DÍVIDA DE CÔNJUGES
COMUNICABILIDADE
EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA
ACÇÃO CÍVEL
INCIDENTES DA INSTÂNCIA
Sumário

(do relator):
1. Relativamente a dívidas de cada um dos cônjuges, a nossa ordem jurídica estabelece uma primeira regra geral segundo a qual, qualquer dos cônjuges tem legitimidade para contrair dívidas sem o consentimento do outro (n.º 1, do art.º 1690.º, do C. Civil), uma segunda regra geral, decorrente da primeira, segundo a qual a responsabilidade dessas dívidas é do cônjuge que as contrai (art.º 1692.º, do C. Civil) e uma terceira regra geral segundo a qual a responsabilidade das dívidas contraídas por um só dos cônjuges é extensível ao cônjuge que as não contrai nos casos tipificados na lei (art.º 1692.º e al. d), do art.º 1691.º, do C. Civil).
2. Sobre o titular de um crédito que pretende exercer o seu direito de ressarcimento coercivo também sobre o cônjuge não contraente, impende o ónus da prova dos factos que integram qualquer desses fundamentos legais de responsabilização do cônjuge não contraente, nos termos gerais previstos no n.º 1, do art.º 342.º, do C. Civil.
3. No cumprimento de tal ónus poderá o titular ativo de dívida contraída por um dos cônjuges exercer coercivamente o seu direito também sobre o outro cônjuge demandando-o em ação declarativa, como poderá ainda demandá-lo na ação executiva, deduzindo o incidente de comunicabilidade previsto no art.º 741.º, do C. P. Civil, que tem a natureza de uma ação declarativa enxertada na ação executiva, permitindo a execução de um direito ainda não declarado em abono dos princípios obrigacionais favor negotii e favor creditoris e do principio processual da celeridade da execução, com petição, citação, contestação, audiência com produção de prova, alegações e sentença, nos termos do regime processual estabelecido pelos art.ºs 741.º e 292.º a 295.º, do C. P. Civil.   

Texto Integral

Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO.
No âmbito da execução requerida contra PS em que o título executivo é um cheque por este emitido, o exequente, BMS deduziu incidente de comunicabilidade da dívida, nos termos do disposto no art.º 741º do C. P. Civil, contra AMS, que foi casada com o executado com fundamento, para além do mais, em que a quantia exequenda foi contraída pelo executado e pela requerida na vigência do casamento, no regime de comunhão de adquiridos, tendo integrado o património comum do casal e tendo sido utilizada em proveito comum.
Citada, contestou o R dizendo, em síntese, que o casamento foi dissolvido por divórcio ocorrido em 17/03/2016 tendo o património conjugal sido partilhado em 21/06/2016, não tendo a requerida tirado qualquer proveito da dívida,
Após o tribunal a quo proferiu decisão, julgando improcedente o pedido de comunicabilidade formulado pelo exequente contra a requerida.
Inconformado com essa decisão, o exequente dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
A) A dívida contraída foi em proveito comum do casal, altura dos factos casados na comunhão de adquiridos;
B) Este negócio foi, e é, desde sempre o único rendimento do agregado familiar, isto é, o único rendimento de trabalho de ambos, quer enquanto cônjuges, quer enquanto ex-cônjuges;
C) O divórcio entre eles foi simulado como mecanismo de blindagem patrimonial.
D) Com o intuito de proteger o devedor, ora Executado, dos efeitos de uma eventual execução.
E) Tratou-se de um divórcio consensual do casal e, consequente partilha absolutamente desproporcional dos bens como se afere pelo o documento junto pela citada, verificando-se tal somente para proteger o Executado de uma eventual execução.
F) Há uma transferência fictícia do património comum do casal para um dos cônjuges, no momento da partilha dos bens, apenas com a finalidade de lesar o credor, ora Exequente, nomeadamente, a casa de mora da de família e a respetiva quota da Sociedade “AS”.
G) Até porque os ex-cônjuges continuaram a residir no mesmo endereço, a trabalharem juntos, ele como seu empregado e ela como sua entidade empregadora como se afere da prova produzida.
H) Mantendo-se o negócio até aos dias de hoje.
*
A apelada contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS.

O Tribunal a quo julgou:
A.1. Provados os seguintes factos:
1. No dia 22-01-2016, BMS instaurou execução contra PS para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo ordinário, apresentando como título executivo o cheque com o n.º 1201707613, emitido a 16-09-2014, assinado e entregue pelo executado, sacado sobre o BES, no valor de €35.000,00 (cfr. requerimento executivo e título junto ao requerimento executivo).
2. No requerimento executivo, o exequente alegou, designadamente, o seguinte:
«O Exequente e o Executado mantiveram, até Setembro de 2014, uma parceria, designada por "LM", na qual distribuíram os lucros e despesas de comercialização e montagem de equipamentos de motos Harley Davidson, bem como pelas manutenções, intervenções e transformações efetuadas nessas motos.
Para o exercício dessa atividade, o Exequente e o Executado utilizavam um espaço dividido em oficina e em loja para exposição de motos e equipamentos para venda da marca Harley Davidson.
Exequente e Executado equiparam a oficina com todo o material necessário à reparação, intervenção e transformação de motos Harley Davidson. O material exposto na loja, para venda ao público, era adquirido pelo Exequente e pelo Executado.
Exequente e Executado estavam coletados em nome individual.
Em Setembro de 2014, Exequente e Executado acordaram pôr termo à parceria referida, acordando assim que o Executado pagaria ao Exequente pela sua quota-parte dessa parceria a quantia de €35.000,00.
Como o Executado não tinha disponível no imediato a verba de €35.000,00, começou por amortizar a mesma em prestações mensais, iguais e sucessivas de €1.000,00.
Nos dias 1 e 31 de Outubro de 2014, o Executado depositou em conta titulada pelo Exequente, respetivamente, a quantia de €1.000,00 (€2.000,00 no total). Contudo, a partir dessa última data não efetuou mais nenhum pagamento.
Para garantia do cumprimento do pagamento da referida quota-parte da parceria, o Executado entregou ao Exequente o cheque nº 1201707613, datado de 16/09/2014, no valor de €35.000,00, do BES, conforme doc. nº. 1 que ora se junta.
Tendo o Executado deixado de proceder ao pagamento das referidas prestações de €1.000,00, apesar de todas as diligências operadas junto do Dignº. Mandatário do mesmo, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.
Mais ainda, o Executado entrou em incumprimento pelo que estão reunidas as condições para acionar a referida garantia do pagamento, o supra mencionado cheque.
O referido cheque constitui título executivo, como mero quirógrafo, pois todos os factos descritos, nomeadamente a relação causal ou subjacente estão dadas como factos assentes na sentença proferida pelo J16 da Inst. Local - Seção Cível da Comarca de Lisboa, conforme doc. nº 2 que ora se junta.
Existe assim uma obrigação pecuniária reconhecida em ação de processo comum que correu termos na Inst. Local - seção Cível - J16 da Comarca de Lisboa.
Deve, pois, o Executado ao Exequente a quantia total de €33.000,00, a que acrescem juros de mora vencidos até à presenta data que perfazem 1.980,00€ e ainda os juros vincendos até integral pagamento à taxa legal de 4%.». (cfr. requerimento executivo).
3. O executado e a requerida MAS casaram um com o outro a 15-09-2007, no regime da comunhão de adquiridos (cfr. documentos n.ºs 1 e 2 juntos à contestação).
4. Em Janeiro de 2015, o exequente instaurou contra o executado ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, que correu termos na Comarca de Lisboa, Lisboa – Instância Local – Secção Cível – J16, sob o n.º …/15.3T8LSB, na qual peticionou a condenação do executado no pagamento da quantia de €35.000,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento e da quantia de €15.000,00, a título de indemnização, a qual veio a ser julgada integralmente improcedente, mediante sentença proferida a 16-07-2015, transitada em julgado a 12-10-2015 (cfr. certidão junta a 22-04-2019 ao apenso A).
5. Mediante a AP. 1/20150615 foi registada a constituição da sociedade ASSU LIMITADA, com sede na Rua …, Prior Velho, com o objeto “Loja e oficina de reparação, customização e comércio de motos e seus acessórios”, sendo designada gerente a ora requerida (cfr. informação do registo comercial junta a 10-10-2022 na execução).
6. A requerida e o executado divorciaram-se a 17-03-2016 (cfr. documento n.º 1 junto à contestação).
7. Mediante escritura lavrada a 21-06-2016, a fls. 45 a 47 verso, do Livro n.º 69-A, do Cartório Notarial a cargo da Notária RV, a requerida e o executado efetuaram partilha, por divórcio (cfr. documento n.º 3 junto à contestação).


B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pelo apelante consiste, tão só, em saber se a quantia exequenda corresponde a dívida contraída em proveito comum do casal formado pelo executado e pela requerida, que na data da mesma dívida eram casados em comunhão de adquiridos.
Conhecendo.
Como resulta da matéria de facto declarada provada pelo tribunal a quo, acima descrita e que se não mostra impugnada, a quantia exequenda corresponde a uma obrigação monetária cartular, constante de um cheque emitido pelo executado e entregue ao exequente em16/09/2014 (facto provado sob o n.º 1), data em que o executado era casado com a requerida no regime da comunhão de adquiridos (factos sob os n.ºs 3 e 6).
Pretende o exequente apelante que, embora se trate de obrigação cartular de que apenas o executado é sujeito passivo pois o cheque foi por ele emitido, a requerida se encontra também obrigada ao seu pagamento, uma vez que, como membro de sociedade conjugal com o executado, dela retirou proveito.
Importa antes de mais referir que a proposição de proveito por parte da requerida apelada se não estrutura em factos, sendo antes uma presunção que o exequente apelante estabelece a partir do facto, que é o casamento entre o executado e a requerida no regime supletivo de bens, de comunhão de adquiridos.
Ora, o recurso a tal presunção não é legalmente admissível, como resulta do disposto no n.º 3, do art.º 1691.º, do C. Civil, segundo o qual “O proveito comum do casal não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar”, uma vez que se não vislumbra, nem a apelante invoca, previsão legal que declare tal presunção.
Tendo em atenção que relativamente a dívidas de cada um dos cônjuges a nossa ordem jurídica estabelece uma primeira regra geral segundo a qual, qualquer dos cônjuges tem legitimidade para contrair dívidas sem o consentimento do outro (n.º 1, do art.º 1690.º, do C. Civil), uma segunda regra geral, decorrente da primeira, segundo a qual a responsabilidade dessas dívidas é do cônjuge que as contrai (art.º 1692.º, do C. Civil) e uma terceira regra geral segundo a qual a responsabilidade das dívidas contraídas por um só dos cônjuges é extensível ao cônjuge que as não contrai nos casos tipificados na lei (art.º 1692.º e al. d), do art.º 1691.º, do C. Civil), sobre o titular de um crédito que pretende exercer o seu direito de ressarcimento coercivo também sobre o cônjuge não contraente, impende o ónus da prova dos factos que integram qualquer desses fundamentos legais de responsabilização do cônjuge não contraente, nos termos gerais previstos no n.º 1, do art.º 342.º, do C. Civil.
No cumprimento de tal ónus poderia o exequente apelante ter demandado a requerida na ação declarativa a que se reporta o facto provado sob o n.º 4 da respetiva espécie da sentença, como poderia ainda ter demandado a requerida nos termos em que o fez nesta ação executiva, deduzindo o incidente de comunicabilidade previsto no art.º 741.º, do C. P. Civil, que tem, afinal, a natureza de uma ação declarativa enxertada na ação executiva, permitindo a execução de um direito ainda não declarado, em abono dos princípios obrigacionais favor negotii e favor creditoris e do principio processual da celeridade da execução, com petição, citação, contestação, audiência com produção de prova, alegações e sentença, como decorre do regime processual estabelecido pelos art.ºs 741.º e 292.º a 295.º, do C. P. Civil.    
Como decorre do antes exposto, o apelante não deu cumprimento ao ónus que sobre ele impende de alegar e provar os factos em que se possa estruturar a comunicabilidade da divida exequenda a que se reportam as conclusões A) e B) da apelação, nem em ação declarativa, tout court, nem no incidente de natureza declarativa em que se integra esta apelação, como também não deu cumprimento ao ónus de alegar e provar os factos que integram, grosso modo, a simulação dos atos a que se reportam as conclusões C) a H) desta mesma apelação.
Nestas circunstâncias processuais, falecendo nos autos os factos que integrem o alegado proveito comum do casal que foi formado pelo executado e pela requerida não pode deixar de improceder esta questão única da apelação e com ela a própria apelação.  

C) SUMÁRIO
1. Relativamente a dívidas de cada um dos cônjuges, a nossa ordem jurídica estabelece uma primeira regra geral segundo a qual, qualquer dos cônjuges tem legitimidade para contrair dívidas sem o consentimento do outro (n.º 1, do art.º 1690.º, do C. Civil), uma segunda regra geral, decorrente da primeira, segundo a qual a responsabilidade dessas dívidas é do cônjuge que as contrai (art.º 1692.º, do C. Civil) e uma terceira regra geral segundo a qual a responsabilidade das dívidas contraídas por um só dos cônjuges é extensível ao cônjuge que as não contrai nos casos tipificados na lei (art.º 1692.º e al. d), do art.º 1691.º, do C. Civil).
2. Sobre o titular de um crédito que pretende exercer o seu direito de ressarcimento coercivo também sobre o cônjuge não contraente, impende o ónus da prova dos factos que integram qualquer desses fundamentos legais de responsabilização do cônjuge não contraente, nos termos gerais previstos no n.º 1, do art.º 342.º, do C. Civil.
3. No cumprimento de tal ónus poderá o titular ativo de dívida contraída por um dos cônjuges exercer coercivamente o seu direito também sobre o outro cônjuge demandando-o em ação declarativa, como poderá ainda demandá-lo na ação executiva, deduzindo o incidente de comunicabilidade previsto no art.º 741.º, do C. P. Civil, que tem a natureza de uma ação declarativa enxertada na ação executiva, permitindo a execução de um direito ainda não declarado em abono dos princípios obrigacionais favor negotii e favor creditoris e do principio processual da celeridade da execução, com petição, citação, contestação, audiência com produção de prova, alegações e sentença, nos termos do regime processual estabelecido pelos art.ºs 741.º e 292.º a 295.º, do C. P. Civil.   

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 20-06-2024
Orlando Santos Nascimento
Vaz Gomes
José Manuel Monteiro Correia