiscal pela sociedade arguida e pelos arguidos BB, AA, MM e FSS, na qualidade de representantes da sociedade arguida, e onde por eles foram feitas constar as referências às facturas e aos valores atrás referidos, nos termos anteditos, foram apresentadas nas seguintes datas:
-declaração de rendimentos em sede I.R.C. modelo 22 respeitante ao exercício de 2005: dia 30 de Maio de 2006;
-declaração periódica de I.V.A. respeitante ao período 05/2005: dia 11 de Julho de 2005;
-declaração periódica de I.V.A. respeitante ao período 06/2005: dia 29 de Julho de 2005;
-declaração periódica de I.V.A. respeitante ao período 11/2005: dia 06 de Janeiro de 2006.
-12º-
Tais facturas foram correspondentemente preenchidas pelo punho dos arguidos II ou KK, ou por alguém sob a determinação destes, que previamente acordaram com os arguidos BB, AA e MM, as datas e os valores que deveriam constar das mesmas, sendo certo que pelo fornecimento das facturas em questão foi recebida, por todos aqueles que nessa operação intervieram, designadamente pelos arguidos II ou KK, uma contrapartida monetária correspondente a uma percentagem variável do valor das mesmas.
-13º-
Com efeito, sucedeu que, em momento não concretamente apurado, mas seguramente anterior ao registo e integração na contabilidade da sociedade arguida das facturas em questão nos termos referidos em 10. e à sua declaração como custos à Administração Fiscal nos termos indicados em 11., os arguidos II e KK entraram na posse de várias facturas em branco da sociedade “...”, e onde constava o carimbo da mesma, o que fizeram de forma não concretamente apurada mas seguramente aproveitando o facto de KK ter tido no passado ligações com a referida sociedade.
-14º-
Desta forma, os arguidos II e KK lograram negociar e concretizar com os arguidos BB, AA e MM o plano descrito em 7. e 8..
-15º-
As referidas facturas, devidamente descritas em 10., não correspondem a quaisquer serviços prestados à sociedade arguida pela sociedade “...”, nem tão pouco a quaisquer transacções realizadas entre esta última e a sociedade arguida, tanto mais que:
-Não existe qualquer suporte documental de contractos realizados entre a sociedade arguida e a sociedade “...”, bem como de autos de medição do material adquirido ou utilizado, ou mesmo orçamentos associados às alegadas transacções;
-A sociedade “...” era, aquando da ocorrência dos factos, como ainda continua a ser, uma sociedade não declarante em termos fiscais pois não procedeu à apresentação de qualquer declaração de rendimentos de I.V.A. ou I.R.C. para o exercício de 2005, ou mesmo da declaração anual de informação contabilística e fiscal (I.E.S.) para o mesmo ano;
-A sociedade “...”, apesar do conteúdo do seu objecto social indicado em 5., nunca dispôs de qualquer alvará de construção emitido pelo Instituto Nacional de Construção e Imobiliário;
-A sociedade “...” não possuía qualquer trabalhador inscrito na Segurança Social no exercício fiscal em causa correspondente ao ano de 2005;
-A sociedade “...” não possuía, na data dos factos, ou seja durante o ano de 2005, nem infra-estruturas, nem veículos que lhe permitissem a realização de transportes ou entrega de mercadorias, bem como a realização de quaisquer trabalhos ou prestação de serviços nos valores declarados;
-A sociedade “...” tinha como objecto social a construção de edifícios (residenciais e não residenciais), sendo certo que as facturas em causa nestes autos compreendem, parcialmente, a venda de matérias-primas e não integralmente a realização de quaisquer tipos de construções ou obras;
-Não existe qualquer registo fiscal de que a sociedade “...” tenha adquirido quaisquer mercadorias que, de acordo com as facturas em causa, tenham sido pela mesma vendidas à sociedade arguida;
-À data dos factos versados em 10., a existência da sociedade “...” tinha como fito único o de simular operações activas como as acima descritas.
-16º-
Sem embargo, e apesar das facturas supra descritas constarem na contabilidade da sociedade arguida e nas declarações fiscais pela mesma emitidas como estando associadas a um meio de pagamento documentalmente confirmado, neste caso o uso de cheques emitidos à ordem da sociedade “...”, aconteceu que nenhum dos cheques às mesmas associados e a seguir descritos foi alguma vez recebido, levantado ou depositado pela sociedade supostamente beneficiária dos mesmos, a “...”, nem por ninguém à mesma directamente ligado, tendo, ao invés, todas quantias correspondentes aos pretensos pagamentos das facturas retornado ao poder dos arguidos BB, AA, MM e FSS, que as despenderam em interesse e proveito próprio e da sociedade arguida, ou sido encaminhados para os arguidos II ou KK, ocorrendo depois entre todos eles os ajustes de pagamentos das contrapartidas mencionadas em 12..
-17º-
Com efeito, a relação entre os cheques mencionados em 16. - emitidos pela sociedade arguida, assinados pelos arguidos BB e AA e utilizados para simular os pagamentos à sociedade “...” - e as facturas falsamente emitidas pertencentes a esta mesma sociedade, bem como os concretos destinos de cada um dos títulos de crédito em questão foram os seguintes:
[…]
-18º-
Assim, ressalta do conteúdo e do circuito dos próprios cheques atrás indicados o seguinte:
a)-O cheque nº ..., do banco ..., com a data de ... de ... de 2005, correspondente ao pretenso pagamento da factura nº 257, que na contabilidade da sociedade arguida figura como tendo sido emitido à ordem da sociedade “...”, foi afinal passado directamente à ordem do arguido MM, um dos gerentes de facto da sociedade arguida e filho do arguido BB, sócio gerente da sociedade arguida;
b)-Os cheques com os nrs. ..., do banco ..., e ..., do banco ..., correspondentes ao pretenso pagamento das facturas com os nrs. 264, 258, 254 e 266, que na contabilidade da sociedade arguida figuram como tendo sido emitidos à ordem da sociedade “...”, foram afinal passados em aberto, sem se encontrarem à ordem de ninguém em concreto, e depois creditados em duas contas existentes no ...: uma delas com o nº ..., titulada por OO, filho menor do arguido AA, um dos gerentes de facto da sociedade arguida; e a outra com o nº ..., titulada pelo arguido BB, outro dos gerentes de facto da sociedade arguida;
c)-Já os cheques com os nrs. ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., apesar de terem sido emitidos à ordem da sociedade “...”, nunca chegaram a ser recebidos, levantados ou depositados pela mesma nem por ninguém a ela ligado.
d)-Na realidade, o cheque nº ..., correspondente ao pretenso pagamento parcial da factura nº …, foi levantado por HH em ... de ... de 2005, a pedido do arguido II, ao qual aquele entregou a integralidade da quantia em dinheiro levantada neste acto, enquanto o cheque nº ..., correspondente ao pretenso pagamento do valor remanescente da retro aludida factura, foi creditado numa conta do ... cuja titularidade não logrou apurar-se em concreto. O cheque nº ..., correspondente ao pretenso pagamento da factura nº …, foi levantado no ... por pessoa de identidade não concretamente apurada. O cheque nº ..., correspondente ao pretenso pagamento da factura nº …, foi, tal como sucedera com o cheque nº ..., depositado na conta do ... nº ..., titulada por OO, filho menor do arguido AA. Os cheques com os nrs. ..., ..., ... e ..., correspondentes aos pretensos pagamentos, respectivamente, das facturas com os nrs. ..., ..., ... e ..., foram todos levantados pelo arguido II, em ... de ... de 2005, ... de ... de 2005, em ... de ... de 2005 e em ... de ... de 2007, respectivamente.
-19º-
A contabilização falseada, executada nos termos e circunstâncias atrás indicados, do I.V.A. supostamente pago e dos custos supostamente suportados pela sociedade arguida nos períodos descritos em 10. e 11. (isto é, de acordo com os dados resultantes da tabela exposta em 10., relativos ao exercício do ano de 2005), determinou, em obediência aos desígnios comuns de todos os arguidos e da sociedade arguida, a diminuição do valor do I.R.C. a pagar por parte desta sociedade no montante de € 39.724,54 (trinta e nove mil, setecentos e vinte e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos), no exercício do ano de 2005 (em função da diminuição do lucro tributável no valor de € 176.553,53 [cento e setenta e seis mil, quinhentos e cinquenta e três euros e cinquenta e três cêntimos], advinda da contabilização indevida das facturas aqui em apreço).
-20º-
Como tal, o valor atrás referido de € 39.724,54 (trinta e nove mil, setecentos e vinte e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos) constituiu o quantitativo da vantagem patrimonial ilegítima obtida pela sociedade arguida e pelos arguidos, de acordo com os termos e valores enunciados na tabela anexa ao art. 10º da presente acusação, conjugadamente com os da infra exposta, a saber:
[…]
-21º-
Os arguidos BB, AA, MM agiram sempre não só em interesse e proveito próprios mas também no interesse e proveito da sociedade arguida, assim como em sua representação directa.
-22º-
Todos os arguidos agiram de forma previamente concertada entre eles, em conjugação de esforços e intentos, de modo a ludibriarem o Estado, como efectivamente sucedeu, bem sabendo que nenhuma das facturas acima referidas teve subjacente qualquer transacção realizada entre a sociedade arguida e a sociedade “...”, com o intuito de, através da sua emissão e utilização nos termos sobreditos, obterem as vantagens patrimoniais ilegítimas atrás retratadas através da dedução fiscal de custos inexistentes, como também aconteceu.
-23º-
Todos os arguidos sabiam que as supra apontadas facturas utilizadas na contabilidade da sociedade arguida se referiam a operações não realizadas por quem as emitiu e, ainda assim, não se coibiram de as utilizar nos termos e com o propósito supra referido, como sucedeu.
-24º-
Todos os arguidos, tendo conhecimento do modo como funciona o sistema legal de liquidação e cobrança de impostos, nomeadamente ao nível do I.R.C., sabiam igualmente que, com as suas condutas, falseavam a realidade fiscal tributária que os envolvia, tal qual como à sociedade arguida, e que tais comportamentos defraudavam o sistema de impostos de I.R.C. instituído pelo Estado e, bem assim, os objectivos que com ele a Administração Pública se propõe prosseguir, o que foi por todos eles querido.
-25º-
Os arguidos BB, AA, MM e FSS tinham perfeito conhecimento de que, ao actuarem da forma exposta, se propunham, conforme sucedeu, a não entregar à Administração Fiscal a quantia relativa de I.R.C. atrás indicada, o que quiseram, não obstante saberem que a mesma era pertença do Estado, a quem a deviam entregar, tendo aqueles, ao invés, procedido à apropriação dos valores em crise e, em consequência, deles usufruído, nas circunstâncias que bem entenderam, no seu interesse próprio, bem como no da sociedade arguida por eles gerida, com o respectivo manifesto prejuízo do património do Estado.
-26º-
Por seu turno, os arguidos II e KK actuando com vista a satisfazer os seus interesses próprios, agiram com o propósito comum concretizado de, não só, contribuírem, nos termos já referidos, para a formação do referido prejuízo patrimonial causado ao Estado em benefício directo dos demais arguidos e da sua sociedade, mas também no intuito de, ademais, arrecadarem para si mesmos as vantagens económicas indevidas acima aludidas, que se cifraram no recebimento de contrapartidas monetárias correspondentes a uma percentagem variável do valor de cada uma das facturas atrás apontadas, conforme efectivamente aconteceu.
-27º-
Não obstante, mais previram e quiseram todos os arguidos, como meio de execução do plano sobredito, simular contabilisticamente o pagamento das facturas acima descritas à sociedade “...”, através da construção e execução do sistema de circulação de cheques atrás exposto, por forma a que tais pagamentos na realidade não existissem e o dinheiro titulado pelos cheques indicados em 16., 17. e 18. nunca saísse da sua disponibilidade e pudesse ser por eles gasto em interesse e proveito próprios, como efectivamente aconteceu.
-28º-
Todos os arguidos actuaram nos termos de uma resolução criminosa comum, em comunhão de esforços e intentos, e de forma livre, deliberada e consciente, com total noção de que as suas condutas atrás enunciadas eram proibidas e punidas pela lei penal, e, bem assim, com plena capacidade de determinação segundo as prescrições legais, sendo certo que, não obstante tal conhecimento e capacidade, não se inibiram de agir do modo descrito.»
*
ii)-Por tais factos e pelos crimes imputados na acusação, viriam os arguidos a ser pronunciados, conforme emerge do teor do despacho de pronúncia de 02.11.2016, que remeteu para a acusação (cfr. refª 43012053).
*
iii)-Por sentença proferida a 07.06.2018 (cfr. refª 45669347) foi decidido o seguinte (transcrição):
«Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente, por provada, a acusação e, consequentemente:
a)-Absolver os arguidos MM, BB, II e KK, da imputação da prática, em co-autoria material de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 6º, 7º, 103º e 104º do RGIT, que lhes era feita na pronúncia.
b)-Condenar o arguido AA, pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts 103º e 104º, nº 2 do RGIT, na pena de 1 (um) ano e 1 (um) mês de prisão.
c)-Condenar o arguido BB, pela prática, em co-autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts 103º e 104º, nº 2 do RGIT, na pena de 1 (um) ano e 1 (um) mês de prisão.
d)-Suspender a execução de ambas as penas de prisão referidas em b) e c) pelo período, equivalente, de 1 (um) ano e 1 (um) mês.
e)-Condenar a arguida CC, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts 103º e 104º, nº 2 do RGIT, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 20 (vinte euros), o que perfaz o montante global de € 5.000 (cinco mil euros).
f)-Condenar os arguidos CC, AA e BB nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um deles em 4 (quatro) UC, acrescida dos demais encargos legais e regulamentares.»
*
iv)- Todavia, por acórdão proferido neste Tribunal da Relação de Lisboa a 03.07.2019 (cfr. refª 14643886), além do mais, foi decidido declarar a existência do vício a que alude a al. c) do nº 2 do artº 410º do CPP, tendo-se determinado, nos termos do nº 1 do artº 426º e 426º-A do mesmo código, o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do processo.
*
v)-A sentença recorrida, de 30.03.2023 (refª 53370354), por sua vez, tem o seguinte teor quanto à matéria de facto (transcrição):

«III.– FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Dos Factos Provados

Com relevo para a causa, dão-se como provados os seguintes factos:
Da Acusação
1.–A sociedade arguida “CC” (doravante designada por CC), N.I.P.C. ..., é uma sociedade comercial por quotas que se encontra coletada para o exercício da atividade de «extração de saibro, areia, pedra britada, construção civil, fabricação e comercialização de produtos derivados do cimento e betão, comercialização de materiais de construção civil e representação e comercialização de máquinas e equipamentos industriais», com a C.A.E. (Classificação de Atividades Económicas) 08121 – R3.
2.–A referida sociedade foi constituída em ... de ... de 1980, tendo a sua sede localizada na ..., e sempre foi sujeito passivo de I.V.A. enquadrado no regime normal de tributação com periodicidade mensal e de I.R.C. no regime de tributação geral, com contabilidade organizada e por exigência legal informatizada.
3.–Desde a data da constituição da sociedade arguida “CC”, em 1980, e pelo menos até 04 de fevereiro de 2004, BB e LL foram sempre os únicos sócios e gerentes da mesma no plano jurídico, cabendo, no entanto, neste período, em termos práticos e de facto, apenas ao arguido BB a direção do destino da mencionada sociedade.
4.–Porém, sucedeu que, desde 04 de fevereiro de 2004 até, pelo menos, setembro de 2012, embora as duas pessoas atrás referidas se tenham mantido como únicos sócios da sociedade arguida e gerentes da mesma no plano formal e jurídico, e o arguido BB tenha, sem embargo, continuado a acompanhar e a intervir na atividade da sua empresa, quem assumiu a gestão efetiva e de facto da referida sociedade foi o arguido AA, filho dos dois supra indicados sócios da empresa, tendo-lhe cabido essencialmente a ele, no período acima assinalado, a verdadeira responsabilidade pela representação da sociedade arguida e pela direção do seu destino, assim como a última decisão quanto às escolhas a realizar no dia-a-dia, nomeadamente no concernente à contratação de pessoal, contactos com fornecedores, compra de mercadorias e ainda no tocante às orientações quanto ao cumprimento dos normativos fiscais associados à atividade da empresa.
5.–A sociedade “...” (doravante designada por ...) é uma sociedade comercial por quotas, com o N.I.P.C. ..., com enquadramento em I.V.A. no regime normal de tributação com periodicidade trimestral, e em sede de I.R.C. no regime geral de tributação, cujo objeto social se prende com a «construção de edifícios (residenciais e não residenciais)», à qual corresponde a C.A.E. 041200, tendo tido como único sócio-gerente, desde a data da sua constituição, em 2005, até 12 de Setembro de 2007, JJ, e desde 12 de Setembro de 2007 até à atualidade, NN.
6.–Com efeito, no âmbito do período temporal delimitado em 4., mais precisamente no ano de 2005, o arguido AA no seu próprio interesse e, bem assim, no da sociedade arguida por ele então efetivamente gerida, decidiu praticar operações tributáveis, conforme efetivamente aconteceu.
7.–Deste modo, o referido arguido, estando ciente da possibilidade de daqui vir a resultar inevitável sobrecarga fiscal dos moldes lucrativos em que a sociedade arguida desenvolvia a sua atividade económica, e pretendendo evitá-la, decidiu, no seu interesse, bem como no da sua sociedade, recorrer aos expedientes que se revelassem necessários em ordem a privar a administração fiscal dos tributos que resultariam da aplicação da lei, nem que isso implicasse, como sucedeu, ficcionar custos mediante a utilização de meios que anteviram como idóneos em ordem a concretizar tal propósito.
8.–Neste sentido, o arguido AA após ter contactado com pessoa(s) de identidade não concretamente apurada, acordaram com este(s) último(s) que o(s) mesmo(s) lhe(s) forneceria(m) faturas pertencentes à sociedade “...”, identificada em 5., conforme sucedeu, as quais serviriam, nos termos do plano ora sob evidência, como faturas falsamente emitidas pela mesma dando conta de falsos serviços prestados à sociedade arguida pela sociedade “...” como forma de simular custos dedutíveis inexistentes de molde a extrair daí as respetivas vantagens fiscais, como igualmente se verificou.
9.–O arguido AA transmitiu o seu plano e os passos nesse sentido já encetados ao arguido BB que, na qualidade de representante legal da sociedade arguida e seu sócio gerente, concordou com o mesmo inteiramente e a ele aderiu sem reservas, contribuindo daí em diante para a sua execução.
10.–Desta feita, em concretização do referido plano gizado pelo arguido AA e BB conjuntamente com pessoa(s) de identidade não concretamente apurada, e com o objetivo atrás referido em 7. e 8., foram pelos arguidos AA e BB registadas e contabilizadas como custos na contabilidade da sociedade arguida, e indevidamente deduzidas, quer em sede de I.V.A., quer em sede de I.R.C., as seguintes faturas com emissão aparentemente efetuada pela sociedade “...” relacionadas com pretensas transações e serviços prestados na área da construção civil:
[…]
11.–As correspondentes declarações fiscais referentes a tais impostos (I.V.A. e I.R.C.), remetidas à Administração Fiscal pela sociedade arguida e pelos arguidos AA e BB, na qualidade de representantes da sociedade arguida, e onde por eles foram feitas constar as referências às faturas e aos valores atrás referidos, nos termos anteditos, foram apresentadas nas seguintes datas:
-declaração de rendimentos em sede I.R.C. modelo 22 respeitante ao exercício de 2005: dia 30 de Maio de 2006;
-declaração periódica de I.V.A. respeitante ao período 05/2005: dia 11 de Julho de 2005;
-declaração periódica de I.V.A. respeitante ao período 06/2005: dia 29 de Julho de 2005;
-declaração periódica de I.V.A. respeitante ao período 11/2005: dia 06 de Janeiro de 2006.
12.–Tais faturas foram correspondentemente preenchidas pelo punho de pessoa(s) de identidade não concretamente apurada, ou por alguém sob a determinação destes, que previamente acordaram com o arguido AA, as datas e os valores que deveriam constar das mesmas, sendo certo que pelo fornecimento das faturas em questão foi recebida, por todos aqueles que nessa operação intervieram uma contrapartida monetária correspondente a uma percentagem variável do valor das mesmas.
13.–Com efeito, sucedeu que, em momento não concretamente apurado, mas seguramente anterior ao registo e integração na contabilidade da sociedade arguida das faturas em questão nos termos referidos em 10. e à sua declaração como custos à Administração Fiscal nos termos indicados em 11., pessoa(s) de identidade não concretamente apurada entrou/entraram na posse de várias faturas em branco da sociedade “...”, e onde constava o carimbo da mesma, o que fez/fizeram de forma não concretamente apurada.
14.–Desta forma, pessoa(s) de identidade não concretamente apurada logrou/lograram negociar e concretizar com o arguido AA o plano descrito em 7 e 8.
15.–As referidas faturas, devidamente descritas em 10, não correspondem a quaisquer serviços prestados à sociedade arguida pela sociedade “...”, nem tão pouco a quaisquer transações realizadas entre esta última e a sociedade arguida, tanto mais que:
-Não existe qualquer suporte documental de contractos realizados entre a sociedade arguida e a sociedade “...”, bem como de autos de medição do material adquirido ou utilizado, ou mesmo orçamentos associados às alegadas transações;
-A sociedade “...” era, aquando da ocorrência dos factos, como ainda continua a ser, uma sociedade não declarante em termos fiscais pois não procedeu à apresentação de qualquer declaração de rendimentos de I.V.A. ou I.R.C. para o exercício de 2005, ou mesmo da declaração anual de informação contabilística e fiscal (I.E.S.) para o mesmo ano;
-A sociedade “...”, apesar do conteúdo do seu objeto social indicado em 5., não dispôs de qualquer alvará de construção emitido pelo Instituto Nacional de Construção e Imobiliário até 15.08.2005;
-A sociedade “...” não possuía, na data dos factos, ou seja, durante o ano de 2005, nem infraestruturas, nem veículos que lhe permitissem a realização de transportes ou entrega de mercadorias, bem como a realização de quaisquer trabalhos ou prestação de serviços nos valores declarados;
-A sociedade “...” tinha como objeto social a construção de edifícios (residenciais e não residenciais), sendo certo que as faturas em causa nestes autos compreendem, parcialmente, a venda de matérias-primas e não integralmente a realização de quaisquer tipos de construções ou obras;
-Não existe qualquer registo fiscal de que a sociedade “...” tenha adquirido quaisquer mercadorias que, de acordo com as faturas em causa, tenham sido pela mesma vendidas à sociedade arguida;
-À data dos factos versados em 10., a existência da sociedade “...” tinha como fito único o de simular operações ativas como as acima descritas.
16.–Sem embargo, e apesar das faturas supra descritas constarem na contabilidade da sociedade arguida e nas declarações fiscais pela mesma emitidas como estando associadas a um meio de pagamento documentalmente confirmado, neste caso o uso de cheques emitidos à ordem da sociedade “...”, aconteceu que nenhum dos cheques às mesmas associados e a seguir descritos foi alguma vez recebido, levantado ou depositado pela sociedade supostamente beneficiária dos mesmos, a “...”, nem por ninguém à mesma diretamente ligado, tendo, ao invés, todas quantias correspondentes aos pretensos pagamentos das faturas retornado ao poder dos arguidos AA e BB, que as despenderam em interesse e proveito próprio e da sociedade arguida, ou sido encaminhados para pessoa(s) de identidade não concretamente apurada, ocorrendo depois entre todos eles os ajustes de pagamentos das contrapartidas mencionadas em 12..
17.–Com efeito, a relação entre os cheques mencionados em 16. - emitidos pela sociedade arguida, assinados pelo arguido AA por e/ou outra pessoa de identidade não concretamente apurada e utilizados para simular os pagamentos à sociedade “...” - e as faturas falsamente emitidas pertencentes a esta mesma sociedade, bem como os concretos destinos de cada um dos títulos de crédito em questão foram os seguintes:
[…]
18.–Assim, ressalta do conteúdo e do circuito dos próprios cheques atrás indicados o seguinte:
a)-O cheque nº ..., do banco ..., com a data de ... de ... de 2005, correspondente ao pretenso pagamento da fatura nº …, que na contabilidade da sociedade arguida figura como tendo sido emitido à ordem da sociedade “...”, foi afinal passado diretamente à ordem do arguido MM, um dos gerentes de facto da sociedade arguida e filho do arguido BB, sócio gerente da sociedade arguida;
b)-Os cheques com os nrs. ..., do banco ..., e ..., do banco ..., correspondentes ao pretenso pagamento das faturas com os nrs. …, …, … e …, que na contabilidade da sociedade arguida figuram como tendo sido emitidos à ordem da sociedade “...”, foram afinal passados em aberto, sem se encontrarem à ordem de ninguém em concreto, e depois creditados em duas contas existentes no ...: uma delas com o nº ..., titulada por OO, filho menor do arguido AA, um dos gerentes de facto da sociedade arguida; e a outra com o nº ..., titulada pelo arguido BB, outro dos gerentes de facto da sociedade arguida;
c)-Já os cheques com os nrs. ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., apesar de terem sido emitidos à ordem da sociedade “...”, nunca chegaram a ser recebidos, levantados ou depositados pela mesma nem por ninguém a ela ligado;
d)-Na realidade, o cheque nº ..., correspondente ao pretenso pagamento parcial da fatura nº 253, foi levantado por HH em ... de ... de 2005, a pedido do arguido II, ao qual aquele entregou a integralidade da quantia em dinheiro levantada neste ato, enquanto o cheque nº ..., correspondente ao pretenso pagamento do valor remanescente da retro aludida fatura, foi creditado numa conta do ... cuja titularidade não logrou apurar-se em concreto. O cheque nº ..., correspondente ao pretenso pagamento da fatura nº …, foi levantado no ... por pessoa de identidade não concretamente apurada. O cheque nº ..., correspondente ao pretenso pagamento da fatura nº …, foi, tal como sucedera com o cheque nº ..., depositado na conta do ... nº ..., titulada por OO, filho menor do arguido AA. Os cheques com os nrs. ..., ..., ... e ..., correspondentes aos pretensos pagamentos, respetivamente, das faturas com os nrs. …, …, … e …, foram todos levantados pelo arguido II, em ... de ... de 2005, ... de ... de 2005, em ... de ... de 2005 e em ... de ... de 2007, respetivamente.
19.–A contabilização falseada, executada nos termos e circunstâncias atrás indicados, do I.V.A. supostamente pago e dos custos supostamente suportados pela sociedade arguida nos períodos descritos em 10. e 11. (isto é, de acordo com os dados resultantes da tabela exposta em 10., relativos ao exercício do ano de 2005), determinou, em obediência aos desígnios comuns de todos os arguidos e da sociedade arguida, a diminuição do valor do I.R.C. a pagar por parte desta sociedade no montante de € 39.724,54 (trinta e nove mil, setecentos e vinte e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos), no exercício do ano de 2005 (em função da diminuição do lucro tributável no valor de € 176.553,53 [cento e setenta e seis mil, quinhentos e cinquenta e três euros e cinquenta e três cêntimos], advinda da contabilização indevida das faturas aqui em apreço).
20.–Como tal, o valor atrás referido de € 39.724,54 (trinta e nove mil, setecentos e vinte e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos) constituiu o quantitativo da vantagem patrimonial ilegítima obtida pela sociedade arguida e pelos arguidos, de acordo com os termos e valores enunciados na tabela constante do facto 10, conjugadamente com os da infra exposta, a saber:
[…]
21.–Os arguidos AA e BB agiram sempre não só em interesse e proveito próprios, mas também no interesse e proveito da sociedade arguida, assim como em sua representação direta.
22.–Todos os arguidos agiram de forma previamente concertada entre eles, em conjugação de esforços e intentos, de modo a ludibriarem o Estado, como efetivamente sucedeu, bem sabendo que nenhuma das faturas acima referidas teve subjacente qualquer transação realizada entre a sociedade arguida e a sociedade “...”, com o intuito de, através da sua emissão e utilização nos termos sobreditos, obterem as vantagens patrimoniais ilegítimas atrás retratadas através da dedução fiscal de custos inexistentes, como também aconteceu.
23.–Todos os arguidos sabiam que as supra apontadas faturas utilizadas na contabilidade da sociedade arguida se referiam a operações não realizadas por quem as emitiu e, ainda assim, não se coibiram de as utilizar nos termos e com o propósito suprarreferido, como sucedeu.
24.–Todos os arguidos, tendo conhecimento do modo como funciona o sistema legal de liquidação e cobrança de impostos, nomeadamente ao nível do I.R.C., sabiam igualmente que, com as suas condutas, falseavam a realidade fiscal tributária que os envolvia, tal qual como à sociedade arguida, e que tais comportamentos defraudavam o sistema de impostos de I.R.C. instituído pelo Estado e, bem assim, os objetivos que com ele a Administração Pública se propõe prosseguir, o que foi por todos eles querido.
25.–Os arguidos AA e BB tinham perfeito conhecimento de que, ao atuarem da forma exposta, se propunham, conforme sucedeu, a não entregar à Administração Fiscal a quantia relativa de I.R.C. atrás indicada, o que quiseram, não obstante saberem que a mesma era pertença do Estado, a quem a deviam entregar, tendo aqueles, ao invés, procedido à apropriação dos valores em crise e, em consequência, deles usufruído, nas circunstâncias que bem entenderam, no seu interesse próprio, bem como no da sociedade arguida por eles gerida, com o respetivo manifesto prejuízo do património do Estado.
26.–Não obstante, mais previram e quiseram todos os arguidos, como meio de execução do plano sobredito, simular contabilisticamente o pagamento das faturas acima descritas à sociedade “...”, através da construção e execução do sistema de circulação de cheques atrás exposto, por forma a que tais pagamentos na realidade não existissem e o dinheiro titulado pelos cheques indicados em 16., 17. e 18. nunca saísse da sua disponibilidade e pudesse ser por eles gasto em interesse e proveito próprios, como efetivamente aconteceu.
27.–Todos os arguidos atuaram nos termos de uma resolução criminosa comum, em comunhão de esforços e intentos, e de forma livre, deliberada e consciente, com total noção de que as suas condutas atrás enunciadas eram proibidas e punidas pela lei penal, e, bem assim, com plena capacidade de determinação segundo as prescrições legais, sendo certo que, não obstante tal conhecimento e capacidade, não se inibiram de agir do modo descrito.
Mais se apurou:
28.–A sociedade arguida regularizou a situação tributária, entregando a declaração de substituição modelo 22 IRC, do exercício 2005, em ........2009 e as declarações de substituição periódicas de IVA, dos períodos ..., ... e ..., em ........2009.
29.– Em ........2014, a sociedade arguida tinha a situação tributária regularizada, não sendo devedora perante a Fazenda Pública de quaisquer impostos, prestações tributárias ou acréscimos legais.
30.–O cheque n.º ... não foi assinado pelo arguido AA.

Das Condições Socioeconómicas da CC
31.–Encontra-se registado a favor da CC, a propriedade do(s) seguinte(s):
a)-Veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca ..., modelo …, com a matrícula ...;
b)-Veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca ..., modelo ..., matrícula ...;
c)-Veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca ..., modelo …, matrícula ...;
d)-Veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca ..., modelo …, matrícula ...;
e)-Veículo automóvel pesado de mercadorias da marca ..., modelo …, matrícula ...;
f)-Veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca ..., modelo N2(EU, TSAM), matrícula ...;
g)-Veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca ..., modelo …, matrícula ...;
h)-Veículo automóvel pesado de mercadorias da marca ..., modelo …, matrícula ...;
i)-Trator de mercadorias da marca ..., modelo …, matrícula ... ; j) Veículo automóvel pesado de mercadorias da marca ..., modelo …, matrícula ...;
k)-Veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca ..., modelo …, matrícula ...;
l)-Semirreboque de mercadorias, da marca ..., modelo …, matrícula ….
32.–Encontra-se registado a favor da CC, através da AP. … de ...1....01, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 15.230 m2, sito em ..., na freguesia dos ..., concelho da …, a confrontar pelo Norte com CC, Sul SSS, Leste … e Oeste ..., inscrito na matriz predial sob o artigo …e descrito na CC sob o n.º ….
33. Encontra-se registado a favor da CC, através da AP. … de ...1....01, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 1.700 m2, sito em ..., na freguesia dos ..., concelho da …, a confrontar pelo Norte com Herdeiros de PP, Sul Herdeiros de QQ, Leste RR e ..., inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial da ...sob o n.º ….
34.–Encontra-se registado a favor da CC, através da AP. … de ...1....01, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 9050 m2, sito em ..., na freguesia dos ..., concelho da …, a confrontar pelo Norte com SS, Sul …, Leste --- e TT, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na CC sob o n.º ….
35.–Encontra-se registado a favor da CC, através da AP. … de ...1....01, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 4460 m2, sito em ..., na freguesia dos ..., concelho da …, a confrontar pelo Norte com …, Sul, Leste e Oeste com a CC, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na CC sob o n.º ….
36.–Encontra-se registado a favor da CC, através da AP. … de ...1....01, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 58.690 m2, sito em ..., na freguesia dos ..., concelho da …, a confrontar pelo Norte com …, Sul e Oeste com CC e Leste com …, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na CC sob o n.º ….
37.–Encontra-se registado a favor da CC, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 195.020 m2, sito em ..., onde também chamam ...e ..., na freguesia dos ..., concelho da …, a confrontar pelo Norte com …, Sul com …, e outros, Leste com BB e Oeste com UU e outros, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na CC sob o n.º …, o qual se encontra hipotecado.
38.–Encontra-se registado a favor da CC, através da AP. … de ...1....04, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 3.500 m2, sito em ..., na freguesia dos ..., concelho da …, a confrontar pelo Norte com …, Sul e Leste com CC e Oeste com ..., inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na CC sob o n.º ….
39.–Encontra-se registado a favor da CC, através da AP. … de ...0....01, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 6.840 m2, sito em ..., na freguesia da …, concelho da …, a confrontar pelo Norte com ... com VV e Leste WW e Oeste com RR, inscrito na matriz predial sob o artigo …e descrito na CC sob o n.º …, o qual se encontra hipotecado.
40.–Encontra-se registado a favor da CC, através da AP. … de ...1....04, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 129.500 m2, sito em ..., na freguesia da …, concelho da …, a confrontar pelo Norte com ..., Sul com Herdeiros de XX e Herdeiros de YY e Leste com ..., Herdeiros de ZZ e Herdeiros de XX e Oeste com ... e ..., inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na CC sob o n.º ….
41.–Encontra-se registado a favor da CC, através da AP. … de ...2....09, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 1.156 m2, sito em ... na freguesia da …, concelho da …, a confrontar pelo Norte e Sul com Herdeiros de UUU, Leste com AAA e Oeste com ..., inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na CC sob o n.º ….

Das Condições Pessoais e Socioeconómicas de BB
42.–BB apresenta como última remuneração junto da Segurança Social o valor de 1.995,20 €, em ....
43.–Apresenta como data de início de funções, junto da Segurança Social, na qualidade de membro de órgão estatutário da CC, o dia ........1994.
44.–Apresenta como data de início de funções, junto da Segurança Social, na qualidade de membro de órgão estatutário da ..., o dia ........2006.
45.–Apresenta como data de início de funções, junto da Segurança Social, na qualidade de trabalhador independente, o dia ........2017.
46.–É beneficiário de pensão por velhice desde ........2007.
47.–A última declaração de rendimentos junto das ... data de 2019, sendo as origens do rendimento quer pensões, quer rendimentos empresariais e profissionais.
48.–Encontra-se registado a favor de BB, a propriedade do(s) seguinte(s):
a)-Veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca ..., modelo…, com a matrícula ...;
b)-Veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca ..., modelo …, com a matrícula …;
49.–Encontra-se registado a favor de BB, ainda que provisório por natureza e por dúvidas, através da AP. 1… de ...1....04, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 560 m2, sito em ..., na freguesia da …, concelho da …, a confrontar pelo Norte, Sul e Leste com Herdeiros de BBB e Oeste com CCC, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na CC sob o n.º …, estando, também registada sobre o prédio a ação judicial no âmbito do processo n.º 493/10.5..., que corre os seus termos no Tribunal Judicial da ….
50.–Encontra-se registado a favor de BB, através da AP. … de ...1....11, a propriedade de um prédio rústico com a área total de 946 m2, sito em ..., na freguesia da …l, concelho da …, a confrontar pelo Norte com Herdeiros de DDD e outros, Sul ..., e ... e Oeste com ... e EEE, inscrito na matriz predial sob o artigo … e descrito na CC sob o n.º ….

Das Condições Pessoais e Socioeconómicas de AA
51.–Apresenta como data de início de funções, junto da Segurança Social, na qualidade de membro de órgão estatutário da CC, o dia ........1998.
52.–Apresenta como data de início de funções, junto da Segurança Social, na qualidade de membro de órgão estatutário da ..., o dia ........2005.
53.–Apresenta como data de início de funções, junto da Segurança Social, na qualidade de membro de órgão estatutário da ..., o dia ........2009.
54.–Apresenta como data de início de funções, junto da Segurança Social, na qualidade de membro de órgão estatutário da ..., o dia ........2019.
55.–Apresenta como data de início de funções, junto da Segurança Social, na qualidade de membro de órgão estatutário da ..., o dia ........2020.
56.–AA apresenta como última remuneração junto da Segurança Social os valores de 1.780,00 €, 1.432,00 €, 682,00 € e 682,00 €, em ..., resultantes das funções que exerce junto das sociedades comerciais referidas em 49, 50, 51e 52.
57.–A última declaração de rendimentos junto das ... data de ..., sendo as origens do rendimento o trabalho dependente para as sociedades comerciais referidas em 49, 50 e 51.
58.–Encontra-se registado a favor de AA, a propriedade do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca ..., modelo …8, com a matrícula ...

Dos Antecedentes Criminais da CC
59.–A sociedade arguida não tem antecedentes criminais registados.

Dos Antecedentes Criminais de BB
60.–BB não tem antecedentes criminais registados.

Dos Antecedentes Criminais de AA
61.–AA não tem antecedentes criminais registados.

Factos Não Provados
A.–Que a sociedade ... nunca tivesse disposto de alvará de construção emitido pelo Instituto Nacional de Construção e Imobiliário.
B.–Que a sociedade ... não possuía qualquer trabalhador inscrito na Segurança Social no exercício fiscal em causa correspondente ao ano de 2005.
C.– Que BB tivesse assinado os cheques referidos em 16.
D.–Que o cheque n.º ..., do banco ... tivesse sido depositado na conta do banco ... de MM.
*

O restante conteúdo das peças processuais que não resultem explanados nos factos supra elencados foi expurgado por corresponder a matéria de direito, a factos conclusivos ou a juízos de valor, não sendo essenciais para o apuramento da responsabilidade criminal do arguido.
*

Motivação
O Tribunal, num juízo crítico da prova produzida, formulou a sua convicção quanto aos factos dados como provados e não provados com base na conjugação das provas infra referidas, aplicando as regras da experiência comum que a cada caso se exijam e a livre convicção do julgador, conforme dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Assim, o Tribunal atendeu à seguinte prova:

a)– Testemunhal:
i.-EE;
ii.-FF;
iii.-GG;
iv.-BB;
v.-HH;
vi.-II;
vii.-MM.

b)– Documental:
i.-Auto de notícia e documentação de suporte, a fls. 3 a 117 e 344 a 401;
ii.-Elementos contabilísticos, extratos de contas, procuração e recibos da sociedade arguida, a fls. 120 a 142 e 461 a 483;
iii.-Procuração datada de ........2004, a fls. 130 a 133;
iv.-Certidão permanente da sociedade arguida, a fls. 169 a 172;
v.-Certidão permanente da sociedade ..., a fls. 173 a 175;
vi.-Auto de apreensão de faturas e recibos a fls. 177 a 202;
vii.-Informação bancária a fls. 214 a 226, 312 a 324, 575 a 588, 736 a 474, 982 a 990 e 995 a 999;
viii.-Extrato contabilístico da conta corrente da sociedade arguida, a fls. 361;
ix.-Notas de lançamento, a fls. 362 a 373;
x.-Relatório inspetivo e documentação de suporte (cheques, faturas, notas de lançamento), a fls. 402 a 458 e 926 a 936, 1954 a 2012;
xi.-Denúncia de fls. 487 a 492 (cujo original está a fls. 2 a 7 do processo apenso, cuja capa interior tem como n.º de processo o 1854/09.0TAFUN;
xii.- Informações fornecidas pela inspeção tributária, a fls. 528 a 560 e 1002 a 1005;
xiii.-Faturas, a fls. 533 a 556;
xiv.-Prints informáticos emitidos pela DRAFT relativos a sistemas de consultas, sínteses cadastrais e registo dos contribuintes, notas de liquidação, notas de cobrança e certidões de dívida a fls. 597 a 602, 724, 725, 728, 760 a 770 e 1006 a 1008;
xv.-Informação da Administração Tributária referente à sociedade arguida, a fls. 760;
xvi.-Documento intitulado de «Visão do Contribuinte Síntese Cadastral», de ........2013, referente à ... a fls. 761;
xvii.-Certidões extraídas de vários inquéritos crime de natureza fiscal, a fls. 771 a 831;
xviii.-Parecer final que consta a fls. 834 a 863
xix.-Declarações fiscais, a fls. 871 a 925;
xx.-Certidão fiscal a fls. 1007 e 1008;
xxi.-Ofício da Autoridade Tributária referente à sociedade ..., a fls. 1136 a 1139;
xxii.-Informação do Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, a fls. 1142 a 1144;
xxiii.-Certidões de nascimento, a fls. 1160 e 1163;
xxiv.-Ofício do Instituto Nacional de Construção e Imobiliário, a fls. 1168;
xxv.-Informação bancária de fls. 2035 a 2061, 2065 a 2074;
xxvi.-Acordos de aplicação de contrato coletivo e contratos de trabalho, a fls. 2107 a 2116v;
xxvii.-Contratos bancários, a fls. 2117 a 2135v;
xxviii.-Organograma da sociedade arguida, a fls. 2136;
xxix.- Mapa de qualidade, a fls. 2136v a 2160;
xxx.-Informação Segurança Social, a fls. 2163, 2163v, 2191, 2191v e 2204 a 2205;
xxxi.-Informação ..., a fls. 2164, 2192 e 2206;
xxxii.-Informação Registo Automóvel, a fls. 2165 a 2177v, 2193 a 2195v e 2207 a 2208v
xxxiii.-Informação Registo Predial, a fls. 2178 a 2190v, 2196 a 2203 e 2210;
xxxiv.-Certificado de Registo Criminal da sociedade arguida, a fls. 2211;
xxxv.-Certificado de Registo Criminal de BB, a fls. 2212;
xxxvi.-Certificado de Registo Criminal de AA, a fls. 2213;
c)- Declarações para memória futura de JJ, que constam de CD a fls. 1294.

Concretizando:
Os arguidos BB e AA não compareceram à audiência de julgamento tendo requerido o seu julgamento na ausência, não se tendo, por isso, conseguido apurar a sua versão dos factos.
A testemunha EE, técnica da administração tributária, jurista e representante da fazenda pública, responsável pela elaboração do parecer final que consta a fls. 834 a 863, confirmou o seu teor e assinatura, explanou a causa da elaboração de tal parecer (a existência de uma inspeção à sociedade e ter-lhe sido remetido um auto de notícia) e as diligências que realizou (junção de prova documental, nomeadamente faturas e cheques, tendo realizado a reconstituição dos cheques e o circuito dos cheques, ouviu trabalhadores da sociedade, apurar se trabalhos foram realizados), o facto de a sociedade comercial ... ser conhecida no meio (tinham uma base de dados de contribuintes que não eram declarantes, que eram «empresas fachada» sic) como emissora de faturação falsa, sendo que uma das recetoras dessa faturação foi a sociedade arguida, o facto de ter apurado que as cheques para pagamento das faturas eram emitidos pela sociedade arguida à ..., mas depois os cheques eram depositados na conta dos familiares dos gerentes da sociedade arguida que não têm qualquer ligação à ... (tendo exemplificado, após confrontação, que o cheque que consta a fls. 52 foi depositado na conta bancária do filho do arguido AA, que à data era menor de idade, conforme resulta de fls. 312).
Mais disse que não foi realizada qualquer perícia, desconhecendo a assinatura dos cheques.
FF, inspetor tributário, explanou que a sociedade arguida foi alvo de uma inspeção tributária em que foram analisadas faturas, tendo sido o responsável quer pelo auto de inspeção, pelo auto de notícia e pelo relatório de inspeção, que constam a fls. 3 a 6, 62 a 69 (completo a fls. 1954 a 2012), respetivamente, tendo confirmado o seu teor e assinatura.
Explanou que a sociedade arguida tinha na sua faturação faturas de uma sociedade que é conhecida no meio como sendo emissora de faturas para simular negócios jurídicos, sendo empresas sem trabalhadores e sem qualquer estrutura, não declarativas, que faturava milhões para várias empresas. No caso, referiu ter sido a ... a sociedade emitente das faturas, tendo referido que a mesma não tinha estaleiro, não tinha máquinas, tinha apenas uma viatura automóvel, não tinha alvará.
Confrontado com fls. 1142 a 1144, que dizem respeito a informação prestada pelo Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, relativo aos trabalhadores da sociedade ..., explanou que os trabalhadores ali indicados apresentam como tempo de trabalho mais longo quatro meses, existindo pessoas que trabalharam para a referida sociedade apenas quatro dias.
Esclareceu as diligências que encetou no âmbito das suas funções (ouvir os sócios, a apreensão de faturas, conforme auto de apreensão de fls. 178 que confirmou), tendo referido que as faturas eram emitidas pela ..., desconhecendo a pessoa singular que as emitiu, a favor da sociedade arguida, tendo tais faturas sido declaradas para efeitos fiscais, tendo a última beneficiado em termos de IVA e IRC, sendo que para pagamento de tais faturas foram passados cheques por esta que foram depositados, por exemplo, na conta de um dos filhos dos sócios.
Disse não saber quem combinou o negócio, não saber se dinheiro foi para a ... (sabendo, todavia que os cheques não foram), desconhecendo quem preencheu o cheque e o assinou, mas que não tem dúvidas que serviço não foi prestado pois tal não resulta da prova documental, sendo que o sócio gerente da ... afirmou perante si que não tinha prestado os serviços.
GG, inspetora tributária, disse que apenas teve contacto com a presente situação aquando da apreensão das faturas, a fls. 178, reconhecendo a sua assinatura, não se recordando dos factos.
O depoimento das três testemunhas anteriormente referidas foi isento e objetivo, explanando os factos que apuraram no âmbito do exercício das suas funções, não hiperbolizando os factos, merecendo, por isso, a credibilidade do Tribunal.
HH, referiu ser amigo de II, que conhecia por «FFF», o qual lhe solicitou que levantasse um cheque, tendo a testemunha acedido, tendo aquele lhe entregue o cheque e a testemunha trocou o mesmo e deu o dinheiro a II, tendo fundamentado a sua atuação no facto de que a testemunha tinha conta bancária no ... (...), tendo II dito que não podia levantar por não ter conta em tal banco, sendo que a testemunha à data dos factos, em virtude da profissão que tinha, deslocava-se com frequência a bancos.
Confrontado com o cheque de fls. 998 confirmou ser a sua assinatura e corresponder ao cheque que levantou.
II, disse conhecer os arguidos pessoas singulares «de vista» sic, sendo que conhece o contabilista da sociedade comercial ..., KK, o qual lhe pediu para proceder ao levantamento de cheques, ao que a testemunha acedeu, tendo entregue o dinheiro ao mesmo, fundamentando a sua atuação como «troca de favores», já que, por vezes, KK prestava de serviço de contabilidade para a testemunha não cobrando qualquer valor.
Confrontado com os cheques de fls. 983, 989 e 999, confirmou a sua assinatura e o terem sido os cheques que levantou.
HH e GGG prestaram um depoimento relativamente a factos que tinham conhecimento direto, tendo explanado a sua intervenção, de forma espontânea e esclarecedora, merecendo, por isso, a credibilidade do Tribunal.
JJ, gerente da sociedade ..., prestou declarações para memória futura em ........2016, as quais constam de CD a fls. 1294, respetivamente.
Tais declarações não foram reproduzidas em audiência de julgamento, com o acordo de todos os sujeitos processuais, sendo certo que o Tribunal pode valorar as mesmas, sem prejuízo dessa circunstância, atenta à jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2017, de 21/11, publicado no Diário da República n.º 224/2017, Série I de 2017-11-21: ««[a]s declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código.»
Referiu nunca ter trabalhado para a sociedade arguida não a conhecendo nem os arguidos pessoas singulares, conhecendo KK, que era contabilista, que o auxiliou no estabelecimento de contactos com vista a realizar trabalhos na área da construção civil, sendo que deixou um livro de faturas a esta pessoa, a seu pedido, para no estabelecimento dos contactos referidos, demonstrou que a ... estava legal.
Disse que não sabe que uso KK deu ao livro de faturas, tendo-o devolvido, não tendo a testemunha se apercebido de qualquer uso deste, referindo que todas as faturas que foram por si emitidas ficaram na contabilidade.
Relatou que foi confrontado por uma pessoa da fiscalização que o procurou e mostrou faturas que a testemunha afirmou desconhecer a sua emissão, não estando assinadas por si, não se recordando do destinatário dessas faturas.
Explicitou que nessa sequência falou com KK, tendo este dito que não tinha nada a ver com isso.
O Tribunal credibilizou o depoimento desta testemunha, apesar de não ter sido inquirido diretamente, por ser um depoimento que foi esclarecedor, revelador de conhecimento direto dos factos, detalhado e consentâneo com as regras de experiência comum.
BB e MM, filhos e irmãos dos arguidos pessoas singulares recusaram prestar o seu depoimento, nos termos do artigo 134.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
Ora, conjugada toda a prova, verifica-se que quanto ao objeto social da sociedade arguida, sua constituição, sede e gerência de direito originária, factos n.ºs 1 a 3, encontram-se provados pela consulta da certidão permanente do registo comercial, que consta a fls. 169 a 172 (repetida a fls. 497 a 500).
O enquadramento fiscal da sociedade arguida, desde a sua constituição, e, bem assim, a contabilidade organizada, resulta da informação da Administração Tributária, a fls. 760 (referente à síntese cadastral da mesma) e do parecer de fls. 834 a 863, resultando, assim, provada a 2.ª parte do facto n.º 2.
No que concerne à gerência de facto desde, pelo menos ........2004, por parte dos arguidos pessoas singulares, a mesma encontra-se demonstrada, quanto a BB, pelos documentos de fls. 2107 a 2160, que consubstanciam acordos de aplicação de contrato coletivo, celebrado entre trabalhadores da sociedade arguida e a própria, datados de ........2005 e a contratos de trabalho nas mesmas condições datados de ........2006 e ........2005 (a fls. 2107 a 2116v), a contratos de abertura de crédito por conta corrente ou constituição de depósitos a prazo junto do ... datados de ........2005 e 19.014.2005 (a fls. 2117 a 2120, 2124 a 2127), do ... datado de ........2005 (a fls. 2120v a 2123), do ... datados de ........2007 e ........2008 (a fls. 2127v a 2128v e 2129 a 2135v).
Todos os documentos referidos encontram-se assinados por BB (e LL), acompanhados do carimbo da empresa.
Já os documentos relativos ao organograma da empresa e mapa de qualidade da mesma datado de ........2005 (a fls. 2136v a 2160), donde resulta, logo no organograma datado de ........2005 (a fls. 2136), que são gerentes o arguido HHH e a sua esposa, também se encontram assinados por tal arguido e, ainda, pelo arguido AA, na qualidade de autor do manual de qualidade (embora também conste, a fls. 2151v, 2152v e 2154v, a assinatura de BB e a fls. 2157, 2158 a assinatura de III).
Todos estes documentos mencionados, de fls. 2107 a 2160, têm como período temporal o compreendido entre ........2005 e ........2008.
Significa isto que, pelo menos, quanto a BB, encontra-se demonstrada, não só a sua gerência de direito (já que o mesmo consta na certidão do registo comercial como gerente da sociedade arguida desde a sua constituição), como também a sua gerência de facto, já que celebrou contratos de trabalho, contratos bancários e até assinou documentação interna da sociedade arguida.
É certo que, quanto a esta assinatura, sempre se poderia dizer que constando no plano jurídico este arguido como gerente de direito, teria obrigatoriamente que ser este a assinar os referidos documentos, pois a sua assinatura é necessária para obrigar a sociedade arguida, conforme resulta da certidão permanente.
Todavia, crê-se tal não ser o caso pois que a sua intervenção era a de um efetivo gerente, pois tais atos são atos típicos de gerência, sendo que tais documentos foram juntos pela defesa para comprovar, exatamente, essa gerência.
Com efeito, a gerência de facto de uma sociedade comercial exige a prática de atos típicos como por exemplo, contratar trabalhadores, pagar os seus salários, contacte com fornecedores, realizando encomendas e fazendo pagamentos, que, em suma, atue em nome e representação da sociedade, sendo precisamente isto que se demonstrou quanto a BB.
No que concerne ao arguido AA, analisando o cronograma da sociedade arguida, junto pela defesa, a fls. 2136, o mesmo teria, na empresa, a responsabilidade pelo departamento de produção de betão, não sendo indicado como gerente.
Acontece que, encontra-se junta aos autos uma procuração outorgada no Cartório Notarial da ..., datada de ........2004, a fls. 130 a 133, na qual BB, na qualidade de gerente da sociedade arguida, constitui procurador AA, conferindo-lhe todos os poderes que um gerente possui (por exemplo, contratar pessoal, indicar suas funções e fixar remuneração, comprar e vender equipamentos ou outros bens necessários ao exercício da atividade da sociedade), sendo de destacar os poderes conferidos no âmbito da banca ou de instituições de crédito: «c) Operar com a banca e outras instituições de crédito, realizando todas as operações que a legislação e a prática permitam; abrir, movimentar e encerrar quaisquer espécies de contas bancárias correntes, caucionadas e de poupança, depositar e levantar capitais, assinar talões, cheques, recibos, ordens de pagamento e outros documentos, solicitar extratos dessas contas, confirmá-los e impugná-los; D) Liquidar, endossar, avalizar, aceitar, reformar, cobrar e descontar letras de câmbio, comerciais ou financeiras e demais títulos negociáveis, designadamente, livranças, cheques e extratos de faturas, apresentar protestos por falta de pagamento, de aceitação ou qualquer outro motivo; E) Fazer e levantar depósitos em dinheiro ou valores, requerer isenções, bonificações, desagravamentos fiscais bem como o reembolso de quantias indevidamente pagas, aprovar ou impugnar contas, efetuar pagamentos e cobranças a qualquer título e em qualquer valor, incluindo as resultantes de empréstimos, créditos e livranças de Estado e outros entes públicos (…) G) Representar a sociedade em juízo e fora dele, e, para isso, comparecer perante quaisquer autoridades do Estado (…) J) Exercer, cumprir e renunciar a todos os direitos e obrigações relacionados com o objeto social (…).»
Ora, desta procuração retira-se, conforme se referiu, que JJJ tinha tantos poderes como KKK, na qualidade de gerente da sociedade, tendo, assim, ele também, as funções de gerente, pelo menos desde a data da outorga da procuração, a qual inexiste informação nos autos de que foi revogada, o que significa que, manter-se-á em vigor, ainda na presente data.
Daí que, se considere que, pelo menos desde ........2004, que a gerência competisse não apenas a BB, mas também a AA.
É certo que se poderá dizer, quanto a AA, que a outorga de tal procuração, por si só, não é suficiente para provar a gerência, pois não demonstra a prática por este de qualquer ato de gerência, mas tão-só a sua possibilidade.
Todavia, pela documentação junta aos autos, nomeadamente os cheques emitidos pela sociedade arguida encontram-se assinados por AA, o que consubstancia um ato de gerência, para o qual lhe foram conferidos os poderes na referida procuração. Analisaremos, infra a questão dos cheques que foram assinados por este arguido, remetendo-se a identificação dos cheques ora referidos, para a identificação que será realizada infra por uma questão de economia a celeridade processual.
Note-se que, conforme se disse, o arguido AA tinha poder para assinar os cheques, sendo que é visível a «olho nu», a sua assinatura nos mesmos, conforme melhor se explanará infra, sendo certo que de acordo com a informação bancária de fls. 2035 a 2061, 2065 a 2074, inexistem dúvidas quer que o arguido AA podia assinar tais cheques, como os efetivamente assinou, razão pela qual os mesmos nunca foram devolvidos, pois a assinatura neles constantes era idêntica à ficha de assinaturas presente nas instituições bancárias.
Assim sendo, o Tribunal não tem dúvidas que desde ........2004, BB e AA eram os gerentes de facto da sociedade arguida, resultando, assim, provados os factos n.ºs 3, na parte referente à data referida, e 4.
O facto n.º 5, relativo à atividade, sede e gerência da sociedade ... e respetivo enquadramento fiscal, encontra-se provado pela certidão permanente da sociedade a fls. 173 a 175, 501 a 503, 594 a 596 e pelo documento intitulado de «Visão do Contribuinte Síntese Cadastral», de ........2013, referente à ... a fls. 761.
As faturas da ..., emitidas a favor da sociedade arguida referidas no facto n.º 10, resultam provadas pela consulta das mesmas que constam a fls. 533 a 556.
A contabilização de tais faturas na contabilizada de empresa resultam da consulta do extrato contabilístico da conta corrente da sociedade arguida, que consta a fls. 361, bem como das notas de lançamento, a fls. 362 a 373.
O valor relativo ao período de dedutibilidade, em sede de IVA e, bem assim, o total de exercício para efeitos de IRC, resulta provado pela soma dos valores constantes na tabela.
O facto de terem sido os arguidos BB e AA a registar e contabilizar tais faturas resulta do facto de estes serem os gerentes da sociedade, conforme se explanou.
A apresentação das declarações fiscais, suas datas e período a que respeitam, facto n.º 11, encontra-se provado pela análise das referidas declarações que constam a fls. 871 a 925.
No que concerne aos factos n.ºs 12 a 14, quanto ao preenchimento das faturas, à posse das mesmas e à concretização do plano de obter vantagens ficais, encontra-se provado pela dinâmica dos factos.
Importará referir que tendo os arguidos GGG e KK sido absolvidos, não foi possível ao Tribunal, apurar a concreta pessoa que terá entrado na posse das faturas da ... e as terá preenchido, sendo certo que, a única pessoa que foi indicada por LLL como tendo estado na posse de um livro de faturas, ter sido KK, o que poderá ao Tribunal perguntar se não terá sido esta pessoa a responsável pela emissão de tais faturas.
Acontece que, conforme se disse, tal pessoa foi absolvida, por isso, desconhecesse, para além de dúvida, quem terá sido o responsável pela emissão das faturas.
Da análise das faturas referidas não é possível determinar a quem pertence a assinatura nelas constantes, sendo que as mesmas se encontram carimbadas com o carimbo da ....
O Tribunal não consegue corresponder à assinatura ali aposta com, por exemplo, a assinatura de LLL, já que pela mera análise da referida assinatura por comparação, por exemplo, com a assinatura aposta pelo mesmo na procuração forense do seu mandatário, que consta a fls. 833 ou do seu documento de identificação a fls. 1425, não é possível concluir, a «olho nu» que seja a mesma assinatura, até pelo contrário, considerando que são absolutamente dispares.
Assinalar, ainda, que várias faturas têm aposta a mesma data ou datas em dias seguidos, cuja razão de ser não se compreende.
Aliás, este procedimento não aparenta poder ter outra explicação senão a de que o visava diluir valores com vista a evitar que os montantes apostos nas faturas constituíssem, por si só, motivo para o desencadeamento de eventuais ações inspetivas.
Todavia, dúvidas não existem de que as mesmas foram emitidas, ainda que por pessoa cuja identidade se desconhece e que foram usadas na contabilidade da sociedade arguida, com vista a obter uma contrapartida monetária.
O facto n.º 15, referente à não prestação de serviços pela sociedade ... à sociedade arguida encontra-se provado quer pelo depoimento de LLL como pelo depoimento de MMM nos termos em que se explanou supra aquando da súmula do seu depoimento, para onde se remete por uma questão de economia e celeridade processual, encontrando-se, ainda, corroborado pela prova documental junta aos autos explanada aquando do depoimento da referida testemunha bem como a prova a seguir melhor explanada.
Com efeito, LLL negou ter prestado qualquer serviço para a sociedade arguida, num depoimento que o Tribunal considerou espontâneo e não hesitante.
Note-se que LLL era, à data dos factos, gerente da sociedade ..., tendo, aquando da sua notificação pela Direção Regional dos Assuntos Fiscais, tomado conta da utilização de faturas da sociedade de que era gerente que não tinham sido por si emitidas ou sequer fossem do seu conhecimento e apresentado denúncia dando conta dessa situação, conforme consta de fls. 487 a 492 (cujo original está a fls. 2 a 7 do processo apenso, cuja capa interior tem como n.º de processo o 1854/09.0TAFUN).
Ora, se tivesse sido o próprio a emitir tais faturas ou a prestar os serviços em causa, inexiste qualquer explicação lógica para que fosse apresentar qualquer denúncia nos termos que já se explanou supra.
E não se diga que o facto de as testemunhas da Autoridade Tributária não se terem deslocado ao local para comprovar a realização ou não dos trabalhos pela ... têm alguma relevância.
Em primeiro lugar, face ao que já se disse, o próprio gerente da sociedade ... nega tais serviços.
Em segundo lugar, porque analisadas as faturas não é possível retirar qual o local onde, eventualmente, o serviço terá sido prestado.
Não se encontra junto aos autos qualquer contrato celebrado entre a sociedade arguia e a ... relativamente aos serviços em causa (nem poderia haver face ao que LLL referiu).
O facto de a sociedade ... não ser declarante fiscal resulta provado não só pelo depoimento de MMM como também do ofício da AT-RAM que consta a fls. 1136 a 1139, que atesta tal circunstância.
Analisado o ofício do Instituto Nacional de Construção e Imobiliário, a fls. 1168, conclui-se que a ... não tinha qualquer título de registo perante tal entidade até 15.08.2005, tendo passado a tê-lo a partir de ........2005 até ........2010, sendo que as faturas em causa dizem respeito ao período compreendido entre ........2005 e ........2005, o que significa que parte delas foram emitidas quanto a sociedade não tinha qualquer alvará, razão pela qual também resultou não provado o facto A.
A inexistência de infraestruturas nem veículos que lhe permitissem realizar transporte ou entrega de mercadorias, encontra-se provado pelo depoimento de MMM.
Quanto ao objeto da sociedade ... remete-se para o que se disse quanto ao facto n.º 5, sendo que da mera leitura das faturas que constam a fls. 533 a 555, onde consta na parte da designação a venda de matérias primas (como, por exemplo, pedra partida a martelo, transporte até Britadeira, transporte com peças da central de betão) e não a realização de quaisquer trabalhos na área de construção.
Face ao exposto e de acordo com as regras de experiência comum, pode-se concluir, sem que subsista qualquer dúvida, pela não execução/prestação dos serviços faturados através das faturas descritas e, por conseguinte, pela falta de correspondência com a realidade do conteúdo das mesmas.
Os factos n.º 16 a 18, relativo ao destino dos cheques emitidos pela sociedade arguida à ordem da ... (com vista a efetuar o pagamento das referidas faturas), mais concretamente o facto de tais cheques ou seu valor nunca ter sido entregue à ... encontra-se provado pela conjugação dos cheques com a informação bancária que consta a fls. 214 a 226, 312 a 324, 575 a 588, 736 a 474, 982 a 990 e 995 a 999 e, ainda, com o teor da denúncia apresentada pelo gerente da referida sociedade, que consta a fls. 488 a 492 (onde diz expressamente que, para além de nunca ter faturado, nunca recebeu cheques da sociedade arguida, não os tendo endossado, sendo que era o único com poderes para tal efeito).
Detalhando.
O cheque n.º ..., no valor de 7.450,00 € e o cheque n.º ..., no valor de 9.039,53 € (a fls. 224 e 45, respetivamente), cujo somatório ascende a 16.489,53 € (o que permite concluir que seria para «pagamento» da fatura n.º …, que consta a fls. 533), nunca chegou à .... O primeiro cheque foi levantado por NNN, a pedido de II, conforme o mesmo confirmou, tendo entregue o dinheiro a este, pessoa cuja ligação com a ... não foi apurada. O segundo foi remetido para uma conta no ... (...), conforme resulta de fls. 214 (repetido a fls. 575) 990.
O valor total do cheque n.º ..., correspondente a 16.434,72 € (a fls. 42), diz respeito ao somatório do valor das faturas n.ºs … e …, de 9.668,28 € e 6.766,44 €, respetivamente (cf. faturas a fls. 535 e 545), o que permite concluir que tinha como fim o «pagamento» de tais faturas, cheque esse que teve como destino, de acordo com a informação do ..., a fls. 214 (repetido a fls. 575) e mais concretamente a fls. 312, uma conta titulada por BB, cujos dados referentes à sua identificação e morada juntos do referido banco constam a fls. 321 a 324.
O cheque n.º ..., no valor de 17.132,50 € (a fls. 996), dizia respeito à fatura n.º … (que consta a fls. 537), com o mesmo valor, cheque esse que teve como destino, de acordo com a informação do ... a fls. 214 (repetido a fls. 575) uma conta do ....
O cheque n.º ..., no valor de 46.420,40 € (a fls. 987), diz respeito ao somatório das faturas n.ºs … e … (que constam a fls. 539 e 543), no valor de 25.532,88 € e 20.896,52 €, cada e o cheque n.º ..., no valor de 18.709,93 € a fls. 988), corresponde ao valor da fatura n.º … (que consta a fls. 551), tiveram como destino, de acordo com a informação do ..., a fls. 222, uma conta do ..., sendo que de acordo com a informação do ... a fls. 312, o titular da referida conta é OO, filho do arguido AA, à data dos factos, menor de idade, sendo, por isso, representado pelos seus pais conforme, aliás, resulta de tal informação de fls. 312 a 320.
O cheque n.º ..., no valor de 8.705,52 € (a fls. 984), corresponde ao mesmo valor da fatura n.º … (que consta a fls. 541), foi pago a pessoa cuja identidade não se conseguiu apurar, pois o verso do cheque é ilegível (cf. fls. 984v), sendo certo que consta da informação do ..., a fls. 982, que o mesmo foi pago.
O cheque n.º ..., no valor de 19.375,20 € (a fls. 224), corresponde ao valor da fatura n.º … (que consta a fls. 547); o cheque n.º ..., no valor de 19.968,60 € (a fls. 983) correspondente ao valor da fatura n.º … (que consta a fls. 549); o cheque n.º ..., no valor de 18.680,03 € (a fls. 989) correspondente ao valor da fatura n.º … (que consta a fls. 553); e o cheque n.º ..., no valor de 19.271,70 € (a fls. 226) correspondente ao valor da fatura n.º … (que consta a fls. 555), foram levantados por II, de acordo com a informação do ..., a fls. 995, do ..., a fls. 215 a 218 (repetido a fls. 576 a 579) e pela informação do ..., a fls. 223, respetivamente, e, ainda, por declarações do próprio que confirmou o seu levantamento e o destino que deu ao dinheiro conforme supra melhor se explanou a propósito do seu depoimento.
Ora, verifica-se que todos os cheques referidos e que constam da tabela dos factos provados foram emitidos sobre contas da sociedade arguida, em valores que correspondem aos constantes das faturas emitidas pela ... a favor da sociedade arguida, mas cujo dinheiro teve como destino terceiras pessoas, inclusive familiares dos arguidos pessoas singulares (por exemplo, o filho de AA e o irmão de AA), não tendo sido entregue à ..., que, aliás, conforme se disse, nunca prestou os serviços constantes das referidas faturas, pelo que, nenhum pagamento lhes era, sequer, devido.
Todos os cheques constantes do facto 17, encontram-se assinados por AA, à exceção do cheque de fls. 45 (i.e., o cheque n.º ...).
Neste âmbito, importa esclarecer que os cheques que constam a fls. 51 a 53, estão incompletos, pois o original que deu entrada nos bancos para proceder aos respetivos pagamentos são os que constam a fls. 996, 42 e 987, respetivamente, onde já constam duas assinaturas, sendo uma delas a de AA.
A relação de parentesco entre os arguidos e OOO encontra-se provada pela consulta das certidões de nascimento de AA e PPP, a fls. 1160 e 1163.
A diminuição do valor de IRC a pagar pela sociedade arguida, correspondente, também à vantagem patrimonial ilegítima obtida e a regularização da situação fiscal, quer em sede de IRC como em sede de IRS, factos n.ºs 19.º, 20.º, 29 e 30, resultam demonstrados pelo relatório de inspeção tributária, que consta a fls. 926 a 936 (mais concretamente a fls. 935, no que concerne ao valor) e, quanto à situação fiscal regularizada, da certidão fiscal de fls. 1007 e 1008 que atesta tal regularização.
No que concerne aos factos referentes à decisão de prática de operações tributáveis, da decisão de recurso a expediente para evitar a carga fiscal, o acordo com pessoa não concretamente apurada, o plano, a comunicação a BB e a prova do elemento subjetivo cumprirá dizer que esta é sempre indireta (não havendo confissão) e deve ser extraída dos demais elementos existentes nos autos e das regras da normalidade e da experiência comum.
Todavia, considerando a dinâmica dos factos, o Tribunal não teve dúvidas de que tais factos são verdadeiros e que era intenção dos arguidos os praticar, bem sabendo que tal conduta lhes estava legalmente vedada.
Ora, provou-se que os arguidos BB e AA eram, à data, os gerentes de facto da sociedade. Sendo gerentes têm como função, além do mais, em representação da sociedade arguida, de pagar os respetivos impostos, entregando as respetivas declarações e liquidando o imposto correspondente.
É da responsabilidade do gerente a entrega de tais declarações e, bem assim, a conformidade das mesmas com os trabalhos e despesas que a sociedade arguida teve.
Se um gerente declara despesas que não teve, utilizando para o efeito faturas falsas é evidente que, em algum momento, decidiu praticar tais operações tributárias.
Tais operações não têm outro fim que não o de reduzir a carga fiscal, tendo os arguidos optado por utilizar o expediente das faturas falsas que são um meio idóneo a reduzir a carga fiscal, já que são introduzidas como despesas da sociedade.
O Tribunal considerou que foi o arguido AA o autor do plano e que apenas o transmitiu a BB porquanto foi aquele que assinou todos os cheques conexionados com tais faturas (tendo o valor de parte deles sido depositado na conta bancária do seu filho menor) e todo o expediente de faturação falsa apenas se iniciou após a outorga de poderes àquele para atuar como gerente da sociedade.
Por outras palavras, desde 1980 (data da constituição da sociedade arguida) até a outorga da procuração, em ..., a sociedade arguida não foi suspeita nem esteve conexionada com qualquer prática fraudulenta com vista a evitar a carga fiscal.
Todavia, após ..., mais concretamente em 2005, foi quando o referido expediente começou a ser utilizado.
Note-se que os arguidos usaram faturas falsas, ie., faturas que não correspondem a quaisquer serviços prestados, na sua contabilidade com vista, de modo inequívoco, a obter benefícios económicos que sabiam ser ilegítimos, o que conseguiram, causando, dessa forma, prejuízo ao Estado.
De facto, a vontade de realização dos factos é manifesta e resulta das regras de experiência comum: quem se propõe a registar na contabilidade faturas que sabe serem forjadas, criando, na Administração Tributária, a convicção de que tais dados são verdadeiros, o faz porque quer obter benefícios a que sabia não ter direito e, bem assim, causar prejuízo ao Estado, já que sabe que os serviços discriminados nas faturas em questão não correspondiam a quaisquer prestações de serviços realizadas.
Resulta da consciência generalizada de todos os cidadãos, do cidadão médio que usar expediente com vista a «fugir» aos impostos é crime. Por outras palavras, qualquer pessoa sabe que não pode declarar fiscalmente falsos custos, criando, para o efeito, um estratagema com vista a obter benefícios económicos indevidos, prejudicando o erário público.
Os arguidos, pessoas singulares, crê-se que se situam nessa mediania, pelo que ao aturarem da forma descrita o fizeram com vontade intencionalmente direcionada, de forma consciente e com pleno conhecimento da ilicitude penal dos seus comportamentos, em representação da sociedade arguida, pelo que, resultam, assim, provados, os factos n.ºs 6 a 9 e 21 a 27.
Os factos n.ºs 31 a 41, 42 a 50 e 51 a 58, referentes às condições pessoais e socioeconómicas dos arguidos sociedade, BB e AA, respetivamente, encontram-se demonstradas com base nas Informações da Segurança Social, Registo Automóvel, Registo Predial e ..., constantes a fls. 2163 a 2210.
Com efeito, em virtude de os arguidos pessoas singulares não terem comparecido à audiência de julgamento, não permitindo, assim, ao Tribunal apurar da sua situação económica e porque o Tribunal não pode ficar numa situação de non liquet, determinou-se a realização de pesquisas nas bases de dados, o que culminou com a informação referida.
Quanto à ausência de antecedentes criminais, os mesmos resultam provados da consulta do certificado do registo criminal dos arguidos sociedade, BB e AA, a fls. 2211 a 2213, respetivamente, estando assim demonstrado o facto n.º 59 a 61.
O facto B, referente à não existência de trabalhadores inscritos, encontra-se não provado pelo documento de fls. 1142 a 1144, do Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, porquanto resulta de tal documento a listagem de trabalhadores inscritos como sendo da referida sociedade ..., durante o ano de 2005.
O facto C, quanto à assinatura dos cheques por BB, encontra-se não provado por análise dos cheques em apreço, donde é possível visualizar que não consta a assinatura deste arguido, inclusive por comparação, por exemplo, aos contratos de trabalho juntos a fls. 2107 a 2116v.
O facto D, resulta não provado porquanto analisada a informação do ... a fls. 995, resulta a informação de que o referido cheque foi depositado numa conta titulada por QQQ.
Por fim, cumpre apenas realizar as considerações que se seguem quanto ao relatório de inspeção e à prova obtida no âmbito da inspeção.
Com efeito, pela defesa, foi invocado o Acórdão do Tribunal Constitucional n º 298/2019 de 15 de maio de 2019, que decidiu «Julgar inconstitucional, por violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, ínsito no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República portuguesa, a interpretação normativa dos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), 125.º e 126.º, n.º 2, alínea a), todos do Código de Processo Penal, segundo a qual os documentos fiscalmente relevantes obtidos ao abrigo do dever de cooperação previsto no artigo 9.º, n.º 1, do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira e no artigo 59.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária por uma inspeção tributária realizada a um contribuinte, durante a fase de inquérito de um processo criminal pela prática de crime fiscal movido contra o contribuinte inspecionado e sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente, podem ser utilizados como prova no mesmo processo;»[…] , com vista a afastar a prova que foi recolhida pela inspeção tributária.

O Tribunal entende que os documentos obtidos na atividade de fiscalização tributária podem e devem ser valorados pelo Tribunal, não sendo um método proibido de prova.
Com efeito, o direito à não autoincriminação, que esteve na origem do acórdão do Tribunal Constitucional abrange o direito ao silêncio e inclui os casos em que esteja em causa a prestação de informações, a entrega de documentos ou outras formas de colaboração do próprio suspeito ou arguido, impedindo soluções que façam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenação.
Por outras palavras, proíbe-se a prova que seja recolhida no âmbito da inspeção tributária em que o suspeito/arguido tenha sido compelido ao arguido, numa espécie de colaboração imposta deste.[…]
Na presente situação, inexiste qualquer elemento probatório que tenha sido obtido da referida forma, i.e., com aproveitamento duma colaboração imposta ao arguido.
Pelo que, entende-se que o Tribunal pode usar toda a prova junta aos autos, inclusive a resultante da inspeção tributária.
[…]»
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b)-Da natureza do despacho que comunicou a alteração factual (refª 50148738) e das exigências de fundamentação:
A questão ora enunciada não está contida no objeto recursório conforme delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, apesar de sobre tal temática os recorrentes terem discorrido no requerimento de defesa apresentado ante o anúncio pelo tribunal a quo da alteração factual (cfr. refª 4232226).
Na verdade, o despacho recorrido de 02.07.2021 (refª 502267148) desdobra-se em vários segmentos – num dos quais esta temática foi também abordada -, mas não foi desse segmento que os recorrentes se mostram inconformados.
De todo o modo, tratando-se de questão de conhecimento oficioso e de modo a que não se diga que este tribunal não conheceu de todas as questões que lhe cumpre conhecer, aqui a abordamos de forma muito sintética.
Nos termos do artº 205º, nº 1, da CRP, «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei», conferindo-se assim ao legislador ordinário a conformação desse princípio basilar do Estado de Direito Democrático.
Por outro lado, a exigência de fundamentação é também um direito fundamental decorrente de um processo equitativo (due process of law na terminologia da jurisprudência norte-americana), consagrado entre nós no nº 4 do artº 20º da CRP («Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo») e ainda como garantia essencial no âmbito do processo criminal (nº 1 do artº 32º do mesmo diploma legal).
Tal exigência constitucional e direito fundamental prende-se com a possibilidade efetiva de sindicância das decisões judiciais e com a necessidade de convencer os destinatários e cidadãos em geral da sua correção.
Dispõe o nº 1 do artº 358º do CPP que «Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.»
Tal despacho não é um ato decisório, pois não se ajusta ao disposto na al. b) do nº 1 do artº 97º do CPP.
Com efeito, além do mais, os atos decisórios dos juízes tomam a forma de despachos quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou, não se tratando de sentença, que ponha termo ao processo.
Não é o caso dos autos.
O despacho em causa não está por isso sujeito ao dever de fundamentação nem à interposição de recurso (nem é dele que os arguidos recorrem, aliás. Recorrem, além do mais, do ato decisório onde tal factualidade está incluída, isto é, a sentença de 30.03.2023).
Assim, com referência ao despacho que comunica a alteração factual, basta que o tribunal, de forma genérica, refira que a alteração comunicada resulta da discussão da causa, sem que tenha de indicar sequer as concretas provas que determinaram aquela comunicação.
De outro modo estar-se-ia a exigir como que uma pré-fundamentação da convicção do tribunal acerca da factualidade comunicada, exigência de fundamentação essa que seria desadequada na medida em que uma tal comunicação tem na sua base um juízo que é necessariamente provisório – não definitivo -, tratando-se antes de uma possibilidade que é comunicada ao arguido nos termos do nº 1 do artº 358º do CPP e de modo a facultar-lhe o contraditório e evitar a tomada de uma decisão surpresa na sentença com a inclusão da novel factualidade.
E tal assim se compreende, pois, doutra forma, o exercício do direito de defesa seria meramente formal e sem qualquer resultado prático, pelo que as alterações factuais comunicadas não tem necessariamente de vir a ter respaldo na sentença a proferir.
Neste sentido pode ver-se, entre muitos outros, Sandra Oliveira e Silva e Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, vol. II, 5ª ed. atualizada, UCP Editora, junho de 2023, pág. 413; e ainda Pedro Soares Albergaria, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, 2ª ed., Almedina, setembro de 2023, pág. 650.
Não há assim, em boa verdade, a esse respeito, qualquer questão relevante que cumpra conhecer.
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c)-Da natureza da alteração factual comunicada aos arguidos:
Também aqui os recorrentes não discutem essa matéria, pelo que cai fora do objeto recursório, nem mesmo no recurso da sentença proferida a 30.03.2023, onde a mesma se mostra incluída no acervo factual dado como provado.
De todo o modo, caso se entenda que estamos perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia – posicionamento que os arguidos/recorrentes já manifestaram nos autos, mas não no presente recurso -, estando a mesma incluída na sentença recorrida, esta seria nula por força do disposto na al. b) do nº 1 do artº 379º do CPP.
É por isso questão de conhecimento oficioso, ainda que extravase o objeto recursório, e que de seguida abordaremos de forma muito sucinta.
A acusação e a pronúncia – que delimitam o objeto do processo -, apresentam um quadro factual de uma fraude fiscal clássica e que consiste no seguinte:
Aparentemente, a sociedade “...”, não declarante para efeitos fiscais [ou alguém, com acesso ao seu livro de faturas, fazendo-se passar por ela], não obstante não ter fornecido qualquer material ou prestado qualquer serviço de construção civil à sociedade arguida “CC”, emitiu várias faturas (falsas) a favor desta última, que as integrou na sua contabilidade com o fito de assim incrementar ficticiamente os seus custos de laboração, diminuindo por essa via a base tributária do imposto de IRC, causando o inerente prejuízo à AT em sede de IRC relativo ao ano de 2005 por diminuição do imposto apurado (números redondos, cerca de €39.000,00).
Para dar a aparência de que à emissão de tais faturas corresponderam os necessários pagamentos, a sociedade arguida – através dos seus sócios de direito e/ou de facto – emitiram os correspondentes cheques. Todavia, a quantia neles titulada nunca saiu ou, tendo saído, retornou à sua esfera de disponibilidade, ainda que por intermédio de terceiras pessoas.
Ora, a alteração factual comunicada circunscreve-se ao objeto processual dos presentes autos na medida em que se reporta à mesma realidade histórica, ao mesmo “pedaço de vida”, apenas com a nuance de os cheques emitidos em nome da sociedade arguida terem sido assinados – segundo a novel factualidade comunicada - pelo arguido RRR e/ou por pessoa cuja identidade não se apurou.
Não estamos por via disso, claramente, no domínio de uma alteração substancial dos factos tal como descritos na acusação/pronúncia, pois dela não deriva a imputação de crime diverso ou o agravamento dos limites máximos da sanção aplicável [cfr. a al. f) do artº 1º do CPP, segundo o qual, considera-se «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis»].
O termo crime tem como referente a ação ou omissão previamente declarada punível e cujos pressupostos devem estar fixados em lei anterior ou que seja considerada criminosa segundo os princípios gerais de direito internacional comummente reconhecidos (cfr. artº 29º, nºs 1 e 2, da Constituição). Todavia, tal termo não deve ser interpretado literalmente, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, independentemente da sua qualificação jurídica, ou, dito doutro modo, como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime.
Como é bom dever, no caso dos autos, movemo-nos sempre na mesma realidade histórica e, portanto, no domínio do mesmo crime de fraude fiscal reportado ao IRC de 2005.
Trata-se assim, em boa verdade, de uma não-questão que dispensa maiores desenvolvimentos.
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d)-Dos meios de prova requeridos pelos arguidos/recorrentes ante a comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação/pronúncia:
No recurso da sentença proferida a 30.03.2023, tendo presente o disposto no nº 3 do artº 407º do CPP, os arguidos manifestaram ainda o interesse em que este tribunal aprecie o recurso do despacho de 02.07.2021.
É o que faremos de seguida.
Os recorrentes, tendo sido notificados nos termos do nº 1 do artº 358º do CPP requereram o prazo de 10 dias para apresentação de defesa, prazo esse que lhes foi concedido.

Por consequência, nessa sequência, além do mais, através do requerimento com a refª 4232226, vieram requerer diversos meios de prova, a saber(transcrição):
«I–Notificação ao IMPIC para informar se para a sociedade ..., NIF ..., foi detentora do Título de Registo nº. …, no período compreendido entre .../.../2005 e .../.../2010, que lhe permitia o exercício da actividade de construção em trabalhos e obras, enquadradas nas habilitações de armaduras para betão armado, alvenarias, rebocos e assentamento de cantarias.
II–Prova pericial sobre o seguinte objecto, a título de amostra, dada a extensão da prova documental em causa – protestando juntar as cópias dos documentos em causa, já juntos aos Autos, mas de modo a permitir a sua melhor e devida identificação:
1–É do punho de algum dos Arguidos a letra e assinatura do cheque de fls. 53 que acompanha a remessa para pagamento das facturas nºs. … e …, no valor de € 46.420,40, sacado sobre o ...?
2–É do punho de algum dos Arguidos a letra do lançamento contabilístico que ali consta?
3–É do punho de algum dos Arguidos a rúbrica do respectivo documento de pagamento?
4–É do punho de algum dos Arguidos a letra e assinatura do cheque de fls. 52 que acompanha a remessa para pagamento das facturas nºs. 254 e 266, no valor de € 16.434,72, sacado sobre o ...?
5–É do punho de algum dos Arguidos a letra do lançamento contabilístico que ali consta?
6–É do punho de algum dos Arguidos a rúbrica do respectivo documento de pagamento?
7–É do punho de algum dos Arguidos a letra e assinatura do cheque de fls. 51 que acompanha a remessa para pagamento da factura nº. …, no valor de € 17.132,50, sacado sobre o ...?
8–É do punho de algum dos Arguidos a letra do lançamento contabilístico que ali consta?
9–É do punho de algum dos Arguidos a rúbrica do respectivo documento de pagamento?
10–É do punho de algum dos Arguidos a letra e assinatura do cheque de fls. 45 que acompanha a remessa para pagamento da factura nº. …, no valor de € 9.039,53, sacado sobre o ...?
11–É do punho de algum dos Arguidos a letra do lançamento contabilístico que ali consta?
12–É do punho de algum dos Arguidos a rúbrica do respectivo documento de pagamento?

III–Arrola a seguinte testemunha:
- DD, a notificar junto da sede da CC.»
Quanto a esse segmento do requerimento em apreço, recordemos o que foi decidido pelo tribunal a quo (transcrição):

«C.–Quanto às diligências probatórias requeridas
Os arguidos requerem, ainda, a produção dos seguintes meios de prova, na sequência da alteração:
a)- Notificação do IMPIC para informar se a sociedade ... foi detentora do título de registo n.º …, no período compreendido entre ........2005 e ........2010, que lhe permitia o exercício da atividade de construção em trabalhos e obras, enquadrados nas habilitações de armaduras para betão armado, alvenarias, rebocos e assentamento de cantarias;
b)- Prova pericial à letra, assinatura, rúbrica constantes dos cheques de fls. 53, 52, 51 e 35.
c)- Inquirição da testemunha DD.
O pedido de produção de meios de prova, na sequência da comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, tem de ser acompanhado da respetiva justificação, para os efeitos do artigo 340.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.[…]
Com efeito, determina tal normativo que: «[o]s requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a)- As provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa;
b)- As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c)- O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d)- O requerimento tem finalidade meramente dilatória.»

No presente caso,
Verifica-se que os arguidos não explanam qualquer razão pela qual vêm requerer, nesta sede, os referidos meios de prova, sendo certo que os mesmos já poderiam ter sido requeridos em momento anterior, não decorrendo, salvo melhor entendimento, de qualquer alteração que tenha sido comunicada pelo Tribunal.
Com efeito, no que respeita à prova pericial solicitada, verifica-se que, neste âmbito, que já constava da acusação a referência à assinatura pelos arguidos dos cheques em causa, sendo que o Tribunal não procedeu a qualquer alteração no sentido de imputar a quem não constava na acusação como autor de tal ato.
Pelo que, se entende, quanto a esta diligência probatória que a mesma já poderia ter sido requerida em momento anterior, sendo que o Tribunal não considera que a mesma seja indispensável para a descoberta da verdade e boa decisão da causa tendo em consideração toda a demais prova junta aos autos, nomeadamente, a informação bancária referente às pessoas autorizadas a emitir cheques e a cópia das respetivas fichas de assinatura.
Quanto à inquirição da testemunha DD, não foi explicitado porque razão se tornou necessária a inquirição da mesma nesta sede, sendo certo que nenhuma testemunha se referiu a esta pessoa, pelo que, se entende, igualmente, que esta inquirição já poderia ter sido requerida, não advindo a necessidade da sua inquirição de qualquer alteração.
Por fim, quanto ao ofício ao IMPIC, verifica-se que o mesmo já se encontra junto aos autos, a fls. 1168, e, igualmente, a mesma.
Por todo o exposto, indeferem-se as diligências probatórias requeridas, por já puderem ter sido requeridas em momento anterior e por, em parte, já constarem dos autos e não se revelarem necessárias nem indispensáveis para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa.»
*

Isto é, em síntese, estes meios de prova foram indeferidos no despacho recorrido com os seguintes argumentos:
- A informação a que se reporta o ponto I do requerimento já consta dos autos;
- A requerida perícia (ponto II do requerimento probatório) já poderia ter sido requerida anteriormente, designadamente na contestação;
- Os arguidos não explicam por que razão se tornou necessária a inquirição da testemunha DD.
Já vimos que tais meios de prova foram indicados na sequência da comunicação de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação/pronúncia e que havia sido feita pelo tribunal a quo ao abrigo do disposto no nº 1 do artº 358º do CPP.
O direito reconhecido ao arguido de requerer a produção de provas é decorrência do seu estatuto como sujeito processual e como emanação do princípio da plenitude das garantias de defesa [cfr. o nº 1 do artº 32º da CRP; e a al. g) do nº 1 do artº 61º do CPP].
Ora, não obstante os meios de prova indicados se tenham de subordinar à disciplina do artº 340º do CPP, não pode proceder o argumento de que os mesmos já poderiam ter sido indicados em momento anterior, mormente na contestação, nos termos do nº 1 do artº 311º-B do CPP (que correspondia ao nº 1 do artº 315º do CPP antes das alterações introduzidas àquele diploma legal pela Lei nº 13/2022, de 01.08).
Na verdade, ante a receção da comunicação a que alude o nº 1 do artº 358º do CPP – que de qualquer das formas dá um sinal indicativo daquilo que poderá vir a ser a convicção do tribunal quanto à factualidade comunicada -, na perspetiva dos arguidos, pode ocorrer a necessidade de mudança de estratégia de defesa, com a indicação de meios de prova que, pese embora pudessem já ter sido arrolados, haviam sido desconsiderados em face da acusação deduzida e dos meios de prova ali indicados, sendo certo que cabe ao MP o ónus da prova ante a presunção de inocência consagrada no nº 2 do artº 32º da CRP.
Isto é, ante tal comunicação, os arguidos podem ver-se compelidos a requerer meios probatórios antes desconsiderados por si como meio de contrariar a acusação, agora com as alterações factuais comunicadas.
De resto, nesse âmbito, a indicação de meios de prova não se pode considerar uma faculdade excecional, mas decorrência de um direito de defesa legalmente consagrado no nº 1 do artº 358º do CPP e, portanto, no domínio de um ritualismo processualmente regulado e que se distingue dos meios de prova apresentados já durante a audiência de julgamento tout court, tendencialmente excecionais, de modo a preservar a regularidade da tramitação processual, em particular se tais meios de prova não se afigurarem indispensáveis à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Isto significa que, no domínio do direito de defesa em consequência de uma comunicação da alteração factual não substancial efetuada pelo tribunal, a disciplina da sua admissibilidade não é tendencialmente tão restritiva como o seria se o requerimento probatório fosse apresentado na audiência de julgamento sem qualquer justificação para a sua apresentação naquele momento.
Haverá assim que distinguir se o requerimento probatório foi apresentado no decurso da audiência de julgamento sem que haja razão alguma para tal daqueloutra situação em que tal é efetuado ao abrigo do nº 1 do artº 358º do CPP.
De todo o modo, mesmo aqui, nem que seja por aplicação analógica do nº 4 do artº 340º do CPP, os meios de prova arrolados/indicados apenas deverão ser indeferidos se notoriamente forem irrelevantes ou supérfluos, inadequados, de obtenção muito duvidosa ou impossível, ou se se trata de expediente meramente dilatório.

Na verdade, no que respeita aos princípios gerais da produção de prova, dispõe o artº 340º do CPP o seguinte:
«1-O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2-Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.
3-Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4-Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a)-(Revogada.)
b)-As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c)-O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d)-O requerimento tem finalidade meramente dilatória.»
Sucede que a al. a) do nº 4 do artº 340º do CPP foi revogada pela al. c) do artº 14º da Lei nº 94/2021, de 21.12.
Tal evolução legislativa processual é de aplicação imediata nos termos do nºs 1 e 2, a contrario, do artº 5º do CPP.
Tal preceito dispunha que os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que «As provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.»
Isto é, por opção legislativa, o indeferimento de requerimentos probatórios deixou de poder ter como fundamento o facto de as provas requeridas já poderem ter sido indicadas em momento anterior (na acusação ou na contestação, consoante os casos).
Resta assim saber se as provas requeridas pelos recorrentes são notoriamente irrelevantes ou supérfluas,1 inadequadas,2 de obtenção muito duvidosa ou impossível,3 ou se se trata de expediente meramente dilatório.4
Ou, dito de outra forma, se as provas requeridas pelos arguidos/recorrentes, com referência ao objeto do processo, são relevantes ou idóneas em termos de se revelarem com aptidão probatória, no pressuposto normativo de que são legais (artº 126º do CPP).
Assim:
Com referência ao ponto I do requerimento probatório, uma vez que a informação pretendida já consta dos autos, trata-se de meio de prova redundante e, por esse motivo, notoriamente supérfluo, pelo que, nesse segmento, será de manter o despacho recorrido.
Mas não quanto à requerida perícia à letra, assinatura e rúbrica constantes dos cheques de fls. 53, 52, 51 e 35 e à inquirição da testemunha DD.
Na verdade, quanto a estes, não é notório que se tratem de meios de prova inidóneos tendo em conta o acervo factual objeto do processo (em que se discute também de quem é a assinatura dos cheques ali referenciados), ou que se trate de requerimento probatório com intuitos meramente dilatórios.
Quanto à inquirição da testemunha DD, se é certo que os recorrentes não indicam qual a sua razão de ciência, a verdade é que também não a tinham de indicar; e, se o tribunal a quo tinha dúvidas quanto a esse aspeto – apesar de à partida não ser notória a irrelevância da sua inquirição -, para tal aquilatar, cabe referir que estar-lhe-ia vedado um juízo antecipado do que seria o resultado da sua inquirição, sob pena de restrição inadmissível do direito de acesso ao tribunal por banda dos arguidos/recorrentes (nº 1 do artº 20º da CRP).
No limite, conforme sustentam os recorrentes, poderia o tribunal a quo ter pedido esclarecimentos aos arguidos acerca da razão de ciência de tal testemunha e, em face dos mesmos, decidir se tal meio de prova seria ou não inadmissível por algum dos motivos indicados nas als. b) a d) do nº 4 do artº 340º do CPP.
Como assim, procede parcialmente o recurso interlocutório, pelo que, regressando os autos a uma fase em que nem todos os meios de prova se acham produzidos [os indicados pelos arguidos quanto à prova pericial e testemunhal no requerimento sob a refª 4232226], deixa de ser necessário apreciar o recurso interposto da sentença proferida a 30.03.2023.
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III–Das custas

Dispõe o artº 513º do CPP o seguinte:
«1.Só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1ª instância e decaimento total em qualquer recurso.
2.O arguido é condenado em uma só taxa de justiça, ainda que responda por vários crimes, desde que sejam julgados em um só processo.
3.A condenação em taxa de justiça é sempre individual e o respetivo quantitativo é fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais.
4.[…]».
Assim, não tendo os arguidos decaído totalmente, não é por eles devido o pagamento de taxa de justiça.
***

DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes desembargadores desta 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso interlocutório interposto, revogando o despacho sob a refª 502267148, de 02.07.2021, na parte em que indeferiu a realização de perícia e a inquirição de uma testemunha, pelo que:
- determinam que o tribunal a quo profira novo despacho a deferir os suprarreferidos meios de prova;
- mantêm no mais o ali decidido (incluindo o despacho complementar de 06-07.2021, refª 50286878);
- determinam que, uma vez produzidos os meios de prova referidos (se possível perante a mesma Mmª juíza), que os autos sigam os seus legais trâmites, com a prolação de nova sentença, se entretanto não ocorrer qualquer facto que obste o conhecimento do mérito da causa;
- não apreciam o recurso interposto da sentença de 30.03.2023 (refª 53370354).
*
Sem tributação, por não ser devida [cfr. ponto III supra].
*
Registe e notifique (artº 425º, nºs 3 e 6, do CPP).
*


Lisboa, 20 de junho de 2024.



(Texto processado por computador, composto e revisto pelo 1º signatário)


Os Juízes Desembargadores,

José Castro - (relator)
Carla Carecho - (1ª adjunta)
Renata Whytton da Terra - (2ª adjunta)


(Assinaturas eletrónicas no canto superior esquerdo da 1ª página)




1.Se respeitantes, por exemplo, a factos públicos e notórios.
2.Isto é, inapto a demonstrar ou a indemonstrar certo facto, segundo os ensinamentos seguros da ciência ou da experiência da vida.
3.Quando, por exemplo, se encontrem em local desconhecido ou inacessível.
4.Com o intuito deliberado de prejudicar o regular andamento do processo