PRIVAÇÃO DE USO
IMÓVEL
RESPONSABILIDADE CIVIL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário

I – A privação de uso de bem imóvel, sendo um facto ilícito, “configurará também um dano indemnizável se puder concluir-se que o titular do respectivo direito se propunha aproveitar e tirar partido das vantagens ou utilidades que lhe são inerentes, só o não fazendo por disso estar impedido em virtude do facto ilícito. Para tanto, bastará, […], que os factos adquiridos para o processo mostrem que o lesado usaria normalmente a coisa.”
II – O que não acontece quando se trata de uma fracção imóvel que estava entaipada com tijolo e cimento há mais de 15 meses à data da ocupação, a aguardar obras para então ser arrendada, obras que não se mostra que já estivessem programadas.
III – Não obstante a improcedência do pedido da quantia com base na responsabilidade civil, ela podia proceder com base no enriquecimento sem causa, se se tivessem provado os respectivos pressupostos, entre eles o de um enriquecimento.
IV – O enriquecimento não pode ser uma simples bagatela, como no caso, em que a ocupação de um imóvel, a aguardar obras, não programadas e com um valor de renda mensal alegada de 169,18€ (se estivesse em condições), só ocorreu durante um curto período de tempo, não concretizado.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

A 02/03/2022, IHRU-IP, intentou a presente acção declarativa comum contra M pedindo a condenação da ré a: reconhecer o direito de propriedade do autor sobre o imóvel que ocupa; restituir o imóvel ao autor livre e devoluto de pessoas e bens; pagar ao autor uma indemnização no valor de 4.906,22€ com juros de mora à taxa legal contados a partir da citação, bem como numa quantia mensal de 169,18€ até efectiva entrega do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens ao autor.”
Alegou, para tanto, e em síntese, que é dono de uma fracção autónoma de um edifício; a fracção encontrava-se devoluta e entaipada com tijolo e cimento, desde 17/08/2018, a aguardar a realização de obras de reabilitação, as quais, uma vez concluídas, permitiriam atribuir a fracção em regime de arrendamento para habitação a uma família carenciada; em 05/11/2019, uma moradora daquele edifício comunicou ao autor que havia ocorrido uma tentativa de ocupação da fracção; em 11/11/2019, o autor recebeu uma outra comunicação da mesma moradora a informar que a fracção havia sido efectivamente ocupada, destruída a fechadura e substituída por outra para aceder ao seu interior; em consequência, o autor participou a ocupação e solicitou a colaboração da PSP para identificação dos ocupantes da habitação; no dia 13/11/2019, a ré deslocou-se às instalações do autor e declarou “Ocupei uma casa da vossa instituição por motivo de estar a sair de uma habitação arrendada o senhorio quer a casa. Ocupei, pois os meus rendimentos e do meu marido não dão para alugar outra (…).” Entretanto, o autor recebeu a resposta por parte da Polícia Municipal de Lisboa, confirmando a identificação da ocupante, tratando-se de família em processo de divórcio, composta por quatro filhos, com idades compreendidas entre 1 e 8 anos de idade; pese embora as intimações que lhe foram dirigidas nesse sentido, designadamente por carta datada de 20/12/2021, a ré recusa-se a desocupar o prédio, onde permanece até à presente data, sem que para tal tenha obtido qualquer autorização ou consentimento do autor; a ré ocupa, assim, ilegalmente o imóvel, o que tem naturalmente causado prejuízos ao autor; cabe ao autor, no âmbito das competências que lhe foram atribuídas, dar de arrendamento imóveis da sua propriedade a pessoas carenciadas (DL 175/2012, de 02/08); o autor está impedido, pela conduta ilícita da ré, de cumprir a missão de interesse público que lhe foi atribuída e de receber as rendas a que tem direito por força da celebração de um novo contrato de arrendamento; tais prejuízos poderão ser calculados em 4.906,22€ (correspondentes a 29 meses decorridos desde Novembro de 2019), multiplicados pelo valor locativo mensal de 169,18€.
A ré contestou, em síntese, excepcionando que já não ocupa o imóvel e impugnando: não foi a sua conduta que privou o autor de dar o imóvel de arrendamento; conclui pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
Depois da audiência final foi proferida sentença em que se decidiu reconhecer o autor como proprietário da fracção autónoma em causa e condenar a ré a restitui-la ao autor, livre e devoluta de pessoas e bens, absolvendo-a do mais peticionado.
O IHRU recorre desta sentença – para que seja revogada na parte em que julgou improcedente o pedido de indemnização e substituída por outra que o julgue procedente ou relegue a quantificação do valor da mesma para incidente de liquidação de sentença -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões [que se transcrevem, omitindo apenas algumas das muitas repetições]:
1\ A sentença recorrida reconheceu que a ré ocupa ilegalmente o fogo reivindicado pelo autor, tendo-a condenando na sua restituição livre e devoluto de pessoas e bens, mas julgou improcedente o pedido de indemnização formulado, por considerar que o imóvel reivindicado “(…) não era passível de ser usado (…)” por estar a aguardar obras para posterior atribuição em regime de arrendamento a uma família carenciada.
2\ A decisão sob recurso enferma, assim, de erro de julgamento ao negar ao autor, o direito à indemnização peticionada (ou outra) pela privação de uso enquanto persistir a situação (já reconhecida) de ocupação ilícita que a ré vem fazendo do imóvel reivindicado.
3\ O autor é um serviço personalizado do Estado que tem, entre outras competências, a de dar de arrendamento a pessoas carenciadas, imóveis da sua propriedade, cobrando rendas calculadas de acordo com o citado dispositivo legal e tendo em conta os rendimentos das pessoas em causa (cf. artigos 2 e 3 do DL 88/87 de 26/02).
[…]
6\ A sentença recorrida deu como provado que o fogo reivindicado estava a “(…) aguardar a realização de obras de reabilitação, as quais, uma vez concluídas, permitiriam atribuí-la em regime de arrendamento para habitação a uma família carenciada (…)”, (cf. ponto 3 dos factos assentes).
7\ Resulta evidente que o autor pretendia fazer obras no imóvel reivindicado para posteriormente o arrendar (em bom estado de conservação). Por outras palavras, o autor pretendia utilizar o imóvel para esses fins.
[..]
10\ Parece resultar do entendimento sufragado pelo tribunal a quo que o autor só teria direito a uma indemnização por privação de uso, se o imóvel reivindicado estivesse apto a ser arrendado, entendimento que não merece a concordância do autor.
11\ Desde logo, porque não se provou, nem isso foi alegado ou sequer abordado na acção, quais eram as obras que o imóvel estava a aguardar.
12\ Por conseguinte, também não se provou que o imóvel não estivesse em condições de ser arrendado ou usado para habitação de qualquer agregado familiar dele carenciado (e, tanto assim é, que o mesmo está a ser utilizado para habitação, ainda que por terceiro sem título).
13\ Não é, pois, possível concluir pela existência de uma impossibilidade de usar o imóvel pelo simples facto de estar a aguardar obras. A conclusão extraída na sentença recorrida é errada, pois não tem apoio nos factos dados como provados.
14\ A necessidade de obras - por se tratar de eventual factor de desvalorização de um bem imóvel - poderia, quanto muito, relevar para efeitos de determinação do quantum da indemnização a arbitrar ao autor, mas nunca constituir impedimento ao seu reconhecimento.
15\16 De todo o modo […] a verdade é que, na privação de uso de bem imóvel, o dano ressarcível é a indisponibilidade do bem, qualquer que seja o uso que o proprietário faça ou pretenda fazer do imóvel.
17\ A realização de obras (de qualquer natureza, sejam de reabilitação e/ou de conservação ou manutenção) corresponde a uma das muitas utilizações possíveis de um bem imóvel!
18\ Na privação de uso, não é apenas a aptidão de determinado imóvel para ser arrendado que está na génese do direito à indemnização do respectivo proprietário.
[…]
21\ Esta diferença de tratamento, em função da finalidade da utilização dada pelo proprietário, constitui claramente uma solução jurídica que não tem apoio na lei nem na ordem jurídica, porquanto o reconhecimento de uma situação de ocupação ilícita e a atribuição da correspondente compensação ao lesado não está dependente do destino que o proprietário atribua ou pretenda atribuir ao bem imóvel.
[…]
25\ No caso dos autos, enquanto a ocupação persistir, o autor está impedido de se servir do bem, quer para fazer as obras que considerou necessárias, que para colocar o imóvel no mercado de arrendamento em bom estado de conservação e manutenção.
26\ Não é, pois, forçosamente necessário que o imóvel reivindicado estivesse apto a ser arrendado para se reconhecer ao autor uma indemnização pela privação de uso.
[…]
28\ Frustrando-se tal propósito - por força da existência de uma ocupação ilícita do imóvel por parte da ré (reconhecida pelo Tribunal a quo) - impunha-se a atribuição de uma indemnização ao autor pela privação do uso e pelo tempo que perdurar essa ocupação.
[…]
32\ A jurisprudência maioritária e mais recente tende a considerar que, em situações em tudo idênticas à dos presentes autos, no dano da privação do uso, basta provar a existência de uma concreta utilização relevante do bem (cf. acórdão do STJ de 12/07/2018, proc. 2875/10.6TBPVZ.P1.S1), ou, que basta que o lesado demonstre que pretende usar a coisa (cf. acórdão do STJ de 28/01/2021, proc. 14232/17.9T8LSB.L1.S1).
33\ […N]a esteira do entendimento adoptado na sentença, a aptidão do bem reivindicado para ser arrendado estaria então dependente da realização de obras no locado.
34\ Ou seja, quanto mais cedo o autor conseguir fazer as obras, mais cedo o imóvel estará apto a ser arrendado.
35. É, pois, forçoso concluir que a impossibilidade ou demora na realização das obras por força da ocupação ilícita que a ré vem fazendo do imóvel é causa directa e impeditiva da alegada “impossibilidade de uso” do imóvel a que a sentença vem fazer apelo.
[…]
37\ Também por via deste raciocínio se impõe a revogação da sentença nesta parte e consequente atribuição de uma indemnização ao autor.
38\ […A] atribuição ao autor de uma indemnização pelo tempo em que viu e se vê privado do uso do imóvel reivindicado não está dependente da demonstração dos concretos prejuízos (e, nessa medida, do uso que o autor pretendesse dar ao imóvel em causa).
39\ A privação de uso de uma coisa consubstancia uma violação do direito de propriedade e constitui, por si só, uma perda patrimonial, um dano de natureza patrimonial, indemnizável nos termos do disposto no artigo 483 do CC.
[…]
41\ […O] ressarcimento deste dano não está dependente de prova, em concreto, do prejuízo efectivo, sendo suficiente a prova da mera privação temporária do uso (prova essa que, no caso em apreço, foi feita).
42\ Neste sentido, podem ser enumerados a título meramente exemplificativo, os acórdãos do TRL de 03/11/2003, proc. 683/2003-7; do TRL de 06/10/2009, proc. 652/05.5TBSSB.L1-7; e do TRG de 06/11/2012, proc. 326/08.5TBPVL.G1.
[…]
45\ A comparação entre a situação do proprietário que manteve intacto o seu poder de fruição e a de um outro que dele seja privado temporariamente permite concluir que não existe entre ambas uma equivalência substancial.
46\ Verificando-se uma lacuna de natureza patrimonial, correspondente à fatia de poderes de que o proprietário ficou privado, é com naturalidade que deve ser encarada a atribuição de uma compensação monetária, face à constatação de que o simples reconhecimento da ilegitimidade da privação e a condenação na restituição do bem são insuficientes para repor a situação do lesado no estado em que se encontraria caso não tivesse existido tal privação.
[…]
48\ Dito de outro modo, se a privação do uso do bem durante um determinado período origina a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se tal perda não pode ser reparada mediante a forma natural de reconstituição [natural], impõe-se que o responsável, no caso, a ré, compense o lesado na medida equivalente.
49\ No caso em apreço existe ainda um argumento suplementar que suporta o mesmo resultado. A ré não fez prova da existência de um título que a habilitasse a ocupar o prédio reivindicado pelo autor. No entanto, nas situações em que tal título existe, em virtude da existência de um contrato de arrendamento por exemplo, findo o contrato, por qualquer causa, o locatário é legalmente obrigado a pagar ao locador uma indemnização à fortait, nos termos do artigo 1045 do CC, em medida correspondente à renda convencionada, a qual é elevada ao dobro em caso de mora.
50\ Trata-se de uma obrigação de génese legal que nem sequer está dependente da prova da existência de uma utilização lucrativa que o proprietário daria ao locado ou da utilização para habitação, comércio ou qualquer outro por parte do arrendatário, bastando a falta de cumprimento oportuno da obrigação de restituição do bem.
51\ Assim, se uma tal consequência abarca as situações que anteriormente estavam legitimadas por um título de arrendamento, não se encontra motivo algum para uma diferenciação de tratamento que acabasse por beneficiar terceiros alheios ao contrato de arrendamento, apesar de a sua actuação provocar na esfera jurídica do proprietário os mesmos reflexos que, em face do disposto no artigo 1045 do CC, justificam a indemnização à fortait.
[…]
53\ A situação dos autos encontraria, quanto muito, eco nas regras do enriquecimento sem causa, situação que é aliás bastante preconizada pelos diversos autores que se têm debruado sobre a ingerência ou intervenção de uma pessoa em direitos ou bens alheios.
54\55\56\ […A] prova do dano que a conduta da ré lhe provocou […] demonstra[-se com o facto de] que o imóvel se destinava [por imposição legal] a ser colocado no mercado de arrendamento (social) não fosse a conduta ilícita da ré.
[…]
60\ No mesmo sentido, numa situação idêntica à dos presentes autos, veja-se o ac. do TRL de 11/04/2019, proc. 5854/17.9T8ALM.L1 (igualmente invocado como acórdão-fundamento) [sic], onde se pode ler “(…) o autor provou que a privação do acesso ao imóvel lhe causou prejuízos, na medida em que a sua função é a de dar de arrendamento a pessoas carenciadas, imóveis de que seja proprietário, como é o caso do dos autos (…).” [este acórdão não está publicado – ou não foi encontrado – e o autor não o juntou - TRL].
61\ No que respeita ao quantum do lucro cessante com vista à determinação do valor da indemnização, não poderá deixar de se considerar o valor locativo mensal / “renda máxima” indicado pelas testemunhas, a saber 289,87€ (cf. pág. 4 da sentença, igualmente considerado pelo tribunal a quo “(…) uma vez habitável (…)”, por se tratar de uma justa contrapartida pela uso, no mercado livre, do bem, e, em consequência, pela privação de uso, podendo quanto muito, deduzir-se um valor simbólico em função da sua eventual desvalorização por força das obras que aguardava.
[…]
A ré contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso pelas razões sintetizadas pela própria, como se segue [transcreve-se evitando-se apenas algumas das muitas repetições]:
C\ Desde logo, cumpre evidenciar e reter, que foi o próprio autor, na sua PI, a alegar, no seu artigo 3º, que o imóvel “encontrava-se devoluto, entaipado com tijolo e cimento desde 17/08/2018, a aguardar a realização de obras de reabilitação, as quais, uma vez concluídas, permitiriam atribuir o referido fogo em regime de arrendamento para habitação a uma família carenciada.”
D\ [tendo estes factos ficado provados…] foi desde logo a própria autora que reconheceu que […] não usufruía [do imóvel] para o fim a que se destinava (arrendamento a famílias carenciadas) por aguardar que fossem realizadas obras de reabilitação.
E\ Não merece, por isso, qualquer reparo, a decisão recorrida, que entendeu que, pese embora, a mera impossibilidade de uso da coisa causada por uma ocupação indevida seja indemnizável, neste caso concreto, o imóvel não estaria em uso ou a ser usado pela ré, afigurando-se irrelevante uma eventual ocupação indevida por esta, que não se demonstrou ser a causa do não uso do imóvel pelo autor.
F\ Vem o autor, […] faze[r] crer que na sentença recorrida se entende não haver dano indemnizável por o imóvel estar a aguardar obras, não apto a dar de arrendamento a famílias carenciadas e, nessa lógica, que entendeu que se fixou no fim último do imóvel, que seria o arrendamento.
G\ Cremos que não assiste qualquer razão a este argumento, porquanto o imóvel não era passível de ser usado para qualquer fim, fosse arrendamento ou obras, porque estava entaipado e sem uso a aguardar obras que o autor não demonstrou que alguma vez tenham estado agendadas, programadas ou que não foram realizadas por conta de uma eventual ocupação.
H\ Ficou, aliás, não só demonstrado que a ré não ocupava o imóvel, como não resultou demonstrado que o imóvel continuasse ocupado; não devendo, por isso ser imputada a não realização das obras a qualquer ocupação indevida do imóvel.
I\ Para além do mais, é facto público e notório, do conhecimento geral, infelizmente, que os imóveis propriedade do autor permanecem largos anos a aguardar a realização de obras de reabilitação, permanecendo por demonstrar, pelo autor, quando teriam ocorrido as obras ou que não ocorreram por conta de uma ocupação indevida, que o imóvel estaria em uso, fosse qual fosse esse uso, e não entaipado e devoluto.
[…]
K\ Cremos que, para a teoria propugnada pelo autor ser procedente, este teria de demonstrar que o único motivo para a não realização das obras seria uma ocupação indevida. O que não aconteceu.
L\ O autor argumenta a impossibilidade de conclusão do não uso do imóvel com base no facto de este estar a aguardar obras, mas o tribunal não extraiu essa conclusão infundadamente, essa factualidade foi alegada pelo autor, extraída da confissão da ré e confirmada pela prova testemunhal, revelando-se infundado, sim, vir agora tentar demonstrar o contrário.
[…]
N\ Concedemos que, tal como alega o autor, uma compensação ao lesado não está dependente do destino que o proprietário pretenda atribuir ao bem e que basta que este alegue e prove a frustração do seu propósito de utilização, no entanto, será imprescindível que terá de ser um lesante a causar tal frustração do fim que o proprietário pretende dar ao bem. No caso que nos detém, não foi a ré ou qualquer conduta por si praticada que originou a frustração de qualquer propósito que o autor quisesse dar ao imóvel (seja ele o de fazer obras ou dar de arrendamento).
O\ […] dos acórdãos referidos [pelo autor] resulta sempre a mesma evidencia: que o lesado teria de propor-se a aproveitar do bem e tirar partido das vantagens e utilidades que lhe são inerentes, só não o fazendo por estar impedido pela conduta do lesante.
[…]
V\ Ainda, que nunca tivesse ocorrido uma ocupação indevida, o mais certo é que o imóvel permanecesse entaipado e o autor continuasse sem obter qualquer rendimento ou sem fazer uso da fracção.
[…]
X\ Foi […] considerado provado pelo tribunal a quo, […] que a poucos dias depois de se ter dado notícia da ocupação do imóvel já a ré tinha regressado à casa arrendada com o companheiro, pelo que vir o tribunal condená-la ao pagamento de indemnização, arbitrada ao longo de anos, pela privação de uso, […] seria de uma injustiça intolerável.
Y\ Residiria numa condenação totalmente destituída de lógica ou fundamento factual ou legal, que não conduziria a qualquer reconstituição natural da situação ou recomposição da situação danosa, como alega o autor.
Z\ Não se vislumbra, nem o autor esclarece como uma ocupação do imóvel e a inexistência de um título que habilitasse a ré a ocupá-lo, origina uma equiparação à situação de atraso de entrega do imóvel nos casos de arrendamento e no subsequente dever de indemnizar, quando a ré chegou mesmo a provar que não ocupa o imóvel e que a inutilização do bem não se deve a qualquer ocupação indevida da sua parte.
AA\ Nos casos de atraso na entrega do imóvel, duvidas não restam que o direito de propriedade do senhorio fica restringido por essa retenção, caso não existam outras causas concorrente para esse efeito, no entanto, no caso […], qualquer restrição de direitos da proprietária não teve causa na conduta da ré.
BB\ Finda, o autor, na tentativa de fazer prova de dano existente provocado pela conduta da ré, alegando que o imóvel se destinava a ser colocado no mercado de arrendamento não fosse a conduta ilícita da ré a impedir tal desiderato, devendo, no entanto, improceder tal raciocínio, porquanto […] o imóvel não foi arrendado porque aguardava a realização de obras de reabilitação […]
CC\ Disserta o autor sobre a quantificação do lucro cessante com vista à determinação do valor da indemnização, considerando a “renda máxima” indicada pelas testemunhas e em montante mensal de €289,87 (montante muito superior ao peticionado que se cifrava em €169,18) por considerar uma “justa contrapartida pelo uso, no mercado livre, do bem, ficamos, porém, por saber o que motiva este raciocínio, porque também ficou devidamente definido, em sede de audiência de discussão e julgamento, que para definição da renda mensal é tida em consideração não só as características de qualquer imóvel, apto para arrendamento, como o rendimento do agregado familiar que irá habitar o imóvel; pelo que não há qualquer forma de “adivinhar” ou evidenciar uma eventual renda a aplicar ao imóvel em causa.
[…]
Questão que importa decidir: se a ré devia ter sido condenada a pagar ao autor a indemnização por este pedida.
*
Os factos provados que interessam à decisão desta questão são os seguintes:
1\ Encontra-se inscrita a favor do autor, por apresentação n.º 3, de 16/12/2015, a aquisição, por transferência de património, da fracção autónoma designada pela letra “E”, correspondente ao 1º andar B do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua A, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 1 da freguesia de S e inscrito na matriz sob o artigo 2.
2\ A referida fracção encontrava-se devoluta e entaipada com tijolo e cimento desde Agosto de 2018.
3\ A aguardar a realização de obras de reabilitação, as quais, uma vez concluídas, permitiriam atribuí-la em regime de arrendamento para habitação a uma família carenciada.
4\ Em 05/11/2019, uma moradora do prédio comunicou ao autor que havia ocorrido uma tentativa de arrombamento por parte de quatro jovens, tendo informado a PSP.
5\ Em 11/11/2019, o autor recebeu uma outra comunicação da mesma moradora a informar que estavam a montar uma fechadura e via pessoas a subirem e descerem escadas com sacos.
6\ O autor participou a ocupação e solicitou a colaboração da PSP para identificação dos ocupantes da habitação.
7\ No dia 14/11/2019 deslocou-se às instalações do autor a ré que declarou: “Ocupei uma casa da vossa instituição por motivo de estar a sair de uma habitação arrendada o senhorio quer a casa. Ocupei, pois os meus rendimentos e do meu marido não dão para alugar outra (…) Quero chegar a acordo sem qualquer problema”.
8\ Entretanto, o autor recebeu a resposta por parte da Polícia Municipal de Lisboa, confirmando a identificação da ocupante, ora ré, com quatro filhos menores, com idades compreendidas entre 1 e 8 anos de idade.
9\ O autor endereçou uma carta à ré, datada de 20/12/2021, enviada para a morada da fracção referida em 1\, solicitando a desocupação e entrega da habitação, no prazo de 10 dias úteis.
10\ Após a sua identificação pela Polícia Municipal, alertada de que não poderia permanecer no local, e da sua deslocação às instalações do autor, a ré deixou o imóvel, tendo ido novamente para a casa arrendada de onde tinha saído dias antes.
11\ A ré já não ocupa o imóvel, mas entregou as chaves do mesmo a terceira pessoa.
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A fundamentação da sentença recorrida, quanto à absolvição do pedido, em síntese:
Peticiona ainda o autor a condenação da ré no pagamento de uma indemnização de 169,18€ mensais, desde Novembro de 2019 até à entrega livre e devoluta de pessoas e bens.
A jurisprudência tem divergido sobre a questão da indemnização pela privação do uso, entendendo uns que dependerá da prova do dano concreto, isto é, da prova da existência de prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem, enquanto outros defendem que a simples privação do uso, só por si, constitui um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça ou não faça do bem em causa, durante o período da privação.
Entendo, conforme decidido no acórdão do STJ de 03/05/2011, [proc. 2618/05.06TBOVR.P1 – diz respeito à privação do uso de um automóvel – parenteses deste TRL] que o que na essência define o dano da privação do uso, independentemente de outros prejuízos concretos que possam alegar-se e provar-se associados a essa ocorrência (danos emergentes e lucros cessantes), é a impossibilidade de usar a coisa por virtude da conduta ilícita do lesante, e enquanto essa impossibilidade subsistir.
Não obstante, resultou demonstrado que o imóvel estava entaipado e a aguardar obras de reabilitação para, então, poder ser arrendado. Ou seja, o imóvel não era possível de ser usado - para os fins a que se destina – independentemente da conduta da ré, pelo que, nesta parte, não procede a pretensão do autor.”
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Apreciação:
Responsabilidade civil
A possibilidade de uso de uma coisa faz parte do conteúdo de um direito de propriedade (art.º 1305 do CC). A violação dessa possibilidade corresponde à ilicitude da conduta como pressuposto da responsabilidade civil (art.º 483 do CC). Mas o dano é um outro pressuposto daquela responsabilidade, pelo que algo mais terá de acrescer. Esse algo mais é a privação de concretas vantagens decorrentes da possibilidade de uso de uma coisa (neste sentido, Paulo Mota Pinto (Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, vol. I, Coimbra Editora, 2008, páginas 568 a 596, especialmente a partir 568 a 577 e 585 a 596), naturalmente provocada de forma adequada pela conduta do lesante (nexo de causalidade – um outro requisito da responsabilidade civil). 
“O dano da privação do gozo ressarcível é, assim, a concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda da possibilidade de utilização do bem – a qual pode não ser concretizável numa determinada situação” (Paulo Mota Pinto, obra citada, págs. 594-596).
A jurisprudência mais ou menos consolidada do STJ tem ido, no entanto, no sentido de que a privação de uso de bem imóvel, sendo um facto ilícito, “configurará também um dano indemnizável se puder concluir-se que o titular do respectivo direito se propunha aproveitar e tirar partido das vantagens ou utilidades que lhe são inerentes, só o não fazendo por disso estar impedido em virtude do facto ilícito. Para tanto, bastará, […], que os factos adquiridos para o processo mostrem que o lesado usaria normalmente a coisa” (na síntese do ac. do STJ de 01/03/2018, proc. 4685/14.2T8FNC.L1.S1).
O que, pelo menos acaba por ser uma forma de dar relevo à “concreta vontade ou possibilidade de utilização da coisa” pelo seu proprietário de que fala Paulo Mota Pinto (obra citada, pág. 591).
Pelo que, mesmo nesta versão menos rigorosa dos pressupostos da responsabilidade civil (a mais rigorosa, que se considera ser a citada, de Paulo Mota Pinto, foi seguida no voto de vencido do ac. do STJ de 17/11/2021, proc. 6686/18.2T8GMR.G1.S1, e no ac. do TRL de 10/11/2020, proc. 8625/18.1T8LSB.L1-7), não basta a verificação da simples privação da possibilidade de uso do bem.
Assim, por exemplo, entre muitos outros:
O acórdão do STJ, de 08/05/2007, proc. 07A1066:
“2. A mera privação (do uso) da fracção reivindicada, impedindo, embora, o proprietário do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição nos termos do art.º 1305 do CC, só constitui dano indemnizável se alegada e provada, pelo dono, a frustração de um propósito real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante.”
O ac. do STJ de 03/10/2013, proc. 1261/07.0TBOLHE.E1.S1:
I - A privação do direito de uso e fruição integrado no direito de propriedade configura, por si só, uma desvantagem económica que se reflecte necessariamente no valor do mesmo.
II - Em decorrência da teoria da diferença consagrada no n.º 2 do art.º 566.º do CC, tal dano – normativo e meramente abstracto – não é autonomamente ressarcível, só o sendo quando se reconduz a dano emergente ou lucro cessante.
III - O ónus de alegação e prova de tais danos incumbe ao lesante.
IV - A fixação equitativa da indemnização supõe a existência de limites quantitativos provados.
V - Se na pendência de uma acção de reivindicação os autores não logram provar os danos emergentes (impossibilidade de habitar e fazer obras no prédio) e lucros cessantes (frustração efectiva do arrendamento do imóvel) por si invocados, fica inviabilizado o recurso à equidade para determinação da indemnização pela privação do uso.
[…]
O ac. do STJ de 07/03/2017, 3585/14.0TBMAI.P1.S1:
V - Competindo ao lesado provar o dano, não basta a prova da privação da coisa, sendo ainda necessário que o autor demonstre que dela pretende retirar utilidades que, normalmente, lhe seriam proporcionadas se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante).
Um dos acórdãos - do TRE de 03.12.2020, proc. 436/19.3T8SSB.E1 - que o autor cita, só no corpo das alegações, no sentido do que defende, mas apenas dos seus dois primeiros números, tem um sumário inaceitável [porque dá a ideia de que o acórdão segue as três posições referidas a seguir, todas ao mesmo tempo] que não foi elaborado pela respectiva relatora (que em nota [17] diz: Não se elabora sumário porquanto o decidido assenta na reapreciação da matéria de facto, sendo casuístico e não revestindo interesse para publicação), sendo que os três primeiros números do sumário correspondem às três teses que se diz que são seguidas pela jurisprudência sobre o assunto [na síntese feita pelo ac. do STJ de 01/03/2018, proc. 4685/14.2T8FNC.L1.S1, tal como explicado pela relatora], e o acórdão segue a segunda [não concedendo a indemnização no caso concreto], não a primeira.
Veja-se:
i) a simples privação de uso do imóvel consubstancia, em si, um dano concreto, estando o proprietário ofendido dispensado de alegar e provar o fim a que se propunha afectá-lo ou que virtualidade de uso pretendia extrair dele.
ii) sendo um facto ilícito, a privação de uso de bem imóvel configurará também um dano indemnizável se puder concluir-se que o titular do respectivo direito se propunha aproveitar e tirar partido das vantagens ou utilidades que lhe são inerentes, só o não fazendo por disso estar impedido em virtude do facto ilícito; para tanto, bastará, todavia, que os factos adquiridos para o processo mostrem que o lesado usaria normalmente a coisa.
iii) a obrigação de indemnizar neste campo pressupõe, para além da privação de uso – facto ilícito –, a demonstração dos demais pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente, a verificação de um concerto e específico dano patrimonial.
Não se considera correcta, pois, a posição de alguma outra jurisprudência, que entende que há um dano já na simples privação da possibilidade de utilização do bem, independentemente da possibilidade e/ou vontade de utilização da coisa pelo proprietário.
Assim sendo, quando está provado que o proprietário do bem não teria a possibilidade, por facto que não tem a ver com o lesante, ou a vontade de utilizar a coisa, não se pode verificar o dano que é pressuposto da responsabilidade civil.
É o que se passa no caso dos autos pois, como diz a ré, foi o próprio autor que, na petição inicial, logo alegou aquilo que veio a ser dado como provado, isto é, que o imóvel encontrava-se devoluto e entaipado com tijolo e cimento desde Agosto de 2018, a aguardar a realização de obras de reabilitação, as quais, uma vez concluídas, permitiriam atribuí-la em regime de arrendamento para habitação a uma família carenciada, até que, por um curto período iniciado entre 05 e 11/11, ela veio a ser ocupada pela ré (factos provados 2 a 5).
Ou seja, enquanto o autor não fizesse obras no imóvel, o arrendamento – o destino normal do imóvel para o autor -, não seria possível; e o autor tinha o imóvel entaipado com tijolo e cimento desde Agosto de 2018, isto é, há quase 15 meses, sem ter feito essas obras, e sem por isso poder utilizá-lo para aquele fim, não por força da actuação da ré, mas sim por acto que é imputável a ele próprio.
Como se diz no citado ac. do STJ de 03/10/2013, proc. 1261/07.0TBOLHE.E1.S1, “o proprietário absentista que não usa nem cede o uso nem tenciona fazê-lo, isto é, o que não aproveita nem permite que os outros aproveitem, não sofre dano de privação do uso, pois que nenhuma desvantagem patrimonial lhe advém da eventual actuação de terceiro susceptível de impedir o seu uso…”
É irrelevante, para benefício do autor, que o imóvel estivesse a aguardar a realização de obras, pois que não se diz que o autor já as tivesse planeado ou as estivesse a preparar, e na data da ocupação a situação prolongava-se por mais de 15 meses, sem qualquer facto que apontasse para a sua realização próxima. Ainda de outro modo, ao contrário do que o autor diz, na sentença não se dá como provado que o autor pretendia fazer obras no imóvel, mas, sim, que o imóvel aguardava obras.
Não era à ré que cabia provar de que obras o imóvel carecia, nem que sem elas o imóvel não podia ser dado de arrendamento; o que importa é que o próprio autor não o deu de arrendamento porque a fracção estava a aguardar a realização de obras, num reconhecimento implícito de que sem elas o imóvel não podia ser arrendado, ou pelo menos assim se podendo presumir, até porque, senão fosse assim, seria incompreensível que o autor o tivesse entaipado e não o tivesse arrendado, numa negação daquela que diz ser a finalidade dos imóveis.
A realização de obras não é uma utilização possível de um imóvel; faz-se obras para que um imóvel possa servir para a sua finalidade. De qualquer modo, repete-se não se provou que o autor destinasse o imóvel à realização de obras ou o pretendesse reabilitar e não é pelo facto de o autor o repetir muitas vezes que tal passa a ser verdade; o que o autor teria de ter feito, se queria dar como provado tal facto, era ter impugnado a decisão da matéria de facto, se tivesse motivos para tal.
Tendo decorrido 15 meses até à ocupação do imóvel, sem obras, não é verdade, ao contrário do que o autor pretende, que a realização de obras tenha sido impedida pela ocupação do imóvel.
A sentença recorrida não disse, em lado algum, que a atribuição da indemnização estivesse dependente da demonstração da prova de concretos prejuízos, e também este acórdão não o está a dizer.
A invocação do regime do arrendamento não serve de argumento válido, porque o facto de estar vigente um arrendamento serve para demonstrar a possibilidade e vontade de utilização do imóvel e, no caso, demonstrou-se o contrário.
Em suma, considera-se que a sentença recorrida tem razão.
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Enriquecimento sem causa
Apesar do que antecede, há que ter em consideração que os factos alegados pelo autor, todos eles, configuravam um pedido de indemnização por responsabilidade civil, mas, parte deles, sem a referência aos prejuízos, podiam fundamentar também um pedido de restituição do enriquecimento sem causa.
Pelo que, o facto de improceder o pedido com base na responsabilidade civil, não implicava, sem mais, a improcedência do pedido, pois que este poderia proceder com base no enriquecimento sem causa. Desde que se provassem estes pressupostos e desde que o pedido não fosse lido apenas formalmente, ou seja, como pedido de uma indemnização, mas materialmente como o pedido de uma quantia, que pode indemnizar prejuízos ou restituir o enriquecimento.
Assim, por exemplo,
O já citado ac. do STJ de 03/10/2013, proc. 1261/07.0TBOLHE.E1.S1, apesar de ter absolvido os réus do pedido de indemnização, condenou-os à restituição do enriquecimento sem causa [sendo que este tinha sido feito subsidiariamente]:
VI - Sem embargo do referido em II e V, a ocupação do prédio pelos réus, beneficiando das vantagens de um bem alheio, sem título que o legitimasse, durante os quase nove anos em que, por via dos sucessivos recursos por si interpostos, esteve pendente a acção, legitima o reconhecimento de um crédito aos autores com fundamento no enriquecimento sem causa.
VII - São pressupostos do enriquecimento sem causa: a) a existência de um enriquecimento; b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.
VIII - À custa de outrem não significa necessariamente que o credor da restituição seja empobrecido, mas apenas que o valor que entra no património do enriquecido corresponde ao que foi obtido com meios ou instrumentos pertencentes ao credor da restituição.
IX - Nos casos de enriquecimento sem causa fundado na utilização de bens alheios o valor da restituição é o valor de exploração, aferido pelo critério do valor objectivo dos bens.
X - Se as partes reconhecem um valor locativo ao prédio cujo valor concreto não se apurou, nada impede a condenação das rés a restituir aquele que se venha a provar em incidente de liquidação.
O mesmo se disse ser possível fazer no já citado ac. do STJ de 01/03/2018, proc. 4685/14.2T8FNC.L1.S1:
E ainda que se adoptasse como mais correcta a terceira das referidas teses, concluindo, dada a falta de demonstração de um prejuízo efectivo, pela inexistência da obrigação de indemnizar com base na responsabilidade civil, sempre seria de lançar mão do instituto do enriquecimento sem causa – art.º 473 do CC.
Foi o que esclarecidamente se entendeu nos acórdãos deste STJ de 03/10/201, proc. 1261/07.OTBOLH.E1.S1, e de 22/01/2013, proc. 3313/09.2TBOER.L1.S1, neste último se podendo ler sobre a matéria seguinte [entre o mais]:
Nada impede que na falta de dano reparável se ordene a restituição do enriquecimento verificado, considerando, por um lado, que isso não envolve infracção do disposto no art.º 664 CPC (alteração da causa de pedir) e, por outro, que assim se obedece à determinação legal acerca da natureza subsidiária da obrigação fundada neste instituto. Este STJ já decidiu no sentido exposto em mais do que uma ocasião. Assim, por exemplo, no acórdão de 23/03/1999 (CJ Ano VII, tomo I, pág. 172) e no acórdão de 26/05/2009, proc. 09A0531).
O mesmo se fez, no ac. do TRL de 27/09/2018, proc. 11680/15.2T8LRS.L1-6, sendo que, neste caso, nem sequer havia pedido subsidiário:
7. Para o efeito em apreço nos autos, mesmo provando-se o valor de arrendamento do imóvel, sempre faltaria demonstrar que a casa se destinava a arrendar, ou seja, que era esse o destino a dar-lhe pela proprietária inscrita;
8. Se nada sabemos sobre a utilidade económica que se pretendia extrair do bem, nada sabemos da existência de dano;
9. Faltando este pressuposto da responsabilidade aquiliana, não existe obrigação de indemnizar;
10. Sob um tal contexto, será ao nível da figura do enriquecimento sem causa que se deverá obter o valor relativo à utilização não titulada do imóvel;
11. Não estando posto em causa ter o bem valor locativo, será ao valor de arrendamento do mesmo no período de tempo de privação, que se venha a apurar em incidente de liquidação, que corresponderá o enriquecimento.
Posto isto,
Os pressupostos do enriquecimento sem causa são três (art.º 473 do CC), já se viu: a) a existência de um enriquecimento; b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.
O enriquecimento tem de ser provado e tem de ter um mínimo de relevância, o que não sucede no caso dos autos donde consta, como facto provado sob 10, que “após a sua identificação pela Polícia Municipal, alertada de que não poderia permanecer no local, e da sua deslocação às instalações do autor, a ré deixou o imóvel, tendo ido novamente para a casa arrendada de onde tinha saído dias antes”, pois que um período, não concretizado suficientemente, de apenas uns “dias antes” não assume essa relevância: perante a prova de que se tratou de uma ocupação por apenas uns dias, pode-se estar perante uma simples bagatela (tanto mais que a fracção em causa precisava de obras para poder ser arrendada e o enriquecimento teria de ter em conta as condições socioeconómicas da ré – com 4 filhos menores - e o valor da renda mensal de que o autor falava na PI era apenas de 169,18€), cabendo ao lesado alegar e provar factos que afastassem essa hipótese.
Ou seja, se o período de permanência da ré na fracção pode ser irrelevante para efeitos do pedido de restituição da fracção e também para efeitos da indemnização da privação do uso do bem (a ter-se provado), pois que então era a situação do lesado que se tinha de ter em conta, já para o enriquecimento sem causa esse período é relevante, pois que o enriquecimento se tem de verificar no demandado (e este estava dependente do aproveitamento da ocupação da fracção por um período de tempo e por um valor que se pudessem entender como minimamente relevantes).
Pelo que, também pelo enriquecimento sem causa não se justificaria a condenação da ré.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Sem custas porque o IHRU está isento delas (art.º 4/1-g do RCP).
Lisboa, 20/06/2024
Pedro Martins
Laurinda Gemas
Arlindo Crua